setembro 29, 2005

Sangue, suor e lágrimas

Mário Soares acha que "eles" gostam é de sangue. "Eles" são os jornalistas. E "eles" querem é sangue. E por que querem "eles" sangue? Por nada de especial. Porque fazem perguntas. No caso, foi a correspondente da RTP Marcela Petraglia que mencionou o paralelismo entre a amizade com Salgado Zenha e com Manuel Alegre.

Soares acha que isso é "fazer-lhes" um favor, a "eles", aos jornalistas. Ora, o que devem fazer os jornalistas nestas circunstâncias, segundo Mário Soares? Não fazer sangue. Podem fazer sangue em muitas outras circunstâncias, "cumprindo o seu dever cívico", mas não podem - por exemplo - interrogar Soares sobre o paralelismo entre Zenha e Alegre. Isso, que me parece uma pergunta muito pertinente (dado que é bom conhecermos o carácter de um candidato a Belém), é fazer sangue. Mas Soares quer perguntas de alto nível.

O que pensa sobre os oceanos e o aquecimento global, sobre a "magistratura de influência" (uma das maiores banalidades agitadas por pessoas tão banais que são capazes de mencionar a expressão sem desatar a rir), sobre a sua experiência de "animal político", sobre os "poderes do presidente" (mais uma questão inútil, uma vez que estão perfeitamente definidos pela Constituição) e até sobre o papel da América no Mundo.

Seria conveniente que alguém fizesse perguntas sobre o que fez mudar a sua opinião sobre José Sócrates (que tratou de humilhar há uns meses, definindo-o como "o pior" que veio de Guterres, uma espécie de infâmia para a tradição do Partido Socialista). Mas compreendo que isso seria fazer sangue. E isso é o que "eles" queriam, fazendo perguntas.

Mário Soares é uma referência indiscutível e superior da nossa democracia, mas isso não pode servir para impedir que discutam com Soares e que o incomodem. Porque, naturalmente, quem vai à guerra dá e leva. Não há cerimónia; nem venham, depois, "pedir respeitinho".

Sócrates, esse, acha que Soares vem para unir os portugueses e que o Centro e o Centro-Esquerda vão apoiar Soares. Dois sonhos terríveis e catastróficos - para o primeiro-ministro, que não devia convencer-se disso, assim tão rapidamente. Ora, convém dizê-lo, Soares não vem para unir os portugueses vem para dividir e para os dividir claramente. Não se compreenderia de outra forma. Seria ridículo, num homem cujos últimos 50 discursos, antes do anúncio da candidatura presidencial, se destinavam a dividir o Mundo em bons e maus (segundo a sua lógica), que agora se concedesse a si próprio o direito de unir os portugueses, bons e os maus. Sócrates também sabe que Soares não vem unir os portugueses. E, na verdade, não me parece que seja conveniente uni-los. Por mim, dispenso. Unir os portugueses, na perspectiva do actual Mário Soares, não me parece uma ideia risonha e interessante. Para quem votou em Sócrates ou para quem vai votar no PSD, o voto em Soares é uma contradição: são ideias muito diferentes sobre economia, sobre política e sobre questões internacionais. Tão diferentes que esse choque causará problemas. Podemos imaginar a "magistratura de influência" de Soares abrir as portas a tudo o que é contestação ao Governo, apoiando ajuntamentos de rua, manifestações unitárias, congressos vagamente "de reflexão", além de conspirar para mudar o PS e expulsar Sócrates, os herdeiros de Guterres e, agora, de Alegre.

Porque, a verdade é esta se Soares não vem fazer isso, que é o que sabe fazer bem, que vem Soares fazer a estas eleições? É preciso saber. É por isso que os jornalistas, "eles", devem fazer perguntas.

Jornal de Notícias - 29 de Setembro 2005

setembro 22, 2005

Esquadrões

Na televisão portuguesa, corre agora um programa intitulado "Esquadrão G". O leitor já o viu; eu apenas passei os olhos, ao de leve - conheço outras edições da mesma ideia, em outros países, e não me sobra muito tempo para palermices.

A ideia-base do programa é apresentar um grupo de "gays" que vão transformar a vida e o aspecto de um homem heterossexual, ou seja, transformar a vida e o aspecto de um "alegado grunho", de modo a torná-lo apresentável e decente, ensinando-lhe maneiras e obrigando-o a abandonar "hábitos reprováveis". Este género de palhaçada não constitui novidade no mundo das coisas imbecis, mas os adjectivos costumam chegar-me, descanse o leitor. Ao passar por ser um programa "desmistificador" e "libertador" em relação à condição de "gay", a emissão é, fundamentalmente, um espectáculo prejudicial a essa condição. Não sei se aqueles rapazes são "gays" ou não parecem-me apenas imbecis, amaneirados, aflausinados, ridículos e com muito mau gosto. Limitam-se a prolongar o estereótipo do machão português sobre a "maricagem": uns meneios de ancas, uma provocaçãozinha de corpo, uma ligeira pornografia. Mais nada. Para esta visão reaccionária e fascistóide do mundo "gay", o homem heterossexual é um brutamontes incapaz de recitar dois versos seguidos, provavelmente analfabeto na cozinha, de certeza incapaz de escolher roupa decente e inevitavelmente "insensível". Diante deste modelo absurdo, o "gay" é um modelo de aparentes virtudes: fala com trejeitos e ademanes vagamente franceses, belisca comida japonesa ou tailandesa, morre diante da ideia de ter uns gramas de gordura a mais, além de conhecer produtos de beleza e restaurantes da moda.

