agosto 31, 2009

Blog # 429

O ministro da Cultura vai ficar, para a posteridade, como um dos governantes que mais museus anunciou. Este fim de semana foi a vez do Museu do Côa, em fase de instalação há bastante tempo mas que não vai trazer, para a região, as compensações anunciadas há mais de dez anos. O autarca de Foz Côa, que não vai em cantigas, quer ver gente a visitar as gravuras e não a entrar nas estatísticas por simpatia. Tem razão. Foz Côa não ganhou quase nada com o Parque, a não ser reconhecimento. Onde estava o deserto, continua o deserto. Os ministros anunciam museus, turistas, remendos e parcerias. O Museu do Côa, por exemplo, está incompleto, mas ficará sob a administração do Ministério e depois virá uma parceria. Depois se verá. Faz-se propaganda e depois se verá. É isto governar.

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O novo livro de Sofia Marrecas Ferreira (autora de ‘Mulheres de Sombra’ e de ‘Só por Amor’), ‘O Sangue na Terra’, será publicado pela Porto Editora em Setembro: uma história de duas mulheres e duas gerações, entre Portugal e França.

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FRASES

"É inédito os nacionais liderarem as dormidas em Julho." Elidérico Viegas, Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve, ontem no CM.

"O rosto [Carolina Patrocínio] conquistará votos, votos significam poder, e o resto é conversa." Rui Bebiano, no blogue A Terceira Noite.

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agosto 28, 2009

Blog # 428

Deus regressa com Saramago, no seu novo romance a publicar em Outubro. É um tema que levanta suspeitas – Saramago é ateu mas os seus livros supõem um sentimento religioso. Ao contrário de Richard Dawkins, por exemplo, que é ateísta militante e para quem a ideia de Deus não apenas é absurda como, ainda por cima, está na origem dos males do mundo. Saramago pode não andar longe, mas há um halo, uma respiração, um apelo do indizível e do invisível, os lugares onde Deus podia habitar: no meio do deserto ou na noite escura dos tempos, antes de os homens lhe terem emprestado o gene da crueldade e da vingança, e de se terem organizado em religiões rivais e exclusivas (“onde estou eu não podes estar tu”). Acontece que a ideia de Deus ou está em nenhuma parte ou em todo o lado.

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Saudemos o regresso de Luísa Costa Gomes, com ‘Ilusão ou O Que Quiserem’ (Dom Quixote), a publicar no final de Outubro. Luísa é a autora de ‘O Pequeno Mundo’, um dos dez melhores livros dos últimos trinta anos. Verdade.

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FRASES

"A equipa está de parabéns." João Moutinho, jogador do Sporting depois da derrota frente à Fiorentina. Ontem, no CM.

“O Senhor Palomar só compra um leitor de livros electrónicos quando "a coisa" fizer caipirinhas." Senhor Palomar, no blogue Senhor Palomar.

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agosto 27, 2009

Blog # 427

Se houvesse música no céu, um dos seus intérpretes seria Lester Young, nascido faz hoje exatamente cem anos numa pequena cidade do Mississípi. Lester é um dos grandes nomes do saxofone tenor (o meu jazz) e do clarinete, a quem Billie Holiday impôs a alcunha ‘O Presidente’, o maior de todos no saxofone. Fê-lo na sua banda e a acompanhar Miles Davis, Coleman Hawkins (um dos meus génios), Count Basie ou Nat King Cole – para além da grande Billie Holiday, claro, com quem apresentou uma versão belíssima de ‘Lady Sings The Blues’. Morreu cheio de álcool, mas a sua influência em músicos como Mingus, Charlie Parker ou Stan Getz e Dexter Gordon é definitiva. Ouvir o som de Lester Young é uma bênção. Aliás, quero que haja vida depois da morte porque gostava de ouvi-lo em Newport.

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É um dos textos mais importantes sobre a sorte dos portugueses presos ou “desaparecidos” em Angola: trata-se de ‘Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola’, da jornalista Leonor Figueiredo (Aletheia). Chocante. Para não esquecer.

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FRASES

"O Estado não pode andar a brincar às noivas de Santo António." Helena Matos, no blogue Blasfémias.

"Faço a lida da casa nua. Acho que são estas coisas que acrescentam picante a uma relação." Bastet, bailarina, ontem no CM.

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agosto 26, 2009

Blog # 426

Demorou a perceber, no Estado, que não basta diminuir os rendimentos de quem trabalha, embolsando impostos e perseguindo a classe média. Há, também, uma responsabilidade social da riqueza. Neste caso, contrapartidas para o país – como é o caso do ‘cheque-obra’, uma iniciativa que propõe que as empresas de obras públicas ofereçam 1% do valor das empreitadas pagas pelo Estado em obras de restauro de monumentos nacionais e património classificado. Antigamente, os ricos que tinham sido pobres ofereciam bibliotecas, escolas, chafarizes e estradas municipais. Eles sabiam que a riqueza devia pagar um tributo para justificar a vaidade e o conforto. Hoje, os ricos amealham e só contribuem para o país embalados por benefícios fiscais e promessas de contratos. São outros tempos.

