junho 30, 2006

Os tablóides ingleses no Palace

1. É evidente que os "tablóides" ingleses são grosseiros. Em matéria de futebol são tudo o que tenho criticado nesta coluna patrióticos e excêntricos. As suas primeiras páginas, em épocas de Mundial e de Europeu de futebol são a prova de que podem ser maravilhosos na euforia e trapaceiros quando é necessário abater o adversário. Desta vez, parece que se excederam - mas é material para consumo interno, para euforia doméstica, para desempregados do espírito. Coisa miserável, como de costume. Aprendam.

2. Elegância absoluta de Sven-Goran Eriksson a propósito do Portugal-Inglaterra de amanhã "Digam o que disserem, nunca sentirei que sou eu contra o Scolari. Nunca conseguirão pôr isso na minha cabeça. É a Inglaterra contra Portugal." Duas equipas em campo, exactamente. Mas Eriksson alerta, como Scolari, contra os perigos do bom futebol: "A Costa do Marfim, o Gana, a Holanda e a Espanha jogaram muito bem. Onde estão agora? Em casa." Portanto, significará isso que a Inglaterra jogará ainda pior do que tem jogado até agora?

3. A FIFA tomou uma curiosa decisão no caso dos "auto-golos", a propósito do caso Argentina-México, quando Jared Borgetti marcou na sua própria baliza, numa luta com Hernan Crespo. Quem marcou? Crespo ou Borgetti? Crespo, diz a FIFA, porque Borgetti não tinha intenção de marcar - e Crespo sim. Quando a FIFA toma uma decisão devemos, em primeiro lugar, estar contra, naturalmente; mas desta vez não parece a FIFA a falar. A "intenção de marcar" vai fazer lei e, pelo menos nas estatísticas, vai deixar de humilhar as defesas azaradas.

4. O Vidago Palace Hotel é um dos melhores hotéis que conheço pelos seus bosques, pela espécie de floresta fantástica que o rodeia (e que na minha adolescência era mais densa e maior), pelo edifício belíssimo. Há uns dias, havia uns hóspedes espanhóis que aguardavam o dia em que, sem saberem, seriam eliminados pela França; agora, umas famílias inglesas passam pela sala da televisão e interrogam-se mutuamente sobre o que acontecerá no sábado. Até nisso o Palace é de bom presságio: não tem tablóides à venda.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 30 Junho 2006

junho 29, 2006

Onze de cada lado e no fim Portugal ganha

1. A ideia, que se vai tornando vulgar pelo país fora, de que "os críticos" mereciam o degredo ou, no mínimo, que fossem enxovalhados na praça pública, é cruel para a selecção e para todos os que gostam de ver o jogo. O futebol sempre foi um desporto de bancada - e, na bancada, sempre sobraram críticas e faltou a unanimidade. Com o advento do ópio pela televisão e da febre patriótica, o futebol passou a ser uma ditadura que às vezes se torna indigesta e paranóica. Cidadãos falam em directo pela rádio, ao telemóvel, no meio dos festejos, e insultam Pacheco Pereira por este não gostar de futebol. Eu recebi mails de leitores indignados com a minha alegada falta de entusiasmo pela vitória contra a Holanda, mas lamento desiludi-los não tenho feitio de evangelizador nesta nova fase em que os adeptos fanáticos da pátria em chuteiras se tornam enjoativos e repetitivos. Também não compreendo que as televisões se entretenham a entrevistar adeptos que se limitam a gritar, enrouquecidos, "somos os maiores", "vamos comê-los" e outras originalidades. Mas talvez o defeito seja meu.

2. Nem Espanha nem o Gana continuam. Nem o futebol dos miúdos nem o futebol africano. Ficam o cálculo e o mata-mata. De todas as selecções que restam, a Alemanha garantiu até agora o futebol menos mau. O meu Brasil também desiludiu, vegetando na preguiça. Mas talvez o defeito seja meu. De resto, Portugal jogará à Scolari nos quartos-de-final e isso deixa-me menos intranquilo. No fundo, tenho viagem marcada a 10 de Julho e inventei uma regra tresloucada: o futebol é um jogo com onze jogadores de cada lado e no final Portugal ganha. Gostavam?

3. Passo estes dias no meio das florestas. Castanheiros, nogueiras, pinheiros verdes, olmos altíssimos, carvalhos que ainda restam nas serras do meu país - férias justas, adianto. Se vêm com a tontice da pátria futebolística, eu argumento com isto, o meu país de árvores que ainda não arderam. Até sábado, só até sábado, peço que esta tranquilidade permaneça.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 29 Junho 2006

junho 28, 2006

O mau perder por causa deles

1. Queriam, portanto, que eu dissesse "que lindo que foi a vitória da França", "que feliz que fiquei com o golo de Zidane" e outras frases do género. Fiquem desiludidos. Eu perdi - queria que a Espanha ganhasse, que Torres fizesse o seu futebol, que Cesc exercesse as suas prerrogativas e fizesse aqueles passes de mágica. Infelizmente, estamos na fase do "mata-mata", como gosta de dizer Scolari. Aquela fase que não conta com o bom futebol e apenas com a eficácia frontal do contra-ataque, dos golos obtidos depois de esgotar o adversário com o "brilhante quarteto defensivo". Tenho mau perder - perdi mal. Espanha foi derrotada e bem derrotada. Mas não digo "ah, que bonito esse golo de Zidane" nem lamento que Cesc se tivesse transformado, ao longo do jogo - como Xavi - num jogador inoperante. A Espanha perdeu, já não vai derrotar o Brasil. Eu perdi. Tenho mau perder.

2. A Itália passou em frente com o favor do árbitro; Adriano marcou o segundo do Brasil com a cegueira do árbitro. Tenho mau perder, custa-me aceitar essa tristíssima realidade.

3. Uma coisa é ter mau perder; outra é ter mau ganhar. Ganhar um jogo e viver a vitória, cada vitória, como uma vingança, é suficientemente mau para poder ser visto como questão de carácter. Assusta-me que aos jogadores portugueses não lhes baste ouvir multidões a gritar pelo país fora, a quase generalidade da imprensa domada e domesticada, as autoridades embevecidas. Devia bastar - e acostumarem-se com as críticas e as evidências. O país vive em alta, submetido à tempestade da vitória, à promessa de redenção. Estamos com os oito finalistas; tamanha glória emudece os críticos. Temo bastante que a devassidão da vitória continue, mas apetece ganhar à Inglaterra. Confesso o hooliganismo apetece-me ganhar sobretudo por causa deles. A humilhação faz parte do futebol. Tenho mau perder e uma indignação que vem desde 1966. Ganhar-lhes em 1986, em 2000 e em 2004 não bastou. É preciso mais. Nem que o preço seja metade dos portugueses ficarem a bater mal da bola.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 28 Junho 2006

junho 27, 2006

O fazedor de histórias

Francisco José Viegas não é homem de se pôr em bicos de pés, nem mesmo agora que o seu romance Longe de Manaus ganhou o Grande Prémio da APE. «Não vou passar a fazer literatura», ironiza

A conversa havia de ser ao almoço, mais por gosto do que por falta de tempo. Desde que aceitou ser director da Casa Fer­nando Pessoa, os dias parecem-Ihe curtos mas existem sempre as madrugadas que descobriu serem boas para se sentar ao computador e escrever. Está adiantado o novo romance - na Pri­mavera leremos o que acontece ao seu de­tective de eleição, Jaime Ramos, na Terra de Fogo. E depois há ainda as crónicas no Jornal de Notícias, na Elle e na Volta ao Mundo, um programa sobre livros na An­tena 1, mais outro na RTP, comentários sobre o Mundial de Futebol na rádio...

É assim há quase cinco meses, foi quase sempre assim. Isto quando não lhe dá para as insónias, para olhar o tempo de frente, esperar pela manhã e ler um livro como sugeria James Joyce. Ou publicar mais um post no seu blogue “A Origem das Espécies”, um vício assumido.

Diz que o Grande Prémio de Romance e Novela da APE 2005, que vai receber no sábado, 24, por Longe de Manaus, tem, pelo menos, a virtude de garantir aos fi­lhos (Francisco, 13 anos, Manuel, 12, e Maria João, 7) não ter escrito mal este «romance policial com estados de alma».

A modéstia fica bem ao jornalista e escri­tor Francisco José Pereira de Almeida Vie­gas, 44 anos, aqui em discurso directo.

VISÃO: Há 20 anos imaginava que estaria hoje a receber um prémio da APE?
FRANCISCO JOSÉ VIEGAS: Nem me imagino daqui a dois anos! Quantas pessoas dizem: «Ah, pró ano hei-de...» Eu não tenho uma agenda, objectivos estratégicos.

E há 20 anos estava onde?
Era professor em Évora.

Como é que de repente...
Foi porque o António Mega Ferreira me convidou para chefe de redacção da Ler. Na altura trabalhava também no Jornal de Letras, achava que era bom ter dois empre­gos para poder mandar um dos patrões à merda. [risos] Entretanto, reunia materiais para a tese de mestrado, tudo certinho. Mas o Mega diz-me: vamos fazer uma re­vista de livros. E eu largo tudo.

Ia perguntar-lhe como vai para professor.
Vou para professor porque acabei o curso [de Estudos Portugueses]. Tinha estado na Universidade Nova, em Lisboa, e ge­ria um restaurante em Algés. Ainda te­nho um livro de linguística cujas marcas são notas de remessas de talho.

Era um bocadinho esquizofrénico.
Era repartido. Ia ao restaurante e depois a uma aula de literatura brasileira, saía do restaurante e estudava Chomsky. Entre­tanto, acabei o curso sem uma perspec­tiva clara daquilo que ia fazer. Podia ser o mestrado, tinha 18 de média... Mas vi um anúncio da Universidade de Évora, achei que era um lugar bonito e concorri. Ainda dei aulas de 1983 a 1987.

A ida para o restaurante também já acontecera por causa de um anúncio?
Não, aí havia uma relação de familiariedade com a pessoa que tinha o espaço. Chamava-se Gelfa, já não existe, mas ainda há quem se lembre de me ver a fazer bifes nas mesas ao jantar de sexta-feira.

Já disse que há 20 anos não se projectava no futuro. E há 40 anos? O que queria ser o menino Francisco, quando fosse grande?
Sei que durante o liceu queria ser jorna­lista. Mas foi uma infância tão feliz que não me lembro de nenhuma profissão que nessa altura, quisesse ter. Passeava pela serra, ia para o rio, andava de bicicleta, ti­nha amigos, uns avós e uns pais magnífi­cos. Correu bem, não tem história.

Mas como é que nasce em Foz Côa?
A minha mãe, que se chama Margarida, dava aulas numa escola primária ali perto, numa terra chamada Foz do Sabor. Nesse dia, ela atravessou o rio de barco e foi ter com os meus avós ao Pocinho. Ele era ope­rário metalúrgico da CP e ela doméstica. Levaram-na para o hospital de Vila Nova de Foz Côa e eu nasci normalmente.

O seu pai já estava em Angola?
O meu pai, que se chama Francisco, era professor primário mas estava a fazer o serviço militar em Viseu. Foi para Luanda pouco depois de eu nascer. Até 1965, vivi com a minha mãe em Cedovim.

Portanto, ao contrário do que rezam as notas biográficas, não viveu no Pocinho.
Vivi entre Cedovim e o Pocinho. E até aos meus 17 ou 18 anos, o Pocinho era o meu universo, cumpria as minhas exigên­cias de visão do mundo. Tinha o meu rio, o Douro, alguns amigos importantes, os meus avós. Eram grandes férias.

Porque os Viegas mudam-se para Chaves.
O meu pai regressa de África, ainda dá aulas em Cedovim, mas ele e a minha mãe queriam ir para uma cidade. Foi um choque. Eu tinha 6 anos e estava habitua­do a uma aldeia onde nevava e ficávamos incomunicáveis. Havia uma coisa lindís­sima nisso: ao fim de duas semanas, che­gava pelo correio um pacote enormíssimo com o Jornal de Notícias. Eram 15 edi­ções! Foi o jornal por onde aprendi a ler, aos 4 anos.

Tínhamos, portanto, um menino-prodígio?
Não! Os meus pais eram professores, as letras não me eram estranhas. O meu pai lia o JN todos os dias, eu gostava das ban­das desenhadas do Dr. Kildare e da Lola, via os desenhos e as letras. Um dia, co­mecei a ler os títulos do jornal.

Tem 4 anos quando acaba o seu reinado de filho único.
O meu pai vem de África e nasce a mi­nha irmã Eleonora. Não foi nenhum choque. Dei-me sempre muito bem com ela. Hoje, é juíza do Supremo Tribunal Admi­nistrativo, em Lisboa.