Imaginando o "mundo heterossexual" (que é isso?) como um desastre cultural e uma permanente grosseria, esse discurso falsamente "gay" (e que é apenas efeminado e piroso, à semelhança daquela espécie de ser que dá pelo nome de José Castelo Branco), o programa cai na armadilha habitual e limita-se a ser um lugar televisivo onde um grupo de rapazes mascarados de "bichas" interpretam papéis que fazem rir a populaça mais boçal ou indignam gente sem sentido de humor. Uma palhaçada é uma palhaçada.

2. O país vai bem. As manifestações dos militares foram engavetadas. É uma boa notícia. Militares na rua é uma coisa que faz impressão; a mim fazia-me mais impressão em 1975, mas deve ser obsessão pessoal. Estes, de agora, andavam desarmados, mas mesmo assim eram militares. Os polícias também não saem à rua para já. O Estado está salvo e a sua dignidade preservada transformou os oficiais e os polícias em funcionários públicos, mas aplica-lhes o regulamento militar. Há alguma contradição? Nenhuma. O Estado está sempre do lado do bem e da justiça. Veja-se o que faz aos polícias: obriga-os a comprar as próprias fardas e a pagar consertos nas viaturas (o Estado não paga os seguros dos carros, considera-se acima dos cidadãos), mesmo se estão a perseguir meliantes ou a zelar pela ordem pública.

A questão dos militares não devia amolecer-nos. Um militar é um militar; não sou suspeito de simpatia pela classe, mas incomoda-me saber que o Estado optou pela profissionalização dos militares, mas não quer protestos dos seus profissionais. Tal como opta pela profissionalização das polícias, embora não queira nem dignificar-lhes a profissão nem pagar-lhes a rigor. Se os cavalheiros que ocupam esses tão decisivos lugares no aparelho de Estado acham que deixa de fazer sentido a existência de um corpo militar à antiga, então que pague o preço do seu luxo e desembolse em conformidade.

Jornal de Notícias - 22 de Setembro 2005

setembro 15, 2005

Tenham medo, muito medo

Toda a gente tem informações privilegiadas sobre o que pensa Cavaco. Só assim se explica que Jerónimo de Sousa, Francisco Louçã e Mário Soares se multipliquem em declarações sobre a necessidade de derrotar Cavaco, o único que ainda não é candidato. À esquerda, aliás, vai uma discussão interessante e até académica para determinar se as candidaturas de Louçã e de Jerónimo de Sousa são ou não úteis para que Soares possa derrotar Cavaco logo à primeira volta ou apenas à segunda. Mas o objectivo está definido à partida derrotar Cavaco. Há um imperativo categórico em toda a esquerda moral ou política: derrotar Cavaco. Esse é o objectivo principal. Não há outro, pelo menos que se vislumbre.

Mário Soares, que começou por dizer que Cavaco seria um bom adversário, com quem até gostaria de debater, inclinou-se já para a posição mais radical Cavaco não tem perfil para presidente da República. Ora, quem não tem perfil para presidente a República também não terá perfil para candidato à presidência a República, suponho. Não vale a pena concorrer.

Cavaco mete-lhes medo. Cavaco, que ainda não se apresentou como candidato, é o monstro da democracia. Mais do que isso Cavaco ameaça-a; ele não tem o "perfil humanista" que é necessário para exercer o cargo, não tem atrás de si a corte nem a legenda de intelectuais que fazem de um candidato a Belém um eleito em Belém. Mais: ele sofre desse defeito terrível que transforma um candidato a Belém num monstro sem eira nem beira - sabe economia, a ciência mais desagradável entre todas; ele sabe de finanças, o que até Jesus Cristo recusaria e recusou (invocam-se os poetas quando eles servem para provar o que nos favorece). Cavaco não tem "pedigree". É um homem que habitou a vivenda Mariani, na fantástica Boliqueime algarvia, onde teve o descaramento de nascer.

Estão a rir? Ah, mas isto é o que pensam a esquerda e a direita bem-educadas que vêem no homem de Boliqueime o representante daquele horror que povoou Portugal nos anos 80, distribuindo dinheiro e falando duro, sério, às vezes implacável. Esta ideia de que Cavaco é um simples, uma espécie de Calisto Elói camiliano, que, em vez de sair de Miranda do Douro, sai da sua sala de estar cheia de molduras com recordações familiares, é, evidentemente, falsa. Mas corresponde ao desenho conveniente para que os candidatos do bom gosto enfrentem um Cavaco que não foi escolhido para apresentar, em livro, publicamente, os poemas da sua vida.

Sim, Cavaco é o inimigo a abater, uma espécie de devorador do regime; mesmo que nada nos autorize a citá-lo como o Átila que venha a esmagar as instituições, a Constituição e o regime.