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LIVROS DO VERÃO (7): Viver para viajar até lugares desconhecidos – é esse, também, o sentido de ‘Na Patagónia’, de Bruce Chatwin (Quetzal), o homem que abandonou tudo o que tinha e partiu em busca de tudo o que não conhecia.

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FRASES

"Há também um ambiente, nos livros. Uma luz do lugar. Um sopro. Às vezes um odor, único." António Godinho Gil, no blogue Boca de Incêndio.

"Quem ocupa ou vai ocupar cargos políticos deve estar acima de qualquer suspeita." Alexandre Relvas, presidente do Instituto Sá Carneiro, ontem, no CM.

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agosto 25, 2009

Blog # 425

Voltei a ler os livros mais antigos de John Le Carré – tenho enorme simpatia por Smiley ou Magnus Pym, e uma certa curiosidade pela vida discreta dos funcionários dos serviços secretos. Ontem, o CM anunciava que a administração pública ia ter agentes infiltrados (e com falsa identidade) oriundos do SIS e do SIED; não é uma prática comum nas democracias, mas é praticada quando a administração pública é fraca e não tem grande autoridade. O que não é comum é estarem todos os serviços secretos na dependência do primeiro-ministro. Como as coisas estão em Portugal, “o governo” confunde-se muito com “o partido do governo”; é, pois, natural que se desconfie da bondade da nossa espionagem ou, pelo menos, da sua independência. A menos que queiram, apenas, espiar-se uns aos outros.

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LIVROS DE VERÃO (6): dois homens juntam-se para passar em revista as grandes teorias da existência – e descobrem um mundo de banalidade e de erro. ‘Bouvard e Pecuchet’, de Gustave Flaubert (Cotovia), deve ler-se de vez em quando.

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FRASES

"A esquerda que o PS alugou (barato) tem-se entretido e não tem tempo para estudar e pensar." Filipe Nunes Vicente, no blogue Mar Salgado.

"Não sou nem nunca fui naturista. Sou só turista."Carlos Fiolhais, professor e Físico, ontem, no CM.

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agosto 24, 2009

Blog # 424

José Morais e Castro é o contrário da nova geração de atores e atrizes de televisão – mundo em que ficará conhecido de quase todos, se bem que Morais e Castro o tivesse ultrapassado largamente pelo lado do teatro propriamente dito. Não é diferente apenas pela idade ou pelas ideias políticas a que foi fiel durante toda a vida; é diferente pelo porte, pela voz, e pela intensidade. Ao ler entrevistas com gente dessa geração de plástico, gosto cada vez mais de pessoas como Morais e Castro. Não por concordar com ele em tudo, mas porque é possível falar com ele apesar da morte o ter levado. É essa a diferença entre as pessoas. Há gente que fica e com quem nunca se há de poder falar. Há gente que parte e que continua a ouvir-se, cuja voz ecoa como uma presença invisível e desperta.

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LIVROS DO VERÃO (5): ‘Palomar’, de Italo Calvino (Editorial Teorema) é um dos livros que rescende a Verão, ao imaginário solar de um dos autores mais importantes do século XX – e um dos grandes criadores de cultura e de sabedoria.

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FRASES

“Inocente, julguei que ‘Zonas Húmidas’ fosse um livro de Al Gore." Bruno Vieira do Amaral, no blogue Circo da Lama.

“Estou a trabalhar para termos um grande resultado." José Ribeiro e Castro, candidato do CDS-PP pelo Porto, ontem no CM.

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agosto 22, 2009

Ainda estão nos dribles

Houve, no passado, empates e derrotas que depois se encaminharam para o penta. Empatar na primeira jornada era chato, mas nada que não se resolvesse. Com o tempo aprende-se a esperar pelo tempo – as coisas não estão afinadas, ainda não há «automatismos» (um das palavras que menos tem a ver com o futebol), trata-se de uma equipa nova, com jogadores que ainda não estão a trabalhar a cem por cento. Todos somos capazes de inventar desculpas e algumas delas estarão inteiramente correctas depois de vermos os três empates dos «três grandes». Se não me engano, terminei a crónica da semana passada pedindo para o FC Porto jogar de acordo com o que Jesualdo disse no final do encontro com o Paços (o da Supertaça) – e não de acordo com aquilo que jogou nesse dia. Meu dito, meu feito: fizeram ao contrário.

Não gosto muito de repetir desculpas e prefiro olhar para a semana seguinte, para o jogo seguinte, para a vitória seguinte. Se o futebol fosse da ordem dos «automatismos», jogava-se a régua e esquadro com um transferidor pelo meio; acontece que o Verão ainda vai no seu segundo terço propriamente dito e as temperaturas pedem tranquilidade nos adeptos e concentração aos artistas. É o que faço.

De resto, Paulo Bento, Jorge Jesus e Jesualdo Ferreira não têm entendimento muito diferente do que deve ser um jogo de futebol. No entanto, mandam jogar de maneira diferente – e obtêm os mesmos resultados. Ainda estão nos dribles.