Entretanto, começa a ler alguma coisa além de cabeçalhos de jornal?
Em Cedovim, havia coisas como a Audácia [risos], que era a revista dos missionários combonianos, a Fagulha, da Mocidade Por­tuguesa, e os livros dos meus pais.

Os clássicos?
Com os clássicos comecei aos 10 ou 12 anos. Li o Júlio Diniz, de que gosto muito, o Eça, e dois livros marcantes para mim, do Camilo: o Maria Moisés, que se passava em Montalegre, muito chato, e O Retrato de Ricardina. E bastou o meu pai dizer para não ler O Crime do Padre Amaro...

Os seus pais eram conservadores?
Não. Deram-me uma educação liberal. Nunca houve indicações claras do tipo: o que tens de ler, o que tens de esco­lher, o que tens de fazer. Mas havia a noção da responsabilidade: o que tu estudas é contigo, depois estamos cá para te avaliar.

Como era Chaves no final dos anos 70?
Era uma cidade especial, com biblioteca, muitas livrarias. Ao sábado, ia com um amigo, o Manel Francisco, decorar a mon­tra da Ana Maria. E fazíamos sugestões sobre os livros a pedir, guiados pelo Bookcionário do Fernando Assis Pacheco, n'O Jornal. Aliás, a minha primeira crítica li­terária foi dele, em 1978. Tínhamos um grupo que fazia edições policopiadas, os Cadernos do Largo das Freiras...

Que nome delicioso.
O Largo das Freiras era o centro de Cha­ves, onde ficava o café-bar Aurora e o li­ceu. Fizemos três ou quatro publicações e uma delas era um livrinho chamado O Verão e Depois, que enviei ao Assis Pa­checo. Tornei-me uma celebridade na mi­nha mesa de café só porque ele citou um poema meu, Barcelona Sobre as Águas.

Até aí a poesia ia toda para a gaveta?
Mostrava aos amigos e, sobretudo, às ami­gas. [risos] Até que, em 1977, a Escola Se­cundária Ferreira de Castro, em Oliveira de Azeméis, organizou um prémio nacio­nal de literatura para estudantes. Con­corri e ganhei o 1.° Prémio Ferreira de Castro, mas nunca me preocupei em pu­blicar a não ser no ano seguinte. E tive logo a sorte de aparecer no Bookcionário, que foi culpado por duas semanas de vaidade absoluta. É preciso ver como era Chaves, na altura. Ao sábado, chegavam O Jornal, o Diário de Lisboa de quinta-feira que trazia uma página literária e o Diário de Notícias também de quinta-feira com o suplemento do Gaspar Simões.

Hoje não se acredita.
Para mim a grande revolução foi vir para a faculdade, em Lisboa, e à quinta-feira ler o Gaspar Simões e o suplemento de literatura do DL. Em Chaves tinha um ficheiro enorme de filmes, recortava as críticas publicadas na Opção, do Artur Portela, n'O Jornal, no Expresso, mas não vira nem um quarto deles. Quando che­guei cá e percebi que podia ver o Woody Allen no próprio mês...

E por que é que Lisboa ganha ao Porto?
Era em Lisboa que ia começar o curso que queria. E havia mais meios para os meus pais me mandarem para cá. Vim para uma residência universitária na Madre Deus, onde ficavam os filhos dos professores.

Lisboa eram 23 paragens até à faculdade...
Vínhamos da província aterrorizados, jul­gávamos que Lisboa nos ia devorar porque era tudo muito difícil. Passei o primeiro ano a estudar, só fui três ou quatro vezes ao cinema. Não queríamos ser ultrapas­sados, tínhamos sotaque... Esse primeiro ano era também um ano de correcção do sotaque.

Como é que se corrige um sotaque?
Eu não corrigi, comecei a falar assim, na­turalmente. Chaves ficava a 12 horas de Lisboa. Era outro continente. De maneira que, quando tinha saudades, coisa que me acontecia muitas vezes, ia até à Praça da Alegria ver as pessoas que eu conhecia a chegarem no autocarro de Chaves.

Mas falava com elas?
Sabia que estavam ali e bastava-me.

E quando é que ultrapassa essa existência monacal e descobre Lisboa?
Quando vou viver com uma namorada, por acaso minha professora. Comecei, então, a ter uma vida normal de faculdade, ia aos concertos da Gulbenkian...

Era um dia-a-dia de tertúlias, em cafés?
Vivia sobretudo a faculdade. E depois vinha o Verão, o inter-rail, os passeios em Portu­gal. Tanto fazíamos o litoral alentejano a pé como íamos à ópera no Coliseu ou acampá­vamos no Geres. E passávamos temporadas no Douro, na casa da minha namorada da altura, onde havia uma biblioteca espan­tosa com tudo o que era marcante no An­tigo Regime.

E como é hoje a sua biblioteca?
Sempre foi muito anár­quica, no sentido de in­teresses disparatados. Sou do género compulsivo e obsessivo. [risos] Se tenho um período em que digo: Camilo - é Camilo e pronto. Não está or­ganizada. Mas tenho uma estante com li­vros queridos, onde estão sempre o Borges, o Virgílio Ferreira, o John Le Carré...

Recuando aos seus tempos de Évora, é verdade que recusou dar aulas no Palácio da Inquisição?
Disse-lhes: ou mudam o nome ou mu­dam-me para outro lado. Fazia-me aflição aquele nome porque tinha lido o Borges Coelho e ficado impressionado. Não podia levar as pessoas a ler Ruy Belo, Camões, Cesário e filosofia da linguagem sem lhes dizer: aqui morreram pessoas, entraram mulheres que engravidaram, foram quei­madas e os filhos também.

É ai que se interessa pelo judaísmo?
Há uma fase de procura e de estudo que data dessa altura, embora sem muita con­vicção. Lia o George Steiner, achava que havia ali qualquer coisa, lia alguns por­tugueses, interessava-me. Mas hoje acho que não tem sentido a conversão porque os convertidos são sempre os piores.

Não se converteu?
O processo não ficou concluído.

Estava à procura de si próprio? Teve a ver com o facto de fazer 40 anos?
Provavelmente. Foi um momento impor­tante da minha vida, de enriquecimento. Fiquei com uma frase fabulosa de um ra­bino que me orienta muito: «Nunca per­guntes o caminho a quem o conhece pois de contrário não te poderás perder.» O ju­daísmo, enquanto cultura e referência, é muito importante para mim. Nasci em Foz Côa, terra de judeus, a minha avó fazia pão ázimo, era tradição. Mais do que tor­nar-me ortodoxo, definitivo, quis estudar. Tem a ver com procurar uma identidade e pôr-me ao seu lado por achar que faz sen­tido do ponto de vista histórico.

A sua geografia sentimental, muito inscrita nos seus livros, leva-o sempre a Trás-os-Montes e ao Douro.
Vivi aquela região sem preocupações, não vivi lá para escrever um livro. E por isso absorvi o respeito pelas florestas, a mania dos rios.

E não se cansa de falar nos negrilhos...
É como chamamos aos olmos.

O Francisco é um transmontano que vai para o Alentejo, para Aviz...
…e se sente bem. Como me sinto bem no Estoril [onde mora] ou em Salvador da Bahia [de onde regressou há um ano].

Aos 40 anos, publicou uma antologia de poesia, Metade da Vida, foi um balanço?
Senti essa necessi­dade. Estava a escrever de maneira diferente e, na ver­dade, já era metade da minha vida. Che­gara o momento de arrumar os poemas.

Porque diz que Longe de Manaus é um «policial com estados de alma»?
Porque é a aventura de um personagem. Não me parece possível escrever ficção como gosto sem ter um personagem por quem me apaixonar.

O Jaime Ramos é um alter-ego?
Ele é um bocadinho como eu gostava de me ver, mas não é uma pessoa que viva por mim outras coisas. Vive a sua vida, só que não consigo libertar-me dele. É uma vida que gosto de observar. E há uma me­diania que me agrada. É um pequeno-burguês, gosta do Futebol Clube do Porto, de ir à pesca, de cozinhar, lê mais se o In­verno for comprido...

O Crime na Exposição foi o livro que lhe deu mais gozo escrever?
Foi aquele em que me diverti mais porque meto-me com o António Costa, o Marcelo, o Pacheco Pereira... Como o livro foi pu­blicado em folhetins, no DN, há essas pis­cadelas de olho à realidade. Um dia, pedi ao João Paulo Velez [porta-voz da Expo'98] para me mostrar onde ia ser o pavilhão da Quirguízia. Quirguízia? Sim, quero matar alguém perto desse pavilhão porque é um país com azar. Tinha uma amiga tadjique que estava sempre a dizer mal dos quirguizes e pensei: vou fazer alguma coisa para salvar a honra deles!

E volta à carga, no Crime Capital...
Aí também me diverti imenso. Como se passa durante a Porto 2001, ponho a Teresa Lago a entrar no ga­binete do Jaime Ra­mos quando ele está com um lápis a segu­rar uma calcinha e o Isaltino [ajudante do detective] a di­zer: 'Isso é modelo asa delta Dolce & Gabbana, chefe'.

Ninguém se zangou?
Não, mas uma vez encontrei a Teresa Patrí­cio Gouveia e disse-lhe: prá semana a Teresa vai aparecer. Não resisti a pôr o Jaime Ramos a ter uma paixoneta por ela. Ele é um melancólico com as senhoras...

Ele ou o Francisco José Viegas?
O Jaime Ramos nunca tem palavras de amor para a namorada ou acessos de ro­mantismo. Uma parte de mim também é assim, céptico em relação às palavras.

Tem uma memória de elefante ou tira notas sobre as personagens?
A princípio tinha fichas no computa­dor mas agora uso cadernos. É engra­çado, até já estou a escrever o novo livro à mão, com uma Artpen [da Rotring]. E tenho tudo apontado sobre o Jaime Ra­mos: quanto ganha, que roupa veste, em que carro anda, os livros que lê (que não são os meus)...

E tem músicas para as personagens.
Tenho uma banda sonora para cada uma. O Jaime Ramos é sempre a mesma: Van Morrison. Independentemente de ele gos­tar de boleros e de canções mexicanas.

A Daniela de Longe de Manaus existe mesmo, não existe?
Existe uma aproximação, sim.

Foi uma paixão?
Apaixonei-me realmente pela Daniela. Não sexualmente, não tinha nada a ver com o assunto. Além de ter aprendido com a Daniela propriamente dita [a mulher verdadeira], queria um olhar que alguma literatura heterossexual mais cavernícola não consegue ter. Queria apanhar o seu lado mais delicado, mas também o apetite sexual e aquilo que as mulheres acabam por pensar dos homens. Como quando ela diz: «homem fica meio babaca numa relação.»

Só quem gosta muito de mulheres é que inventa uma Daniela destas.
[risos] Bom, provavelmente... A certa al­tura tive dúvidas: será que ela pensaria isto? Vamos arriscar porque parece-me que sim, se eu fosse mulher teria esta sensação. Ela tem muito a ver com a delicadeza daquele linguajar. Escrevi directa­mente em português do Brasil. Pareceu-me mais apetitoso, aquela coisa de ela dizer: «Lembra do Bixiga, tem lá restaurante com chopinho cremoso...»

Na génese desse romance houve uma notícia, não foi?
Um dia, li no jornal que um homem ti­nha sido encontrado morto num apartamento, na temível rotunda de Santo Ovídio, no Porto. O homem ainda não fora identificado e achei espantoso ha­ver uma pessoa sem identidade, num lu­gar sem identidade.

Os seus romances têm sempre a ver com os lugares. Chega a um sítio e diz: isto dá uma história.
Agora [o próximo livro] é mais a Argentina e a Terra do Fogo. Mas começa com um incêndio em Portugal, alguém passa e chama àquilo Terra de Fogo. Mas não posso contar mais...

Anda entusiasmado com o livro?
Claro. Agora, o Jaime Ramos está em Bue­nos Aires, no Café Britânico, na esquina das calles Defensa e Brasil... Era o café dos espiões da Segunda Guerra, e o Osvaldo Soriano escreveu lá um romance.

Sente uma maior responsabilidade por causa do prémio?
Nem sequer penso nisso. A primeira coisa que disse às pessoas que estavam comigo quando recebi a notícia foi: o País está louco. Deram-me o prémio a mim... O País está mesmo virado do avesso! Depois fiquei contente, claro. Ser premiado é bestial porque pelo menos os meus fi­lhos vão pensar que não escrevo mal. E é uma certa confirmação.