Com esta nova declaração de Mário Soares, a de que Cavaco "não tem perfil", a de que "o gajo" não tem um "perfil humanista", está definido o campo. Ou seja dos três candidatos, com excepção de Francisco Louçã (que falou sobre o assunto), ainda não sabemos o que querem exactamente, a não ser isto: derrotar Cavaco.

Com tantos ataques a Cavaco, mesmo antes de Cavaco Silva aparecer como candidato, de ele dizer ao que vem - se vier -, não sei se não valerá a pena prestar atenção à figura do homem das finanças e saber por que é que ele provoca esta urticária generalizada nas grandes províncias portuguesas. É assim que se constrói uma figura, aliás designando-a antes de ela se tornar visível.

Jornal de Notícias - 15 de Setembro 2005

setembro 08, 2005

Vida portuguesa

O que acontece com os incêndios, acontece com os livros escolares só se fala do assunto quando chega a altura das queixinhas. Isso acontece no início do ano lectivo e, na verdade, como sabem os professores (e, provavelmente, não sabem os pais), devia falar-se do assunto logo em Março. Frequento bastante os livros escolares. Não partilho da opinião de que são deficientes e os seus autores negligentes (alguns são bons). Na maior parte dos casos limitam-se a interpretar programas que também podem ser absurdos, inadequados ou apenas improváveis. Além do problema do preço há outros, evidentemente: a sua qualidade (aspectos científicos e ortografia incluídos), a homologação ministerial, o sistema que leva editoras a apostar no escuro e a ter de rentabilizar o investimento, a "angariação de clientes", aspectos pedagógicos relevantes (como, por exemplo, a obrigação de os alunos escreverem nos manuais - o que, além do mais, os inutiliza para anos futuros), aspectos técnicos nada despiciendos (já alguém pensou que os livros são tão caros porque têm aquele aspecto gráfico, aquele papel pesado e outras manigâncias provavelmente desnecessárias?). Por exemplo.

2. Grandes e pequenos comentadores, dirigentes políticos e jornalistas avulsos descobriram recentemente duas coisas que a culpa do furacão Katrina é do "sr. Bush" e que na América próspera existe pobreza em graus dramáticos. A primeira das conclusões não tem nenhuma má-fé associada, como se sabe - depende apenas da indigência mental e do carácter obtuso dos intervenientes; a segunda é resultado de má-fé, sim - a miséria, o desemprego, a pobreza nunca foram escondidos da América. Inveja, má-formação e cretinice foram servidas em doses substanciais. Ninguém resiste a uma boa cerimónia fúnebre nos EUA.

3. O dr. Marques Mendes acha que a compra de uma parte do capital da TVI por espanhóis é um crime de lesa-cultura. Erro de perspectiva. O dirigente da Oposição podia perguntar-se por que razão houve tantos obstáculos por parte da Alta Autoridade à venda do grupo de media da PT a Joaquim Oliveira. Mas não pode inventar esse "argumento espanhol" por ter medo de ver os apresentadores da TVI a dançar flamenco.

4. Parece que o presidente da Câmara de Castanheira de Pêra explicou que gasta uns bons milhares de euros por ano em prevenção de incêndios e em vigilância das suas florestas. Isso não dá votos, mas o seu concelho não foi fustigado como os outros. Feitas as contas, deve ser homenageado e o exemplo retido. Já quanto ao Estado, em geral, viu arder 10% das suas árvores enquanto desviava as atenções e se notam os rumores pedinchistas da indústria dos incêndios reivindicando mais gastos e mais atenções. Gastos e atenções dão votos.

5. Boa parte dos comentadores entreteve-se a discutir sobre se o discurso de Mário Soares foi genial, excelente, bom ou "conforme o esperado", como se a Pátria estivesse desesperada, aguardando a salvação. Porém, inesperadamente, o discurso de Sócrates no Porto foi fustigado. Se alguém tem dúvidas sobre quem vai marcar a agenda política, está aí o quadro desenhado. Sócrates vai ser desvalorizado com o aparecimento de Soares. O ex-presidente por várias vezes tratou de identificar o deserto à sua volta. Sócrates já fez parte dele (as declarações de Soares foram claras) como um elemento desprezível.