Hulk tem um problema essencial – para o adepto sem rede e munido da fé suficiente para ser adepto. Esse problema chama-se «baliza» e não me venham com explicações rebuscadas. A defesa adversária treme quando vê Hulk, o homem que é capaz de fazer tudo até chegar diante da baliza: arrancar com uma potência quase sobre-humana, correr e desenhar laterais de sonho, fintar, driblar em duplas perfeitas, cruzar com elegância e até cair. As defesas tremem de medo diante de Hulk, os guarda-redes tremem de medo. Mas as balizas, caramba, as balizas não tremem nem por decreto. Ora, um homem destes enerva-se frequentemente. E isso não pode acontecer.

in A Bola - 22 Agosto 2009

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agosto 21, 2009

Blog # 423

Ninguém sabe realmente o que se passa e se há escutas ou não em Belém. O assunto não pode, evidentemente, ser descartado como “um disparate de Verão”. Esta deselegância fica bem na campanha de rua, mas não parece indicada entre gente civilizada, que devia cumprimentar descobrindo-se ou levantando a aba do chapéu. De resto, o Verão tem outros disparates para se entreter, como sempre. Mas é aflitivo: com toda esta gente sem férias, farta de falar em todas as direções, chegarão a Setembro mergulhados num nervoso miudinho inqualificável, a precisar de repouso e reparação espiritual. Por todo o lado, nos blogues e nos jornais, nos subterrâneos ou nas avenidas, o ruído é o de uma tormenta malcriada. Há muito tempo que não se via um Verão assim. Mau prenúncio para o Outono.

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LIVROS DE VERÃO (4): Num Verão de há cem anos (um pouco mais), Zé Fernandes levou Jacinto a Tormes. Isso é o assunto de ‘A Cidade e as Serras’, de Eça de Queirós, um dos mais belos livros da nossa vida. Há quanto tempo o não lê?

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FRASES

"Não sei se o governo está a vigiar a presidência. Mas era bom que alguém vigiasse este governo." Rodrigo Moita de Deus, no blogue 31 da Armada.

"Lidámos com maldispostos mas valeu a pena." Paulo Dias, diretor da produtora UAU, que tenta reanimar o Parque Mayer. Ontem, no CM.

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agosto 20, 2009

Blog # 422

Termino a leitura do último volume da trilogia ‘Millenium’, de Stieg Larsson, ‘A Rainha no Palácio das Correntes de Ar’ (os outros são ‘Os Homens que Odeiam as Mulheres’ e ‘A Rapariga Que Sonhava com Uma Lata de Gasolina e Um Fósforo’). Larsson morreu aos cinquenta anos e não viveu para saborear o êxito dos seus romances. São livros viciantes e há, inclusive, fenómenos de dependência das suas histórias por parte de leitores em todo o mundo. O vício que eles proporcionam não tem apenas a ver com o facto de serem histórias bem contadas; elas falam da sobrevivência e do perigo da morte iminente, da corrupção e do desejo de vingar a injustiça. Há bem e mal. Há amor e indiferença. Coisas humaníssimas. Vive-se muito nos seus livros, e de uma forma apaixonada. Ninguém escapa.

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LIVROS DO VERÃO (3): Regresso vezes sem conta a “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Cotovia), de Machado de Assis. É uma obra-prima do humor e da construção literária. Provavelmente um dos livros mais divertidos da nossa língua.

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FRASES

"Eu não sou o Diogo Morgado. Queria tanto dizer isso!" Diogo Amaral, ator, ontem, no CM.

"Partido que prometa que vai combater o desemprego ou que vai criar emprego está a mentir." João Miranda, no blogue Blasfémias.

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agosto 19, 2009

Blog # 421

O CM anunciava ontem que um retrato de Michael Jackson, muito escarlate e de tons vivaços, asssinado por Andy Warhol “poderá vir a vender-se por mais de sete milhões de euros”. É uma boa quantia, se tivermos em conta que a ‘obra’, de 1984, foi comprada por menos de 200 mil euros. Eu aconselharia o leitor a revisitar a edição do CM desta terça-feira para avaliar bem a ‘obra’ – e decidir quanto pagaria pela assinatura de Warhol, realmente a única coisa interessante do que está dentro da moldura. No fundo, são paradoxos da ‘arte moderna’ e da ‘vida pop’, que se confundem bastante nos nossos dias: gente que passa depressa. Warhol era um provocador com graça e com talento para imposturas. Soube, enfim, fazer o seu mercado. Está aí à mostra: um ferrete em tela, carísismo.

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LIVROS DO VERÃO (2): Por que razão ‘Moby Dick’, de Herman Melville (edição Relógio d’Água), nos apaixona tanto? Porque reproduz um combate entre as grandes forças da natureza. E porque o capitão Ahab é um herói que ultrapassa o tempo.

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FRASES

"Para fazer frente a guarda-redes brasileiros que fazem vudu é preciso ir à bruxa." Henrique Raposo, no blogue Clube das Repúblicas Mortas.

"Esta é uma lista boa para um governo." Elisa Ferreira, na apresentação da sua lista para a CM do Porto. Ontem, no CM.

