novembro 27, 2006

O governo ou o caos

Uma das tentações mais medíocres do homem público consiste em queixar-se da imprensa. Acontece a todos e a lista de queixosos é vasta, desacreditada e, vá lá, está cheia de gente inutilizada pela política.

O senhor ministro da Saúde foi recentemente à televisão e, a meio, sucumbiu à tentação de falar dos seus inimigos ocultos ou com identidade duvidosa. Diante das câmaras da SIC Notícias, o senhor ministro da Saúde acusou os jornalistas em geral, bem como as televisões e os jornais, de receberem dinheiro da indústria farmacêutica a fim de publicarem ou difundirem as instruções, as notícias, as indicações e a opinião da mesma indústria. Eu, que li "O Fiel Jardineiro", de John Le Carré, muito antes do senhor Ministro, e que na extinta "Grande Reportagem" acompanhei as investigações em redor do "caso Pequito", sucumbi à revelação finalmente, alguém com elevadas responsabilidades políticas, como é o caso do senhor ministro da Saúde, permitia-se o luxo de fazer acusações na televisão. Não acusações tão vagas como mencionar a existência de uma conspiração, de uma rede de acordos obscuros, de uma máfia dos medicamentos e dos negócios hospitalares. Não. O senhor ministro da Saúde, com a sua habitual placidez, indicava dois inimigos brutais: os jornalistas e a indústria farmacêutica. Naturalmente, havia provas, havia dados, havia factos, havia demonstração clara de uma conspiração, de uma negociata e de uma barreira (até aí invisível, portanto) contra o sistema de saúde português.

Desilusão. Analisadas as declarações, bem vistas as frases, tratava-se apenas de uma acusação tão vaga como a de Santana Lopes contra os árbitros de Canal Caveira. O que diz quase tudo sobre a matéria.

Procurei no site do sindicato dos jornalistas uma reacção contra as declarações do ministro; nada. Visitei os blogues mais atentos ao assunto; nada. Procurei no site da digníssima Entidade Reguladora da Comunicação Social, tão sempre vigilante; nada. Um cidadão (embora ministro) faz acusações tão fortes e definitivas, acusando jornalistas de receberem dinheiro e a indústria de o fornecer com abundância - e ninguém liga ao assunto. Que desperdício.

No dia seguinte, porém, um assessor do ministro aparece para deslocar a acusação. Afinal, a indústria não paga aos jornalistas e sim às agências de comunicação que, a seu bel-prazer, publicam e difundem essas notícias junto da opinião pública. Sinceramente, é pior a emenda do que a asneira anterior: como a entidade "os jornalistas" é demasiado difusa, a assessoria do senhor ministro encontrou as agências de comunicação (às quais o governo e o ministério da Saúde recorrem abundantemente) como alvo, e as empresas de comunicação social como parceiros de mais "uma cabala".

Se fosse Santana Lopes a dizer o que o senhor ministro da Saúde disse na SIC Notícias, haveria escândalo, comissões de inquérito e vigílias públicas contra o desavergonhado; neste caso, o pedagógico silêncio que se seguiu é bastante revelador do silêncio em que o país parece querer entreter-se.

Não se riam. Este mesmo fim-de-semana, o senhor ministro das Finanças, numa reunião de militantes socialistas, deu o tom geral do ambiente. Quem protesta contra as medidas do governo, quem põe em causa qualquer das suas políticas, quem duvida (seja do défice, seja das iniciativas de combate ao défice), não é adversário do governo, do partido ou do ministro - é inimigo (reparem bem!) "dos portugueses". Dir-me-ão que o senhor ministro das Finanças estava entre os seus, e que a conversa para a rapaziada seu do partido tem de ser assim mesmo. Não: era uma mensagem clara para os microfones das rádios e para as câmaras de televisão, para todos nós.

À força de tanta unanimidade, com a colaboração ingénua do senhor presidente da República, os operacionais do governo acabarão por identificar "os portugueses" com "o governo". Tenham cuidado.

in Jornal de Notícias - 27 Novembro 2006

novembro 25, 2006

Um clássico, vamos lá


Desta vez, o cronista não foi por atalhos: reentrou no Gambrinus. Não é um restaurante para gastrónomos, mas é um clássico indispensável.

A nossa tentação, quando entramos pela primeira vez pela porta do Gambrinus é a de desfalecer de comoção. Mais, muito mais, de metade da classe política lisboeta treina de garfo e faca no Gambrinus; conspirações notáveis tiveram lugar àquelas mesas, em jantares intermináveis, palradores, tremendos – perante a discrição dos criados, dos chefes, dos escanções, e a curiosidade dos vizinhos; comemorações efusivas passaram por ali; e jantares tranquilos, ao balcão; e ceias tardias depois de um espectáculo; e jantares antes de um espectáculo; e negócios, tanto produtivos como ruinosos, foram combinados sobre as toalhas brancas do Gambrinus, aproveitando as possibilidades da sua garrafeira.

Há nomes cuja biografia passou por estas duas salas austeras, datadas, herdeiras da cozinha das melhores memórias galegas da capital. E inveja, muita inveja: um jantar no Gambrinus é motivo de suspeita, de inveja e de murmúrio. Aconteceu-me o mesmo a mim, pobre homem de província, quando, há muitos anos, entrei no Gambrinus para uma ceia: alheira, bife, empada de caça, vinhos escolhidos a preceito, brindes, um champanhe comemorativo. Calhou. Voltei algumas vezes pelo meio, com amigos, para deglutir um jantar tardio ao balcão ou para falar de projectos que nunca se realizaram. Voltei recentemente e já mal recordava a austeridade do seu mobiliário, datado, marcado pela memória dos restaurantes de meados do século passado – onde somos bem atendidos, encaminhados com rapidez simpática para a mesa que nos foi reservada. Juntamente com o mobiliário e a luz (os reflexos dourados nas madeiras, os talheres clássicos, usados), há ainda a ementa clássica, igualmente datada, cheia de memórias de frequentadores que a conhecem de cor e não a comentam como bibliófilos.

