janeiro 27, 2005

Perguntas

O eng.º Sócrates anda a propor ao país que o Inglês seja ensinado às crianças portuguesas desde o Ensino Básico. É uma ideia generosa, suponho. Eu não acho mal. Ensinar Inglês aos alunos do Básico não lhes desarruma os neurónios nem danifica partes essenciais do cérebro. Pelo contrário, prepara-os para enfrentar o choque tecnológico.

Eu também colocaria outras coisas no cartaz, mas não vale a pena insistir por agora mais aplicação no ensino do Português e da Matemática, mais investimento no apetrechamento das escolas na área das ciências, substituição gradual da mentalidade literária dominante nas nossas escolas por uma cultura mais científica e mais exigente, menos poder para as corporações pedagógicas e mais atenção prestada aos professores propriamente ditos.

Ao contrário de muito boas almas que andam preocupadas com aquilo que o eng.º Sócrates poderá fazer na economia, caso venha a ganhar as eleições, eu acho que existem outras áreas muito mais sensíveis.Nomeadamente, a educação.

Neste domínio, a experiência do PS no Governo não é muito positiva. À paixão do eng.º Guterres pela educação não correspondeu um esforço prático para alterar o panorama geral. Mais investimento na educação (ou seja, mais dinheiro) não significa, precisamente, decisões mais correctas ou mais bom senso. Se na economia vai acontecer o previsível - gerir orçamentos, cortes na despesa pública, captação de receitas extraordinárias para aliviar o défice e tapar buracos agora revelados - a educação e a cultura podem trazer desilusões ou desastres.

Também aí não são necessárias revoluções. Houve avanços consideráveis nos últimos anos (dos quais a publicação dos rankings das escolas não é a menos interessante), num ciclo infelizmente interrompido pela desgraça dos tristes episódios da colocação dos professores. É preciso continuar a fazer as coisas difíceis que assustam as corporações e a mediania, a cedência. É legítimo que os portugueses queiram saber o que os partidos, entretidos a discutir números em que não confiam, pensam sobre a educação ou o papel do Estado na cultura. É verdade que isto interessa a pouca gente, mas é um aspecto decisivo para caracterizar a "ideologia" que aí vem e o eleitorado precisa de ser informado sobre o assunto. Tanto da parte de Sócrates como da parte de Santana Lopes.

2. António Vitorino deu uma inteligente entrevista ao diário espanhol "El Pais". Nela diz algumas dessas coisas difíceis que raramente se ouvem nas campanhas eleitorais. Vitorino não pode ser o inimputável que, de longe, diz coisas desagradáveis de ouvir. Nem podemos imaginar que Sócrates, quando é necessário dizer essas frases que deviam ser ditas por si, chama sempre alguém para substituí-lo - sobre economia, sobre educação, sobre o estado social, sobre a segurança social. Isso faria dele um boneco de ventríloquo.

3. Francisco Louçã revelou novamente, num debate com Paulo Portas, a sua face de moralista que vem redimir a política portuguesa. Depois da ideia da "superioridade moral da Esquerda", Louçã defende a superioridade moral do discurso kitsch.

Jornal de Notícias, 27 de Janeiro de 2005

janeiro 20, 2005

Ideias & propostas

Santana Lopes queixou-se amargamente, julgo que entre os seus pares e também publicamente (o que, num partido político, é rigorosamente a mesma coisa), de que é difícil apresentar novas propostas ao eleitorado. O ex-presidente Mário Soares pensa exactamente o contrário; declarando que discorda do programa do Bloco de Esquerda, acha, por pirraça e para pôr em sentido o secretário-geral do PS, que há ali uma vitalidade tremenda, que está cheio de propostas e de ideias.

Ora, no actual estado de coisas, ideias & propostas são coisas perigosas para ser deixadas na mão de um político. Então, multiplicadas por vários, essas ideias & propostas passam a ser matéria explosiva. Devia existir um instituto que vigiasse o comportamento de deputados e líderes políticos na posse de ideias & propostas. Elas são uma ameaça para o eleitorado.

Eu suponho, até, que os eleitores não querem muitas novidades. E têm razão. Até hoje, com excepção dos anos de Cavaco Silva, as coisas ficaram a meio. Na política fiscal, na reforma da Justiça e da Administração pública, na "reforma do ensino", na reorganização dos currículos escolares, no ordenamento do território e na política de ambiente, na nomeação das administrações hospitalares ou na mudança da lei sobre arrendamento - tudo tem ficado a meio.

Os governos têm agido consoante as pressões que aparecem na Imprensa e dependem da gritaria das corporações. A taxa de alcoolemia provoca polémica e as adegas estão em pé de guerra? Altera-se já, continuemos a beber nas auto-estradas. Há protestos por causa das scut? Muda-se a proposta. Os estudantes invadem a Reitoria e fecham a universidade a cadeado? Pois é preciso contemporizar, acatar o ruído. Os empresários acham que as ideias têm de ser liberais, mas o Estado tem de ser proteccionista? Força, estamos juntos. Mais exemplos? O ministro da Saúde acha que deve proibir o tabaco nos bares e restaurantes; é uma ideia, uma proposta; mas a medida é tão absurda entre nós que será desrespeitada; logo, a proposta vai a Conselho de Ministros, sim, mas para sair alterada. O que é feito da ideia & da proposta? O eleitorado não quer muitas novidades.