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agosto 18, 2009

Blog # 420

Desculpe o leitor que hoje lhe fale de futebol. Uma das coisas mais comoventes no jogo da bola não é a vitória dos grandes, mas – pelo contrário – que os grandes sejam reduzidos a quase nada. FC Porto, Sporting e Benfica empataram no início de uma época que parecia destinada ao triunfo sem limites, a goleadas arrasadoras, a vitórias humilhantes sobre “os outros”, os que não contratam jogadores milionários nem estrelas do relvado. É evidente que podem, também, ser designados como “empatas da treta”. Poupemo-los à fúria dos adeptos e elogiemos a grandeza do futebol, que permite contratempos deliciosos, como estes 1-1 que alegraram o princípio da época, a deixaram mais colorida e lhe emprestaram uma dignidade que já não se suspeitava. Enquanto isto acontecer, estamos salvos.

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LIVROS DE VERÃO (1): O brilho de “A Cartuxa de Parma”, de Stendhal, foi ofuscado pelo êxito de “O Vermelho e o Negro”. Mas a “Cartuxa” é uma leitura a que vale a pena regressar sempre. Tradução de A. Casais Monteiro (Relógio d’Água).

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FRASES

"Talvez para o ano consigamos mudar as coisas." Padre Tarciso Pinheiro, sobre as 17 imagens da Virgem, nas festas de Coruche. Ontem, no CM.

"Continuo sem saber o que acha a ERC do artigo publicitário assinado por Sócrates no JN." Vasco Lobo Xavier, no blogue Mar Salgado.

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agosto 17, 2009

Blog # 419

O Verão dá para tudo e até para que prestemos atenção à mandatária de José Sócrates para a Juventude, que, numa entrevista, admitiu que odeia “os caroços nas frutas”, um direito inalienável de qualquer cidadão. Veja-se o extrato: “Só como cerejas quando a minha empregada tira os caroços por mim. E uvas sem grainhas. É uma trabalheira.” Ainda que não tiremos demasiadas ilações políticas a propósito das cerejas sem caroço, sobra essa inquietação: o que teria levado o PS e Sócrates a escolher esta mandatária para a juventude? Duas coisas: a necessidade de transportar para o partido uma imagem acolhedora, sorridente, bronzeada e estival; e, penso eu, a luminosa ideia de oferecer a cereja da política já sem caroço, atraente e cosmopolita. Eis como tudo se explica. Simplex.

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Depois de ‘Os Despojos do Dia’, de ‘Os Inconsolados’, de ‘Quando Éramos Órfãos’ e de ‘Nunca Me Deixes’, a Gradiva publica ‘Nocturnos’, do anglo-japonês Kazuo Ishiguro. Um romance belíssimo – espécie de bálsamo para um Verão inclemente.

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FRASES

"Deve ser gente que lhe quer fazer mal." Amigos de Idalina Oura, sequestrada e maltratada em Marco de Canavezes. Ontem, no CM.

"Alguém que o ajude. O Paulo Bento está maluco." Lourenço Cordeiro, no blogue Complexidade e Contradição.

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agosto 15, 2009

Não há campeões de Inverno

1. Se olharmos apenas para os números – o que está muito na moda hoje em dia – podemos dizer que se alargou o fosso entre «os três grandes» e o resto dos clubes. O dinheiro movimentado por Benfica, FC Porto e Sporting, por esta ordem (sendo que só o FCP arrecadou mais do que gastou), atinge proporções que são uma ninharia em relação a outros campeonatos, mas muito significativos em Portugal. Eu desconfio sempre da onda gigantesca de contratações que pode gerar muitas primeiras páginas e entusiasmo nas hostes, mas que precisa de talento no campo para crescer. Prefiro as surpresas que rasgam o espectáculo das estrelas e se revelam no jogo propriamente dito. Foi assim com Cissokho, foi assim com Nené (o melhor marcador na última Liga) e até poderia ser assim com Cristiano (do Paços).
A aposta nas «grandes figuras» lembra-me desastres recentes ou distantes que, se não põem em causa o valor desses jogadores, recordam a necessidade de saber a que é que se está a jogar. Se é futebol mesmo, por exemplo.A aposta nas «marcas», um delírio sem justificação para o pequeno futebol português, pode ser o golpe de misericórdia nas suas finanças.
Mas o campeonato começa hoje, e isso é que importa. Do FC Porto espero, por isso, que tivesse aprendido com as declarações de Jesualdo no final do jogo da Supertaça. E com calma, porque não há campeões de Inverno.

2. Em Portugal criou-se a ideia de que fazer perguntas sobre a selecção nacional é semelhante a ser-se «anti-patriota», um crime que comove muita gente que pendura bandeirinhas à janela. Vamos e venhamos, convinha saber o que se aprendeu – em matéria de futebol – com o jogo de quarta-feira com o Liechtenstein. 3-0, uma fartura obtida frente à selecção que está em 150º lugar no ranking da FIFA? 4x4x2 em vez de 4x3x3, se se voltou ao mesmo na segunda parte? Ora bolas. O importante é saber que, para afinar os jogos decisivos que nos faltam para decidir se vamos, ou não, à África do Sul, o Liechtenstein nos recebeu com afabilidade e simpatia. Mas o resto está na mesma: 45 minutos em branco, se é que não repararam.

in A Bola - 15 Agosto 2009

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agosto 14, 2009

Blog # 418

Amanhã, 15 de Agosto, os nostálgicos de Woodstock poderão fazer um balanço de 40 anos da sua geração. O que começou por ser um “negócio interessante” para os seus organizadores acabou transformado num símbolo geracional e num monumento do rock. Para todos os efeitos, a canção ‘Let’s Go Get Stoned’, de Joe Cocker, pode permanecer como memória do festival americano, que ao longo destes 40 anos tem sido apontado como epicentro de um protesto global em nome ‘das novas gerações’. Sim senhor. A esta distância simpática, o que fica é a música – o resto são imagens do tempo. Por ironia, Woodstock comemora os seus 40 anos na mesma altura em que o Cartão Jovem português passa a beneficiar adultos até aos 30 anos. Não há nada mais irritante do que o mito da eterna juventude.