Jornal de Notícias - 8 de Setembro 2005

setembro 03, 2005

Cervantes



O MANUSCRITO DE BUENOS AIRES

Aos sábados de manhã, havia esse ruído permanente que o traía: uma espécie de ventania vinda do canal, os táxis que avançavam até às Portas de San Teimo, cafés abertos desde muito cedo, os jornais abertos sobre a mesa do Café de Ia Plaza - e os alfarrabistas, que, na ver­dade, detestava. Era o seu sexto sábado em Buenos Aires desde que decidira levar até ao fim a pesquisa e, como acontecia todas as vezes, encontrava aquele cego passean­do ao longo da Calle Defensa, misturando-se com os turistas, guiado por uma jovem demasiado séria, de cabe­los compridos e vestida como há muitos anos devia estar vestida uma mulher mais velha, a quem ele segurava o bra­ço como se fosse ele a dirigir-lhe os passos, e não o con­trário, ele a empurrá-la nesta ou naquela direcção e não o contrário, entre as pequenas orquestras que tocavam tangos no meio da rua - um violoncelo, um piano, dois violinos, um bandoneón -, escapando aos vendedores de antiguidades. Encontrara-os sempre àquela hora. Por uma vez aconteceu que ambos, o velho e a jovem, se sentaram a uma mesa do café da Plaza Dorrego, e ficaram por ali durante uma hora: ela, segurando-lhe a mão por baixo da mesa; ele, como se olhasse ou pudesse olhar as pessoas que entravam no café, movendo a cabeça quando alguém arrastava uma cadeira ou quando um empre­gado passava mais perto, transportando a sua bandeja com cervejas. Tinham-lhe dito que era um poeta. Melhor, que fora um poeta - não publicava um poema há mais de trinta anos embora fosse cumprimentado pelos outros poetas e o seu nome figurasse em dois dicionários enci­clopédicos sobre a Argentina do século XX.
Por mera curiosidade, um dia entrara numa livraria da Recoleta e abrira o terceiro volume, onde na letra C constava o nome de Evarísto Cárdenas, nascido a 24 de Agosto de 1927 em Buenos Aires, autor de três livros de poemas, o último deles Los Tangos Parimos, fora publicado em 1964. Tomara nota dos títulos no seu caderno e teria de arran­car a folha - um homem meticuloso como ele não gos­tava de ver o nome de Evaristo Cárdenas, um velho romântico que escrevera sobre os tangos de Buenos Aires e a heráldica espanhola, no meio das mais recentes ano­tações sobre o assunto que dominara a sua vida nos últi­mos dois anos. Um homem meticuloso como ele. Um intelectual europeu, professor em licença sabática, casa­do e medianamente respeitado como é possível ser res­peitado um professor português de uma universidade de província. Um homem que decide aproveitar a sua licen­ça sabática para viajar até Buenos Aires e dedicar-se a escla­recer uma das suas obsessões principais. O encontro com essa obsessão, de resto, fora um acaso, tão acaso como o encontro sem sentido nenhum com Evaristo Cárdenas - mas estava decidido a seguir até ao fim e enfrentar o ridículo daquela esperança que já nem sequer era literá­ria e que se aproximara de uma mania que aos outros poderia parecer cómica.
Cervantes não era uma personagem cómica. Ele pen­sava assim. E fora Cervantes que o trouxera a Buenos Aires. O capítulo XXIV do livro primeiro do Quixote lan­çou a primeira das suas suspeitas porque os amores e as histórias cruzadas de Cardénio, Lucinda, Doroteia e D. Fernando faziam supor que Cervantes, o cómico, e não Cervantes, o eterno, tinha brincado com a própria litera­tura. Essa foi a sua primeira impressão, e havia um enig­ma evidente nesse episódio, que era um rodopio sobre a liberalidade com que o próprio Miguel de Cervantes Saavedra tinha tratado em romance das coisas reais do seu tempo. Anagramas. Ele aprendera a desconfiar dos anagramas. Nomes cifrados. Existiam às dezenas no Quixote. Existiam às dezenas em Cervantes. Porque Cervantes e o Quixote eram familiares - ambos confundiam o leitor, misturando a realidade com a ficção, o que seria normal, e o assunto não mereceria mais do que duas páginas cheias de lugares-comuns acerca da utilidade material da literatura e sobre os processos de composição do roman­ce. Vira muitos professores, investigadores, assistentes da universidade e simples curiosos dançar sobre andaimes acerca da contiguidade entre realidade e ficção. Sobre todos os assuntos, esse era o mais desinteressante no caso da ficção - e o mais enigmático no caso da realidade. Dedi­cara anos de estudo a esse episódio e sempre imaginara Cervantes ludibriando a realidade, vingando-se - como todos os grandes escritores - de uma parte da sua vida. O que o preocupava não era o facto de a história de D. Fernando ter sido real alguma vez, mas a existência daquelas palavras de Sancho. Ele recordava-as: «Digo de verdad que es vuestra merced el mesmo diablo, y que no hay cosa que no se sepa.» Não há coisa que não se saiba, de facto - Sancho alertaria D. Quixote para os perigos de denunciar Cardénio como o cordobês Cárdenas, mortificado pela traição de Lucinda com D. Fernando, antes de se refugiar na serra Morena. E que D. Fernando seria um Pedro Girón enamorado de Maria de Torres nessa Andaluzia de 1580. No final tudo se compõe, e D. Fernan­do casa-se com Doroteia enquanto Cardénio, aliás Cárdenas, vê regressar Lucinda aos seus braços. O episódio é conhecido e vulgar. A meditação sobre a moral da sua his­tória é ainda mais desinteressante. Só que.