Os “habitués” do Gambrinus mal precisam dela – nem precisam de relembrar qual a marca de whisky (de “Famous Grouse” a “Macallan”), o tipo de vinho, a altura em que o café de balão é servido: ali existe a familiaridade de clube privado, de hábitos familiares, de conhecimento real. O senhor doutor gosta de percebes, o senhor engenheiro aprecia camarão de Espinho – não acho mal. A vida dos grandes restaurantes é feita de pormenores como estes, e, na verdade, tanto os percebes como os camarões de Espinho, vamos lá, são excelentes. Comi alguns ao balcão, com um velho amigo muito mais conspiratório do que eu – consciente do pecado, evidentemente –, e terminando com um bife suculento na companhia de cerveja (ele não, que bebeu “Pêra Manca”), em memória do duque Jean Primus, que – em corruptela – deu em Gambrinus, o rei da cerveja, o primaz da cerveja, o nome que evoca os prazeres da mesa e da cerveja. Mas o Gambrinus é conhecido pela sua garrafeira, igualmente conservadora, cinquentona, cheia de referências aos clássicos da nossa vinicultura (do Douro, do Dão, da Bairrada) – e pelos vinhos servidos com critério, cuidado, atenção, quer para acompanhar os mariscos iniciais, entrantes (ostras frescas, camarão, lagostins, búzios, percebes), com as torradinhas escorrendo manteiga, quer os peixes clássicos ou as carnes tentadoras: bacalhau à Gomes de Sá (foi a minha opção mais recente; é um dos meus bacalhaus preferidos), perdiz de toda a maneira e feitio (na empada, formosíssima, na caçarola, com castanhas, etc.), a famosa sopa rica de peixes (que me disseram ser uma sombra dos seus grandes dias), a alheira de caça, os rojões na versão transmontana, o cabrito no forno (à Souto-Mor) com arroz de ervilhas, o frango à Cafreal, a panóplia de peixes frescos grelhados, os bifes suculentos e correctos (mas com “finesse” superlativa, se me entendem), as iscas (de fígado), os bacalhaus clássicos – e a tarte de requeijão, de que eu gosto particularmente.

O Gambrinus é uma instituição de cozinha flutuante; não brilha, como a luz eterna – mas mantém-se acesa com pundonor. Não é vibrante, acolhendo gastrónomos – é uma casa indispensável à história da cozinha lisboeta, onde é necessário ir uma vez na vida. Até para perder o preconceito contra os restaurantes clássicos e para nos habituarmos a um serviço de grande qualidade, sem ademanes mas com eficácia e muita consideração, sereno, discreto, muito profissional.

À lupa
Carta de vinhos: * * *
Carta de digestivos: * * * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço à mesa: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos brancos: 71
Vinhos tintos: 182
Vinhos verdes: 14
Portos e Madeiras: 28
Uísques: 22
Aguardentes & conhaques: 32
Champanhes & espumantes: 18

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: apenas nos parques nas proximidades
Adequado levar crianças: não
Tem área de não-fumadores: sim
Reserva: muito conveniente
Preço médio: 60 euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

GAMBRINUS
Rua Portas de Santo Antão, 23/25
Lisboa
Tel: 213421466

in Revista Notícias Sábado - 25 Novembro 2006

Ser bom de bola

1. Há um caso José Veiga a circular na imprensa. No meio das cumplicidades e ódios que o seu nome arrasta, como quase tudo no mundo do futebol, há um pormenor de que nunca nos podemos esquecer - o de que o seu julgamento na praça pública, bem como o da TVI a transmitir as imagens dos seus móveis na rua, é perigoso e injusto. Quer ele se chame José Veiga (e já escrevi sobre o personagem) ou tenha outro nome qualquer.

2. Mas há uma ilação a tirar desta circulação de informação sobre o caso dos 4 milhões de euros ainda sem paradeiro - assim eram as contas do futebol obscuras, tergiversando entre empresários e jogadores em percentagens nem sempre claras. Mas o curioso não é apenas isso - mas também os sinais (deixados claramente nos jornais por estes dias) de que há muita gente que sabia desta e de outras histórias antes de a Polícia se ter encarregue de as deslindar. Desde que Santana Lopes mencionou Canal Caveira até hoje, muitas acusações se formularam para o ar, com ar entendido, mas poucas se provaram e muito menos seguiram para tribunal. O futebol é um mundo que acolhe todo o mau carácter que anda aí à solta, dando-lhe outros nomes.

3. O F. C. Porto fez um jogo extraordinário em Moscovo - a equipa mereceu a vitória, merece o primeiro lugar no grupo e merece estar optimista. De alguma maneira, Jesualdo Ferreira sabe, este é o momento chave na época 2006-2007 ou se segue em frente, ou se começa a flutuar ao sabor dos desastres. Até agora, as coisas seguem com uma regularidade pendular. Ainda bem. É bom voltar a existir uma ordem no Dragão.

4. Depois da Andersondependência, há quem formule a ideia de uma Quaresmadependência. Há sempre gente disposta a encontrar problemas onde não existem. A verdade é que não existiu uma Andersondependência; o rapaz gaúcho apenas jogava como sabia - bem. Quaresma está a provar aos idiotas e racistas que ele é bom de bola. É o nosso olhar que depende deles, dos jogadores de excepção. E de Pepe como de Fucile, ou de Assunção e Lucho.

5. Scolari, que quer passar a utilizar mais o seu passaporte italiano, é um dos formuladores dessa teoria medíocre da "dependência"; é por isso que ele não gosta de Cristiano Ronaldo - prefere funcionários particulares que não brilhem, que não sejam ambiciosos e que o deixem ficar bem. Egoísmo tremendo e maníaco. Só assim se entendem as suas declarações assassinas sobre Nani, abrindo uma brecha nos adeptos. "Bah! Cristiano Ronaldo? Ná." A partir de agora, cada vitória do miúdo do Manchester, cada golo seu, cada assistência, cada sorriso, cada corrida, cada alegria - passam a ser derrotas pessoais de Scolari, o rei da amargura. Assim seja.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 25 Novembro 2006

novembro 20, 2006

A anestesia e o peão de Cavaco

Nenhum assunto mobiliza tantos cérebros como a ideia de existir uma alternativa a José Sócrates e à dupla que o Presidente da República, de facto, estabelece com o governo.

Sabe-se o que são as campanhas e o que têm de dizer os “cabos eleitorais” nessas circunstâncias, mas uma das evidências mais sonoras é que Cavaco Silva, que viria para destruir Sócrates, é agora um conformista adaptado à presciência socialista. Por isso, é legítimo que nos interroguemos sobre a utilidade da recente entrevista televisiva do Presidente da República. Serviu para quê? Só vejo uma razão: para garantir que existe “estabilidade institucional”, ou seja, para avisar sobre a “cooperação entre o PR e o governo”, facto que o Presidente não precisa de vir lembrar. Por um motivo: nem a “estabilidade” nem a “cooperação” estavam em causa. Não havia necessidade. A rua protesta mas não põe em causa nem “as instituições” nem as sondagens que aprovam as iniciativas do governo e constatam a popularidade do presidente.