Ainda tem dúvidas?
[risos] Não tenho dúvidas mas sou cép­tico. O prémio garante que aquele livro não estava mal esgalhado. Agradeço o pré­mio, sim senhora, mas a responsabilidade é a mesma. Não vou passar a fazer litera­tura. É isto que eu faço: histórias.

Escreve para ser lido, por prazer, por ter «comichão nos dedos»?
Dá-me gozo inventar histórias, brincar com personagens, pensar: que história é que isto poderia dar? Os jornalistas, os escritores, todos temos essa coisa: isto dava uma história. Se dava uma histó­ria, vou fazê-la.

Escreve quando calha ou faz por ter tempo para escrever?
Vou escrevendo quando posso e depois há uma fase em que digo: isto agora tem de ser acabado, e aí levanto-me às 4 da ma­nhã e trabalho até às 10.

Daí os posts A noite o que é?, no seu blogue? Não é por culpa de insónias?
Também tenho insónias grandes. Mas no caso do Longe de Manaus, que foi o livro escrito em condições mais assustadoras, trabalhava até às seis da manhã, deitava-me, acordava ao meio-dia e continuava a escrever. Isto durante uns três meses.

No blogue há alguma exposição, embora não da vida privada. Fala duas ou três vezes dos filhos, de mulheres nunca...
Em termos privados, defendo-me muito. Quando damos o nosso rosto ele gasta-se. Quando abrimos a porta uma vez, as pes­soas instalam-se. Portanto, não se abre.

Este mês farta-se de publicar posts sobre futebol...
Nem estou a ver muitos jogos do Mun­dial mas torço pelo Brasil, Portugal, Equa­dor, Espanha. Não gosto de torcer pelas equipas grandes da Europa, não me ins­piram. Na pequena equipa, há a virtude de sabermos que precisamos de educar o carácter na adversidade. Temos de sa­ber reagir e o futebol pode dar uma li­ção, que é estarmos sujeitos à piada dos outros. Publicam uma coisa sobre mim e as pessoas perguntam-me: «Eh pá, não reages?» Não.

E porquê?
Isto é mesmo assim. Agora, na blogosfera, houve comentários simpáticos mas tam­bém escreveram: ele ganhou o prémio porque é cavaquista. Eu que nem sou cavaquista! Mas essa desconfiança existe, o género humano não é perfeito, somos todos filhos da puta. Se não ficamos tran­quilos em relação a isso, estamos sempre com úlceras.

Hoje, com esta bela vitelinha grelhada, não há perigo de úlceras...
[risos] Ah, não tenho úlceras de nenhum género. E como muitas vezes coisas sim­ples. Ser gourmet é massacrante porque exige um elevado grau de abstracção em relação às coisas reais, ao bife, ao arroz de tomate... O gourmet é chato, só pode ser foie gras bla blá e uva não sei o quê. A cozinha da minha avó era mais apetitosa do que ir ao... Eleven. Tem a ver com ape­tites, memórias, sabores.

Entrevista feita por Rosa Ruela, in Revista VISÃO – 22 Junho 2006

Questões de táctica, técnica e estratégia

1. Buzinadelas para muitos dos adeptos, tratava-se de festejar a passagem aos quartos-de-final, uma "proeza" que a selecção portuguesa não conseguia obter em Mundiais desde 1966. São 40 anos. Depois do espectáculo pouco edificante de há quatro anos, os resultados deste Mundial são o contraste absoluto: quatro vitórias em torneio e quartos-de-final na mão. Mas pelo meio houve a "campanha" do Euro 2004. A fasquia subiu, necessariamente. Depois dos investimentos que foram feitos (estádios, marketing, dinheiro vivo, fanatismo patriótico, treinador de luxo, por exemplo), a fasquia teria de estar mais alta. Está. Em 1966, os "magriços" foram uma surpresa no futebol mundial - nasceu a lenda de Eusébio num torneio que castigou o Brasil (que ganhara em 1958 e em 1962) e que foi roubado (literalmente) pela Inglaterra. Em 2006, portanto, sonhar com as meias-finais não parece extraordinário, se é verdade o que a selecção e a federação dizem: que é um lote de bons jogadores, que "as condições" estão reunidas, que os antipatriotas serão fuzilados. Ganhar ao futebol inglês é uma coisa - mas a selecção inglesa tem um futebolzinho alimentado por quatro bons jogadores e um esquema táctico medíocre, e é possível.

2. Se, depois da batalha campal do Portugal-Holanda nós tivéssemos perdido o jogo, Costinha, Figo e até Deco teriam sido crucificados. Injustamente, é claro - mas crucificados de um jogo em que o trabalho de Ricardo Carvalho, Miguel e Meira saiu discreto - mas fundamental.

3. Foi um jogo à Grémio de Porto Alegre nos tempos de Scolari cotovelaço, joelhaço, dedo no olho, fractura exposta. Num jogo com a Roma, Felipão chegou até a estender o pé para que o fiscal-de-linha tropeçasse. Os holandeses caíram que nem patinhos. Num treino do Palmeiras, que treinou episodicamente, o eixo civilizadinho do futebol ficou chocado por aquilo que Scolari disse no balneário: "Na hora do 'bem-bom', não tem ninguém para dar um pontapé, um cascudo, uma cutucada!" Em Nuremberga não teve de que se queixar.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 27 Junho 2006

junho 26, 2006

Portugal jogou com 13

1. Assim vale a pena, mes­mo que os holandeses protes­tem o jogo pelo facto de Portu­gal ter jogado sempre com dois jogadores a mais - Scolari aos berros em Nuremberga e Na Sa do Caravaggio a fazer figas em Farroupilha, lá na serra gaúcha. Portugal jogou com 13. Eu gostei: um jogo em que Petit é agredido constitui para mim novidade (só estava habituado ao contrário) e Simão a dar quatro voltas sobre a bola an­tes de marcar uma falta é um espectáculo para se ver.

Compreendam-me: enquanto se trata de jogar, muito bem, eu sou um espectador civilizado; quando se trata de ganhar e de eliminar a Holanda ou a Ingla­terra, convoco as armas que me apetecer. Pelo menos não fico com aquela camiseta justinha e irritante vestida pelo Van Basten. Na verdade, fizemos bastante antijogo de forma ta­lentosa, o árbitro foi uma abécula, o Deco foi expulso injustamente por aquele Ivanov as­sustadiço, Miguel esteve bem, Figo foi um valente, o golo de Maniche fez-me insultar o F.C. Porto por tê-lo deixado partir (bem como a Costinha, claro), e gostei de ver Scolari aos ber­ros – nada daquele ar civiliza­do do Van Basten, hirto e ge­nial, vendo a Holanda ser infe­rior em campo.

Há muito tempo que não me divertia tanto a ver um jogo. To­dos os meus piores instintos vieram à tona, do riso escarni­nho até à gargalhada diante de eventuais fracturas expostas.

2. Imagem perfeita: Deco e Gio, expulsos, sentados a par­lamentar. Quando Tiago fa­lhou o golo, Deco levanta-se, de um pulo; Gio ficou sentado, preso ao banco. É isso o fute­bol: uns ganham, outros ficam naquele limbo da humilhação, coisa que acontece frequente­mente quando os holandeses jogam com Portugal.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 26 Junho 2006

junho 25, 2006

É assim a música do futebol: um golaço destes

1. Dois estilos: o bolchevismo activo dos mexicanos; a relativa frieza da Argentina. Basta olhar para eles, Pekerman e Ricardo La Volpe. Imagino Pekerman sentado a uma mesa do Tortoni, ou numa esplanada da Recoleta, em Buenos Aires; e vejo claramente la Volpe comendo "enchiladas", à mão, numa taberna de Oaxaca – um general de Pancho Villa durante a batalha (tem um ar trágico, este homem). Lentas, ambas as equipas – distinguindo-se pelo som. Os mexicanos, servindo-se do "bolero" como metáfora central; os argentinos aguardando o momento de tocar "milongas" ou de afinar o tango. Mas tanto o tango como o bolero precisam de encenação e de tranquilidade – e aquele jogo estava amedrontado pelos vulcões de Cuernavaca ou pelas tempestades da Patagónia. Poderia haver mudança nessa altura, quando Tevez e Pablo Aimar entraram para substituir Cambiasso e Crespo, logo a seguir à vinda de Zinha. Tardou Pekerman. À velocidade de Tevez (talento em movimento) e de Aimar juntou-se ainda o miúdo Messi. Mas o golaço de Maxi Rodríguez arrumou a questão, com a precisão de um instrumentista. É assim a música do futebol: um golaço destes, a bola sem parar no chão, direitinha àquele lugar. Aquele lugar onde se fazem os golos de Maxi Rodríguez.

2. A Alemanha passou e convenceu-nos: ficámos a saber que Lukas Podolski aparece de onde menos se espera, mesmo que saibamos quem são Lahm, Frings, Ballack ou Klose. A Alemanha também aparece de onde menos se espera. Contem com ela, com a Alemanha.

3. O Brasil está fechado num castelo. Faz bem; as estrelas, com os jornalistas à vista, fizeram estragos e mostraram amuos. A certa altura, os próprios jogadores entretiveram-se a escalar o "time" para a imprensa. Lá, têm saudades de Scolari.

4. Eu acho que as televisões já entrevistaram cerca de metade da comunidade portuguesa na Alemanha. Temos direito a descanso agora, não?

5. As conferências de imprensa da selecção não servem para nada. Nem a nossa nem, em geral, a das outras. Banalidades e vulgaridades. Bom para dormir.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 25 Junho 2006

junho 24, 2006

Um Prémio e todos os agradecimentos

Gostaria de agradecer este prémio ao júri que mo concedeu, à Associação Portuguesa de Escritores, que o organiza anualmente, e, claro, às entidades que colaboraram com a APE e o tornam possível.

Já referi antes que nunca pensei recebê-lo e que foi uma surpresa a sua atribuição. Estas palavras podem confundir-se com pura imodéstia disfarçada de desprendimento, mas quem me conhece sabe que são verdadeiras e que a surpresa também o foi. Por isso, a alegria em estar aqui é maior e até mais profunda. As minhas palavras nesta circunstância apenas podem ser de gratidão e de um certo enlevo – e de vaidade, naturalmente, porque somos humanos e devemos viver, ainda que com intensidades diferentes, cada distinção e cada desaire. Distinções e desaires compõem a vida de todos – se bem que, no caso de quem escreve, o desaire deva ser entendido como um livro que não resultou e uma distinção deva ser vista como o reconhecimento pelo trabalho realizado.

Estas designações são sempre subjectivas. Cada um sabe e conhece os caminhos do seu trabalho. Cada um conhece as penumbras e as ilusões que o guiam. Cada um, cada autor, conhece o seu próprio caminho melhor do que ninguém e, por mais que tentemos escrever ou falar sobre o método, as alegrias e as dificuldades do nosso trabalho, há sempre aspectos que não conseguimos traduzir ou descrever. Podemos falar deles, claro, e falar deles com absoluta sinceridade – mas, com alguma probabilidade, não acreditariam inteiramente.
Eu escrevo histórias. De alguma maneira, imagino histórias que me comovem e que gostaria que comovessem os meus leitores. Se há alguma definição, em teoria da literatura, para o género de romance que eu gosto de escrever, acredito que seria essa. E que a frase decisiva seria essa também: “Eu escrevo histórias.” Acho que escrevo histórias porque gosto de ler as histórias dos livros dos autores que aprendi a amar desde a infância e a adolescência. Algumas delas duram mais na memória e, também aí, os factores que levam uma história a permanecer na nossa memória são também subjectivos. Podemos tentar explicá-los, mas há sempre qualquer coisa que sobrevive numa leitura – e que não conseguimos descrever. Por isso, uma das palavras de que mais gosto é “poeira”. A poeira das estradas no meio da floresta. A poeira dos caminhos. A poeira do deserto. A poeira do céu, aquela nuvem que atravessa a geografia de todos os lugares onde estivemos. A poeira, enfim. Eu escrevo histórias, portanto, e gosto da palavra “poeira”. Tal como gosto da palavra “perturbação”. Da palavra “paisagem”, da palavra “lugar”.
Talvez por isso, por eu gostar de escrever histórias que algum dia me comoveram, não posso falar em nome dos outros nem acho que o trabalho do escritor, seja ele contador de histórias ou não, deva ser realizado em nome de outra coisa senão da alegria de escrever e, por interpostas pessoas, da alegria de ler.