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O livro ganhou o prémio de ‘melhor romance cómico’ em 2007 e dá pelo título de ‘A Pesca do salmão no Iémen’, de Paul Torday (Asa), um inglesinho de Oxford. Aí está uma coisa tentadora para estes dias de inclemência meteorológica.

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FRASES

"Ganhámos, o que é sempre importante para a equipa ganhar mais confiança." Carlos Queirós, depois a seleção portuguesa ganhar por 3-0 ao Liechtenstein, 150º no ranking da FIFA. Ontem, no CM.

"Curioso como o Verão me torna mais propício à nostalgia do que o inverno." Pedro Vieira, no blogue Arrastão.

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agosto 13, 2009

Blog # 417

Alfred Hitchcock completaria hoje 110 anos. Hitchcock não foi apenas um génio do cinema – foi um criador notável e irónico que encheu de luz a arte de contar histórias. Tinha, a favorecê-lo, precisamente isso: a ironia e o humor, coisas que desapareceram da nossa vida quotidiana para serem ocupadas pela boçalidade e pelo patrulhamento ideológico. A rapaziada que trocou as bandeiras no município de Lisboa mostrou, sem querer, a falta de sentido das proporções da nossa opinião política, que viu no acto um atentado contra a República, coitada. O gesto é inofensivo mas simbólico – uma marca de malandrice nos dias chatos da República, isso sim. Ao episódio apenas faltou o tradicional ‘cameo’ de Hitchcock, com o realizador a passar na rua, levando um peru debaixo do braço.

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A Esfera dos Livros tem vindo a reeditar a obra de Stefan Zweig. Chegou agora a vez de ‘Grandes Momentos da História da Humanidade': 14 episódios fundamentais onde assenta a nossa memória do mundo e a capacidade de o compreender.

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FRASES

“A bandeira foi para a 5àSec para ser limpa e engomada antes de ser devolvida." Rodrigo Moita de Deus, sobre a bandeira retirada da varanda da CML, no blogue 31 da Armada.

"Aconteceu outra vez. Sempre que bebe, o Manuel Testada dá porrada na mulher." Vizinha do casal, na Murtosa, ontem no CM.

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agosto 12, 2009

Blog # 416

O ‘alinhamento’ voltou a estar na moda – e a reabilitar antigas intolerâncias. Pessoas insuspeitas subscrevem, na blogosfera, textos cheios de banalidades, de pura propaganda ou, alternadamente, enxovalhando em roda livre. ‘Gente de partido’, que normalmente vê mais longe do que o seu nariz, torna-se incapaz de juntar sujeito com predicado e complemento directo. Não vale a pena queixarmo-nos ou lamentar o estado do mundo. Em democracia nada nos é estranho. Agustina Bessa-Luís chamava a atenção para a existência de épocas em que o ressentimento e a mediocridade andam de mãos dadas – os períodos pré-eleitorais são o exemplo de como a inteligência pode atrofiar-se em ambos os sentidos. O humor desaparece com bastante frequência nestas condições. É mau sinal para o Verão.

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John Franklin Bardin morreu em 1981; era um dos grandes autores autores de culto do romance americano – a Relógio d’Água acaba de publicar ‘Que o Diabo Leve a Mosca Azul’. O título engana porque, ao contrário, o livro é bom.

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FRASES

"Apesar de ser um homem de Finanças, não deixo de apreciar a Arte." Teixeira dos Santos, ontem no CM.

"Com o tempo uma pessoa refina. Gosto deles altos, bem cuidados e inteligentes." Mónica Marques, no blogue Sushi Leblon.

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agosto 11, 2009

Blog # 415

A polémica sobre a não-recondução de João Lobo Antunes para o Conselho de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) não macula apenas o governo que estaria, ou não, comprometido com a sua nomeação – diz respeito a todas as instituições que entraram nestas “nomeações flutuantes”, que até impõem nomes indicados (mas não sabatinados) pelo parlamento. Pelo meio está a academia, naturalmente, que se ‘esqueceu’ do nome de Lobo Antunes. Convinha esclarecer o assunto e rapidamente. Convinha saber se se trata de ‘artilhar’ o CNECV para os combates políticos que aí vêm, de o desacreditar definitivamente (transformando-o numa extensão das comissões parlamentares, que já têm o seu prestígio abaixo de zero), ou apenas de mais uma etapa no nivelamento por baixo das nossas instituições.

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Um livro de História para o Verão – a evocação de Agosto de 1939 em ‘1939. Contagem Decrescente para a Guerra’ (Livros d’Hoje), de Richard Overy. Ou de como o mundo não pára no Verão quando se trata de fazer a guerra.

