abril 30, 2007

Dos benefícios da denúncia

O grande problema da arte de governar são as boas intenções. É essa a infelicidade dos governantes. Não o digo com ironia; as boas intenções animam a vontade de alguns ministros (não de todos), de muitas pessoas e de uma parte da administração pública. Admitir o contrário seria tão deprimente que melhor seria penalizarmos toda a vida em sociedade. E retirarmo-nos.
A ideia-base que anima o espírito da administração pública é a de que os homens são naturalmente bons ou honestos e que, portanto, contribuem à sua medida para o bem geral, não sujando as ruas, pagando os seus impostos, respeitando as leis, educando os seus filhos no respeito por esses “valores universais”, contribuindo para melhorar a sociedade e evitando assassinar o seu próximo. Em contrapartida, o Estado e a administração pública asseguram cuidados básicos de saúde, providenciam a segurança nas ruas para proteger as pessoas honestas e punir os criminosos, investem o dinheiro dos contribuintes não o gastando em vão, asseguram ensino público – e facilitam a vida.

Poderíamos abordar o “contrato social” de outra forma, mais optimista. Mas somos desconfiados. Muitas vezes, a desconfiança é o único valor estável que existe na relação entre o Estado e o indivíduo. Habituado à impunidade dos criminosos que não são castigados pela justiça ou ao mau exemplo dos governantes, observando o enriquecimento ilícito à custa do Estado ou à sua sombra, assistindo ao mau governo dos recursos comuns, castigado pela incompetência da burocracia, o cidadão tem toda a legitimidade para desconfiar do Estado, para lhe desobedecer em determinadas circunstâncias ou para, no geral, ironizar sobre as boas intenções dos governos.

A corrupção é um dos males que ataca a sociedade e o Ministério da Justiça publicou um documento, destinado aos servidores públicos, onde recomenda a promoção de “uma cultura de legalidade” ou “agir sempre com isenção e em conformidade com a lei”, devendo os funcionários denunciar situações de que tenham conhecimento e que configurem casos de corrupção. Não é original a tentativa de promover este tipo de manuais, nem os funcionários públicos (e os cidadãos em geral) esqueceram esses princípios. Eles são claros e emanam de um bom senso geral acerca da justiça. Mas o Ministério da Justiça quer mais: que os funcionários públicos sejam não apenas incorruptíveis mas, também, denunciantes da corrupção alheia, em nome do bem comum. Aqui, entramos no mundo das boas intenções.

Lançar um combate pela moralização da vida pública pode ser hipócrita, dado que já existem leis sobre o assunto e o Estado não tem que pregar moral. Esquecer que Portugal tem uma larga tradição de denúncias privadas, mesquinhas, de vizinhos maledicentes e de velhas taradas, é ainda mais grave. Exemplos? A denúncia de judeus velhos e cristãos novos foi o que se sabe. A denúncia por maldade. A denúncia durante a I República. A denúncia de “reaccionários” durante a revolução. A denúncia vergonhosa da vida privada dos outros para alimentar a inveja e as primeiras páginas. A denúncia à PIDE. A denúncia aos padres e à Inquisição. As cartas anónimas indignas que circulam na Administração Pública. E a perseguição a quem se queixa com bases legais. A queixinha avulsa. A queixinha por método, a denúncia por hábito. Controlar a vida dos vizinhos e combater os vícios dos outros. Basta conhecer um pouco de história para ficar aterrado.

A seguir, a inversão do ónus da prova diante de denúncias improváveis. Ou o fomento da vigilância colectiva, que assolou todas as sociedades e alimentou todas as caças às bruxas. Dir-me-ão, convictamente, que o Ministro da Justiça não quer isso e está ciente desses riscos. Eu sei. Mas as boas intenções são a infelicidade dos governantes. E acabam por ser a infelicidade dos cidadãos.

in Jornal de Notícias – 30 Abril 2007

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abril 28, 2007

Ser discreto


A Commenda continua a ser uma das referências do Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Bonita e acolhedora.