Uma profundíssima anestesia domina a opinião pública, dividida entre as explicações e os silêncios do governo e a demagogia da rua. Uma das provas dessa anestesia geral tem como pano de fundo o recente congresso do PS – já se sabe como é possível transformar uma reunião partidária numa cerimónia laudatória (tanto o PCP como o PS e o PSD o fizeram abundantemente), mas não passou despercebida a ninguém a profunda contradição entre o discurso permanente de José Sócrates e a prática do seu governo. Vamos ser claros: o discurso “do social” não coincide com a prática do governo, que aplica a receita que a direita propôs durante anos para o Estado e para o país. Por culpa dessa direita mandriona, preguiçosa, incompetente e dividida em baronatos e interesses compreensíveis (mas nem por isso autorizados) além de cheia de medo da rua esquerdista, coube ao PS de Sócrates lançar algumas das mais urgentes reformas políticas, mesmo se para isso teve de atraiçoar tanto o programa eleitoral como “o socialismo”. A bem da verdade, “o socialismo” já não existia em lado nenhum, e Sócrates soube evitar fazer promessas eleitorais. Não se queixem agora. Estava tudo escrito com uma limpidez básica, elementar.

Neste contexto, o discurso “de esquerda” do primeiro-ministro é apenas para consumo interno; as tiradas definitivas do ministro das finanças e de Sócrates sobre “o controlo do défice” não são promissoras para a esquerda mas hão-de garantir-lhe sucesso antes das próximas eleições.

A estratégia do governo reside exactamente nisto: dizer que não só não há alternativa a José Sócrates como as suas políticas são inevitáveis. Não causaria estranheza se, num dos seus arroubos ditirâmbicos – mais vulgares do que se pensa –, Sócrates cair na esparrela de declarar “ou eu ou o caos”.
E, se isso acontecer, também não convém estranhar; a anestesia da opinião pública e a vontade de unanimidade nacional encaminham as coisas para esse patamar.

Por outro lado, há uma questão infantil de timing na entrevista do Presidente: primeiro, Cavaco desarma os catastrofistas que, no PS, e durante toda a campanha presidencial, lançaram repetidos avisos sobre quão trágica iria ser a eleição de um presidente destinado a minar e torpedear a acção de José Sócrates. Vai abaixo essa argumentação.Segundo, Cavaco quer reinar no país dos seus sonhos – tranquilo, com os remadores afinados e a miragem “do crescimento” no final do sprint. Aqui sim, pode estar o erro de perspectiva: a sociedade tem o direito de viver a política de forma conflituosa. Mas de uma coisa ninguém pode acusar Cavaco: de não dar a sua opinião. Ele pensa aquilo. Sempre o pensou. E hoje, Sócrates é, também, o seu peão.

in Jornal de Notícias – 20 Novembro 2006

novembro 18, 2006

Minho tentador

O Panorama, em Melgaço, mereceu este ano pelo menos duas visitas. Vê-se a grandeza do vale, em volta, e o céu ao fundo. A carne é fraca mas a tentação é sublime. Gostei muito.

Bem-vindos os que vêm por bem. Assim devia estar inscrito à porta dos restaurantes que recebem os esfomeados, porque deles é uma parte do reino dos céus, ou pelo menos ligeiramente acima das nuvens, passando da atmosfera à estratosfera. E bem-vindos sejam, também, os que têm paladar, e disponibilidade para provar as iguarias que nos cabem, e sensibilidade suficiente para não desanimarem à primeira. Esses são bem-vindos, tal como os sãos de espírito e os que não são inteiramente magros ou magras, porque nas suas bochechas reconheceremos um sinal de felicidade, uma carne luzidia, um frag­mento de simpatia, uma parte de riso e de bem-aventurança. E bem-vindos são, ainda, aqueles que percorrem mais de uma centena de quilómetros para se sentarem a uma mesa onde aguarda­rão serem servidos e bem tratados, porque sabe­rão reconhecer a bondade e aquela melhor parte do género humano.

Bem-vindos, portanto, aque­les que não têm mais do que uma pequena lista de preconceitos e se mostram capazes de provar, saborear, experimentar, digerir com tranquilida­de e sem mais do que a culpa que em doses nor­mais é dada aos mortais. Bem-vindos, também, mesmo assim, aos que sentem culpa, porque um pouco de culpa amacia o carácter e torna-o mais humano ou, pelo menos, mais repleto da divina imperfeição que se ama ou com que se simpatiza nos nossos semelhantes. Bem-vindos, ainda, os que se comovem com a paisagem, as colinas do Alto Minho, o verde adocicado dos seus rios e a lembrança das suas toponímias, porque quase nenhum dos grandes restaurantes da nossa pro­víncia sobrevive sem a paisagem, a pedra antiga, as toalhas brancas, o sotaque, o vinho da casa, a aguardente do vizinho, o pão do forno, as recei­tas das avós, a luxúria do apetite. E, finalmente, bem-vindos sejam também aqueles que nunca sucumbiram ao pecado da gula ou da curiosida­de, mas que estão preparados para responder ao chamamento e se apresentarão de garfo e faca à mesa, disponíveis para provar Alvarinho, para mordiscar o sável, para molhar a colher num pudim, para sonhar com uma sesta primordial e pacificadora – a todos serão atribuídas as recom­pensas habituais.

E dito isto, que não é pouco, vamos ao Panorama, de Melgaço, que mereceu este ano pelo menos duas visitas para, na época, provar a lampreia (fumada, em patanisca, à bordalesa, mergulhada num arroz sumptuoso), provar o sável (fritinho), provar o bacalhau na brasa em posta alta, genero­sa, triunfal, operática. Dirão que exagero. Que importa, se me soube bem? E, mais: que importa se o exagero tem em si mesmo uma parte substan­cial da verdade? Aproximai-vos e verificai com os vossos próprios olhos e dioptrias apropriadas: pataniscas de lampreia e de bacalhau, arroz de feijão soltinho e malandro, sável de escabeche (per­fumado de vinagre puro), cabrito no forno, lombinho de vitela no forno ou na brasa, rojões à minhota, favas com chouriço e arroz de carne com cogumelos (eu repito, eu repito!), feijão com dobrada, enchidos regionais (chouriça e alheira, muito boas). E, ainda para prolongar a agonia, menciono um leite-creme ocasional e uma boa lista de compotas caseiras, além de vinhos regio­nais de boa escolha – contando com um cardápio minucioso de enofilias depositadas na sua garra­feira. E, se o vosso estômago é suspicaz e gosta de saltitar, optemos apenas pelas entradas variadas da casa, um menu perfeito para quem aprecia petiscar: saladinhas (de ovas, de coelho, de feijão), fritinhos (peixinhos da horta!), grelhadinhos, frios de carnes, queijos, tudo o que a imaginação providencia.