Esse «só que» havia de transformar-se num gigantesco «no entanto» durante uma bela tarde de Outono, quan­do a universidade se preparava para reiniciar as aulas depois de uma interrupção de Novembro. Uma luz ama­relada e tépida tomara conta do seu gabinete, rodeado de livros, pilhas de papéis, caixas com anotações que tinham sobrado do seu último artigo sobre Sterne, correspondência que nunca tinha aberto, revistas académicas cujos assuntos raramente o interessavam. Sterne tinha escrito sobre Cervantes; era uma das ligações inesperadas - mas também eram as de Machado, Twain, Conrad, Dostoievski ou Thomas Mann. Sterne, no Tristram Shandy (oh, sim, Livro IX, capítulo 21) tem uma passagem onde menciona o seu idolatrado Cervantes. E curta e sempre se perguntara porquê tão curta. Mas o Tristram Shandy tinha capítulos colossais, capítulos curtos, capítulos enig­máticos e, também, capítulos que não existiam. Macha­do de Assis e Almeida Garrett também. A ideia de existi­rem capítulos que não existem levou-o mais longe e, sobretudo, muito mais longe do que poderia imaginar. Foi nessa tarde de Outono que, ao decidir dar uma ordem a esse amontoado de papéis, e começando pelas revistas académicas, entre as quais muitas que escondeu cuidado­samente numa caixa de cartão que devia ser enviada para a reciclagem - foi então que abriu aquele exemplar de uma revista de Buenos Aires e onde descobriu o arti­go sobre «La Literatura Que no Existe». A tese do autor, um até aí ignorado Rodríguez Tiberi, mencionava justa­mente Cervantes e começava com uma citação de Jorge Luís Borges, uns versos de El otro, el mismo, o seu livro de poemas de 1964. O que lhe chamou a atenção foi esse parágrafo fatal, que copiou, traduziu e acabou por afixar no quadro de cortiça que decorava uma das paredes do gabinete: «E possível que muitos autores tenham, como Cervantes no Quixote, limitado a sua obra ao que se podia conhecer na sua edição. Não ao que foi de facto escrito. Fragmentos desaparecidos de obras invulgares e defini­tivas poderiam ser destruídas se fossem conhecidos esses manuscritos nunca utilizados - a isso foram os autores obrigados pelos seus editores, pelo poder do Estado, da Igreja ou da sua consciência ou conveniência. O que sabemos do Quijote ou das suas primeiras edições permi­te apenas suposições. Mas a história literária ocidental teria sido diferente.» Esta passagem interessou-o durante algu­mas semanas, tanto mais que não se recordava da existên­cia de excessivas polémicas sobre o original de Cervantes. Mas só isso. Só uns meses mais tarde, num encontro sobre edição de manuscritos do século XVIII, em Salamanca, pôde conversar com Lucas Corso sobre Rodríguez Tiberi e sobre eventuais rumores acerca de Cervantes ou dos seus manuscritos. Corso era conhecido como um caçador de edições raras e, muito frequentemente, as uni­versidades e as bibliotecas - embora desconfiassem dele e temessem ver-se associados ao espanhol - recorriam aos seus serviços, que eram bem pagos e geralmente pisavam o risco da ilegalidade. Esse conhecimento datava de há alguns anos, quando Lucas Corso rondou Lisboa no meio de uma investigação sobre um manuscrito de Dumas.
- Tiberi é um homem misterioso, ensina na univer­sidade de Buenos Aires, mas, como todo o argentino, pode ser encontrado em qualquer lado, em Santiago como em Paris, em Reiquejavique como em Salamanca - dissera Lucas Corso, à noite, no bar do Hotel Byblos bebendo um derradeiro Bombay apenas com gelo.
- Não confies demasiado nele. Nunca fiz negó­cios com Tiberi, mas se há alguma edição rara em Bue­nos Aires, ele ouviu falar dela.
Só quando saíram para o Passeo Carmelitas, sob aque­la tepidez de Salamanca no final da Primavera, onde há sempre um ruído de fundo, ele lhe perguntou se sabia de alguma ligação de Tiberi a Cervantes.
- Não - disse o espanhol enquanto se desembaraçava de um cigarro que acendera apenas um pouco antes. Não sei.
Passaram-se alguns meses antes de começar o seu pe­ríodo sabático, logo depois de Fevereiro. Nesse período não teve notícias de Lucas Corso - e estas chegaram na segunda semana de Março através de um e-mail lacónico e curto onde lhe dizia que Rodríguez Tiberi tinha morri­do e que o seu espólio - manuscritos, cartas, edições raras - estava à venda em Buenos Aires. Não havia catálogo algum, mas supunha-se que seria rico, curioso e, ao que se sabia, disputado.
Na vida inteira, no destino de um homem - que mui­tas vezes é apenas absurdo -, há decisões dramáticas e sérias. E há outras que não merecem explicação. Uma delas foi o pedido de uma bolsa de curta duração, feito há meses, e que lhe permitiria passar algumas semanas em Buenos Aires, desde que encontrasse um pequeno hotel num dos bairros antigos. A justificação seria, natural­mente, Jorge Luis Borges - e, claro, a sua relação com Cervantes. Por razões obscuras, o seu pedido foi aceite e partiu em finais de Abril para Buenos Aires. Divorciado, os filhos na universidade, a vida sentimental reduzida a encontros de ocasião com mulheres bibliófilas ou mode­radamente assexuadas, pôde partir sem essa sensação de deixar atrás de si uma ausência muito notada. Tinha um visto de seis meses, que não iria utilizar, duas malas com roupa e uma mochila com o computador portátil. Bue­nos Aires entrava no Outono.