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FRASES

"Sempre achei que Portugal se encontra demasiado dependente do Estado." José Eduardo Moniz, ontem, no CM-online.

"Já há uns dias que não aparece nenhum manifesto." Tiago Moreira Ramalho, no blogue Corta-Fitas.

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agosto 10, 2009

Blog # 414

O meu avô ria com Raul Solnado. Eu ria com Raul Solnado. Várias gerações gostaram de rir com Solnado. De resto, quando ainda não se falava de ‘stand-up comedy’, ele já a antecipara entre nós. Mas os espectadores nunca suspeitaram os dramas que ele viveu por detrás da “fábrica do riso”; a sua biografia, escrita por Leonor Xavier, é um documento importante para compreender por que razão amámos tanto aquele homem terno e educado, sorridente como um antigo cavalheiro que não transformou o riso numa ditadura alarve, nem defendeu a obrigação de rir a todo o custo. A densidade dramática aparece, por exemplo, em ‘Balada da Praia dos Cães’, uma interpretação notável que mostra o seu talento para lá da comédia. De certa maneira, ele era um dos nossos príncipes. Um motivo de orgulho.

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Recomendo todos os livros de João Lobo Antunes, um dos nossos maiores talentos, afastado do Conselho de Ética para as Ciências da Vida. Estão publicados pela Gradiva. Quem o mandou afastar não os leu – e nunca escreveu um único.

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FRASES

"Fui de férias, voltei, e nada se resolveu, estou a ver." Lourenço Cordeiro, no blogue Complexidade e Contradição.

"Segurei-lhe na cabeça, ele suspirou três vezes e morreu." Manuel Ferreira, sobre António Loureiro Afonso, 43 anos, assassinado à queima-roupa em Oliveira de Azeméis. Ontem, no CM.

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agosto 07, 2009

Novo romance

Novo romance de Francisco José Viegas à venda em Outubro

O novo romance de Francisco José Viegas, ‘O Mar em Casablanca’, vai ser publicado na primeira semana de Outubro, anunciou o escritor e jornalista, esta sexta-feira, no seu blogue pessoal, numa altura marcada pela sua saída da Asa para a Porto Editora.

José Viegas conta uma intensa actividade jornalística na rádio e na televisão e já trabalhou em mais de dez títulos da imprensa portuguesa.

Como escritor publicou obras de divulgação, poesia, romances, contos, teatro e relatos de viagens. Em 2006, o romance policial, ‘Longe de Manaus’ recebeu o Grande Prémio de Romance e Novela, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores.


in Correio da Manhã - 7 Agosto 2009

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Jogar com os que for preciso

1. Tudo começa de novo. Recomeçou depois da saída de Co Adriaanse, com um plantel transformado em molho holandês, destruído com método e empenho (ainda hoje penso nisso só de me lembrar de Diego); recomeçou no ano seguinte com um grupo construído «à imagem de Jesualdo» – e este ano, quando tudo levava a crer que o FC Porto tinha uma equipa relativamente sólida, capaz de jogar futebol e de não se inclinar para a disputa da Liga Europa, o palco enche-se com novos jogadores. Ia a dizer protagonistas, mas, na verdade, é coisa que ainda não há. Por um lado, é pecado de portista, este, o de achar que o mundo desaba de cada vez que mexem no tapete que nos deu o tetracampeonato; por outro lado, o tetracampeonato foi conquistado com o tapete sempre a mexer-se, com entradas, saídas e dúvidas honestas. Tudo isso a juntar à campanha miserável contra o clube, essa sim, uma conspiração de desalojados de qualquer tapete.Acontece sempre, portanto: o começo da época tem, associado, aquele ligeiro tremor – como é que vai jogar o FC Porto? As promessas estão lá e, nesta altura, cada um de nós faz a equipa ideal. Arrisquemos, para lá da baliza: Bruno Alves, Rolando, Nuno André Coelho (gosto de jogadores com três nomes) e Maicón, Fucile de um lado e Álvaro Pereira do outro, Fernando e Meireles com a concorrência de Beluschi e Valeri, Falcão, Hulk, Mariano e Rodríguez com a concorrência de Farías. Em quantos vou? Dezasseis, se lhes juntar um dos guarda-redes. É quanto basta. Devíamos jogar com dezasseis, vá lá quinze, em nome do futebol.

2. Valeri. Ainda não o vi jogar mas ele promete bons títulos em jornais inteligentes. Pela alcunha: «o bibliotecário». Um tipo assim faria as delícias de Carlos Pinhão e Carlos Miranda. Porquê «o bibliotecário»? Valeri explicou: porque gosta de ler, coisa que faz com insistência. Não é que no futebol se sinta a falta desta qualidade – mas é bom ter um excêntrico nas fileiras. Nem que seja para ler as quatro linhas essenciais.