Ide. Tomai a estrada de Melgaço e confiai. É no mercado municipal. Vê-se a grandeza do vale, em volta, ao fundo, no céu. Depois arrependei-vos, porque a carne é fraca mas a tentação é sublime. Gostei muito.

À LUPA
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 93
Vinhos brancos: 40
Vinhos verdes e Alvarinhos: 16
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 22
Aguardentes portuguesas: 16

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: fácil
Levar crianças: sim
Bengaleiro: sim
Reserva: aconselhável ao fim-de-semana
Preço médio: 25 euros
Cartões: V, MB, D, AM

PANORAMA
Rua Carvalhiças, Edifício do Mercado Municipal
4960-535 Melgaço
Tel. 251 410400
Encerra às segundas-feiras

in Revista Notícias Sábado – 18 Novembro 2006

Rejubilemos: ganhámos ao Cazaquistão

1. Manuel Alegre acaba de publicar a reunião das suas crónicas de futebol (o livro chama-se "O Futebol e a Vida. Do Euro 2004 ao Mundial 2006", publicado pela Dom Quixote) e há aqui coisas dig­nas de Nelson Rodrigues que, salvo erro, foi o mais brasileiro dos cronistas do futebol brasi­leiro. Onde Nelson é comoven­te na observação da bancada do seu amado Maracanã (cujo verdadeiro nome é Mário Pi­lho, seu irmão e fundador da "Gazeta dos Esportes", o autor desse livro fascinante que é "O Sapo de Arubinha"), Manuel Alegre transporta a epopeia para as páginas do futebol lu­sitano. Ele gosta de Figo, das vitórias e do inesperado. Um dia telefonam-lhe de um jornal a querer saber coisas sobre o congresso do PS: "Escusei-me. O que neste momento me aflige é saber se Cristiano Ro­naldo joga ou não." (pág. 79) Manuel Alegre é um patriota, para quem Portugal está aci­ma de tudo; a minha pátria, pelo contrário, é o meu clube, o meu bairro, a minha rua - ou uma cidade completamente diferente (eis porque sou gremista também). As suas cróni­cas são amostras de um entu­siasmo quase pueril que apro­ximam o seu autor das coisas quotidianas e das distracções mais comuns; coisas humanas, próprias de nós, próprias da alegria de ver futebol. Vão lê-las, aproveitem.

2. Já agora: eu gostaria de assis­tir a um Benfica - F. C. Porto com Manuel Alegre. Seria um jogo e tanto. E seria um triunfo razoável. Eu regressaria com mais um sócio do F. C. Porto.

3. Agora, em homenagem aos patriotas de pacotilha: Portugal rejubilou com os três golos obti­dos diante da excepcional selec­ção cazaque. Vitória retumbante e genial, avassaladora, que esma­gou uma das selecções mais peri­gosas, contundentes e esclareci­das do futebol europeu da nova geração. Não percebo como a rua não foi invadida por fãs a festejar a data. Desculpem a moderação deste elogio – é o pudor que nos li­mita. É o pudor que nos salva. Da­qui até à Ásia Central, a nossa vé­nia.

4. O molho holandês que Adriaanse deixou no Dragão con­tinua a revelar-se: o Werder Bremen agradece ao F. C. Porto ter dispensado por 9 milhões um jogador como Diego - para não di­zer que Hugo Almeida vai subir de forma. Tenho contas a ajustar, sim.

5. Materazzi, aquele italiano ridí­culo que foi cabeceado por Zidane na final com a França, publicou um livro: "O que é que eu disse mesmo a Zidane". O governo francês recusou protecção poli­cial ao jogador, que iria a França apresentar o livro. Uma onda de insanidade percorre esta gente.

6. Anda muita gente preocupada com o peso de Vítor Baía na equi­pa técnica do F. C. Porto. Eu fico aliviado e tranquilo.

7. Vieira e Veiga: como vos dis­se, não há nada para dizer. É o destino.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 18 Novembro 2006

novembro 13, 2006

O ensino do pobre português

Durante alguns dias e noites entretive-me a tentar exercitar-me na TLEBS, ou seja, "terminologia linguística para os ensinos básico e secundário". O documento básico já está publicado (e disponível na internet) e há escolas que têm vindo a servir de cobaias para experiência tão enternecedora no domínio do ensino do português.

O trabalho não tem sido fácil, porque a TLEBS tem coisas que se aproximam do absurdo. Apesar de tudo, tem havido algumas vozes a insurgir-se contra esse desmando que visa torpedear e tornar cada vez mais estranho o ensino do Português. Recentemente, por exemplo, Maria Alzira Seixo escreveu, na "Visão", um artigo que chamava a atenção para algumas das características mais absurdas da TLEBS. Poucos se têm interessado sobre o assunto, e a TLEBS passará por ser esquecida; hão-de deixá-la passar na resma de reformas que os superiores génios instalados no Ministério da Educação periodicamente apresentam.

Ora, a TLEBS, proposta por uma equipa de excelentes e preocupados linguistas, não é um avanço; constitui, pelo contrário, uma distracção letal por parte dos responsáveis políticos do Ministério da Educação, o que pode fazer pensar que áreas tão importantes como o ensino do Português (ou o que deve ser ensinado quando se ensina Português) devem ser deixadas ao arbítrio dos especialistas. No caso, dos linguistas. Esta ideia de que o Português é propriedade de um grupo de génios que, provavelmente, detestam o Português, pode e deve exterminar-se. Parar a TLEBS é apenas uma etapa para defender o ensino do Português.

Entretenham-se a consultar o documento, entretenham-se. Só agora começou. Gostei de ver que, em matéria de semântica frásica, os nomes uniformes podem ser, quanto ao género, epicenos, sobrecomuns e comuns de dois; vagueei pelos verbos auxiliares aspectuais e pelas frases subordinadas substantivas completivas; e, em matéria de propriedades semânticas dos grupos nominais, diverti-me com os nomes não contáveis não massivos e, mais tarde, com a definição de "modalidade epistémica ou deôntica". A vida académica é assim mesmo, mas não sei se o ensino do Português tem sentido desta maneira. Entretanto, aprendam e habituem-se, porque vem aí mais. Basta folhear a TLEBS.