Há um livro de Georges Simenon, 'La Guinguette à deux sous' (traduzido por 'A Taberna dos Dois Vinténs'), em que o comis­sário Maigret, seu e nosso herói, comenta a vida desses pequenos restaurantes e tabernas onde, surpreendentemente, acaba por se comer bem – e por descobrir que a arte da cozinha não tem um padrão fixo.

Muitos leitores escrevem perguntan­do se não há "pequenos restaurantes" cujo "preço médio por refeição" se fique aquém dos vinte euros, ou, quem sabe?, dos quinze, mas que possa e deva ser visitado. Claro que há. Muitos, a lista é vastíssima. Em alguns casos, merecedora de pausa, de visita e de encómio. Tenho por eles uma ternura desregrada e tento fazer listas por região, enumerando os seus "pratos do dia", as suas raras invenções (não é essa a ideia quando se vai a um desses restaurantes) e o seu ambiente "tradicio­nal". Voltarei ao assunto. Mas, agora, desvio-me dele com pressa, pois venho do Centro Cultural de Belém onde A Commenda continua a ser uma das referências.

Conheci-o por meio de um 'buffet' de cozido à portuguesa que se servia aos domingos – para substituir ou para fazer de 'brunch' – e não me arre­pendi na altura. Voltei outra vez para aquilo que a gente faz no CCB: encontrar-se. Ou com a músi­ca, ou com as exposições, ou, então, com alguém. A Commenda tem aquele ar superior de madeiras lisas, quase perfumadas, brilhantes, escuras. Foi moda durante anos, quando os restaurantes estavam cansados da decoração de restaurante e quiseram ser mais anódinos ou apenas recuperar, para si, a decoração da época. A Commenda é dessa altura; não incomoda a sua decoração de grau zero, de luz suave e de cores discretas.

Diante do Tejo, e separada dele pela linha do comboio, pela língua de relvado e pelas imagens da marina que lhe fica defronte, pode dizer-se que a vista do rio é um dos elementos que pode contentar o visitante. O 'buffet' de cozido, eu lembro, era bom e – também – discreto. Não me pareceu que, distribuída pelas mesas, se tratasse de gente de apetite, mas enfim, a comida não tinha culpa. O serviço era excelente: discreto (repito a classificação, sim), simpático, pouco amaneirado mas eficiente e para lá de mar­cado por tiques que hoje aparecem aqui e ali, quando os empregados fazem aquele ar de supe­rioridade tentando enganar-nos com a variedade de talheres e a escolha dos vinhos. Nessa matéria, aliás, há um tom de simpatia cordata e colaborante: a carta de vinhos é segura, aplicada, bem equilibrada e com escolhas perfeitas apesar dos seus preços que também são para gente com comenda. Nada a dizer a propósito, senão gabar e enaltecer (ah, eu gosto, de vez em quando, de usar a palavra "enaltecer") a ideia de servir alguns vinhos a copo à sobremesa.

De outra vez, provei um empadão de perdiz, muito bom: suculento, de massa perfeita, perfu­mada de ervas e especiarias, com um tom apeti­toso que desmentia - meu deus, não me arrasteis para o Inferno! - a nota de "cozinha de fusão" que é atribuída ao restaurante. O 'carpaccio' de polvo, que passou por mim, era bom. Comi um peixe grelhado superlativo enquanto o meu companheiro de mesa escolheu, imagine-se, coelho à caçador, o que antecedeu a minha ten­tação de sopa de chocolate. Tudo muito discreto e suave, saboroso, sem exceder os limites de colesterol ou do purgatório calórico que agora temos de respeitar para prolongar a vida e a saúde, essa coisa irritante que tanto satisfaz os políticos que gostam de zelar por nós – alguns deles, aliás, estavam às mesas de A Commenda, depenicando do prato, controlando a sala com o olhar, mas pouco discretos. Exactamente o contrário de A Commenda, que é uma casa discreta, bonita e, até, acolhedora. Se eu repetir "discreto" não se incomodem, por favor.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 90
Vinhos brancos: 50
Aguardentes & Conhaques: 14
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 16