3. Agora, que o Benfica já é campeão, pode começar a época de futebol. Isto, dito assim, parece mal – mas é a sina de todos os Verões portugueses.

in A Bola - 7 Agosto 2009

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Blog # 413

Numa declaração ampliada pelo seu talento, Pedro Almodóvar pediu ao papa Bento XVI que saia do Vaticano para verificar, com os seus próprios olhos, como são diferentes as famílias de hoje. É, naturalmente, um excesso metafórico, porque – para esse efeito – basta ao Papa ligar a televisão ou ver um filme do próprio Almodóvar. O espanhol diz que “uma família pode ser formada por transexuais e travestis”. Ora, acontece que o papa não aparece, nas ruas, brandindo o látego para punir as famílias “formadas por transexuais e travestis”; limita-se a falar em nome da sua fé, e a delimitar aquilo que é a doutrina por que tem de zelar. Não me parece que o papa desconheça que a família mudou substancialmente. Mas temos de lhe reconhecer a liberdade de pensar que não mudou para melhor.

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Há uns meses, José Hermano Saraiva confessara-me que estava a escrever uma introdução geral ao Direito. Já aí está: aos 90 anos, publica (na Gradiva) ‘O Que É o Direito?’, meio milhar de páginas densas mas escritas para todos.

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FRASES

"Estranhas urdiduras se fizeram entre antigos inimigos que dividiram lugares entre eles." Paula Teixeira da Cruz, ontem, no CM.

"Passos Coelho é um homem bonito e bem falante e, hoje em dia, essas merdas parecem bem." Maradona, no blogue A Causa Foi Modificada.

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agosto 06, 2009

Blog # 412

A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros e a União dos Editores Portugueses vão fundir-se. Estava escrito e é uma vitória pessoal de Rui Beja, o presidente da APEL, homem de consensos e um dos portugueses mais otimistas à face da terra.

É boa, a fusão? É. Podem os interesses dos editores e dos livreiros ser representados em simultâneo e pela mesma associação? Tenho dúvidas, mas nunca se sabe. Com as transformações que se preveem para o mercado, dentro de dez anos as livrarias serão totalmente diferentes, os canais de distribuição mudarão e serão reduzidos, e a indústria gráfica sofrerá um golpe quase fatal. Vai iniciar-se, com o mundo do livro, um processo semelhante ao que aconteceu com a indústria da música há uns anos. Convém perceber isso antes de darem as mãos.

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agosto 05, 2009

Blog # 411

A enorme galáxia de programas informáticos de troca de mensagens chamada ‘redes sociais’ (uma designação aldrabona e perniciosa) trouxe várias novidades – a principal foi a rapidez com que a palermice, a propaganda e a alarvidade se multiplicam e difundem. Há por aí, em algumas cabecinhas, uma tentação perigosa: a de “regular” as “redes sociais”. Controlando a internet, o Twitter, o Facebook ou os blogs, impedir-se-ia a proliferação de insultos, o suicídio de adolescentes, o sexo virtual e as acusações sobre os poderosos. É uma tentação comum, e fácil. Creio, no entanto, que o melhor é deixar os idiotas a morrer por si. Um dia ninguém vai prestar atenção à mais recente inutilidade online. Sonho com esse dia. É otimismo a mais, mas é melhor do que o regresso da censura.

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Os livros de bolso da Leya (a série Bisleya) mudaram e estão mais coloridos. Um deles, muito bom para ler no Verão, é o último dos grandes livros de John Le Carré, ‘A Casa da Rússia’ – um dos cenários, como se sabe, é Lisboa.

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FRASES

"Eleitor de Braga permuta com eleitor de Oeiras. Não se garante satisfação mas muita diversão." Ademar Santos, no blogue Abnóxio.

"A política está num lado e a justiça no outro." Isaltino de Morais, depois de ser condenado pelo tribunal. Ontem, no CM.

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agosto 04, 2009

Blog # 410

Como toda a gente sabe, a democracia é uma coisa relativa. O Dr. Soares, por exemplo, um dos amigos e visitantes de Hugo Chávez, não hesitou muito ao apoiá-lo quando o caudilho venezuelano encerrou a televisão RCTV. O argumento (digno de antologia) é que ela era muito “impertinente”. Agora, o regime mandou encerrar 34 estações de rádio (prepara-se para fazer o mesmo a mais uma centena), ameaça de fecho a Globovisón, vai impedir o acesso livre às emissões por cabo, não deixa que os jornais independentes importem papel e está a eliminar a ‘literatura burguesa’ das bibliotecas públicas. Tudo em nome da “saúde mental” dos venezuelanos e do “socialismo do século XXI”, um emblema que tem vindo a ensurdecer e esvaziar o país. Mas a democracia é uma coisa relativa, como se sabe.

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A Vega acaba de publicar ‘Carta a Bosie’, ou seja, a longa carta de Óscar Wilde a Alfred Douglas, seu amante, enquanto estava preso em Reading. É um texto sobre ‘o significado e a beleza do sofrimento’ – são estas as últimas palavras.

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FRASES

"Para se contratar alguém, é necessário que esse alguém saia do sítio onde está." Fonte da administração da Ongoing sobre a saída de José Eduardo Moniz da TVI. Ontem, no CM.

"Nasceu uma nova categoria de frequentadores da noite: a gente animada." Isabel Goulão, no blogue Miss Pearls.