Acrescento que isto não é conversa de um "empedernido gramatical" mas de alguém que tem justificados receios de que o Português deixe de interessar, definitivamente, os alunos do básico e do secundário, para não falar dos professores - eternas vítimas das iluminadas reformas decretadas pelo Ministério. Pessoalmente, continuo a não entender a necessidade de atrapalhar e de criar "novas designações" para "conceitos" que eram bem tratados em terminologias anteriores - e defendo que deve definir-se, quanto antes, o que significa exactamente "ensino do Português" bem como os objectivos dessa desprezada tarefa.

A senhora ministra da Educação deixou já passar, incólume, a ideia de que a filosofia não é matéria que sirva os estudantes do secundário (e permitiu que se lhe desferisse um golpe fatal nos novos currículos); agora, certamente envolvida em questões administrativas da maior importância, deixará passar a TLEBS e todo o conjunto de geringonças teóricas que não deixarão de contribuir para o continuado défice do ensino do Português e da literatura portuguesa.

Conheço já o argumento de que o ensino da literatura não interessa nem é útil, e que o Português não depende da literatura nem dos clássicos da nossa língua. Estou pronto para discutir o assunto, mas, antes, seria bom que um resto de bom senso aliviasse a TLEBS dos defeitos já abundantemente apontados por professores, investigadores e autores que se têm encarregado de apontá-los. Esse seria o primeiro avanço.

in Jornal de Notícias - 13 Novembro 2006

novembro 11, 2006

O senhor Abade

O Abade de Priscos merece uma visita do cronista depois de uma carreira cheia de comida simples, agradável e com toques pessoais de Fernando Beleza, o proprietário deste histórico de Braga.

Há quantos anos abriu o Abade de Priscos? Há muitos. Nessa altura falava-se da "'nouvelle cuisine' à moda de Braga", o que significava – antes de mais – que nem só bacalhau à Narcisa e seus deri­vados e familiares, bem como rojões e sarrabulho se comia na Cidade dos Arcebispos.

Esclareço que nunca – verdadeiramente, nunca – antes eu tinha escrito "Cidade dos Arcebispos". É daquelas expressões que nunca me sugeriram Braga, nunca me lembraram Braga e nunca me aju­daram a gostar nem menos nem mais de Braga. É uma estreia, portanto. Em vez de "a Cidade dos Arcebispos", que é a muleta de todos os comentado­res desportivos quando se referem à cidade, eu tenho vícios que me reenviam a Camilo e, se me fazem esse favor, a Luiz Pacheco – com muito menos moralidade. Pessoalmente (vejam como as coisas são absurdas), Braga é a cidade de alguns dos meus cafés preferidos, de algumas das minhas livrarias preferidas, da minha biblioteca pública preferida (o País deve muito a Henrique Barreto Nunes, seu director e grande bibliófilo) e de alguns bons amigos de juven­tude. Eu vivia então noutra cidade mais a norte – da qual, através da EN103, se chegava a Braga para uma visita civilizatória e periódica. Com o tempo, ama­durecendo, foi sendo também a cidade de alguns dos meus restaurantes (coisa que só se aprende a conhecer quando a idade nos favorece de alguma maneira) e ponto de partida para incursões pela pro­víncia fora, com o 'Minho Pittoresco' debaixo do braço, sorvendo as suas indicações como se se vivesse em 1886, data em que saiu a utilíssima edi­ção do primeiro tomo de José Augusto Vieira. Eis uma das razões por que nunca escrevi antes "Cidade dos Arcebispos" e lhe preferi outras.

Seja como for, creio que conheci Fernando Beleza em 1982 – quando o seu restaurante, O Abade de Priscos, era então uma raridade. Ali escondido, num primeiro andar de uma praça famosa por coabitar com teólogos antigos e modernos, a sua sala de jan­tar ocupava um sobrado de madeira com louceiros e móveis com evocações domésticas – o serviço era ainda mais familiar, redondo, aplicado e cordato. E a comida, na época, uma novidade: caril de cama­rão, bacalhau gratinado, posta mirandesa, espetada em pau de louro (que Fernando Beleza ia buscar ao campo na altura certa) e o notável pudim. Regresso a espaços. Regresso já nem por causa da comida, ou dessa minha juventude que passou por Braga, ou de qualquer memória; acho que regresso porque me habituei ao lugar, às escadas de madeira que levam ao primeiro andar, à mesa do canto (junto a uma janela), à conversa do Fernando (que já foi editor, que guarda segredos, que tem história) e à lista clás­sica da casa. Continua o bacalhau gratinado (numa terra conhecida pelas suas "postas à bracarense", fritinhas e aceboladas), continua o caril de camarão, permanecem a alcatra açoriana (muito apreciável, mesmo para quem está habituado a comê-la na ilha Terceira), a galinha mourisca e os pezinhos de coentrada de magníficas e suculentas gelatinas, escorren­do dos ossinhos. A isto se acrescentam a feijoada de polvo (que nunca comi; desculpa, Fernando) e uma das notas superiores da casa – o cabrito em molho de salva, o que constitui um contraste perfeito entre o agridoce da erva e a carne de texturas salgadinhas. Além dos bifinhos gulosos, o Abade de Priscos apre­senta ainda, periodicamente, um prato de "presun­to em boa companhia", um clássico duriense da minha eleição, anotado nas melhores recolhas da região (há um texto quase ditirâmbico de Sarmento Pimentel sobre o assunto), e uma recente inovação que mistura lascas de carnes pecaminosas (coelho, galinha do campo, porco preto) com arroz de cogu­melos selvagens – onde há míscaros abundantes – e enchidos de Portalegre. Simplicidade absoluta nas sobremesas, onde se desafiam mutuamente o pudim do Abade de Priscos, um leite-creme queimado, o doce de requeijão com chocolate e uma mousse de chocolate.

Se a carta de vinhos é curta (mas tem o essencial), a salinha do restaurante eleva-me o espírito em noites de chuva, como aconteceu da última visita. É bom voltar.