Ao fim de uma semana, alojado nos limites de San Teimo, conhecendo já a Biblioteca Nacional, as livra­rias de Belgrano e os restaurantes baratos do bairro, pôde marcar a primeira entrevista com Alicia Goye, uma das curadoras encarregadas pela família de Rodríguez Tiberi de se desfazer do espólio do velho profes­sor e bibliófilo. Ela pediu desculpa por não poder recebê-lo no escritório, porque estavam a fazer algu­mas reformas, mas sugeriu o Café Britânico, ao fun­do do Parque Lezama, exactamente no encontro entre as calles Defensa e Brasil. Era uma mulher de cabelo curto e ruivo, vestida como ele esperava que acontecesse com uma bibliotecária de trinta e cinco anos - acrescentando ainda uma mantilha negra e uns olhos castanhos, profundos, silenciosos.
-Digo de verdad que es vuestra merced el mismo diablo, y que no hay cosa que no se sepa.
Foi o que ele disse. Ela sorriu.
- Sancho Pança em Buenos Aires. Você é o Sancho Pança?
Ele estranhou que Alicia Goye reconhecesse a passa­gem, ainda por cima no seu castelhano que nunca fora propriamente famoso. Mas estranhou ainda mais que ele tivesse dito aquela frase depois de lhe apertar a mão, ainda de pé, olhando para aqueles olhos profundos, silenciosos. Ela riu, mais do que sorriu. E ele sentou-se, concentrando-se - evitando os olhos daquela mulher, cuja voz lhe parecia tão fantástica como o próprio facto de ele estar em Buenos Aires.
- Disse-me que está a estudar Borges.
- É um pretexto.
- Todos os pretextos são bons quando se trata de vir a Buenos Aires. Borges e Sábato, Ernesto Sábato. Eles não se davam muito bem, mas foi neste café, segundo se diz, que Sábato escreveu um dos seus romances. Isso incomo­da-o?
- Não. Mas o meu verdadeiro interesse é o Quixote.
- Para isso terá de encontrar Pierre Ménard. Borges atri­buiu-lhe a verdadeira autoria do Quixote. Não vem a este café.
- Sim, mas sei que o professor Tiberi tinha muito interesse em Cervantes. E no Quixote, naturalmente. Digamos que estou muito interessado em saber se existe algum material sobre o assunto no espólio do professor Tiberi.
- Ah, o espólio do professor Tiberi, como lhe chama, é ainda um volume disforme de papéis e de livros. Daqui a uma semana será um amontoado de caixas. E só daqui a um ano será um catálogo ordenado que valha a pena consultar.
- Até agora não encontrou nenhuma referência a Cervantes ou ao Quixote.
- Com as devidas distâncias, a biblioteca do professor Tiberi é uma espécie de biblioteca de Jorge de Burgos.
- Falta-lhe o Jorge de Burgos.
- Há um Jorge de Burgos em cada um de nós - riu ela. - O livro de Aristóteles não está lá, descanse. Estaria guar­dado no cofre de um banco. Ou desfeito em cinzas.
- O que eu procuro pode estar guardado no cofre de um banco. O Quixote é um assunto demasiado sério.
Ela também ficou séria e afastou a chávena do café, apoiando os cotovelos na mesa:
- O senhor é o terceiro interessado na edição do Qui­xote do professor Tiberi - ela, muito seca, aqueles olhos profundos, uma madeixa de cabelo caindo sobre a testa.
- Quem são os outros?
- Não posso dizer-lhe. Estaria a violar um segredo, a ser desleal para com os outros concorrentes e a menospre­zar a minha própria capacidade de fazer negócio. Disso depende a minha vida, compreende. Três concorrentes.
E demasiado, neste momento.
- Eu disse-lhe Cervantes de cor, citei-lhe o Quixote. Essa passagem. Não mereço que me diga mais alguma coisa?
- Nem imagina o que fizeram os outros para merecer mais do que um encontro no Café Britânico. Hoje em dia faz-se muito pela literatura. Tenho de me contentar com a minha posição de intermediária. A família do pro­fessor Tiberi não entende nada de livros. Se estivessem diante de um manuscrito de Cervantes deitavam-no no lixo. Estava velho e não se entendia nada.
- Porque falou num manuscrito de Cervantes?
- Eu falei? Buenos Aires é uma cidade fantástica, mes­mo para nós, porteños. Faz-nos dizer coisas sem sentido. Ou talvez fosse porque me citou uma fala do capítulo XXV. Cardénio está desesperado e odeia Fernando e Lucinda. Sancho está mais tranquilo. Gostei de conhe­cê-lo. Telefone-me daqui a duas semanas, quando tiver avançado na sua investigação sobre Borges.
E saiu, arrastando consigo aquele perfume, cumpri­mentada pelos empregados do café, ajeitando a mantiIha negra, que contrastava perfeitamente com o tom ruivo do seu cabelo. Na rua, enquanto ouvia a música de uma orquestra de rua que se despedia da tarde de Bue­nos Aires, mergulhando no crepúsculo, pareceu-lhe ver uni rosto conhecido - por instantes julgou que fosse Lucas Corso, o que atribuiu a uma influência literária trai­çoeira, uma vez que, no hotel, começara a ler a edição em espanhol de O Clube Dumas, de Pérez-Reverte.
Voltou a vê-la duas semanas depois, exactamente no Café Britânico, exactamente à mesma hora, mas já não tinha importância. Durante uma semana tentou, em vão, reconstituir os acontecimentos dessa parte do Quixote. Uma tarde, quando se sentou a uma mesa do café da Plaza Dorrego, lendo jornais e bebendo cerveja, foi surpreendido pela presença de Evaristo Cárdenas, que aparecera sentado a seu lado, acompanhado pela jovem mulher. Ao olhar para ele, para aqueles olhos protegidos por óculos escuros, juraria que o antigo poeta sor­rira na sua direcção e baixara a cabeça uns milímetros, apenas o suficiente para deixar no ar a dúvida sobre se se tratara ou não de um cumprimento. Inadvertidamente, sorriu para o argentino - mas a mulher olhou--o muito séria, a cabeça direita, muito direita. Daí a pouco o par levantou-se e os empregados curvaram-se à sua passagem, deferentes. Um deles abriu-lhes a por­ta. E, por mais que quisesse desmentir aquilo que os seus olhos viram, juraria que tinha visto, naquele momento preciso, o corpo esguio de Lucas Corso atravessando a praça e perseguindo Evaristo Cárdenas e a mulher. Dei­xou uma nota de dez pesos sobre a mesa e saiu a correr atrás do espanhol, se era ele. Do hotel, ligou para Madrid, pois o número de telefone do mercenário esta­va na sua agenda. Ninguém respondeu do outro lado do Atlântico. E teve então a certeza de que Lucas Corso esta­va em Buenos Aires, o que significava que havia qualquer coisa a esperar dessa presença, quanto mais não fosse o facto de estar correcta a sua intuição sobre o segredo do Quixote.