Escrevo histórias porque não acredito num mundo sem história, sem memória e sem perturbação. A história e a memória mostram-nos que vivemos com os outros e que são os outros que justificam todas as narrativas; sem os outros não teríamos ninguém para contar histórias, não teríamos ninguém para ouvir as nossas histórias, ou seja, não teríamos com quem viver. A perturbação, por seu lado, ensina-nos que a pequena verdade de cada um, a pequena verdade dos outros, pode pôr em causa a nossa verdade absoluta, aquela em que acreditamos.

No meu caso, os outros, além dos meus leitores, dos meus filhos, dos meus pais, dos meus amigos mais chegados, os outros são os meus personagens. Comecei este breve discurso agradecendo o prémio. Terei de agradecer também aos meus personagens, aos personagens dos meus livros. Sem eles eu não teria conseguido escrever nem contar histórias, nem ter vivido os momentos dessa estranha e no entanto intensa felicidade que é a de ver que, subitamente, esses personagens já não dependem de mim mas da vida inteira, da vida que vem nos livros. Conheço o inspector Jaime Ramos, o detective de “Longe de Manaus”, há algum tempo. Há cerca de quinze anos que ele vive comigo e que eu conto as suas aventuras. De alguma maneira, como vêem, nem as histórias me pertencem, mas sim aos meus personagens. É verdade que o detective Jaime Ramos só existe porque eu o inventei, ou o criei, ou o escrevi. Mas isso acontece porque ele vive, melhor do que eu, esse mundo de perturbação e de poeira onde situo as minhas histórias. Ele é um homem vulgar e céptico. Talvez um pessimista, até. Tem hábitos vulgares. A sua excepcionalidade, o que para mim se revelou excepcional no seu carácter, foi a sua capacidade de permanecer vulgar, céptico, dedicado, tranquilo, apesar da vida inteira, a sua e a dos outros. Agradeço-lhe ter aceite este papel de personagem dos meus livros. Agradeço aos outros personagens que os habitam: ao inspector açoriano Filipe Castanheira, por exemplo, que não entra neste livro, mas que começou a minha série de histórias policiais. A Daniela e a Helena, de “Longe de Manaus”, por quem me apaixonei. Ao brasileiro de Manaus, Osmar Santos, que me proporcionou muitos momentos de riso. Ao detective Isaltino, a quem admiro a sua modéstia tremenda, de homem humilde. Agradeço à namorada de Jaime Ramos, Rosa, que não me importaria de ter conhecido antes de escrever os seus diálogos. E estou grato, evidentemente, aos lugares que aparecem no livro – o Porto, Trás-os-Montes, o Douro, a Guiné, Cabo Verde, Angola e, naturalmente, o Brasil. Se não existissem esses lugares, não teria podido escrever. Graças a eles viajei bastante.

Mas sobre muitas outras coisas, estou grato à língua que usam os nossos escritores – os nossos, os escritores de língua portuguesa. Este livro tem duas ortografias, a portuguesa e a brasileira, mas serve-se de uma única língua, divertida, dramática, pueril, fantástica, sitiada, brincalhona, empertigada, humilde, e dividida por vários continentes onde já não depende de nós, portugueses, mas de todos os que a falam independentemente de nós – e essa é a sua melhor promessa, a nossa melhor herança. É por ela que falam os nossos mestres, de Luís de Camões e Fernão Mendes Pinto a Machado de Assis, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Cesário Verde ou Fernando Pessoa. Eu acho que devemos venerar os mestres e as suas lições, as que atravessam o tempo e sobrevivem às inclinações do mundo, as que vêm de Fernão Lopes a Rubem Fonseca, de Sá de Miranda a Vergílio Ferreira e José Cardoso Pires. Eles são os mestres da nossa língua e a garantia de que ela existe para lá e para além dos dicionários do presente. Se algum dia a escola tiver dúvidas sobre a nossa língua, eles estão aí. Sem eles não poderíamos falar da nossa língua.

Há também um nome que gostaria de referir aqui, o de Miguel Real, autor de “Em Nome da Terra”, um livro notável que foi finalista, comigo, nesta escolha do júri do Prémio APE. Miguel Real é um autor muito raro e de altíssima qualidade, e o seu livro é uma fantástica narrativa sobre uma parte da História de Portugal. Foi das primeiras pessoas a felicitar-me porque ambos sabemos que eu seria também uma das primeiras pessoas, senão a primeira, a felicitá-lo, como já aconteceu de outras vezes.

Não quero terminar a lista de agradecimentos sem mencionar uma pessoa a quem estou ligado por laços muito mais fortes do que a simples relação, digamos, literária. Falo do meu editor Manuel Alberto Valente. Em vários momentos em que o meu pessimismo ultrapassava o do próprio detective Jaime Ramos, o meu editor ensinou-me que vale a pena insistir, persistir, não dormir às vezes, e sobretudo não ceder ao que não devemos ceder. A sua companhia, ao longo destes últimos quinze anos, foi também preciosa e não podia esquecê-lo agora.Um prémio agradece-se. Ele honra-nos e provavelmente traz-nos alguma responsabilidade acrescida.

Agradeço-o, portanto, e sinto-me honrado. A minha única responsabilidade, no entanto, é apenas para com o meu próximo livro, para com a minha próxima história.

Discurso de Francisco José Viegas proferido na sessão pública de atribuição do Prémio de Romance e Novela 2006 (Associação Portuguesa de Escritores) ao seu livro "Longe de Manaus" - Fundação Calouste Gulbenkian, 24 Junho 2006.

Um perfume do Oriente

O Aya é um bom restaurante japonês. Além disso, na zona de Sete Rios, nas Twin Towers, propõe ainda um Bistrô mais informal, mais simples - mas muito indicado para quem tem problemas de dicionário. Basta escolher com os olhos

VOLTO a um dos melhores escritores de cozinha publicados em Portugal, Anthony Bourdain, e ao seu 'A Cook's Tour' (a edição brasileira dá pelo título de 'Em Busca da Refeição Ideal', Companhia das Letras), autor de 'Cozinha Confidencial' (edição da Dom Quixote). Bourdain é mais do que o chef do nova-iorquino Le Bistrot, propriedade do português José Meireles - é um autor que escreve bem, que escreve maravilhosamente e que nos afasta do mundo das academias da cozinha para nos colocar no centro do furacão, ou seja, no universo das cozinhas (de restaurante) como elas são e no meio de uma peregrinação pela cozinha do mundo. Se há uma 'world music', provavelmente existirá uma "cozinha do mundo" - e essa aparece sobretudo no seu 'A Cook's Tour', viagem que tem o seu início em Portugal, no Minho, numa quinta nos arredores de Amarante. Compenetrai-vos, portanto, ó leitores: ide ler, tratai da vossa curiosidade.

No conjunto de lugares visitados por Bourdain, e na sua memória de noites passadas em restaurantes (com cozinheiros e cozinheiras admiráveis no País Basco ou em Inglaterra), barracas de cozinha ao ar livre (no Camboja, no Vietname, na Tailândia), fogões familiares (em Portugal, no México, na Rússia), o Japão é uma espécie de pausa. Na sua nar­ração japonesa não encontramos as vastas ressacas do Vietname ou da Rússia, nem a euforia cordial de Espanha - mas, quase, poesia pura (tirando um pequeno-almoço cruel), sobretudo quando janta num restaurante de montanha e se deixa perder nos braços de gueixas que lhe preparam o caminho de cada prato, de cada pétala de flor que decora os cerca de vinte pratos do seu jantar. Poesia dessa só daí a uns dias (leiam o livro, se puderem) quando, no cais de um porto, vê retirar de um barco o dorso azul-cinza de um atum magnífico, de que comerá cerca de um quilo e meio de 'sashimi' - de madrugada, bem cedo.

A cozinha japonesa é para mim um mistério, essen­cialmente por razões linguísticas. Ou seja, com­preendo a beleza profunda de pratos que me apetecem sempre, o significado de uma mistura ou de um laço de alga sobre um peixe fresco e cru, entendo a 'tempura' (fritinhos), mas as designações escapam-me. No Aya Twin Towers, quer no restaurante pro­priamente dito, quer no Bistrô, não tenho proble­mas: descrevo o prato, faço muitos gestos (apesar de os funcionários, simpáticos, falarem português) e acabo por comer o que quero. De 'sakê' a 'wasabi', passando por 'sushi', 'sashimi', 'sukiyaki', 'niguiri', ainda sou capaz de manejar - mas o resto é japonês puro. Puro e bom.

O Aya faz parte das minhas recomendações permanentes, tal como os seus menus completos de 'sushi' e 'sashimi', mais aque­las beringelas grelhadas, além dos fritos mistos, delicados de polme e de textura. No 'sashimi' (o peixe cru, propriamente dito, se me entendem), há salmão, atum (sempre muito bom), dourada, camarão, pargo, carapau (tente, tente!).
Agora, com o Bistrô, a escolha é muito mais infor­mal e não é preciso dizer nomes nem sentir-se intimidado com o dicionário: basta apontar, escolher e retirar o prato do tapete onde eles cir­culam (os pratos têm cores diferentes e os preços são em conformidade). A escolha é muito, muito variada, sugestiva das possibilidades dessa cozi­nha cheia de delicadezas e de Ómega 3, coisa que sempre lembro quando penso no meu médico, essa alma gentil e esforçada que me mantém o espírito elevado.

Ao meu lado há sempre uns casais com ar entendido ou uns jovens arrogantes que bebem 'sakê' ou chá, mas não são coisas que me apeteçam à refeição, por princípio, embora seja tolerante com esse tom etnológico. Uma 'Sapporo' (não me lembro se 'Asahi') vai bem como cerveja - não é superlativa mas mantém-se no nível da aceitabilidade - e os vinhos bran­cos são recomendáveis. Neste restaurante não se espera grande carta de vinhos, e ainda bem. No geral, o Aya faz-nos estar absolutamente em casa, sem ademanes que afastam as pessoas como eu, incultas, bárbaras, mas curiosas e compreensivas. Compreensivas, é uma maneira de dizer.

À Lupa
Vinhos: *
Digestivos: *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 34
Vinhos Brancos: 18
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 15

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Muito fácil
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Sim
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio no Restaurante: 35 Euros
Preço médio no Bistrô: 17 Euros
Cartões: MB. V, D, M, AM

RESTAURANTE AYA
R. Campolide, 351 Galerias
Twin Towers Loja O-13
1070-034 Lisboa
Tel: 217271155
Aberto todos os dias

in Revista Notícias Sábado – 24 Junho 2006

Dois golos e uma bofetada

1. Há uma questão de fé no futebol acreditar num treinador, na eficácia de um avançado, no renascimento de um jogador, na euforia dos adeptos. Olhem Ronaldo, "o fenómeno". Há muita gente que não vê nele aquilo que via há quatro anos - hoje envelhece-se mais depressa, é certo, mas o talento deixa o seu rasto. Eu gosto de Ronaldo; aquela gritaria em nome da sua "ineficácia" durante o primeiro jogo do Brasil (com a Croácia) teve toda a razão de ser: Ronaldo teve a bola nos pés durante 23 exactos segundos. É pouco. Deu um golo para Adriano marcar. E anteontem marcou dois. Quem esperava?

Retomo isso - hoje envelhece-se mais depressa, não na idade real, a idade verdadeira, mas na idade de exposição. As televisões consomem mais rapidamente os rostos da fama ou da pequena glória; o ressentimento das pessoas quer renovação nos ecrãs - para consumir outros rostos e poder levá-los ao tapete. E, no entanto, há jogadores cuja idade não pesa. Lembram-se de Preudhomme? Olhem Figo, o motor de arranque da selecção. Não há nada mais cruel do que esse tom de desprezo escutado nas bancadas e dirigido a rapaziada de 30 anos "Está velho." Garrincha envelheceu demasiado pelo álcool num tempo em que os jogadores de futebol não tinham os mimos dos preparadores físicos, outros dos magos da bola. Mas custou ouvir Lula, o barbudo corintiano com voz de urso constipado, a chamar "gordo" a Ronaldo, "o fenómeno". Mais respeito - pelo menos nas palavras. Ronaldo respondeu-lhe à letra, inteligente e cortante. E enviou-lhe dois golos para Brasília. Num mundo em que os esqueléticos são considerados bonitos e os anafados são destinados a abate prévio, os dois golos de Ronaldo são uma bofetada. Aceito-a com alegria. As pessoas detestam miúdos como Ronaldo, "o fenómeno", miúdos que casam demasiado depressa, que têm talento mas se lesionam, que se movem pouco. É mais um caso de inveja, tão desumana neste caso. Desculpa, Ronaldo, se pensei que estavas lesionado.