À LUPA
Carta de vinhos: * *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 30
Vinhos brancos: 10
Vinhos verdes e Alvarinhos: 5
Portos & Madeiras: 5
Uísques: 8
Aguardentes portuguesas: 9

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: parques nas redondezas
Levar crianças: sim
Bengaleiro: sim
Reserva: aconselhável à noite e fim-de-semana
Preço médio: 18 euros
Cartões: Não aceita

ABADE DE PRISCOS
Praça Mouzinho de Albuquerque, n.º 71
4710-301 Braga
Tel. 253 276 650

in Revista Notícias Sábado – 11 Novembro 2006

São Luiz Felipe Scolari e os paladinos da moral

l. O pior da futebolândia lusitana é o moralismo esquizóide e a tendência para vestir, logo que a ocasião se proporciona, o espartilho de elástico das ve­lhas tias de província - mas de há dois séculos. Alguns co­mentadores e (o que é pior) jor­nalistas desataram a gritar juntos, enlaçados e em coro, numa campanha pela morali­zação da nossa querida e bem amada selecção. Triste e com direito a risota.

Parece que Luiz Felipe Scolari estava "farto de noitadas" e resolveu punir o meio-campo português, promovendo aqui­lo que algumas almas cha­mam o "autêntico núcleo duro" da selecção: Costinha, Maniche, Nuno Valente e Petit foram à vida com o aplauso imoderado dos indefectíveis de Scolari, que anseiam pelo dia em que possam ir com ele a Farroupilha, em genuflexões à Senhora do Caravaggio. Como não podem ir à serra gaúcha, fazem genuflexões ao imenso génio de Scolari, persignando-se a cada frase do selecciona­dor. Fazem bem, hão-de ganhar o céu.

Esta ideia de que Scolari fez al­terações na convocatória por­que estava "farto de noitadas" está abaixo de cão. Esperava-se que fizesse alterações por­que estava farto do futebol que a selecção estava a praticar, em ritmo de velório. Mas não: trata-se de uma medida moral e punitiva, destinada a apontar o dedo a quem bebe mais do que refrigerante. Depois, há a ideia do "núcleo duro", que era a razão de ser da selecção de Scolari e dos seus anjos que nunca se can­saram de empunhar as trombetas na imprensa. Ora, o "núcleo duro", tirando Figo, era constituído por aqueles que Scolari não queria pôr a jogar por serem a base do F. C. Porto de Mourinho, mas que o sal­varam durante o Euro 2004; agora, há-de vir a legião de rapazes desti­nados a rejuvenescer o quartel, com o antigo treinador do Brasil de Pelotas vestido de velho sacristão e pedindo acólitos para ajudar à missa. Mas, independentemente do "núcleo duro", das declarações amigalhaças de Costinha e Figo (a célebre rodada dos passos atrás que aconteceria se o 'mister' resi­gnasse, se estão bem lembrados) e das persignações beatas dos seus propagandistas na televisão e nos jornais, a verdade é que o fu­tebol praticado diante da Alema­nha, da Finlândia, da Polónia e da Dinamarca, foi isso mesmo: uma merda.

2. Para a grande parte desta gen­te, disciplinada e moralista, os jo­gadores não são jogadores mas, sim, extensões de Scolari em campo. Viu-se como quiseram sa­crificar Cristiano Ronaldo por este se distinguir no meio daquela banda filarmónica desenhada para jogar assim-assim. A culpa, agora, não é das opções de Scolari - a culpa, agora, "é da noitada". Ah!, ditosa pátria que tais filhos quer deitar tão cedo.

3. Alguns pequenos admirado­res do Grande Líder tentaram ex­plicar-nos, aos ignaros e torpes, que Scolari adiou as mudanças quanto pôde. Segundo esta ver­são, o problema já não era da "noitada", mas do futebol. Afinal, ti­nham razão aqueles que diziam que eram necessárias mudanças antes de fazermos aquela figura com a Finlândia, a Dinamarca e a Polónia. Entendam-se.

4. Na semana passada referi-me às participações de dois treinado­res ciclotímicos: Inácio no Beira-Mar e Carvalhal no Braga. Já se foram. Diálogo interrompido.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 11 Novembro 2006

novembro 06, 2006

O estado de graça

O dr. Medina Carreira, no "Expresso" (já o tinha dito na SIC), diz que as medidas do governo na área da saúde, por exemplo, não são decisivas. Por outras palavras. Percebe-se o que quer dizer que o tom geral de crueldade e de frieza não transportará consigo grandes benefícios para as políticas gerais do governo se não forem acompanhadas de medidas de fundo e do que, para sermos corriqueiros, se chama "reforma das mentalidades" - a começar pela traquibérnia em que continua a andar o sistema educativo. Retiro estas ilações da sua participação de um painel de economistas e empresários que o jornal reúne periodicamente para avaliar a situação económica. Alguns dos participantes neste conselho de sábios do "Expresso" mencionam, por seu lado, que o governo deve adoptar as medidas que entende para corrigir o estado das contas públicas "sem descurar o social". A milhares de quilómetros de Lisboa, ouvi o mesmo este fim-de-semana, numa discussão sobre "o estado das coisas": que o governo pode fazer o que entender na economia & nas finanças mas não pode "ignorar o social". O dr. João Soares irá ao congresso do Partido Socialista depois de os jornais publicarem um seu tão inaudito manifesto "contra o neo-liberalismo" - e, portanto, pelo "regresso do social".

A curiosidade do manifesto de João Soares, que passaria por ser uma espécie de moção ao congresso do PS, é que o seu principal subscritor acha que o congresso não vai perder-se a discutir o assunto porque será uma cerimónia de entronização do líder, José Sócrates. O congresso não pode perder-se em ninharias nem em debates ideológicos, que fariam desmobilizar a participação das massas que, para nos restringirmos ao próprio congresso, apoiam energicamente o primeiro-ministro.

Isso eu não entendo. Tirando Medina Carreira, que acha que grande parte do fogo de artifício é apenas fogo de artifício, todos manifestam o seu grande amor "pelo social" - sendo que a grande, larga, vasta maioria dos comentadores, não abdica de exigir o cumprimento das metas que permitiriam ao governo controlar as contas públicas (mesmo que o governo se engane nos números da inflação, como parece acontecer com oito miseráveis mas inoportunas décimas). Imagine-se o que não diria Jorge Sampaio, juntando-se ao coro, sobre a vida que existe para lá do défice.

Alguns dos nossos cérebros gostariam de equilibrar o país e as suas contas - mas não lhes agrada a rua nem a mobilização dos sindicatos ou das corporações. Por isso, aplaudem ambas as coisas e decretaram a morte política de Sócrates, que é a última moda em matéria de citações na imprensa. Pessoalmente, acho que as notícias sobre a morte política de Sócrates também foram muito exageradas.

