outubro 29, 2005

Geografia e felicidade

Agora, que o Inverno se aproxima, eu penso no frio. O frio é um valor civilizacional e fundador. Sem ele, o miserável frio que está a preparar-se para nos atormentar, não seríamos como somos, não teríamos chegado até aqui. Muitas vezes penso que isso não é grande vantagem, mas são momentos de perturbação. Às vezes esquecemos o valor da geografia, essa ciência contrária a todos os optimismos, fundada no inevitável. Não se pode fazer nada contra a geografia - imaginemos, por exemplo, Jacarta às onze horas da manhã de um dia de Outubro: a temperatura ronda os 32 graus, a humidade do ar atinge os 95 por cento, mesmo se uma ligeira brisa se aproximar através das florestas. Florestas tropicais, portanto. E imaginemos, por exemplo, Duesseldorf. Às onze horas da manhã de um dia de Outubro deste ano, a temperatura chegou aos 16 graus e a humidade do ar não ultrapassou os 40 por cento. Isso é um factor determinante no desenvolvimento dos países. Enquanto um indonésio está condenado àquele clima e, portanto, Ihe é mais difícil trabalhar ordeira, disciplinada e até proveitosamente, um alemão de Duesseldorf não terá tanta dificuldade para enfrentar o seu trabalho. Se eu vivesse na Martinica seria uma tortura. Como já vivi em Sal­vador, na Bahia, sei do que falo: costumava levantar-me às cinco da manhã para trabalhar até às onze, iniciando um intervalo que ia até às quatro da tarde, quando o calor se tomava mais suportável. Pelo meio, nada.

A geografia ensina-nos que climas frios ou temperados favorecem o traba­lho disciplinado; climas quentes e tropicais favorecem a preguiça, a dolência e a contemplação. Quer dizer: a praia, a cerveja fresca e a libido. Nada de mau -todos gostamos disso. Mas sabemos que nem sempre pode ser assim. A menos que nos habituemos desde pequenos.

Por isso penso no frio e nas minhas cidades ideais para enfrentá-lo. Reykja­vík, a capital islandesa, é uma delas. Quando visitei a Islândia pela primeira vez, em 1983, não havia televisão às quartas-feiras e a venda de álcool estava limitada aos fins-de-semana. As pessoas davam passeios em volta da cidade, recolhiam a casa para serões prolongados pelo Inverno polar, percorriam de bicicleta os trilhos desenhados ao longo das ruas, viajavam de autocarro em redor da ilha. No centro da cidade descobri, em tempos, um café onde se podia passar uma parte da manhã lendo os jornais do mundo inteiro (pendurados na parede, um serviço gratuito para os frequentadores), à frente de um bule de café e de um cinzeiro. A biblioteca central de Reykjavík, para uma malha urbana que contava cerca de 80 mil habitantes, cedia cerca de 30 mil livros por empréstimo, mensalmente. Voltei dez anos depois e muito tinha mudado: já havia televisão todos os dias e as restrições ao álcool tinham acabado, havia grandes discotecas e bares (um deles, curiosamente, dirigido por Portugueses) e o fenómeno Bjork tinha alterado o próprio reconhecimento do país em todo o mundo. Não deixara de ser uma das minhas cidades, e até es­tava mais próxima do “modelo latino”. De alguma maneira, cansados de civilização, domínio dinamarquês, disciplina Viking, noites polares, agasalhos e restrições morais, os islandeses alargaram a malha dos deveres e dos prazeres de modo mais conveniente. A criminalidade tinha aumentado ligeira e proporcionalmente. O custo de vida mantinha-se perigosamente alto, tal como os índices de educação, cultura, leitura e frequência da bela biblioteca central de Reyk­javík, desenhada pelo finlandês Alvar Aalto. Ao fim de uma semana descobri que eles apenas tinham adaptado o princípio da realidade ao princípio do prazer, sendo ligeiramente mais permissivos e menos luteranos. Quando penso no frio civilizador penso na Islândia e nos países do Norte (Noruega e Suécia, especialmente) e penso no design nórdico, na elegância das suas florestas e das suas casas, até na frescura das suas cervejas e no silêncio das suas noites.