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 28 euros

RESTAURANTE A COMMENDA
Centro Cultural de Belém
Praça do Império Centro
1449-003 Lisboa
Tel: 213648561
Encerra aos Jantares de domingo

in Revista Notícias Sábado – 28 Abril 2007

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Um jogo importante para o país da Segunda Circular

1. Parece que este fim-de-semana o Benfica e o Sporting medem forças no Estádio da Luz. Houve tempos em que um derby desta natureza era visto como, mais do que um encontro de titãs, “o jogo da época”. Não eram propriamente grandes tempos; a importância absoluta dos dois clubes foi sendo relativizada e, muitas vezes, um Benfica-Sporting é apenas mais um jogo do calendário, decisivo para o campeonato da Segunda Circular, sim, mas pouco importante para o desenlace do campeonato. Este ano, por incompetência, desleixo, incúria e distracção do FC Porto, o derby lisboeta é ligeiramente decisivo para a tranquilidade do clube que vai à frente e fatal para a luta pelo segundo lugar. Ironias. Eis como o FC Porto transformou o derby da Segunda Circular num jogo importante para esta recta final do campeonato.

2. Fernando Santos diz que o derby lisboeta “é com certeza um jogo importante para o país”. Eu também acho. Mas, ao contrário do que pensa Fernando Santos, acho que o país não tem tanta importância como isso.

3. Às vezes, certos treinadores parecem copiar a técnica dos matraquilhos. Explica-se facilmente, assim, a razão de tantos jogos serem chatos e de não acrescentarem nada à nossa felicidade. Podem começar a fazer a lista.

4. Jaime Pacheco diz que não fala mais até ao final da época. Faz mal. Devia falar para não deixar à solta quem o manda regressar ao Bessa sempre em aflição.

5. Quando Scolari desvalorizava Cristiano Ronaldo, havia meia-dúzia de comentadores do Mundial, entre os quais eu, que achava uma injustiça a perseguição dos imbecis ao génio e ao talento do jogador do Manchester. Eram coisas tão imbecis como estapafúrdias (do género “é demasiado individualista”). Agora, que Scolari encarou os factos e se desmentiu a si próprio, os imbecis do costume tecem loas despropositadas ao talento de Ronaldo. Um dia destes, na televisão, durante um jogo, até a forma como fazia um lançamento lateral ou cuspia para o lado era considerada a marca do “enorme talento” de Ronaldo; depois desses orgasmos em directo, apeteceu que Ronaldo fizesse uma fífia, só para os desmentir. A tradicional pobreza de espírito da rapaziada está sempre à vista.

6. Mourinho é um génio do futebol. Além de genial, Mourinho é também um chato difícil de aturar – se não está na nossa equipa. A guerra psicológica que ele move ao Manchester (com Schevchenko a ajudar) pode resultar; mas, se não resultar, espero que seja uma derrota como deve ser.

7. Prometi no início da época acompanhar a carreira de Diego, o futebolista que o FC Porto, a mando de Adriaanse, despachou para o Werder Bremen. O Real Madrid quer, agora, ir buscá-lo à Alemanha, tal como vários clubes italianos. Eu ainda exijo uma indemnização.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 28 Abril 2007

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abril 23, 2007

A qualidade das pessoas

Uns dias fora da pátria e há coisas que escapam; nada de substancial, evidentemente, mas revela um pouco da pátria. Refiro-me a uma campanha intitulada "Novas oportunidades" destinada a "dar resposta aos baixos índices de escolarização dos portugueses através da aposta na qualificação da população", coisa que é apresentada como sendo um "desígnio nacional".