Essa sensação aumentou quando, dois dias depois, per­to de Bariloche, onde foi em passeio aproveitando uma promoção turística de Outono, confirmou que as coin­cidências não eram apenas factos isolados. Ao seu lado, no avião que saiu meio vazio de Ezeiza, sentou-se uma rapariga ainda jovem. Reparou nela e nas suas pernas (mal tapadas por uma saia de veludo até aos joelhos) porque ela se sentou e abriu um livro, UneAnnée a Dieppe. Ele não conhecia, mas Dieppe levou-o a Dumas, onde o escritor morrera, e Dumas levou-o a Arturo Pérez-Rever-te. No dia seguinte, no barco que atravessava o lago Nahuel Huapi, na direcção da fronteira com o Chile, a mesma rapariga percorria o convés propondo aos turis­tas tirar-lhes uma fotografia em troca de quinze pesos - quis perguntar-lhe se não era ela que estava no avião no dia anterior, mas só voltou a vê-la no fim da viagem. Diri­giu-se para lá, atravessando as cabines de passageiros. Nessa altura o barco atracou - ela estava sentada à popa e lia A Câmara Clara, de Roland Barthes, absorta e ilumi­nada pela luz do Sol, recortada no paredão azulado das cordilheiras. Não teve coragem de interromper aquele quadro e regressou ao seu lugar, no convés superior. Não quis acreditar, mas exactamente na sua cadeira estava um exemplar do Quijote, a versão popular de Alarcón Benito e Machín Azparren, idêntica à que ele próprio comprara, havia muitos anos, numa loja de Madrid que vendia livros a peso.
- Cada dia descubro en vos valores que me obligan e fuerzan a que en mas os estime - ouviu atrás de si. Lucas Corso sor­ria, fumando um cigarro, a mochila pendurada no ombro esquerdo, como de costume.
- A frase não está completa, Lucas.
- Y así, si quisiérades sacarme desta deuda sin ejecutarme en la honra, lo podreis muy bien hacer.
- Assim está bem.
- Completíssima. Aqui acaba a traição de Lucinda, que regressa aos braços de Cardénio enquanto D. Fernando casa com Doroteia.
- Casa mesmo?
- Só Cervantes sabia a certeza. E escreveu-o, mas há ape­nas uma sugestão. Como te interessaste por este frag­mento, português?
- Os portugueses têm a tentação do detalhe.
- Não é verdade. Os portugueses têm a tentação do romance barato, não do detalhe. O Quixote é um romance que lhes escapa.
- Ele escreveu mesmo esse fragmento?
- O que ambos julgamos que falta?
- Aquele que buscamos.
- Só Alicia Goye sabe a verdade.
- Para quem trabalhas?
- Para um argentino que não conheço verdadeira­mente.
- Evaristo Cárdenas? Vi-te atrás dele.
- O cego que quer o manuscrito perdido. Há sempre um cego em Buenos Aires, um cego que ouve tangos, um tango que se escreve em silêncio. Evaristo diz que esse manuscrito lhe pertencia e que em 1964 Tiberi lho rou­bou. Desde essa altura nunca mais escreveu. Como se lhe roubasse a luz. Evaristo Cárdenas Saavedra.
- Como é que Cárdenas o conseguiu?
- Como se consegue tudo. Com persistência, com sor­te e com trabalho. O manuscrito não é, evidentemente, de Cervantes. Seria impossível. Mas é uma imitação per­feita da letra de Cervantes e é puro Quixote.
- O que diz o manuscrito?
- Conta a verdadeira história que está por detrás dessa traição de Lucinda e da quase perfeição de Doroteia.
- E essa rapariga, aí, essa fotógrafa, quem é?
Lucas Corso olhou para a ponta de cigarro, quase no fim, e esmagou-o no cinzeiro do convés. Depois voltou--se para ele e sorriu; o barco iniciava a manobra de retor­no, afastando-se da cordilheira e da fronteira do Chile.
- É a amante de Alicia Goye. A namorada, como vocês dizem, os portugueses. E sobrinha-neta de Evaristo Cárdenas. Tu és o último elo da cadeia que pren­de o velho à realidade e à literatura, ao mesmo tempo, porque imaginaste que existiria mais qualquer coisa por detrás do episódio, Há cinquenta anos, mais ou menos, em plena juventude ainda, Evaristo Cárdenas chegou a essa conclusão e esperou que alguém o acom­panhasse. Cinquenta anos depois dele, alguém leu Cervantes como ele o leu.
- E o manuscrito?
- Oh, o manuscrito está lá, misturado com os papéis de Rodríguez Tiberi. Ninguém se interessa por ele, nem Cárdenas, nem Alicia, nem a sobrinha de Cárde­nas. Não vale nada.
- Não vale nada?
- Nada. Foi Cárdenas que o escreveu durante dois anos. São dez páginas em que Cervantes conta a ver­dadeira história, pedindo desculpa aos seus leitores por tê-los enganado. Cárdenas só está interessado em ti. Ele queria saber como chegaste a essa conclusão, portu­guês.
E ficou a sorrir, parado no meio do convés do barco. E, apontando para as águas negras e azuis do lago, per­guntou:
- Sabes o que significa Nahuel Huapi? A Ilha do Tigre. Borges gostava muito de tigres, não gostava?