Mas, mal vem a Primavera, mal desponta aquele ardor na pele, sujeita ao primeiro sol tépido empurrado pelas aragens do Mediterrâneo, sou tomado por uma vontade desproporcionada e absurda de me esquecer da civilização e de esquecer tudo o que o bom senso ensina. No fundo, reconheço que tenho saudades da minha barbárie do Sul. Não fui feito para a civilização acima de determinado grau.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Novembro 2005

outubro 28, 2005

Frango Gaúcho



Desta vez, uma receita da cozinha caseira do Sul do Brasil: galeto no arroz de tomate, polvilhado de parmesão e regado com azeite. Um compromisso entre a Serra Gaúcha e o pampa.




Uma das coisas mais notáveis da cozinha gaúcha do Rio Grande do Sul brasileiro, é o galeto. Vamos e venhamos: é irresistível. O pequeno franguinho (conhecido como galeto al primo canto, dado que é deglutindo mal da os primeiros pas­sos atrevidos) passa pelo tempero e, logo depois, pelo forno ou pela brasa, para depois nos ser servido - no prato - na companhia de uma po­lenta suave, frita com linguiça, ou com uma massa fresca cozinhada como se fazia na velha Itália, transportada para as serras do Brasil austral por emigrantes sábios e saudosos. Recomendo a experiência. O verdadeiro gaúcho das serras, seja de onde for, reconhece essa palavra mágica e as orbitas mostram o embevecimento: enchem-se de lagrimas, creio que de apetite. Há uns tempos, no Porto, encontrei Luiz Felipe Scolari; eu tinha escrito uma reportagem biográfica sobre ele há uns meses, ainda antes do Euro 2004 e, confesso, não estava má. Contei-lhe em poucos minutos que tive de percorrer aquelas estradas do Rio Grande, de Canoas e Porto Alegre a Passo Fundo (onde nasceu). Pelotas e Caxias do Sul (onde também treinou), buscando testemunhos, reconstituindo os cenários da sua adolescência e dos primeiros tempos como treinador, Digamos que é um herói local. Ele sorriu, vejam bem –o que é uma raridade. E perguntou, com o sotaque em dia: "E tu comeste galeto?" Baita tché, disse eu, e que galetos!
O segredo do galeto da Serra Gaúcha é a sua pouca idade e o tratamento que recebe no local - só acessível aí, confesso. Ainda não consegui comer um verdadeiro galeto gaúcho fora do seu mapa original.

De modo que proponho uma outra receita, obtida em Pelotas, naquilo que é o pampa, aquelas extensões de verde e neblina onde a história parece prolongar-se mais tempo, misturando-se ao Uruguai, à Argentina, ao Paraguai. A cozinha destas paragens tem toques de várias origens, das cozinhas do Norte de Itália (do venetto) às saborosas lareiras açorianas e minhotas. Antes de os analfabetos falarem de «cozinha de fusão», já as panelas domésticas, em todo o mundo, praticavam arte sem o saberem, modificando tradições, alterando receitas, temperando ortodoxias.

A receita deste mês e um desses casos, completamente luso-italiana.
Comece-se por tomar um frango e escolherem-se as partes nobres, que devem fritar-se num refogado com uma cebola (grande) picada e uns cinco dentes de alho. Quando digo «fritar-se» isso significa que os pedaços de carne (grandes: coxa, peito, perna) devem tingir-se daquela acertadíssima cor que denuncia a passagem demorada pelo azeite quente. Passada essa fase, pelem-se oito tomates maduros, cortem-se em porções pequenas e misturem-se a carne, juntamente com um nadinha de vinho branco. Pode optar-se, também, por duas latas de to­mate inteiro ou em pedaços. Mal o tomate se desfaça (coisa de cinco minutos em fogo acertado e insistente), acrescentemos água bastante para providenciar um caldo cremoso
- coisa que se obtém ao fim de dez minutos de fervura. Nessa altura, lavem-se duas chávenas de arroz agulha numa tigela de modo a conseguirmos livrar-nos da poeira dos seus grãos, mas não das suas gomas essenciais, que hão-de tornar o conjunto final mais apetitoso. Cozinha-se por dez minutos, ou nem tanto, temperando-se de sal e pimenta, de modo a que o grãozinho não perca a sua personalidade de, desfazendo-se. Uns minutinhos antes, pique-se alguma salsa para a panela. Ao servir, no prato, disponham-se primeiro as peças de carne que cabem a cada convidado. Depois, ao lado, o arroz sobrevivendo no caldo de tomate. Sobre esse arroz, em ca­da prato, rale-se uma boa quantidade de parmesão rijo e cheiroso; deixe-se cair um tio de azeite; esprema-se um pouco de limão. Coma-se. O mundo merece o nosso apetite por uma receita caseira desse grande Sul brasileiro.