O eleitorado (essa massa excêntrica que aparece nas sondagens) aprendeu, com algum sofrimento, que deve ser desconfiado de cada vez que se fala em ideias novas e em propostas delirantes. Quer apenas saber com que linhas se cose; ou seja, como toda a gente crescida, quer ter uma vida normal. Planear a quatro ou cinco anos. Saber se tem de andar sempre a ler as actualizações ao código da estrada, por exemplo.

Santana e Sócrates, por feitio e necessidade, andam a prometer ao eleitorado mudanças e coisas originais. Está errado. A conta será sempre mais elevada. Os programas eleitorais deviam ser como a constituição americana um máximo de dez páginas curtas e poucas emendas. O resto, a gente entende, confia ou não confia, acha uma palermice ou não.

Outra das razões para haver alguma dificuldade em apresentar propostas inovadoras ao eleitorado é esta a catadupa de originalidades decretadas pelos governos, submetidos à pressão histérica dos media, só tem prejudicado as verdadeiras reformas do Estado e da Administração. Os governos têm vindo a comportar-se como as televisões em horário nobre - mudando a programação para causar burburinho e aumentar a audiência. Como se não se percebesse. De vez em quando, penso se não seria sensato votarmos em quem dissesse que não ia fazer grande coisa.

A abundância de promessas eleitorais inovadoras traduz uma esquizofrenia muito desagradável. Toda a gente quer a vidinha de volta, depois de Fevereiro. Portugal desceu aos infernos. Quer descansar desta pirotecnia e desta piroseira política. Há quem pense como eu, e ache que Sócrates, por exemplo, deve estar caladinho até ao dia das eleições. Neste momento, o calado é o melhor.

Jornal de Notícias, 20 de Janeiro de 2005

janeiro 06, 2005

Histórias de traições

Santana Lopes queria Cavaco Silva para ilustrar um cartaz. Cavaco recusou. Recusando aparecer no cartaz, recusou ao novo líder não só a sua bênção mas também o direito a usar a sua imagem para um fim inegável e legítimo ganhar votos. Houve uma imensa gritaria.

Para uns, Cavaco não teria o direito de se recusar a aparecer nos cartazes, ao lado de outros primeiros-ministros do PSD. Para outros, isto é o sinal de uma hecatombe - Cavaco, que representaria o PSD das maiorias absolutas, o PSD do crescimento económico, da ordem nas ruas e da paz doméstica, recusa dar o seu aval a Santana. Ou seja, Santana tem os discursos, sim, invoca Sá Carneiro frequentemente, o PPD-PSD, a ideia de confronto com a Esquerda, os congressos que se estendiam pela noite fora com discursos emotivos e muito pessoais, a ideia de invencibilidade de um líder jovem e destinado a desafiar os sacerdotes e os senadores, a sua aliança com a "beautiful people" - mas isso não bastaria, muito pelo contrário, para ter Cavaco do seu lado.

Cavaco, dizem os apoiantes de Santana, traiu. Eu admito que isto seja assim e que não haja nada a fazer; se Cavaco não gosta de Santana Lopes, tem o direito de não aparecer nos cartazes; a sua imagem não é propriedade do partido dirigido por Santana Lopes.Por outro lado, ao não aparecer nos cartazes, Cavaco está a dar trunfos ao adversário, seja ele qual for. "Vejam, nem Cavaco quer nada com ele." Os porta-vozes anónimos (não li grandes declarações assinadas por baixo) garantem aos jornais que Cavaco se passou para o outro lado, que colocou interesses pessoais à frente dos interesses colectivos, nacionais - e que traiu o partido.

O país está mauzito, sim. Anda pela pátria uma ventania de insanidade mais do que de mediocridade. Os sociólogos dizem que as elites portuguesas, não raramente, andam descontentes com o poder e com o povo em simultâneo. O povo desconfia do poder e das elites.

O poder detesta as elites e não confia no povo. É normal, a história confirma-o. Mas, de resto, murmura-se muito, as intrigas sucedem-se, cada "mensagem ao país" arrasta consigo mais sinais e insinuações do que frases com sujeito e complemento directo. Espera-se demasiado. Vi muitas vezes, recentemente, usada a palavra "traição". Com isso, volto atrás muitos anos - o uso da palavra "traição" faz parte de um código repelente e abjecto que se encarrega de punir as ideias e a discussão e lhes prefere o silêncio e os pequenos empregos, as nomeações e as recompensas surdas. Em política, a palavra "traição" faz parte de uma gramática associada ao medo.

O filósofo José Gil publicou recentemente um livro ("Portugal, hoje. O medo de existir", edição Relógiod'Água) que devia ser lido. A certa altura, cita Hannah Arendt quando ela fala de "um deserto de medo e de suspeitas, sem leis nem barreiras". Este clima está criado quando se elege a "traição" como uma presença no código do discurso político. Ex-ministros e ex-futuros deputados falam de "traição". Os aliados de Santana Lopes mencionam a "traição" de Pacheco Pereira, de Cavaco ou de Marcelo.

Neste ambiente respira-se mal. Desconfia-se mais, trabalha-se menos, pensa-se pouco, há menos pudor. Os medíocres têm mais oportunidades e, realmente, ninguém sai bem visto.

As histórias de traições são um mau prenúncio. Quem não leu Tucídides, que o faça. Pode não ser para já, claro - mas há mais vida para além de Fevereiro.

Jornal de Notícias, 6 de Janeiro de 2005