Não se trata de estar no desgraçado lado "do contra", ou a marchar ao lado do "miserabilismo português", mas a campanha não tem muita graça. Em primeiro lugar, sugere imediatamente o seu contrário, o que diz muito sobre o seu carácter risível. Foi assim, aliás, que a conheci.

Se o leitor tem presente os anúncios publicados na Imprensa ou os cartazes pendurados pelo país fora, sabe do que se trata. Figuras públicas, que conhecemos da televisão, ou da música, por exemplo, aparecem como trabalhando numa banca de jornais (como essa em que comprou este jornal) ou como empregado de hotel ou de bar. Eles teriam sido assim, caso não completassem os seus estudos. Como se compreende, é possível brincar com o assunto se Luís Figo tivesse completado os seus estudos, por exemplo, seria funcionário de uma repartição no Montijo, e nunca poderia ser conhecido como um dos melhores futebolistas do mundo ou milionário. O que preferem os portugueses? Ser "funcionário de uma repartição no Montijo" ou milionário em Itália?

Uma campanha "que dá para os dois lados" é sempre frágil. Mas não é do seu lado mais risível que nos devemos ocupar e sim de dois pormenores essenciais que estão na ordem do dia. Em primeiro lugar, o desemprego em licenciados é francamente assustador, embora compreensível. Passámos de um mundo em que a licenciatura dava acesso a "um emprego", fosse onde fosse, no Estado ou no sector privado - para um universo onde se preferem as competências às referências, e onde há valores como a concorrência, a iniciativa, a imaginação, a criatividade, a mobilidade e o risco. Esse pequeno mundo de doutores e engenheiros que garante emprego com a apresentação do "canudo", como se sabe, terminou. Nada está garantido. O recente debate sobre a licenciatura do primeiro-ministro, aliás, permitiu ver para que lado da balança se inclinou a opinião dos portugueses uma licenciatura não quer dizer nada. Eu protestei: afirmei, redondamente, que quer dizer muita coisa, sim. Mas em vão.

Segundo pormenor, muito mais chocante - ou, este sim, chocante a demonização desses empregos honestos, imprescindíveis e que não deviam ser menosprezados, como empregado de restaurante, vendedor de imprensa, jardineiro, seja o que for (escuso-me a acompanhar a imaginação delirante e classista da campanha), parece-me francamente lamentável. A ideologia que enquadra esses anúncios podia ser adoptada por qualquer pós-salazarista. Coitados dos vendedores de imprensa, coitados dos porteiros de hotel, coitados dos empregados de mesa em restaurante, coitados dos funcionários do comércio ou da administração pública ou das portagens das auto-estradas, coitados dos que não têm um curso. Compreende-se a boa-vontade dos responsáveis pela "Novas oportunidades" (e dos que figuram na campanha, evidentemente), e compreende-se o sentido geral da iniciativa. Portugal precisa de mais qualificação na formação profissionais e de mais qualidade dos seus licenciados. Mas há, ali, qualquer coisa de chocante: um menosprezo das profissões banais, um desprezo das ocupações não consideradas nobres.

Como se sabe, no campo das políticas públicas, não contam apenas as intenções; contam também os métodos, os processos e as imagens geradas nesse caminho. Não se pode desvalorizar a qualidade das pessoas em nome da qualidade das profissões. Porque, no fundo, a qualidade da vida das pessoas não depende da qualidade das profissões. Depende da sua iniciativa e da sua vontade.

in Jornal de Notícias - 23 Abril 2007

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abril 21, 2007

Sabores da pátria


Nas salas do Poleiro, em Lisboa, há um clima de apetite muito adequado.

Escrevo esta crónica rodeado de papelinhos onde tomei notas e quase nenhuma delas me serve para o essencial, que é explicar por que razão se gosta deste restaurante. Ponto um: porque a sua comida é saborosa, suculenta. Ponto dois: porque grande parte dos pratos me reenvia à infância e à adolescência (eu gostava de comer, ao contrário de muitos enfezados). Ponto três: porque muitos ami­gos meus gostam. Às vezes, um destes pontos basta para me aconselhar um lugar e para eu o procurar; de outras vezes, há uma conjugação de factores. Um pouco de cada um.