Ingredientes
+ 1 kg de frango do campo, apenas as «partes nobres»
+ 8 tomates maduros e sem pele
+ Sal e pimenta
+ Salsa
+ 2 chávenas de arroz agulha
+ 4 colheres de azeite
+ 1 cebola
+ 5 dentes de alho
+ Meio copo de vinho branco
* Queijo parmesão para ralar
+ Limão para espremer


in Atlas de Cozinha - Revista Volta ao Mundo – Novembro 2005

outubro 27, 2005

O sebastianismo

O dr. Soares acha, com discutível sinceridade, que há por aí um "sebastianismo revanchista de Direita" que ameaça a nossa existência e que pode, portanto, subverter o essencial do regime. Não é só ele a dizê-lo. A lengalenga vai ser repetida durante semanas.

Na verdade, o "sebastianismo revanchista de Direita" existe no discurso do dr. Soares e de alguma parte mais obsoleta dos seus apoiantes. O papão vai ser agitado sem parcimónia. Se ele existir, deve combater-se com palavras, e devem ser palavras duras, escolhidas - não importa que não queiram dizer nada, ou que não tenham correspondência na realidade, desde que causem esse efeito irremediável de estarmos perante um perigo fatal. Com um bom inimigo pela frente, o combate será mais vibrante; à falta dele, invente-se um.

O que pretende o "sebastianismo revanchista de Direita"? Subverter o regime, derreter o semipresidencialismo, castigar os portugueses, ameaçar a liberdade, acabar com a "coesão social". Ora, ninguém acredita numa única das ameaças, a começar pelos próprios. Vivemos num país normal em que há um governo que resulta de uma maioria absoluta no Parlamento e cuja taxa de aprovação é bastante superior à média dos últimos cinco anos; José Sócrates só não renovará o mandato se malbaratar esse capital de confiança. Vamos a pormenores as aulas começaram a horas e a contestação social (leiam os jornais europeus) não é maior do que a registada em outros países da União; a guerra das corporações profissionais cessará, mais tarde ou mais cedo, quer por meios legais quer por falta de apoio popular (fundamental para a sua visibilidade); o Orçamento de Estado vai, necessariamente, passar na Assembleia com críticas da Esquerda e da Direita; o agravamento da taxa de desemprego estará muito próximo dos índices de países próximos; o "combate ao défice" é uma realidade incontornável de qualquer programa de Governo por muito que a expressão esteja gasta e adulterada. Existem as chamadas questões endémicas e históricas: os números dramáticos da pobreza, a taxa de alfabetização, os problemas da produtividade e a reforma e modernização da Administração Pública. Para isso, existem os governos e existe o tempo.

O dr. Soares não pode, com honestidade, repetir a afirmação de que, se não fosse dar-se o caso de Portugal ser membro da União Europeia, os militares já tinham organizado um golpe. Foi uma brincadeira, todos acreditam. Mas a vida não está para brincadeiras, por muito que se possa apreciar a herança que o ex-presidente da República deixou ao fim de dois mandatos e de uma vida dedicada à política. Sinceramente, quase ninguém sucumbe a ameaças desse género. A dramatização, a invocação permanente da ameaça do fascismo, a má-fé contra Cavaco e a sua demonização, as acusações de "saudosistas de Salazar", são argumentos de sociedade recreativa e não merecem ser usados por alguém com a sua biografia.

O discurso de Mário Soares foi o anúncio de um novo tipo de sebastianismo a declaração de que vem para unir os portugueses e para nos salvar de uma catástrofe. Só que poucos acreditam no desenho dessa catástrofe. E, quanto a estarmos todos unidos, parece-me um exagero.