2. Descansem. Se o juízo não encolheu, vai regressar o alinhamento que ganhou ao Irão.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 24 Junho 2006

junho 23, 2006

No mata-mata

1. Regressemos ao debate sobre os oitavos-de-final. Nesta matéria, recordo as palavras de Scolari de há quatro anos, quando – no Mundial da Coreia e Japão – lhe calhou um Brasil devastado pelo estrelato, pela dúvida e pela risota. O que disse Scolari? Simples. Vou aos jornais da época: “Numa Copa, na hora do mata-mata, há um nivelamento e só os competentes sobram. Não existe espaço para a tradição ou conquistas do passado.”

Quando o “escrete” inicia o estágio final, em Espanha, ninguém acreditava que aquela equipa de empates, derrotas e meias vitórias (como foi o caminho da selecção com Emerson Leão) seria capaz de consagrar-se como pentacampeã. Para quem queria um “futebol bailarino”, como Émerson Leão tinha prometido, o estilo de Scolari era muito diferente e ele trataria a selecção como tinha tratado os clubes onde tinha passado: queria equipas vencedoras, mesmo que não “ganhassem bonito”. Será isso que vai acontecer?

2. Depois, o outro lema: bateu, levou. Sempre. Veja-se o caso de Pelé, o reizinho Pelé: durante a fase de preparação para o campeonato do mundo de 2002, as tácticas de Scolari e os jogos da selecção foram várias vezes criticados pelo astro. Durante o amigável entre Portugal e o Brasil, em Alvalade, Pelé voltou a criticar abertamente as opções de Scolari. Na Coreia, idem. No Japão, antes dos quartos-de-final com a Inglaterra, Pelé declara a um canal de televisão inglês que o Brasil, a jogar assim, é bem capaz de perder. Scolari estava a poucos metros de distância, ouviu e calou. Mas não esqueceu: na primeira entrevista que deu a um jornal brasileiro (a Ruy Carlos Ostermann), depois ter conquistado o penta, Felipão declarou que Pelé tinha sido o maior jogador de todos os tempos e que seria muito improvável que houvesse outro como ele; mas, “de facto, de futebol ele não entende nada”. Bem vistas as coisas, é capaz de ser verdade: as previsões de Pelé falham quase sempre. Preparem-se.

3. Mesmo assim, ninguém tem o direito de abdicar do seu gosto pelo bom futebol, por jogos fantásticos. Se é que me entendem.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 23 Junho 2006

junho 22, 2006

Scolari enfureceu-se como um homem a valer

1. O verdadeiro nome de Lubos Michel é Lubos 'Silva' Michel. Digo isto porque, pela primeira vez em muitos anos, não há razão para que os rapazes se queixem das arbitragens. Eles sabem, dir-se-á. Eles, os árbitros. Tirando a falta cometida sobre Figo no Portugal-Irão, uma larga percentagem das restantes - e desde o início do campeonato - não seria assinalada. Pois Lubos Silva Michel é um amigo. Os anteriores também foram. Felizmente.

2. Sobre o jogo de ontem lá foi. Era isso que eu queria dizer desde o princípio: que foi fácil bater um adversário intranquilo e disparatado, e que isso se fez com alguma parcimónia de esforço e de talento (o de Miguel, o de Figo, o de Maniche, até o de Simão). Mas, depois de três vitórias seguidas, alguém teria de dizer a palavra da reconciliação. De uma certa pacificação. Esperava-se isso dos jogadores - que não viessem falar "dos críticos", como meninos atingidos na sua honorabilidade. Mas não resistiram. Não compreenderam, ainda, que ser "estrela" implica uma responsabilidade especial.

3. Scolari diz que tem, de novo, vontade de ser campeão do mundo. Isso é uma subida de degrau, um avanço. Até agora, o gaúcho mostrou que lhe interessava desmentir os seus críticos - ao declarar essa vontade, fez um favor a todos chamou-nos para a selecção pela primeira vez. Insisto: pela primeira vez. De novo: pela primeira vez. Até agora ele estava apenas zangado e ressentido e mostrava má cara. Ontem, enfureceu-se realmente como um homem a valer (viram as imagens na televisão?); mostrou que estava do nosso lado - em relação aos jogadores, ao jogo, ao que estava em jogo. Agora pode ser que leve mais gente. E isso é muito interessante.

4. Calhou-nos a Holanda, uma equipa que está chata. De certa maneira, preferia a Argentina e explico sempre fazíamos um favor aos brasileiros, eliminando a Argentina. Eu, que gosto tanto de Buenos Aires e da Argentina, ajudava a humilhar os brasileiros, eliminando a Argentina (sabem como eles se adoram, não é?). Os rapazes do "escrete" parecem abóboras a jogar - abóboras sem pernas, aliás.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 22 Junho 2006

junho 21, 2006

Balanço fácil

1. Nesta altura pedem-se balanços, porque está praticamente tudo decidido sobre a primeira fase do Mundial. Eu escolho com facilidade - não sou treinador de bancada, só "doido da bola" - e a evocação que Jorge Marmelo fez, no "Público" de ontem, do poema de Vinicius de Moraes, fez-me dar-lhe toda a razão. Lembram-se dos versos? "As feias que me perdoem/ mas beleza é essencial." Isto serve essencialmente para a selecção brasileira - a maior decepção até agora. Alguém disse que parecia a Alemanha vestida de amarelo, mas é mentira a Alemanha marca golos e surpreendeu os que esperavam uma divisão Panzer armada de força bruta. Custa a admitir, mas o futebol brasileiro está uma miséria; aquele bando de abóboras merece perder o jogo que lhes falta nesta fase. É a minha vingança contra Zagallo, o "vai com Deus", à imagem de quem se joga aquele futebol sem gozo nem virtude. São, retomando Nélson Rodrigues, virgens de uma peça de Lorca.

2. Há uma melancolia da derrota (a do Paraguai, certamente), claro, mas também há uma melancolia da vitória o papel coube por inteiro ao Equador e ao Gana. E, se a França ficar pela fase inicial, a única coisa a lamentar é que Thierry Henry parta tão cedo.

3. O incidente diplomático John Pentsil, que joga no Hapoel Telavive, festejou a vitória do Gana com a bandeira de Israel - país onde vive. O "internacionalismo árabe" tratou de lhe chamar "imbecil" e o governo ganês pediu desculpa à comunidade internacional, dizendo que Pentsil não sabe muito de política. Mas sabe de gratidão e conhece o lugar onde se sente em casa. A imprensa já inventou os novos Protocolos dos Sábios de Sião.

4. Portugal primeiro jogo muito fraco; segundo jogo satisfatório, com mais alegria no jogo. Os responsáveis foram Deco, Costinha, Figo, Maniche e Cristiano Ronaldo. Agora, a "intelligentsia" debate se ao jogo com o México deve ir a linha avançada ou a segunda equipa. Lógico que devem ir jogadores que não ameacem o conjunto - ou seja, quem não tem amarelos e quem precisa de jogar na ponta da unha contra a Argentina, ou a Holanda.

5. Espanha bom futebol, uma revelação. Mas eu gosto desse jogo.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 21 Junho 2006

junho 20, 2006

Venga España, no te vengas abajo

1. Gosto de surpresas assim – e campeonatos –, capazes de destruir a ciência do futebol e, ainda por cima, a geometria das opiniões. A Ucrânia levou quatro da Espanha, não foi? Pois a Arábia Saudita, que tinha empatado a dois com a Tunísia, levou quatro dos ucranianos. Ninguém dava nada pela Tunísia e eles começaram por marcar contra a Espanha, que entrou debaixo de chuva. E o Gana, já falei do Gana? Já.

Estas coisas agradam-me. Às vezes apanho os comentadores, certamente bons especialistas, a desenhar os “esquemas de campo” – como uma fórmula perfeita: este para aqui, aquele para ali, 4x4x2, 4x3x3, 4x5x1, ou o “moderno” 3x4x3. Tudo funciona. Até a chuva está prevista, a profundidade da relva, a fricção dos pitões, a qualidade das camisolas – tudo. Ao mínimo deslize, a desculpa: “Ah, este fulano aqui desequilibrou.” Quer dizer – saltou do esquema, fintou onde não devia fintar, marcou como não estava previsto. Eles queriam tudo na geometria tradicional. Até Raul, ontem, não devia ter marcado aquele golo – porque usou o pé direito em vez do esquerdo. Mas, olha os do Equador, que estava escrito que baqueassem no primeiro quarto de hora. Como a França, por exemplo, que leva dois empates saborosos.

2. “Venga España, no te vengas abajo”, dizia um jornalista da rádio aqui do lado. A perder por um, com aquele golo de Joahar Mnari depois da monumental jogada de Jaziri, os espanhóis faziam “olas” apesar das jogadas de Trabelsi. Os idiotas. Deviam era voltar-se para trás, desatar em choro pegado, insultar Aragonés. E deviam ficar sentadinhos, encolher os ombros, maldizer a sorte. Era isso que os espanhóis deviam ter feito. Deviam ser mais portugas. Em vez disso diziam “Venga, que España llega y llega”. Palermas. Nem mereciam aquele miúdo Torres.

3. Por falar nisso: repararam no fantástico Cesc, no trabalho e na magia de Torres “el Niño”, na classe dos passes de Xabi Alonso (ele, que dizia onde era o meio-campo) e de Cesc, na suavidade de Raul, na visão de Xavi? Desculpem o entusiasmo. Mas o futebol faz mal ao coração, faz bem ao coração. E eu gosto.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 20 Junho 2006

junho 19, 2006

Brasil, melodias de sempre

1. Eu tenho um preconceito contra Mário Zagallo e devo confessá-lo. Em 1997, na preparação para o Mundial de França, o escrete jogava no Maracanã e eu fui ver. Sob pressão da multidão, Zagallo, a meio, mandou sair Raí, que eu sempre considerei um modelo de elegância, mestre do passe, para entrar Edmundo, “o Animal”. A turba apoiou, festejou, e queimou Raí. Zagallo sempre me pareceu aquele maestro das “Melodias de Sempre”, com uma orquestra cheia de músicos excelentes, agarrado ao crucifixo e incapaz de ousadia. E foi sempre assim. Só de ver Zagallo no banco dá arrepios. Foi ele que disse que Deco não tinha grande valor e que, como ele, tinham aos milhares. Zagallo é o mestre do ressentimento em futebol, cheio de “vai com Deus” e de “Deus está connosco”. Depois de tirarem Ronaldo de campo – foi ele que deu o golo a Adriano – a equipa não mudou. Sim, mudou a velocidade porque Robinho é bom de bola, mas o esquema foi o mesmo. É o esquema de “Deus está connosco”, cheio de banalidades, de acasos e de negligências. Ontem, o Brasil não me fez saltar da cadeira, mas também é verdade que todos esperam do escrete que ele seja um misto de rolo compressor e de preciosidade do samba (com Ronaldinho, Adriano, Cicinho, Robinho, Kaká, é o mínimo que se espera). A Austrália, que tem Kewell, Bresciano e Viduca, por exemplo, quase fazia afinar o ritmo. Por que não o fez o Brasil? Porque tem medo. E quem tem medo só ouve as “Melodias de Sempre”.

2. Sobre Ronaldo. Eu gosto dele, o desgraçado. Mas a verdade é que ele não se mexe, não pode correr, assobiam-no, comentam-no, e ele não joga. Eu acho que o escrete devia levá-lo ao Mundial, tal como Scolari achou, e bem, que deviam levar Jorge Andrade. Cada um no seu lado, cada um na sua equipa. Mas lesionados.

3. Ontem não falei do Gana, mas devia – dois tiros nos branquinhos europeus. Deu gozo vê-los jogar, marcar e, sobretudo, festejar. Acho que, quando forem eliminados, vão marcar um golo só para festejar outra vez.

4. A França empatou. É sempre bom; e cada vez melhor. Dá ânimo.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 19 Junho 2006

junho 18, 2006

Ainda bem que o miúdo marcou o penalty

1. Duas frases pequenas de Scolari: “Jogamos melhor do que contra Angola” e “ainda queremos vencer o México para assegurar o primeiro lugar do grupo”. Só por isso valeu a pena. Não há como os bons resultados para acabar com a estratégia do meio golo de vantagem, que dá três gloriosos pontos, mas que nos deprime a nós, os loucos da bola que não são sequer treinadores de bancada. Jogar melhor do que contra Angola era o mínimo possível; querer ganhar ao México é indispensável – não para a classificação, mas para o futebol que Portugal ontem jogou, que é melhor do que o do México. O do México pode ter momentos de mariachis – mas, felizmente, o de Portugal não teve “viras” nem “fandangos”; foi muito razoável. Se fosse um “vira” estávamos hoje a choramingar.