Mas comecemos pelo princípio. Um dia destes, em Salvador, na Baía, comi dois dos mais perfeitos bacalhaus, que me lembre. Um, no restaurante Amado (que substituiu o velho Galpão, de boa memória), cozinhado em vácuo e em baixa tempera­tura, a lembrar-me experiências excelentes servidas pelo Miguel Castro e Silva, no Buli & Bear portuense, conservando as suas gelatinas, o seu sal miraculoso, as suas fibras; outro, no Gula Santa, arredores da cida­de, onde cada lasca se desprendia suavemente entre películas de alho e perfume de lagosta. Era bacalhau importado de Portugal, e muito, muito saboroso. Eram, pois, bacalhaus cosmopolitas, servidos longe da pátria, no meio de propostas de "cozinha de fusão", ou de risotos magníficos (um de espargos para acompanhar carré de cordeiro, ou outro de lin­guiça paulista com feijão).

Regressado a Portugal, enfrentei a cozinha portuguesa e percebi que, lá no fundo, estava com saudades dela, dos seus fritinhos, das suas migas e arrozes, dos seus grelhados suculen­tos. É o fado, triste sina de estômago habituado ao estômago da infância, rodeado desses sabores que evocam alegrias e melancolias. É isso o meu patriotis­mo, mesmo com excelentes bacalhaus fora de portas.

Pois o Poleiro, em Lisboa, Entrecampos, sugere-me a "pátria culinária": peixinhos-da-horta, sabem como é?, açorda de bacalhau com línguas (as línguas de bacalhau são um petisco formidável e pouco pratica­do, infelizmente, sobretudo nesta variante, panada, rescendendo a limão e alho), pataniscas de camarão com açorda de ovas, entrecosto frito com arrozinho de favas, cabrito com açorda de coentros, barriguinhas com massa (cotovelos, ou manga de capote) cozinhada num saboroso caldinho de feijão encar­nado, sopas cremosas, carnes e peixes grelhados com intensidade, arrozes que valem a pena (o de favas é só um exemplo, mas já lá comi os de feijão, de grelos e de tomate, muito apurados, nada de cal­dos aquosos), as açordas com tomate e alho, os pei­xes fritos.

Tudo isto nem precisa de registo de memória, a acrescentar, como disse, aos peixes grelhados (dourada, linguado, robalo, lulas, garoupa) ou ao linguadinho frito com açorda perfumada de hortelã, arroz de bacalhau, pataniscas de bacalhau, posta de bacalhau frita, arroz de peixe com gambas. Só faltam pastéis de massa tenra neste reenvio à infância (desculpem a insistência), para juntar aos grelhados de carne (bifinhos, entrecosto, cabrito, entrecôte de novilho, espetadas, costela de boi) e outros pratos do dia ocasionais.

Há, nestas salinhas do Poleiro – um restaurante que foi evoluindo ao longo dos anos, passando de pequeno restaurante de bairro para restaurante da cidade, emblema da gastronomia regional portu­guesa e repouso de clientes irredutíveis (como aqueles meus amigos portugueses que vêm do estrangeiro e não se sentem em casa antes de irem ao restaurante que os pacifique e lhes carimbe o visto de entrada no passaporte) - um clima de ape­tite muito adequado; à hora de almoço, mais agita­do, mas nem por isso ruidoso; ao jantar, muito mais tranquilo e familiar, sem carros com motoris­ta à porta (um flagelo destes dias).