P.S. Almeida Santos dizia, à TSF, que Cavaco tinha sido bom primeiro-ministro, mas que não tinha nenhuma experiência como presidente da República; isso era mau. Pelo contrário, Mário Soares tinha dois mandatos como presidente da República, o que significava mais experiência; e que isso era bom para "a mudança". Não sei o que mais hão-de inventar.

Jornal de Notícias - 27 de Outubro 2005

outubro 20, 2005

A propaganda de Cavaco

Tem havido boa propaganda para Cavaco Silva. Em primeiro lugar, a "frente nacional anti-Cavaco", com todos os candidatos a perfilarem-se contra a temível candidatura da Direita. O frentismo contra o "regresso da Direita" e do "homem abominável" constitui um absurdo e um abuso, mas é, antes de mais, uma distracção deplorável e um tempo de antena suplementar distribuído à candidatura de Cavaco Silva. O soarismo tout-court, a oposição entre o "Soares fixe" e o "Cavaco hirto", entre a máscara da bonomia de Soares e a sisudez quase implacável de Cavaco - são imagens banais e populistas, boas para sociólogos de algibeira, que gostam de discretear sobre a diferença entre o avô compreensivo e o pai severo. A somar a isso, a herança do "antifascismo histórico" e repetitivo, já manifestado por Almeida Santos, por exemplo, não deixa de ser uma tecla afinadinha mas desajustada. A Esquerda tradicional e conservadora encontrou um adversário e, melhor para ela, um inimigo. Um adversário serve para discutir; um inimigo é para abater. Depois das últimas eleições de Fevereiro, isto prova que não aprenderam nada - que não há uma só cor, que não há apenas um lado da razão e que não têm nenhuma superioridade moral a defender. Mas o discurso continua.

Outra boa propaganda para Cavaco tem sido a discussão, travada em surdina, no interior do CDS-PP. Provavelmente, apenas para consumo interno, evidentemente, mas que pode dar uma boa ideia acerca do velho e pequenino ódio de classe contra o filho de Boliqueime. A Direita chique e a Esquerda chique encontram-se nesse abraço de irmãos contra o "terrível regresso". Daqui a pouco, estarão a falar do guarda-roupa de Cavaco.

Curiosamente, a pior propaganda vem da área do PSD, com o delírio neo-presidencialista manifestado, por exemplo, por Morais Sarmento. O que a sua entrevista ao "Diário Económico" veio recolocar em discussão é o quase esgotado tema dos "poderes presidenciais". O tom não é estranho há uma boa margem de ressentimento contra Cavaco no PSD neste capítulo. Na verdade, há pouco a dizer sobre os poderes presidenciais: estão definidos com clareza meridiana na Constituição: basta ir lá. Ao falar dos "poderes presidenciais", conviria lembrar quem duvidou da própria Constituição para mencionar, a propósito de tudo e de nada, a "magistratura de influência" e, ao mesmo tempo, se esquece do objectivo das presidências abertas do segundo mandato de Soares. Dizer que essas "presidências abertas" não violavam os deveres do presidente é esquecer o que elas significaram realmente: uma tentativa clara de ultrapassar aqueles "poderes presidenciais" na altura em que havia uma maioria absoluta.

O medo de Cavaco gera monstros entre os traumatizados de várias origens. Se Cavaco Silva ganhar, eles sabem, interromper-se-á um ciclo político que manda conceber Belém como um centro de conspiração contra São Bento. O desejo de intervenção desse frentismo ainda não se manifestou, apenas porque os resultados eleitorais de Fevereiro são absolutamente sui generis eles recolocaram o país na normalidade, recusando a deriva populista de Direita e castigando a mediocridade de um primeiro-ministro que devia ter saído de eleições e acabou por ser decidido em Belém. O aviso está nas entrelinhas desse discurso. E qualquer governo, mesmo o de Sócrates, sabe que terá mais hipóteses de prolongar a sua vida útil com um Cavaco que resistiu a "presidências abertas" do que com a "magistratura de influência" de Soares.

Jornal de Notícias - 20 de Outubro 2005

outubro 13, 2005

Preocupações e absurdos

As autárquicas são um assunto encerrado. Não houve grandes festejos nem, suponho, enormes depressões - mas apenas um ténue "movimento pendular" que não se cansou de tirar ilações dos resultados de domingo, aqui e ali, sempre mencionando a diferença entre "eleições locais" e "resultados nacionais". Compreendo a diferença, mas não entendo a preocupação.