2. Reparem numa equipa que tem Deco, Maniche, Costinha, Figo e Cristiano Ronaldo. O jogo é completamente diferente da que jogou com Angola e da que perdeu duas vezes contra a Grécia. E reparem nos movimentos da equipa depois de terem saído Figo, Deco e Maniche.

3. Ainda bem que deixaram marcar o penalty ao miúdo. O miúdo merecia. Ele chama-se Cristiano Ronaldo e é magnífico de pés, bom de bola, miúdo de cabeça. O Portugalinho queria um rapaz que não risse e “jogasse para a equipa”. Ninguém sabe explicar isso. Quando Ronaldo joga na selecção ou no Manchester, joga para quem? Ele tem a ambição do adolescente, o génio que arrasta a bola consigo, a audácia dos bons jogadores – mas metade dos adeptos queria-o fora dos convocados. Sabem porquê? Simples. As pessoas não gostam de tipos excepcionais nem de miúdos que namorem com loiras bonitas. E, dos excepcionais, preferem aqueles que nunca riem (como Figo). Deco era bom mas não era “português legítimo” e “não sabia cantar o hino com emoção”. Balelas – tudo inveja de um génio com os pés na bola, capaz de jogar vendo todo o campo. Ainda bem que ontem deixaram o miúdo marcar o penalty: ele merecia marcar um golo. E nós, que já tínhamos visto o golo fantástico de Deco, merecíamos que alguém risse daquela maneira, juvenil, deliciosa, feliz.

4. A Itália empatou. É sempre bom. Dá ânimo.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 18 Junho 2006

junho 17, 2006

À vista do céu

Jantar no A Travessa, agora instalado num convento no limite da Madragoa, é um prazer acrescido desta vista deslumbrante: o céu de Lisboa durante o crepúsculo. Comida a condizer.

Cansaço, muito cansaço – o leitor sabe, certamente, o que isso é nesta altura do ano, condenada aos primeiros grandes calores, a essa lassidão que toma conta do corpo e leva atrás de si o que resta do espírito. Corpo e espírito pedem descanso, pedem atenção, pedem cuidado – mas as semanas actuais são o que são, cheias, quentes, intensas. E, devo dizer-lhes, o apetite tem os seus devaneios, as suas distracções.

Agora, que a introdução está feita, recordo uma destas tardes lisboetas depois de um passeio pela cidade, carregado de livros antigos comprados como “oportunidade” da Feira. Jantar cedo é um bem inestimável, para quem pode. Normalmente, ai dos que têm os seus horários minados, estou preparado para jantar às oito e meia, o que significa que só se janta depois das nove, quando tenho sorte. Mas o sábado permite jantar a horas nórdicas ou seja, quando o sol ainda ilumina as ruas e nos mostra o caminho, que desta vez se ficou pelos limites da Madragoa em vésperas de Santo António, o que significa que havia lugar para estacionar por perto apesar de se ouvirem marchinhas e de as varandas estarem engalanadas de papelinhos e bandeirolas; no antigo Convento das Bernardas existem um pátio e um claustro dignos de atenção – é onde actua agora o A Travessa, antigamente na Travessa das Inglesinhas, ao Quelhas (quando era lugar certo de muito político com bom gosto e de certos autores que muito prezo). Chamávamos-lhe “as belgas”, e ninguém levava a mal, dado haver um cruzamento entre a chamada “cozinha belga”, que era de inspiração belga, e o melhor da simplicidade lusitana – o que lhe ficava muito bem. O “boudin noir” era muito bom, o bife com pimenta verde seguia-lhe os passos, os mexilhões (“les moules”) uma curiosidade para quem era curioso e uma fonte de nostalgia saciada para quem conhecia a tradição belga.

Algumas das especialidades passaram da Travessa das Inglesinhas para o Convento das Bernardas, sendo uma das mais festejadas a simpatia, a cordialidade e a passagem de pratinhos de onde são servidos, à medida que saem da cozinha, ovos com cogumelos, lombinho de porco, queijo de cabra frito (panado) com compota de morango, farinheiras ou pimentinhos Padrón. O pão é cozido no próprio restaurante, em forno de lenha. E, depois, tem isto de extremamente agradável: o céu. Jantar no pátio, rodeado dos velhos claustros, em chão irregular de pedra, em mesas e cadeiras que atravessaram um século, é uma recomendação especial.

A ementa, essa, varia substancialmente porque depende dos produtos frescos que chegam à cozinha: peixes e legumes de qualidade marcante. No meu dia de visita havia arroz de corvina (muito saboroso, embora a dose merecesse mais de arroz e mais de corvina), raia no vapor com alcaparras, filetes de peixe-galo, linguadinhos, e, no capítulo das carnes, além do “magret de canard” que faz parte do património da casa, um tournedó de touro bravo (suculento e muito tenro, recomendável), escalopes de “foie gras”, perna de cordeiro no forno e vários bifes a pedido (todos eles de excelente corte, embora a lista dos molhos seja permissiva ao ponto de apresentar companhia de queijo da Serra – não ligue, é arrepio meu). As sobremesas eram límpidas como aquele fim de tarde: sericaia, com as respectivas ameixas de Elvas (pingando açúcar líquido, lindas, festivas, luminosas), “mousse de cassis”, pralinés de chocolate (estamos em terreno belga ou não?), tendo o meu grupo optado por um misto glorioso de frutas e doces, que preparou o caminho para o café.

Além da carta de vinhos prazenteira e cuidada, o hóspede (deixemos que seja hóspede, porque se trata de uma casa deste tamanho) pode ainda optar por uma bela cerveja de trigo à pressão (pode pedir “la blanche”, e recordar a canção de Jacques Brel), que ninguém leva a mal. O céu, belíssimo. As velas acendem-se para amparar o crepúsculo. Nem parece o centro de Lisboa.

À Lupa
Carta de vinhos: * * *
Carta de digestivos: * * *
Facilidade de acesso: * *
Decoração: * * *
Serviço à mesa: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 90
Vinhos Brancos: 50
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 28
Aguardentes & Conhaques: 30

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil
Adequado levar crianças: Sim
Área não-fumadores: Não
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 30 euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

Restaurante A Travessa
Travessa do Convento das Bernardas, 12Bairro da Madragoa - Santos
1200-638 Lisboa
Tel: 21.3902034
Encerra aos domingos e aos almoços de sábado.

in Revista Notícias Sábado - 17 Junho 2006

Meio golo de vantagem

A selecção mexicana mantém o fado que a acompanha desde 1954: a de jamais ter vencido dois jogos seguidos em Mundiais na Europa.

1. Escrevi que Angola não jogaria mais daquela maneira, com o atrevimento com que jogou contra Portugal; enganei-me redondamente. Com os do México a tocarem “rancheras”, em bando de mariachis, os angolanos mostraram que a vida é mesmo assim: como eles quiserem que seja, e enquanto quiserem, com jogadores cheios de garra. No final, os mexicanos falavam de um jogo sofrido – mesmo contra apenas dez angolanos depois da expulsão de André. As únicas palavras são de surpresa sobre este fenómeno angolano. Uma lição para todos. Agora, o México “tem mesmo” de ganhar a Portugal se quiser passar adiante. Mesmo por meio golo de vantagem.

2. Precisamente, na altura em que Scolari diz que não se importa de ganhar por esse meio golo de vantagem, diante do Irão, a Argentina dançou tango na Alemanha. Lucho lesionou-se e eu tive pena, mas o destino estava traçado daquela maneira, com seis golos marcados para que nos possamos rir dos que se satisfazem com “a margem mínima”. Ao contrário do que dizem os timoratos, não tem havido muita “margem mínima” – eu ainda estou a festejar a qualificação do Equador para a fase seguinte, sobretudo depois de ouvir um comentador a criticar a máscara de homem-aranha de Kaviedes. Mas ontem foi tango. Tango, milonga, o que quiserem: jogadas que deslizavam com um “bandoneon” à entrada da área, aquela velocidade de um passo de dança, aquele riso que faz o futebol arrasador e cheio de talento. Se a Argentina nos sair para a segunda fase (vamos chegar lá, não vamos?), a minha alma lusitana portar-se-á mal e será patriota, naturalmente – mas tenho de dizer, ressalvando, que este futebol foi limpinho, o da Argentina, foi talentoso. Não pela goleada; mas pelo jogo.

3. Espero que ganhemos hoje. Digo-o sem patriotismo; só pelo jogo. Espero que se possa mostrar um riso português, fantástico, na Alemanha. Espero que os rapazes joguem bem, que ganhem bem e que devolvam a alma à rapaziada. Mas que se batam. Quero é que o Irão vá para casa enriquecer urânio. Hoje.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 17 Junho 2006

junho 16, 2006

Confiança, talento e alegria

1. O Equador primeiro, naturalmente. O de Kaviedes, o de Tenório, o de Delgado, o de Valencia. Só lhe falta ganhar à Alemanha para ser considerado a revelação da primeira fase deste Mundial. Segundo as estatísticas, a sua eficácia é de 50%, ou seja, metade dos lances para a baliza resultaram em golo – se pensarmos que o Brasil está em 14º lugar nesta tabela, dá que pensar. Em Quito, há quatro anos e meio, a estatística foi semelhante num jogo que terminou em 1-0 favorável ao Equador contra o “escrete” (na altura, “a selecção bailarina”, antes de Scolari tomar conta do assunto). O Brasil tinha um percurso acidentado até então – o tratamento de Felipão foi o de um psicanalista. Quis jogar no Olímpico Monumental de Porto Alegre, onde tinha treinado o Grémio; os seguranças não deixavam que ninguém “xingasse” a equipa, nem nos treinos. Até algumas faixas tinham sido estrategicamente colocadas: “Tinga, eu te amo” era a mais improvável, mas estava lá. “Níveis de confiança” era o seu lema. Tiago, ontem à tarde, falou neles – nos níveis; está tudo confiante para o nosso jogo com o Irão. Não sei se foram os “níveis de confiança” que fizeram do Equador aquele pequeno e triunfal El Niño que marcou cinco golos contra a Polónia e a Costa Rica, mas acho que também foram o talento e a alegria, outros ingredientes fundamentais. Outro é a vontade absoluta, que empurrou Angola; jogar contra Portugal, a velha potência colonial, deu-lhes ânimo – nunca mais vão jogar assim.
Talento, vontade, alegria e confiança. É isso que é preciso para jogar bom futebol. Mas não esqueçam o talento.

2. Anteontem Costinha manifestou-se sobre a contratação de Scolari. Ontem Figo voltou ao tema – o treinador tem de renovar senão tudo estragado. Parece-me um exagero. Os jogadores gostam do clima que ele cria no balneário, gostam de ganhar e gostam, enfim, da voz de comando. É normal. Os professores mais severos são os mais apreciados pelos bons alunos. Mas esta pressão é de meninos.

3. A Inglaterra segue em frente. Mas tem um futebol fraquinho. E ligeiramente chato.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 16 Junho 2006

junho 15, 2006

O ressentimento. Espanha, o nosso patriotismo

1. Há ondas de ressentimento no ar. Tudo por causa do patriotismo e da “atitude que se deve ter diante da selecção”. Mesmo aquela pobre gente que não sabe distinguir um penalty de um ovo estrelado chama “treinadores manhosos” aos que se atrevem a discutir seja o que for, a pôr em causa uma decisão, a avaliar um jogo. É uma gentinha. O ressentimento por causa do patriotismo é o pior dos ressentimentos – a Pátria é uma entidade vaga que não vai a penaltis nem sabe o que é um fora de jogo. Luiz Felipe Scolari é um bom treinador, tem um campeonato do mundo, a copa Libertadores, a Intercontinental (quase tudo com o meu Grémio de Porto Alegre) – mas está habituado a levar. Em São Paulo, quando estava no Palmeiras, enfrentou a “torcida do Parque Antárctica” com eles no sítio; gostei. Em Porto Alegre estava em casa e acendia velas a Sto. António à vontade. Um teimoso gaúcho só se dá bem com teimosos gaúchos, de bigode, bombachas, botas e chimarrão. Coisa macha. Felipão é um teimoso gaúcho. Ele não se importa com insultos – precisa deles para dizer que é ele quem manda. Por isso, não se entende a treta do patriotismo desta gente. A gente quer que a selecção ganhe. Mas também queremos que ela nos encante, que nos maravilhe, para podermos atirar foguetes e gritar “Felipão!”, ou “Figo!”, ou “Portugaaale!” Não nos peçam menos. Lá estaremos diante do Irão, a insultar toda a gente, até aquele arremedo de “Maradona da Ásia”.