2. Sem perder de vista este cenário de esquizofrenia e de grande dedicação "ao social" a par de um iniludível e desesperado amor pelas contas públicas (ou ao contrário), e sem mencionar o "monstro do neo-liberalismo", periodicamente agitado sem sentido, a situação é compreensível e recomendo que se leia (foi publicada na edição de sábado deste jornal) a entrevista de José Pacheco Pereira, onde se menciona o essencial. Primeiro, que muitas das coisas que o governo de Sócrates fez neste ano e meio, o PSD já devia ter feito (e não fez, com medo da rua e das corporações); segundo, que o PSD, ou seja, a oposição, necessita de apresentar interlocutores credíveis para criticar o governo. E, lamentavelmente, vozes dessas não abundam no PSD.

in Jornal de Notícias - 6 Novembro 2006

novembro 04, 2006

Índia em Lisboa

O Tamarind oferece uma experiência de genuína cozinha da índia, cheia de memórias pessoais de Hardev Walia, o seu criador. Vale a pena cair em tentação e ir aprendendo a escolher os pratos.

A pergunta tem toda a razão de ser em se tratando de gastronomias estranhas: será esta a verdadeira cozinha mexicana?, é esta a genuína comida indiana?, é fide­digna esta cozinha italiana?, será assim a verdadeira cozinha chinesa? Não esmoreça. Todos os dias faço a mesma pergunta – sobretudo, está bom de ver, nos dias em que sou levado (ou, mais raramente, quando sou eu que levo) a um restaurante marroquino, austra­liano, tailandês. Sou adepto do "desconhecido" em matéria de cozinha; não apenas do estranho, do longínquo, do exótico, do diferente. Esses adjectivos servem-me, mas o desconhecido também me interessa, e bastante. Línguas desconhecidas, pratos desconhe­cidos, misturas desconhecidas; espero sempre uma surpresa e um pecado nessas alturas.

Acontece-me, aliás, quando viajo experimentar por dever, mais até do que por curiosidade; um dever sem sacrifício, faço notar – um dever feito de pergun­tas. Nesse capítulo sigo as instruções nunca escritas de Anthony Bourdain e até alguns dos seus percursos – vou ao acaso. Comi em restaurantes indonésios à beira de caminhos desertos, em excelentes mesas argentinas, em tabernas mexicanas cheias de fumos, cozinhei com famílias onde pude fazê-lo. Qual o objectivo? Nenhum. Fazer apenas com que isso acontecesse; aproveitar a grandiosidade do mundo; gozar o momento; satisfazer a curiosidade. Nada de grandes antropologias ou etnologias.

No caso dos restaurantes indianos da capital há sem­pre a tentação de dizer que lhes devemos alguma coisa; e devemos: a tradição, o costume goês, as espe­ciarias arrancadas do Oriente e, finalmente, os bons sabores que nos trazem. Grande parte dessas "cozi­nhas indianas" são de ascendência indo-portuguesa e só mais recentemente apareceram casas onde a designação "indiana" não significa "Norte de Moçambique" ou "indo-portuguesa" ou "goesa". Nada contra. Um desses lugares é o Tamarind, a dois passos da Avenida da Liberdade e da Praça da Alegria, na vetusta Rua da Glória, onde Hardev Walia, depois de uns tempos algarvios, nos serve menus cheios de serenidade e de reminiscências familiares.

A minha experiência foi muito boa (além de voltar a provar a cerveja 'Cobra' na sua versão de 660 ml) e a opção foi pelo menu do dia, a um preço muito aceitável de 9,5 euros e que incluía duas entradas vegetarianas, 'bajhies' de cebola e 'pokora' de couve-flor e batata - repeti as 'bajhies', fritinhos saborosos e muito indicados para entrada. Neste capítulo, das entradas, há ainda borrego em tandoori ('boti kebab') ou picado com cominhos ('neza kebab'), galinha marinada com ervas e natas (galinha 'tikka') e uma selecção de entradas de camarão e peixe ('tikki" de camarão, peixe masala, por exemplo), além de um misto de todas as entradas da casa. Depois disso, dividi 'karahi murgh' (galinha com cebola, pimento e tomate) e 'rogan gosh' (borrego estufado, com cominhos, tomate, pimentos) – na companhia da dose normal de pão nam (o pão ázimo indiano) e de arroz 'basmati'.

A escolha poderia ter-se encaminhado para um abundante cardápio de pratos vegetarianos (que inclui um suculento caril de vege­tais ou dois pratos de lentilhas que provarei em próxi­ma oportunidade, como 'turka dali' ou 'dali makhani'), ementa tandoori, ou seja, cozinhados em forno de barro (borrego e frango), alguns pratos de borrego ('saag ghost', com espinafres, caril, 'dhaniya keema', borrego picado) e de frango ('korma', com amêndoas e caju, 'makhani', com tomate e manteiga, 'tawa', com pimento e tomate, ou caril), além dos 'berya-ni', ou seja, arroz – os de borrego, galinha, vegetais ou marisco e peixe –, sem falar dos pratos de peixe e marisco.

No capítulo das sobremesas, optámos por uma 'delícia de manga' e por um gelado de natas - ambos a transitar pela fronteira do sublime, com aromas muito suaves, tranquilizadores, cheios de pro­messas. A carta de vinhos é curta mas bem escolhida e com vinhos de várias regiões.

Sai-se do Tamarind com a sensação de se ter via­jado naquela salinha pequena, colorida, agradável.