Curiosamente, fazendo o balanço, quem primeiro buscou nas "políticas nacionais" do Governo de Sócrates uma justificação para a derrota eleitoral do PS, foi, justamente, um dirigente socialista de Lisboa. É fácil sucumbir a essa tentação para os socialistas, as medidas do Governo prejudicaram o resultado do partido; para a Oposição, o castigo dado pelos eleitores, votando no PSD e na CDU, tem a ver, necessariamente, com as medidas do Governo.

As coisas não são necessariamente assim. Como se não bastasse relembrar que Cavaco foi "derrotado nas autárquicas", pouco antes de mais uma maioria absoluta, ainda é preciso lembrar que Sócrates tem sobre Guterres uma vantagem inegável - a maioria absoluta. Que se saiba, só os partidos minoritários e o dr. Soares são contra as maiorias absolutas, o que não tem relevância absolutamente nenhuma.

Ora, a maioria absoluta de Sócrates é um dado essencial para compreender este período que vai das autárquicas às presidenciais. Obtida em confronto com um adversário enfraquecido e isolado no seu próprio partido, essa maioria não tem dimensão política ou ideológica; é uma "maioria sociológica", como o provam os resultados eleitorais de Outubro, em comparação com os de Fevereiro. O eleitorado português, além de ser pouco previsível, é esperto. E, pior revela alguma inteligência. Em Fevereiro, votou num Sócrates que prometia não incomodar muito e inverter a marcha de disparates em que se transformara o último ano do PSD no Governo. Mas não deu a Sócrates nem ao PS a alegria de uma "reprise"; pelo contrário, olhou bem para os candidatos, viu o que estava em jogo e votou em conformidade.

Depois de anos de fugas (Guterres e Durão Barroso) e de intranquilidade (Santana), toda a gente percebeu que, mais défice ou menos défice, mais sindicatos na rua ou mais inflamação nos discursos, a pátria precisa de sossego e os portugueses de retomar a vidinha. Sim, eu sei que este retrato é conservador. Mas não convém iludi-lo. As presidenciais vão confirmá-lo.

2. Fico surpreendido com a forma cordata, distraída e envergonhada como se tem vindo a receber a absurda teoria presidencial acerca da "inversão do ónus da prova" em matéria fiscal, sem avaliar os riscos que daí decorrem. A inversão do ónus da prova, seja qual for a circunstância, é um ataque aos direitos e à dignidade dos cidadãos - pelo Estado ou diante do Estado. E, conhecendo a larga tradição da máquina de suspeitas que o Estado português é capaz de engendrar, além da fragilidade política da Administração Fiscal, não se espera nada de bom.

Até porque se há inversão do ónus da prova em matéria supostamente fiscal, "porque quem não deve não teme", o que impede o Estado de instalar videovigilância onde lhe apetecer, de utilizar as câmaras da Brisa para controlar a velocidade e a identidade dos condutores, de ameaçar os cidadãos com castigos exemplares, caso não provem que não foram eles que atentaram contra a moral, de identificar os cidadãos que leram livros de Guy Debord ou de Céline, de verificar quem fumou marijuana ou Montecristo, de identificar sodomitas e versilibristas, de manter ficheiros informáticos de quem sofre de asma ou de dependência de álcool, etc., etc.? Nada nem ninguém. Sabem porquê? Porque "quem não deve não teme".

Começa-se por algum lado. Dificilmente se acaba o desfile de coisas absurdas que acontecem depois.

Jornal de Notícias - 13 de Outubro 2005

outubro 06, 2005

A teoria dos cartões

Na campanha de há quatro anos para as autarquias, houve gente que - com razão e apesar do ambiente de alucinação geral - conseguia dizer que as autárquicas não serviam para mostrar um cartão amarelo ao governo. O eng.º Guterres, como sabem, não pensava assim e, mencionando vagamente o pântano, a derrota eleitoral e a enormíssima falta de pachorra (absolutamente compreensível) para se manter em funções, decidiu partir.

Como se sabe, os resultados foram dramáticos. Para a Esquerda e para a Direita. Mas sobretudo para a nossa sanidade mental.