2. Toque de bola: a Espanha. Prazer de ver jogar os espanhóis – e não apenas pelos golos, mas pelo passe, pelo toque, pela facilidade com que dançavam diante dos ucranianos. A alegria vem com o retrato da vitória, é certo – mas não pela procura da “margem mínima”, essa desgraça do futebol moderno. Há muita gente que diz “assim é que é, os três pontos é que contam”. Têm razão, sim, era o estilo da Grécia; mas vive-se com muita azia.

3. Temos gente desta categoria e eu gosto: Costinha, Boa Morte. Também dá gosto ouvi-los falar das lições que recebem. A humildade fica bem a toda a gente – até a Figo, ontem, elogiando Scolari. A grandeza vê-se sempre, mesmo no meio da poeira.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 15 Junho 2006

Da série "Noite, o que é?" [11 - 20]

NOITE, O QUE É? 11.
Somos ligeiramente escravos da insónia. Podíamos dormir, sim, esconder-nos da noite. Há uma luz em qualquer lado, em qualquer lado se encontra. Uma janela. Um sabor, um cheiro que me persegue. Depois, como um relâmpago, acende-se uma letra branca a meio da noite, ficamos à sua espera dela durante horas, para que nos livre do medo e nos prepare para o que há-de vir. Um perfume que me persegue, a todas as horas da noite, entre dois mares.

NOITE, O QUE É? 12.
A maior parte das vezes, a noite é uma espera. A luz vem a meio da noite, às vezes não vem, um fio atravessa o céu. Lembra essas paisagens, ramagens das árvores, tardes pacíficas, a vida que há-de vir. Nestas alturas — agora — os dias mais luminosos, incendiados, aparecem a meio da noite, como uma visão, uma letra magnífica. Coisas que não se ouvem, coisas nómadas, súplicas, colibris, todas as coisas que importam. A noite ocupa-se nisto, enumerando tudo o que fica de algum lado do mar, escrevendo, poisando os braços sobre a mesa.

NOITE, O QUE É? 13.
Uma voz. Um sopro. A chuva que caiu durante a noite sem ser escutada. Passar um tempo esperando outro. O sabor do café, recordas o sabor do tempo, da voz. Como se estivesse aqui. Nesta altura chegam as perguntas, entram pela janela, uma perturbação sem nome, coisas vadias.

NOITE, O QUE É? 14.
Os nómadas estão sempre noutro lugar, falam das coisas da noite: respiração, páginas lidas, telefones, ruídos ocasionais — até chegar a insónia verdadeira. Nada interrompe esse delírio nem esses sonhos. Coisas fantásticas presas por um fio, recordadas todos os dias para que a vida tenha uma história para acontecer. De noite espera-se mais profundamente (mesmo que se ame a manhã, a luz perfeita do céu, a primeira luz do mundo). Passeios junto da água, idas ao supermercado, transplantar árvores, almoços tardios, recuperar o tempo. De noite espera-se mais profundamente.

NOITE, O QUE É? 15.
Agora, que regressou o frio, a noite é ainda mais difícil. Eles pensam que ela significa apenas escuridão, aquele período entre a luz mais intensa e a que vem, como um aviso, trazer a insónia. Não é assim: há os ruídos da noite, as imagens que ela traz como um incêndio, todas as coisas do céu, todas as coisas do mar, uma lembrança, um esquecimento. A espuma das noites. Coisas que não se suportam, por estarem distantes.

NOITE, O QUE É? 16.
Fico perdido — essa imagem enche a noite. Mês após mês, espero o mês seguinte. Não tem segredos, isto, mas tem mais sentido em segredo, como se apenas esse relâmpago se pudesse esconder no meio do céu.

NOITE, O QUE É? 17.
A voz que apazigua, a voz que ri, a voz que entra por todo o lado como um vendaval, ou só como um recado, uma lembrança. No meio da insónia, escreve-se muitas vezes sobre essa voz que atravessa todos os tufões, as ondas, a melancolia, o assombro, a malícia, a penumbra, a voz a que se pertence sem saber. Voz no meio do sono, voz que acorda de repente, voz que traz búzios, voz no meio da cinza. Emudece-se, por essa voz. Emudece a noite.

NOITE, O QUE É? 18.
Vejo essa imagem por instantes. É só por instantes; abre-se a noite, atravessando o mar, o perfume basta, só o perfume, um fragmento, a pele, uma coisa proibida. Há coisas mais felizes, mas nenhuma como esta.

A NOITE, O QUE É? 19.
A gripe, por exemplo. Nestas alturas ouvem-se todos os ruídos à volta, atravessa-se o fim da tarde com a sensação da cura, do abandono. Todos os ruídos estão dentro da cabeça, sobretudo aqueles que amamos. Chá, silêncio, um telefonema. Livros fechados. Coisas que não se suportam, por estarem distantes — as árvores, o riso, a relva, o mar, a comida, até a comida, a música, o vento na varanda.

NOITE, O QUE É? 20.
Muitas vezes não durmo para poder continuar a ver isto: tudo o que amei, o que vem de longe, do outro lado do mar. Tudo interrompe estas imagens; tudo desperta palavras de outra gramática, de outra língua, secretas, jardins onde as duas árvores maiores nunca estão abandonadas, tudo o que vai acontecendo à sua sombra. Estranhas coisas acontecem desde que me levanto, nos dias seguintes — a beleza é uma memória que não sai do meio dos olhos, que não se cansa, não se esgota. É por isso que muitas vezes não durmo, para continuar a ver, a não ser que nos encontremos mais tarde, ou apenas nos nossos sonhos.

Textos publicados originalmente no Blog "Aviz"

junho 14, 2006

O escrete ficou devendo

1. A minha vizinhança brasileira de noite e veio toda para a varanda gritar. Eu também gritei porque sou meio brasileiro. A minha filha, que vive no Brasil, telefonou-me logo de seguida lembrando que “ganhámos”, mas isto não augura nada de bom, com aquela defesa que parecia, não a rede, mas um buraco de rede (rasgado, de vez em quando, por túneis croatas), e aquele ataque que imitava vagamente múmias dançando mas evitando o essencial, que eram as bolas ao primeiro toque. “Ganhámos” é pouco. Como se diz no Brasil, o escrete ficou devendo futebol. Jogou malzinho, jogou deficiente – ou seja, sem eficácia. Ronaldo estacionado como um buda e Ronaldinho apenas um retrato do que costuma ser – mas aqui há um erro de estratégia, parece-me. Uma estratégia de Parreira, que parece tirada a papel químico da múmia Zagallo. Onde é que se viu o Brasil, aos oitenta minutos, a defender o resultado? Nem com Scolari, de quem agora têm saudades.

O Parreirão é um homem bom, mas vai ter problemas com a Austrália, que não tem créditos a haver do estrelato – ao contrário do escrete. O golaço de Kaká não redime a equipa, se bem que falte falar da Croácia, que merece aplauso: eles são bons de bola e têm juízo em campo.
À hora a que escrevo esta crónica, às onze da noite, há buzinadelas de entusiastas brasileiros pelas ruas – eles acreditam que têm os deuses do lado certo. Mas se continuarem assim em campo, pode ser que o fim seja triste. Falou o catastrofista.

2. A FIFA deve ter imposto uma disciplina qualquer à televisão, que não transmite repetições de boas jogadas. Já não falo de lances duvidosos, onde acredito que queira poupar os árbitros. Ontem, por exemplo, impediu-nos de ver aquela entrada em campo do torcedor croata e do voo encarpado seguido de salto mortal do “steward” alemão. Estava o homem dentro de campo, a rádio e os blogs online já falavam do assunto e a televisão como se não fosse nada. Estas transmissões bem-educadas, se me entendem, podem salvar a honra do convento, mas não são de fiar.

3. A França empatou. Foi bom. Dá sempre ânimo.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 14 Junho 2006

junho 13, 2006

Margem mínima e Japão e Austrália

1. A julgar pelas reacções que recebi (o e-mail, essa invenção), todos teremos de ser patriotas até à última gota de sangue. Acho bem. Ai dos que duvidam, ai dos que protestam ou desconfiam – há uma legião de embevecidos, que já ganharam o “reyno dos céos”, que está disposta a tudo para defender as cores da Pátria, mesmo quando os seus representantes jogam medianamente (isto é um eufemismo; na verdade, eles jogaram mal). E Figo, além disso, enganou-nos: as vitórias pela margem mínima (além da Argentina, temos o caso evidente da medíocre Inglaterra, mediocremente dirigida para fazer um futebol medíocre, mauzinho) não são assim tão abundantes. Olhem o Equador, olhem a Alemanha, olhem o México, olhem a Austrália e a Itália. Mas se estão contentes com a “margem mínima”, tudo bem; nós somos apenas os “doidos da bola”. Nem treinadores de bancada. Fiquem com a margem mínima.

2. Por falar em margem mínima, eu gosto de Zico. Gostei sempre, mesmo na derrota de Zico ao lado de Sócrates, quando aquela selecção de futebol bailarino achou que podia ganhar tudo e perdeu contra a Itália do futebol à Scolari. Portanto, Zico: também gostei de ver como riu (com gosto) ao ver o golo de Nakamura, depois da faltinha sobre o guarda-redes australiano. Mas o destino é como o deserto australiano: vem longe. Aos 83 minutos Cahill parecia voar sobre “aquele grande recife de coral” – Guus Hiddink não faz o meu futebol, mas gosto do estilo. Em dez minutos, a vitória de Zico desapareceu como a poeira. Nós já fizemos o mesmo diante da Inglaterra, evidentemente, mas nessa altura não falávamos de margem mínima. Gosto, como se diz no Brasil, de vitórias “de virada” – aquele repente que dá a jogadores inconformados com o destino e com a margem mínima, que nunca chega para satisfazer derreados do espírito. Apreciei a combatividade da Austrália, como a do Equador, esses heróis que venceram Brasil e Argentina há uns anos. Aquele futebol não era prático – mas respirava por todo o lado. Não queria saber de margem mínima nem recuava para o esquema do Portugal-Grécia. Está dito.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 13 Junho 2006

O que eu quero mostrar-lhes

Geralmente nunca penso nisso. Nem quando vou ao médico. Nem quando adormeço, nem quando acordo. Desta vez pensei nas florestas do Reno e nos jardins de Heidelberg onde as pessoas se deitam ao primeiro sol de Pri­mavera. Dir-lhes-ei que as pessoas não devem transformar a sua vida numa tra­gédia e que há sempre uma segunda oportunidade para todas as vidas que es­peram por nós. Talvez lhes diga isso se al­gum dia formos a Toledo. Não só para ver El Greco, mas para apreciar a sombra das ruas estreitas junto da sinagoga. Ou então enquanto passeamos pêlos becos de Haiffa, subindo e descendo, procuran­do o perfume do melhor falaffel. Ulti­mamente tenho pensado no que gostaria de mostrar aos filhos numa viagem que nunca lhes prometi — e penso nisso, penso nos três viajando comigo.

Penso numa praia em Baucau, em Timor, numa das manhãs mais encanta­das da minha vida. E penso nas varandas de Ermera, onde conheci algumas jovens professoras portuguesas, isoladas do resto do mundo, que me ensinaram o significa­do das palavras humildade e dedicação. Coisas simples. Gostava de lhes mostrar esse lado do mundo. Não só pela paisa­gem, se bem que há uma comoção que nos atravessa ao ver o Grande Recife de Coral, a caminho da Austrália. Como há outra comoção ao sentarmo-nos na rel­va do jardim botânico de Bali, diante do lago, com o piquenique dos domingos. E penso nos castanheiros dos outeiros de Vinhais, os mais belos. Nos carvalhos es­curos. Nos caminhos desenhados por en­tre as sombras da serra. Penso mostrar-lhes tudo o que se esconde numa flores­ta, que é o lugar ideal para pensar no sentido que as coisas têm - entre o vento, no meio da respiração da floresta e do cre­púsculo que os caminhantes sabem apre­ciar. Há coisas que não posso deixar de lhes mostrar: o pôr-do-sol no Guaíba, o entar­decer entre as águas da Amazónia, as nu­vens entre os arranha-céus, os caminhos pulverizados por essa poeira de geada no Inverno, os castelos, as estradas que não levam a nenhum lado e se perdem na Patagónia. São coisas minhas.