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agosto 03, 2009

Blog # 409

M.S. Lourenço soube reunir, num trabalho de muitos anos, paixões aparentemente tão distantes como a tradução, a matemática, a poesia e a filosofia. Era pouco conhecido do “grande público” e suponho que isso não o interessava nem o preocupava grandemente. A sua poesia (‘Os Degraus do Parnaso’ é uma obra notável) transportava “o efeito da sabedoria” e da inteligência – o que é raro num país cheio de versos líricos sem medida e sem voo. M.S. Lourenço, que morreu anteontem aos 73 anos, foi um professor encantado com a sua matéria (a matemática e a lógica, a que dedicou vários estudos), tanto em Lisboa como em Oxford ou nos EUA, onde ensinou. A morte relembra-o agora, mais do que a vida – que foi plena, e de que aproveitamos a sua obra de primeira grandeza. Um dos nossos maiores.

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Não é livro – mas merece louvor. Álvaro Costa Matos continua a fazer da Hemeroteca Municipal de Lisboa, mesmo com as dificuldades de meios que se sabem, uma instituição cada vez melhor (e com mais jornais digitalizados). Merece visita.

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FRASES

"O endividamento da nossa economia cresceu imenso e foi feito à conta do crédito bancário." Nuno Amado, presidente do banco Santander Totta. Ontem, no CM.

"Arrumados à volta do sr. primeiro-ministro, radiantes do prodígio e mimados pelo agasalho." Masson, no blogue Almocreve das Petas, sobre o encontro do PM com blogers.

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agosto 01, 2009

À beira do Índico, a última boleia

Recordo bem o aviso de uma amiga, dois ou três dias antes: «Cuidado com a malária, não bebas whisky com gelo.» É claro que eu bebi whisky com gelo durante toda a noite numa barraquinha do passeio mesmo diante do hotel. A brisa salgada, que vinha do rio, ajudou, o calor ajudou, a companhia dos que iam chegando também ajudou bastante.

Acordei, no dia seguinte, com a sensação de o mundo ter recomeçado diante daquela visão do Indico, azul e brilhante, vasto, cheio de barcos, de redes de pesca, de miúdos que se escapavam por entre as pedras do cais, brincando a meio da manhã. Quelimane, era só Quelimane. Ou seja, a Zambézia, o rio dos Bons Sinais, a praia da Zalala, a vontade de espreitar as montanhas mágicas em redor. E a cidade, Quelimane, uma espécie de paraíso para quem, com eu, vinha de atravessar a serra da Morrumbala, verde, desenhada sobre um fundo de cartolina, mas desaconselhável quando vêm as trovoadas. Essa imagem perseguiu-me durante semanas: o risco dos relâmpagos num céu negro, caindo sobre a terra, diante de um jipe desconjuntado. De modo que Quelimane me parecia um paraíso, mesmo depois de as chuvas terem derrubado muros, inundado as ruas, descolorido o mar, esse Índico azul e brilhante a que se chegava por estradas improváveis.

Enquanto saía e não saía da cidade (e eu teria de sair, para o Maputo), entretinha-me em pequenas coisas: vaguear pela zona do porto, ir aos restaurantes de peixe, sentar-me a escrever, reconstituir a passagem do tempo na cidade, imaginando como Vasco da Gama teria chegado até ali, entrando pelo rio acima. A temporada de Quelimane não foi voluntária; na verdade, não havia voos durante essa semana e eu ficara prisioneiro até que o recepcionista, no hotel, me aconselhou a ir para o aeroporto à espera de boleia. Europeu e cumpridor, a ideia pareceu-me tão absurda que segui o conselho na madrugada seguinte. No aeroporto, depois de ter feito saber que precisava de partir para o Maputo, disseram-me que o melhor era aguardar – um avião ia para o Norte daí a pouco. «Mas eu quero ir para o Sul.»

O homem, um velho goês de rosto sempre sorridente, nem respondeu. Encolheu os ombros e limitou-se a deixar-me para trás: «Em tempos de aperto, Sul e Norte são mais ou menos no mesmo sítio.»

Ao fim de uma hora apareceu o meu salvador – um homem fardado de branco (ele falava com um sotaque vagamente africânder) e que me oferecia boleia para Maputo, caso estivesse disposto a fazer uma paragem curta no Songo – ao pé de Cabora Bassa, desenhei mentalmente o mapa de Moçambique e situei Tete, as montanhas e as fronteiras com a Zâmbia, o Malawi e, em querendo, o Zimbabwe. Pareceu-me óptimo; no fundo, tratava-se de fazer uma viagem para o Sul mas avançando para o Norte. Não me arrependi. Ao fim de umas horas, estávamos no Songo – e ao cair do dia aproximávamo-nos de Maputo. Mas estaria bem se tivéssemos aterrado em Dar-es-Salaam, em Balantyre, nas Comores ou nos arredores de Antananarivo – o piloto, um filho de portugueses que só tinha estado uma vez em Portugal (possuía, claro, passaporte sul-africano) sobrevoou o mapa da savana com uma perícia que não vem nos livros, além de não ter achado despropositada a ideia de ter dado boleia a um desconhecido estacionado em Quelimane.

De certa maneira, foi uma das viagens da minha vida – um sobressalto que incendiou o meu mapa pessoal de África, onde eu não sabia que se podia pedir boleia de avião, nem viajar para Sul fazendo escala no Norte.

in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Agosto 2009

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