Se se recordarem mais um pouco, a teoria do "cartão amarelo" para o governo em eleições autárquicas tem sido defendida em função de se estar no governo ou na oposição. Jorge Coelho já defendeu o princípio do "cartão amarelo" (e mesmo do amarelo alaranjado) e hoje, como se compreende, é um dos seus críticos mais acérrimos. Ainda não vi o dr. Marques Mendes mencionar o "cartão amarelo" mas, seguramente, guarda-o no bolso, esperando pelos resultados. O dr. Mário Soares, por exemplo, antes de se candidatar a Belém, quando era (há apenas três curtos meses) um notório militante anti-Sócrates, também defendeu que o governo, apesar da maioria absoluta, só poderia chegar ao fim caso ganhasse as autárquicas deste fim-de-semana. Não vale a pena enumerar cavalheiros, à direita e à esquerda, que defendem essa teoria.

Por mim, acho-a fraca. Autárquicas são autárquicas e, em função das sondagens que se vão conhecendo, é melhor que não se lancem foguetes para o ar. As coisas estão muito ela-por-ela. Mais do que isso, que é apenas um pormenor, o que interessa às pessoas de Lisboa é rigorosamente indiferente aos eleitores de Felgueiras; de certo modo, é irrelevante para a política nacional saber quem ganha em Vila Nova de Cerveira ou em Alter do Chão, para além de contribuirem para o chamado "total nacional". Aliás, estive recentemente em Vila Nova da Cerveira e permito-me dizer que achei a vila tremendamente simpática e bem organizada (além de se continuar a comer maravilhosamente no As Velhas, já agora). Por mim não mudava quase nada. Ora, numa destas noites de campanha, enfrentei, no centro da vila, duas concentrações simultâneas de militantes enfurecidos que, além de perturbarem a noite tranquila do Minho, reivindicavam a vitória no próximo domingo. Uma das candidaturas gritava, a plenos altifalantes, que tinha chegado a altura de "mudar"; a outra falava em continuar. Não percebi bem porquê, mas isso compreende-se porque não conheço, de perto, os excitantes pormenores da vida autárquica de Cerveira. Em que pode a eleição municipal de Cerveira mostrar-nos o caminho para os resultados nacionais? Em nada. É António Costa um bom ministro? Certamente que sim. Isso bastará para eleger Francisco Assis no Porto? Duvido. É Rui Rio um bom autarca? Sim, seguramente. Se for reeleito, isso significa que o governo falhou na colocação de professores? Não me parece.

2. A vida política precisa de um pouco de racionalidade, evidentemente. De contrário, qualquer um teria o direito de desatar à gargalhada depois de ver Bárbara Guimarães e Carilho distribuindo rosas em Lisboa. Coisas sérias se Isaltino ganhar em Oeiras, se Fátima Felgueiras regressar à câmara, se Valentim Loureiro se mantiver em Gondomar, isso não significa que esse risco de racionalidade foi pisado. Significa, sim, que a justiça andou mal e que não andou a tempo. Podemos indignar-nos, sim, mas a indignação banalizou-se e é conveniente que sejam mesmo os tribunais a tomar as decisões que alguns gostariam de tomar nas ruas. Até lá, aguentem-nos. Votem neles, ou não. É a vida.

Jornal de Notícias - 6 de Outubro 2005

outubro 04, 2005

Invenções para recordar o Índico


Há coisas que passam e não voltam, nunca voltam, nunca regressam àquele terraço diante do indico. Mas várias vezes tenho tentado reproduzir um caril de frango de Quelimane, como esse. Nunca consegui.