Viajar é isso, guardar coisas nossas. Fica-se muito me­lancólico quando se viaja a sério, quando muda qualquer coisa em nós – uma acen­tuação, um riso que antes era de outra maneira, uma roupa que deixa de se usar. E há coisas inexplicáveis. Mas, sen­do inexplicáveis, o Sul do México entra nesse mapa onde os levarei de carro, para dormirmos ao acaso em casarões de bran­co e ocre, para ouvirmos mariachis acom­panhando as primeiras cervejas, para descobrir a alegria de não ter pátria. E, não conseguindo explicar essa beleza intensa de Oaxaca (raramente consigo, eu sei), é essa beleza que gostava de lhes mostrar. E as colinas escuras do Cañon del Sumidero. Os bailes ao som de rancheras ou de boleros românticos, os jantares prolonga­dos no La Normita, em San Cristóbal de Ias Casas. Desço no mapa para ouvirmos reggae em Belize City, enquanto não che­gam os tufões às ilhas diante da sua baía, enquanto as tempestades não interrom­pem as estradas do Citrus District.

A primeira vez que aterrei na Gua­temala lembrei-me deles, ao ver as montanhas negras. Por isso prometi demorar-me mais tempo no Rio de Janeiro para que nenhuma cidade se lhe possa com­parar depois, senão para visitarmos os restaurantes de São Paulo, as suas livrarias intermináveis e as lojas de alfarrabistas enternecidos (o mesmo em Buenos Aires). Faremos isso, sim. Visitaremos os velhos museus na nossa Europa, as ruas de Antuérpia, as estradas da Toscana, o azul do mar Morto antes do Neguev, as mon­tanhas das Astúrias e o seu mar. Comere­mos ostras em La Guardia, subiremos de barco até Svolvaer, dormiremos num cer­to hotel da floresta. Nenhuma viagem tão perfeita. Antes que venha o fim.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Junho 2006

junho 12, 2006

Menos ais, rapazes

Comecei a ver o jogo com dois angolanos, um deles por telefone - e acabei rodeado por uns bons milhões que até aplaudiriam Mendonça, Locó e Mantorras. Como foi isto acontecer? Bom, eu sei por causa dos críticos e por causa da imprensa, naturalmente (como disse Figo, o melhor do jogo); esses é que estragam sempre tudo. Um dos cavalheiros que anda nas rádios (desses que já apanhou um torcicolo por andar a dizer "sim senhor, sim senhor") bem lembrava, no final do jogo: devemos estar imbuídos "do espírito".

Ora, o espírito, se me percebem, estava lá: bandeirinhas nos carros, nas varandas, nas praias - mas o corpo, em Colónia, não correspondeu ao esforço do "espírito". Sim, ficámos com os três pontos, que era o fundamental.

Figo (o melhor do jogo) refilou, no fim "Não sei do que é que estavam à espera." Pois eu digo-lhe, caro Figo (o melhor do jogo): esperávamos uma equipa que deixasse de estar nervosinha por ser o primeiro jogo; esperávamos uma equipa que triunfasse claramente e não deixasse dúvidas depois de uma campanha patriótica em que os críticos foram tratados como se tivessem sarna; esperávamos uma equipa com estrelas capazes de ganhar a jogadores do Varzim, do Barreirense, do Paços de Ferreira, do Moreirense ou mesmo sem equipa; esperávamos uma equipa que jogasse melhor do que jogou frente ao Luxemburgo ou ao Liechtenstein; esperávamos uma equipa que, além de ganhar, não nos deixasse a desconfiar. Era disso que estávamos à espera.

Não, não queríamos que a nossa equipa jogasse tão bem como a do Equador ou a da Argentina (desculpe-me, caro Figo, o melhor em campo, esta franqueza de portuga humilde) - mas queríamos que não fosse assobiada em campo. Queríamos não ter esta impressão de ter ganho só por um. Não se zangue. Você, Figo foi o melhor em campo. Repito isto quantas vezes for preciso para que não se zangue e não faça essa cara de quem nunca é compreendido ou tem problemas de azia.

Se nós pedimos qualquer coisa mais do que aquilo que a equipa jogou, não é para sermos chatos, infiéis, descrentes, pessimistas - é para lhes dizermos, a esses que jogam com a nossa camisola, que esperávamos mais. Muito mais dos que os três pontos.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 12 Junho 2006

junho 10, 2006

Alegria à mesa

Começou por ser "o restaurante alentejano no Porto" Depois teve a novidade da cozinha angolana. Na verdade, come-se muito bem no Campo Alegre.

SÃO UMA DÚZIA de mesas com toalhas bran­cas, acolhedoras (por vezes com entradinhas que abrem o apetite para mais, desde as pataniscas até ao bolinho de bacalhau, das azeitonas até ao pão, que é bom), um serviço muito cuidado e simpático, perto do glorioso mundo das faculda­des do Porto, com um providencial parque de estacionamento mesmo diante da porta, o que é uma vantagem incomparável à hora de almoço.

De todas as vezes que entrei no Campo Alegre, ao almoço e ao jantar, não me arrependi. Nem sempre foi excelente, nem sempre foi bom - mas nunca me desiludi. Da última vez foi um jantar mais rápido em que provei um nadinha de baca­lhau à Brás, umas pataniscas com arroz de feijão e, até, um pouco de pernil fumado com a sua companhia regulamentar de batatinhas e de grelos. Rápido, dizia eu. Bom, mas o bacalhau à Brás, aqui para nós, ó Campo Alegre, precisa de cuidados - tem de ser mais cremoso, mais envolvente (desta vez passa). Mas houve ali almoços demorados, muito mais demorados – do arroz de polvo (aliás, "filetes de polvo com arroz do mesmo") à caldeirada de cabrito à angolana e uma ou outra incursão alentejana (açorda de bacalhau), não houve desilusão nem queixas.

É daqueles restaurantes que se vão tornando familiares com o tempo, ainda que não façam parte do chamado "roteiro tradicional" dos restaurantes do Porto. Como se sabe, existe na língua portuguesa uma espécie de meridiano filológico que separa o Norte do Sul, o antigo do moderno – é quando detectamos, em determinada zona, que deixou de haver referência a "anho" e passou a dizer-se "cor­deiro" (obrigado, professor Lindley Cintra). Pois o coentro é, no caso da cozinha, uma das fronteiras da nossa arqueologia alimentar. Eu, que gosto de coentro, embirro bastante com ele, sobretudo nos restaurantes que querem ser alentejanos e passam a ideia de que basta acrescentar coentros a um prato para que ele adquira o selo de procedência geográfica.

Temi sempre isso no Campo Alegre - e, tirando um ou outro devaneio, uma ou outra distracção, houve sempre uma honestidade fun­damental na sua comida, quer nos pratos de inspiração alentejana (como no bacalhau de coentrada, nos pezinhos de coentrada - estão a ver os coentros?, estão? - nas migas com entrecosto frito, na canja de bacalhau ou na sopa de tomate), quer na cozinha tradicional mais 'mainstream' ou numa ou outra "invenção" com interesse relativo (lombo de porco com ameixas ou lombinhos de cherne com camarão e espinafres). Também, a verdade é que uma pessoa vai ao Porto, ou está no Porto, e não é propriamente para apreciar ementa alentejana; quer filetes de polvo, quer bacalhau de cebolada, quer feijoada de pernil ou arroz de vitela, quer aqueles arrozes essenciais e suculentos que fazem parte do dicio­nário do Entre-Douro-e-Minho (como o invernal e saboroso arroz de penca servido na casa, de que tenho bastantes saudades, com a couvinha ado­cicada pela geada), quer também filetes de pescada feitos de pescada ou um bacalhau dourado que nos lembre que estamos numa terra que pro­tegeu e sempre serviu o magnífico peixe salgado das águas frias do Norte.

Ainda me lembro de umas costeletas de sardinha (herança da Póvoa, ó terra de excelente peixe!) com arroz de tomate quase malandrinho, quase perfeito. De notar, ainda, o carrinho de sobremesas que avança naquele apertado corredor entre as mesas: há, entre outras coisas recomendáveis, sericaia, bolo de chocolate (com uma mousse muito interes­sante no interior), toucinho-do-céu, mousse de maracujá e de vez em quando pêras bêbedas. O Campo Alegre é, portanto, uma referência segura para muitas ocasiões – e se não vou lá mais vezes é porque o mundo não acaba onde estamos bem; há sempre outras experiências à nossa espera.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 72
Vinhos Brancos: 29
Vinhos Verdes: 10
Portos & Madeiras: 11
Uísques: 14
Aguardentes & Conhaques: 20

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Fácil (existe Parque em frente)
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao almoço
Preço médio: 22 Euros
Cartões: MB. V, D, M, AM


RESTAURANTE CAMPO ALEGRE
Rua do Campo Alegre, 416
4150-170 Porto
Tel: 22 609 73 28
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 10 Junho 2006

junho 07, 2006

Prémio

junho 05, 2006

A leitura e a virtude cívica

Uma das notícias da semana passada foi, sem dúvida, a apresentação das ideias gerais que hão-de presidir ao Plano Nacional de Leitura. O país interessou-se vagamente pelo assunto, porque chegou à conclusão de que se atingiu - nas escolas e na vida familiar - uma espécie de ponto de não-retorno, cujo diagnóstico é certamente pessimista. As opiniões de Vasco Pulido Valente e de José Saramago, manifestadas de forma corajosa (bem como, por exemplo, Abel Barros Baptista) vieram trazer alguma polémica, sempre bem vinda a um universo onde são todos bonzinhos e se acha que a leitura tem a ver com a cidadania, numa espécie de aliança de virtudes cívicas.

Essa ideia é, além de irritante ("bons cidadãos, bons leitores"), perversa e ruim para a própria leitura. A leitura é fonte de inquietação, de ruína, de descalabro - e também de felicidade e de preguiça. Nenhuma destas coisas faz bons cidadãos. Certamente que "ler muito" é bom - mas "ler bem" é muito melhor. É claro que ninguém, no seu perfeito juízo, está em condições de definir o que é "ler bem", embora se perceba que se trata de ler bons autores, de conhecer a grandeza dos clássicos da nossa língua e das outras línguas, da nossa cultura e das outras culturas. Ninguém é melhor cidadão por ter lido Fernando Pessoa ou João de Barros. Mas a capacidade de entender o mundo melhora consideravelmente.

Ler bem é, também, aproveitar a felicidade de ler, se se é feliz ao ler um livro que se amou. Mas não se trata de uma virtude cívica. Por isso, mais do que um plano nacional de leitura apresentado como uma prioridade nacional e cívica, com a sua inevitável pompa cheia de valores politicamente correctos, é necessário que a escola mude alguma coisa nos seus hábitos. A escola e as famílias. Mas a escola cumpre um papel essencial, razão porque há a esperar alguma coisa desta iniciativa, uma vez que na sua base está também o trabalho de uma das pessoas que mais fez pela qualidade das bibliotecas escolares, Teresa Calçada, além de uma autora que pôs muitos adolescentes no caminho da leitura, Isabel Alçada.

Precisamente, alguns ideólogos estapafúrdios do ensino do Português (aqueles que dizem que a matéria curricular trata do "ensino do português" e não do "ensino da literatura") garantem que interessa acabar com a iliteracia e que a literatura não tem nada a ver com o assunto. Provavelmente, nesse sentido, não haverá "vantagem cívica" em ter estudantes que saiam da escola a saber quem é Cesário Verde, a conhecer alguns trechos da "Peregrinação" ou de Fernão Lopes, a ter decorado dois ou três versos de Sá de Miranda ou de Tomás António Gonzaga. Por isso, os manuais do ensino e os livrinhos dos professores estão cheios de banalidades, de algaraviadas e de português deficiente.

Distingo, aí, algumas vozes a chamarem-me reaccionário. É um argumento e tanto, mas advirto não vale nada. Penso que o conhecimento dos clássicos é um dos melhores caminhos para conhecer a nossa história, a nossa língua e a nossa cultura. E que a leitura de um clássico é melhor do que a leitura de um regulamento do Big Brother, um artigo de jornal ou cartaz publicitário. Mas estes anos de insistência nas "virtudes cívicas do ensino do português" em vez do ensino da literatura, "produz técnicos de ensino" do português mas não forma professores disponíveis para cativar estudantes do secundário para os desafios da leitura. Um dos argumentos é triste e vergonhoso: o de que os estudantes do secundário, por exemplo, "não compreendem" o texto de um clássico, "não entendem" a linguagem dos autores do cânone da nossa literatura. Por isso, tratam de "facilitar o caminho" e de modelar a cabeça das criancinhas (infantilizadas e maltratadas por anos de erros ortográficos). Se o Plano Nacional de Leitura não devolver os clássicos da nossa língua à escola, não terá sucesso.

Jornal de Notícias - 5 de Junho 2006