À LUPA
Carta de vinhos: * *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 24
Vinhos brancos: 10
Portos & Madeiras: 6
Uísques: 8
Aguardentes portuguesas: 5

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: parque nas proximidades
Levar crianças: sim
Bengaleiro: sim
Reserva: imprescindível à noite
Preço médio: 18 euros

RESTAURANTE TAMARIND
Rua da Glória, 43-45
1250-115 Lisboa
Tel: 21.3466 080 / 96.8866144

in Revista Notícias Sábado – 4 Novembro 2006

Obrigado Inácio

1. O espectáculo periódico da época: depois do primeiro F. C. Porto-Benfica, as sequelas da má gramática que antecedeu o jogo. Teremos de nos confor­mar com esta miséria peque­nina. Vejam bem: eu não sou pela paz futebolística, não sou pela "banda da amizade", pelo "fair-play" total - se é fu­tebol tem de haver malandra­gem, piadas de gosto duvido­so, negaças, ameaças e asso­bios; e tem de haver maledi­cência, mau carácter, vaias, manifestações de incomodi­dade. Mas isso é o futebol, precisamente: querer que os nos­sos (nós) ganhem; querer que os outros (eles) percam, cá dentro ou lá fora (sim, não me venham com a frase habitual, "somos todos portugueses"). Mas, dívidas saldadas, toma­mos o café à mesma mesa, palmadas nas costas, volta­mos ao que éramos. Não neste espectáculo deprimente. Es­tou à espera de um jogo entre as duas equipas em que os au­tocarros não sejam esperados nas esquinas, em que a im­prensa não rejubile com a decadência dos dirigentes, mes­mo em que possamos aplaudir a derrota dos outros – mas aplaudindo. Não isto. Isto, sinceramente, mete nojo. Mesmo não sendo moralista, faz im­pressão. Não é de gente.

2. A jornada europeia serviu para desopilar. O Benfica jogou bem; o F. C. Porto fez um dos melhores jogos da época. Mas a pergunta permanece, chata como o futebol dos dragões na segunda parte do F. C. Porto-Benfica: se eles tomam vitami­nas só para 45 minutos, por que razão não escolhem a segunda parte para nos pouparem os ner­vos? Viram não viram? Por instan­tes suspeitei que a equipa voltas­se ao sistema da boviníssima ma­nada em que tem andado, oferecendo passes ao adversário e cho­rando pelos cantos, pedindo para o jogo acabar. Destroçar aquele golo de Lucho seria um castigo fa­tal que ninguém merecia.

3. Por isso, fico com esta suspei­ta a propósito do F. C. Porto: Bru­no Moraes. Será ele? Convinha que fosse para que não se provas­se que têm razão os que querem um ponta de lança. Nisto, gosto de perder as apostas.

4. O Braga joga em montanha-russa: ganha ao F. C. Porto, perde com o Marítimo e destroça os po­lacos. Carvalhal tem que acaute­lar um plantel ciclotímico. Está aí o Sporting para fazer o teste, depois de Buba lhe ter enfiado um chapéu de três bicos.

5. E olhem para Inácio, a dizer que quer ir ganhar à Luz. Dá gosto ver um treinador falar as­sim, de alto. Na verdade, estou farto daquele discurso de beato, quando os treinadores falam do "respeito pelo adversário", da "concentração" e do "espírito de grupo", do "trabalho co­lectivo" e da força anímica e psicológica do plantei". Um bando de mariquinhas, é o que é. O futebol não se fez para ser jogado por senadores ou gente cheia de cerimónias. Obrigado Inácio. Mesmo que percas, Iná­cio, foi um grande favor que nos fizeste.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 4 Novembro 2006

novembro 03, 2006

Cidades: (3) Jerusálem

Uma vez acordei com o nascer do Sol em Jerusalém – ou seja, lá pelas cinco e meia. Queria começar a cró­nica por esta frase para vos lembrar que o nascer do Sol de Jerusalém, acompanhado desde a chegada da pri­meira luz, é um espectáculo deslum­brante se nos pomos a caminho dos muros da Cidade Velha, e entramos nas suas ruas em busca de um café, de um chá, de um pequeno-almoço sem hora marcada para terminar.

As horas do dia são únicas em cada lugar – o nascer do Sol é único em Jerusalém como no mar Morto, como numa cidade africana, como na minha rua, mas o perfume da «cidade santa» (não há coisa mais estranha pa­ra eu escrever) transporta consigo os sinais da História em cada pedra, em cada muro, em cada rua.

Provavelmente, os amanheceres mais citados ao longo de toda a história da literatura são os de Nova Iorque (ao fim de uma noite) ou os de Jerusalém (ao princípio de um dia). Sempre me alertaram para o amanhecer de Jerusa­lém e para as suas cores, tal como me puseram de sobreaviso acerca de qual porta da Cidade Velha eu devia tomar para que o coração me não perdesse. Mas os viajantes, como se sabe, são in­disciplinados. Há muitas maneiras de falar de Jerusalém, e a maior parte delas começa pelo cerco da História, pela sua cronologia, pela tentação de sucumbir ao seu lado de arena religiosa cristã, ju­daica e muçulmana — precisamente porque cada cidade exige «um ponto de vista», e essa marca, no caso de Jeru­salém, é tão avassaladora que ninguém consegue escapar à imagem.

No meu caso, porém, a cidade foi sempre uma espécie de perdição e de lugar de reencontro. Ao chegar, uma sensação de tranquilidade; ao partir, uma ventania de perturbação. Não me incomodam nem a profusão de sinais religiosos, nem o seu cruzamento, nem a designação de Al Quds (nome árabe dos seus muros), nem as disputas sobre o seu território – sempre a vi como «o lugar de todos», uma cidade de passa­gem, uma praça onde se mistura gente de todo o mundo e, por isso, um dos centros da nossa civilização. Livrarias abertas até tarde, lojas, restaurantes de todas as gastronomias e de todos os cre­dos, templos de todas as confissões, rou­pas de todas as tradições, ruas para ca­minhar. ..

Essa é a minha Jerusalém no alto das colinas. Não, nela não procuro os «lugares santos» (mas eles estão lá, disponíveis), nem a memória fantástica ou atribulada das religiões do Livro. Aprendi, com o tempo e com a Histó­ria, a duvidar das «religiões como factor de paz» e, por isso, a minha Jerusalém, a que persegui ao fim de muitas visitas, é ainda mais desordenada do que as ruas do Bazar nas horas do meio-dia. Li­mito-me a visitar o Muro (Kottël) ' porque cada um de nós deve ter um lu­gar, mas não faço dele o centro do mundo, nem sequer do meu mundo. Depois, parto. Visito os mercados, as livrarias onde se empilham raridades e maquinações («verdades falsas» e «conspirações celestes» nascem sempre onde a religião tem a sua casa terrena), os restaurantes árabes e judeus, bebo Maccabi e Layla («The dirty blonde lager»), as minhas cervejas, assisto ao dia, sinto-me um deles, um dos que passa rente aos muros das ruas antigas ou dos que devia passar em praças aber­tas e pacíficas.

E, sempre que desço a estrada para Telavive, despedindo-me, a fim de apanhar o avião da noite, paro a meio da colina para ver o sol derradeiro a ilumi­nar as cúpulas, os minaretes, o que resta de um mundo que podia ser perfeito.

in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Novembro 2006