Posso contar-lhes, vagamente, que o melhor caril da minha vida não foi comido na Índia mas em Moçambique, na deliciosa Quelimane, numa tarde de calor e chuva, em Maio de 1995. A imagem de Quelimane (e podia ser de Inhambane, a bela, a terra do poeta Rui Knopfli) sobrepõe-se-me ainda a todas as outras dessa viagem a Moçambique: eu estava - depois de uma viagem de horas por estradas de pó - sentado a uma mesa de uma barraquinha de rua, a beber Black Label. Bebi de mais. Durante o resto da noite bebi mais, e uma das razões tinha a ver com aquele aviso sinistro. derrotado, medíocre e mesquinho; “Cuidado com a malária, não bebas whisky com gelo.” Eu bebi whisky com gelo. Acordei. no dia seguinte. com a sensação de o mundo ter, vagamente, recomeçado diante daquela visão do Indico, azul e brilhante, vasto, cheio de barcos, de redes de pesca, de miúdos que se escapavam por entre as pedras do cais, brincando a meio da manhã. Se não fosse o livro sobre o qual tinha acabado por adormecer, eu próprio teria pensado que nunca saíra de Quelimane antes daquela manhã. Viajar tem perdições e reencontros, demónios e ventanias. Eu gostaria de ter reencontrado aquilo que nem sequer perdi, mas nunca cheguei a esse ponto. Limitei-me a saborear. Uma das coisas que saboreei em Quelimane foi um caril espantoso - sei que é irrepetível, como grande parte das boas coisas que vêm com as viagens. Tinha aquele aroma, indescritível, o sabor, sem dicionários; as texturas, sem gramáticas. Limitei-me a come-lo em casa de uns amigos, num terraço iluminado pela derradeira luz do dia, acompanhado de refrigerantes e cerveja Manica. Só quando provava uma bebinca extraordinária (aquele bolo de sete camadas) pedi a receita. Era tarde. Há coisas que passam e não voltam, nunca voltam, nunca regressam àquele terraço diante do Indico - e eu provavelmente também não.
Mas varias vezes tenho ten­tado reproduzir um caril de fran­go de Quelimane, como esse. Nunca consegui. Faço o meu.

Começo por aquecer o óleo numa panela de fundo firme espesso; junto uma cebola e dois dentes de alho para um refogado profundo, em logo lento, que demorará pelo menos cinco minutos, até que a cebola se desfaça e não se distinga dos alhos picados. Du­rante esse tempo, num almofariz misturo e esmago ligeiramente sementes de coentro, duas colheres de chá de cardamomo, quatro cra­vinhos, cominhos e um pauzinho de canela, alem de três ou quatro malaguetas bem picantes. Daí resulta uma poeira a que acrescento o pó de caril e um nadinha de gengibre raspado.
Os pedaços do frango estão, nesta altura, preparados e limpos: passo-os por farinha e junto-os ao refogado; deixo que fritem e mexo algumas vezes, durante cinco minutos; cubro-os então com as especiarias, mexo novamente e junto uma chávena de chá de leite de coco (o ideal, eu sei, é coco raspado e espremido no momento, mas não se pode ter tudo) e cerca de 300 gramas de tomate maduro, sem peles e sem grainhas, passado pelo liquidificador (triturador). Acrescento ainda duas chávenas de água e junto uma pitada de sal. Tapo e deixo cozinhar em fogo muito lento por cerca de 45 minutos ou ate que o frango esteja “naquele ponto”.
0 tomate é uma contribuição moçambicana e europeia àqueles odores e texturas que vêm da península das monções; sei que é dispensável, mas ficou a marcar-me a paleta de cores.
Escuso de dizer que acompanho o caril, cremoso, com um arroz branco, cheio de vapores e de perfumes: basmati estará bem, mas não é necessário. Estamos a falar de África e de Moçambique, onde essas ninharias não entram pela porta das mercearias.

Ingredientes
+1 frango
+ 1 colher de sopa de coentro em grão
+ 1 colher de chá de cardamomo
+ 4 cravinhos
+ 1 pau de canela
+ 1 colher de chá de cominhos
+ 1 cebola (roxa de preferencia, muito picada)
+ 2 dentes de alho
+ 4 malaguetas
+ 1 colher de chá com raspas de gengibre
+ 5 colheres de sopa de óleo
+ 300 g de tomate maduro
+ leite de côco

in Atlas de cozinha – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2005

outubro 03, 2005

O mapa de Svolvaer

Phileas Fogg, a personagem de Julio Verne, segurava num deles - num mapa. Por ele desenhou a sua viagem em redor do mundo. Quando, pela primeira vez, cheguei a Snaefellsjokull, o lugar onde Verne imaginava que se desceria ao centro da Terra, eu levava esse mapa comigo. É vaidade pura, sim - mas também é a verdade pura. Aquele mapa onde Phileas Fogg assinalou passagens, montanhas, ventos, velocidades e paragens, andou sempre comigo de viagem em viagem, guardado entre as coisas que nunca perdi ao longo da vida. Perdi outras. Perdi muitas. Mas nunca esse mapa.