in Revista Ler – Verão 2005

setembro 01, 2005

Bucha & Estica

Não que eu saiba exactamente o que se passava, mas suspeito. Mário Soares estava bem onde estava: velho patriarca, dirigia a sua fundação, escrevia as suas memórias, dava opiniões, ganhava dinheiro com conferências, circulava nas universidades, aparecia nas ruas, era citado, a gente suportava-lhe os exageros. Para todos os efeitos, estava vivo. Cavaco Silva, ao que parece, também estava vivo: tratava dos netos, olhava os indicadores do Banco de Portugal, era considerado, escrevia as suas memórias, gozava o espectáculo, era citado, a gente suportava-lhe os tiques.

O que faz com que essas duas almas saíssem dos seus retiros e comparecessem a uma nova corrida eleitoral? O que faz com que essas duas figuras abandonassem a tranquilidade relativa dos seus lares e da sua posteridade para avançarem, pelo meio do povo, atirando beijos nos mercados e sendo apalpados por presidentes de bombeiros e concelhias do PS e do PSD durante uma campanha eleitoral? O que os leva a aceitar o opróbrio de arrastarem as suas cãs respeitáveis pelas paredes da pátria, para aparecerem em cartazes onde alguém vai pintar-lhes os dentes de preto e desenhar sacanagens?

Irão eles abandonar as suas reformas, a sua leitura dos periódicos de manhã, os seus passeios a pé, as séries de tv ao serão e os remédios caseiros para a gripe – para se dedicarem a salvar a pátria? Não. A pátria não precisa de ser salva. Precisa de levar pancada, para ver se aprende.

O que eles vêm fazer é ajustar contas. Um deles vinha ocupar o vazio político à direita, até agora bombardeado por figuras sem carácter e sem força. O outro, na verdade, não suporta “o gajo” e, como não conseguiu demiti-lo há dez anos, vem agora evitar um “passeio triunfal”. Além de não suportar “o gajo”, também não morre de amores pela tralha que herdou o PS e ganhou eleições com maioria. Enfim, o Bucha e o Estica odeiam-se. Um representa o republicanismo histórico e a tradição conspiratória republicana, o herói que diz o nome para que logo se abram as portas e que tem já o seu nome gravado, com brilho, nos anais do século XX. O outro representa o homem português desconfiado da política, arrastando a aura do homem que compreende as estatísticas e encheu o país com dinheiro, estradas e confiança.

E será disto que se vai falar dos próximos tempos: do Bochechas e do Gajo, do Marocas e do Cavaco, do Bucha e do Estica. Não vai ser um combate de titãs. Será um combate de dinossauros encarando a extinção da espécie. Não vai ser um “confronto ideológico”, como vaticinava Soares; vai ser um ajuste de contas e, parece-me, uma exibição de ressentimentos.

E sabem porque aconteceu isto? Porque, no fim de contas, os pequenos e subsequentes dinossauros ou não tiveram coragem de ousar mais alto ou se submeteram à lógica da sua vidinha. Ou não revelaram nenhum gesto de grandiosidade que marcasse a vida pública ou não merecem, pura e simplesmente, que se mencione o seu nome como alternativa.

A culpa, bem vistas as coisas, não é de Soares nem de Cavaco. Eles apenas representam, cada um à sua medida, dois mundos que já não vivem em Portugal, mas que são a única coisa disponível para vender em cartazes eleitorais. E quando é preciso um nome, um símbolo, uma referência para os tempos que correm, as hordas de afectos e de desafectos, enquanto tratam da vidinha, só sabem papaguear “Soares” ou “Cavaco”. Ditosa pátria que tais filhos alberga.

Jornal de Notícias - 1 de Setembro 2005