Lembro-me de vários mapas, aliás. Por um deles, pendurado numa sala esbranquiçada, com cheiro de pó e de cal, estudei a geografia portuguesa na altura em que havia províncias ultramarinas. Também aprendi o que eram elevações, penínsulas, istmos, vales, depressões, planaltos, apeadeiros ferroviários e afluentes. O mundo alterou-se substancialmente mas nunca esqueci esses nomes.

Outro mapa fundamental encontrava-se, para minha felicidade, numa agência de viagens da Wasteels, em Lisboa, bem perto de Santa Apolónia - e eu teria vinte anos, aproximadamente, ou menos. A primeira vez que me aproximei daquele funcionário discreto, sorridente e tímido, pronunciei erradamente o nome de uma cidade onde queria ir: Svolvaer (um dia explicarei porque Svolvaer). Ele, que teria mais uns dez anos do que eu, não perdeu o sorriso e invocou, vagamente, o muito que havia a fazer naquela altura do ano. Eu queria comprar o inter-rail (era o nosso verdadeiro passaporte europeu), mas queria ter a certeza de que o passe ferroviário me garantia a entrada (triunfal, admito, mas só na minha imaginação) em Svolvaer. Ele não pestanejou. Disse apenas: "Pode, com um pequeno suplemento. Ai uns dois contos para a viagem a partir de Trondheim." Senti-me derrotado. Ele sabia onde ficava Svolvaer, mencionava Trondheim e, se fosse preciso, estou hoje em crer, desenharia com o lápis toda a geografia da Noruega, incluindo aquela devassidão de fiordes e de ilhas escuras. Comprei o inter-rail (mais os suplementos de barco) e a minha via­gem levou-me a Svolvaer. Devo isso aquele funcionário da Wasteels.

No ano seguinte, em Junho, entrei de novo na agenda. "Lembro-me de si" -, murmurou ele. "Quis ir a Noruega. Este ano vai onde." Falei longamente sobre o Norte da Europa e mencionei a Laponia, a Carélia, o Báltico, a Finlândia. Puxou de um mapa e estudámos o percurso durante vinte minutos. Era um mapa excelente. Paguei o inter-rail e os suplementos de ferries (da Silja e da Viking Line, lembro-me ainda). Voltei no ano seguinte - faltava-me conhecer a Suécia, no fim de contas. Ele abriu o mesmo mapa a mi­nha frente, alisou a Suécia com a mão esquerda e, com a direita, pareceu que desenhava os percursos dos gansos que acompanhavam Nils Holgersson na Viagem Maravilhosa, de Selma Lagerloff, atravessando campos e estacões do ano. Com o guia ferroviário estudámos conexões, travessias de canais e toda a geringonça que os utilizadores de inter-rail conhecem - e que me permitiu, nesse ano, bater o meu recorde anterior de noites seguidas dormindo em comboio, que ia em 19. Nesse ano, passei a 22. Como prémio por três anos de fidelidade, sai da Wasteels com aquele guia ferroviário precioso - foi uma bela oferta. Dai em diante, com o guia completo dos comboios europeus, eu podia orientar-me pelo mundo fora.

Só ao arrumar as coisas da viagem na mochila que me acompanhou durante seis anos de ferrovias do mundo inteiro reparei que, no interior do interior do guia (ligeiramente mais pequeno do que as Páginas Amarelas), estava, dobrado, o mapa em que, Verão após Verão, o senhor da Wasteels e eu tínhamos dese­nhado a viagem, antes de ela acontecer. E um cartão: "Boa viagem." Mais nada.

Vinte anos depois dessa viagem, ainda tenho o mapa. Não o perdi por acaso. Perdi muitas outras coisas na minha vida. O mundo alterou-se, as fronteiras mudaram, as ferrovias desapareceram ou modernizaram-se, mas esse mapa recorda-me, por um traço a lápis, a localização exacta de Svolvaer, na Noruega. Tem outras anotações, mas nenhuma como essa me recorda a gentileza e a delicadeza de um grande agente de viagens de que nem sei o nome, mas a quem agradeço vinte anos depois.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Outubro 2005