Esqueço-me sempre das sobremesas porque, muitas vezes, não vou aos doces – mas recordo-me de uma carta de vinhos completa, onde, infelizmente, os preços são os que são. No restante, somos bem rece­bidos, mas sem aqueles cuidados que se reservam aos clientes da casa, mais frequentes e que nem pre­cisam de abrir o cardápio.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 82
Vinhos brancos: 35
Vinhos verdes: 10
Aguardentes & Conhaques: 16
Portos & Madeiras: 11
Uísques: 18

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: Difícil (existe parque nas proximidades)
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: Não
Reserva: imprescindível ao almoço
Preço médio: 30 euros

O POLEIRO
Rua Entrecampos, n.º 30 - A
1700-158 Lisboa
Tel: 217 976 265
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 21 Abril 2007


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abril 19, 2007

O mar em Casablanca

Este Vento do meio-dia, que ar­rasta a poeira do Sul, por exemplo. Nu­vens de poeira: gosto da imagem, que me lembra as coisas arrastadas pelo vento do meio-dia em Casablanca, quando é sexta-feira, dia de oração. Desço pela Corniche em direcção ao mar batido e azul de Casablanca à hora a que milhares saem das mesquitas. Em algumas delas (para quem não entrou na grandiosa mesquita Hassan II, a que tem o minarete mais al­to do mundo) há gente que não pôde en­trar – e fica na rua, sobre um tapete que depois enrolam debaixo do braço.

Além do vento, há um sol tímido. Ao fim da tarde, Casablanca repousa da história, abandonada ao trânsito. Dar El Beida (o seu nome em árabe) ocupa o lugar de várias cidades abandonadas. Em primeiro lugar, Anfa, a cidade que os portugueses arrasaram no século XV com dez mil soldados que expulsaram os seus habitantes. Depois, a modesta Casa Bran­ca portuguesa que o terramoto de 1755 destruiu e que foi reerguida cerca de 1770 pelo sultão Mohamed Ben Abdullah, que também fundou Essaouira. A nossa presença em Marrocos termina nessa altura, aliás, depois do abandono de Mazagão (El Jadida), cujos habitantes são enviados para o limite norte da Amazónia brasi­leira (actual Amapá). E a Casablanca onde está a marca dos mercadores espa­nhóis, antes de, no início do século XX, ser ocupada pelos franceses.

Embora a nossa mitologia nos reen­vie à Casablanca de Michael Curtiz e ao destino interpretado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman (e ao voo regular para Lisboa, que ainda se mantém), é im­possível não ver na poeira de Casablanca a marca dessa história fantástica de uma cidade sitiada diante do Atlântico, po­voada e repovoada, abandonada e retoma­da, habitada por comunidades de todas as crenças, sobrevivente às guerras e inva­sões que atravessaram o Mediterrâneo. Moderna e desigual, dividida entre os que vão às mesquitas ao meio-dia de sexta-feira e os que ficam nos cafés diante da orla, a sua face de «capital económica do reino» não consegue esconder a presença do passado que avança de todos os lados.

O que transforma Casablanca «num caso», para todos nós, é que fica a cin­quenta minutos de Lisboa, do outro lado do Mediterrâneo. Em cinquenta minutos passamos de uma das margens da Europa para uma das fronteiras de África e do Is­lão. Há quem pense que se trata de uma passagem entre o que conhecemos e o que não conhecemos, mas não é bem assim. Casablanca recordou-me o belíssimo ro­mance histórico de Pedro Canais, A Len­da de Martim Regos (publicado pela Ofici­na do Livro) – nele, o herói Martim Regos passa de uma civilização a outra, da Cristandade ao Islão (com o judaísmo de permeio, ainda), com uma facilidade sur­preendente, transformando-se de acordo com a vida das cidades onde pernoita e dos países que o aceitam. Mas estamos no final da Idade Média. O al-Andalus es­tende-se até às portas do Mondego. De Casablanca às planícies do Ribatejo não há nada que não seja comum aos dois mundos.

Pelos séculos fora, guerras, inva­sões, cercos, mortandades e perseguições não fizeram senão tornar comum esse es­paço que hoje nos separa. Outro roman­ce que recordo em Casablanca é O Cava­leiro da Águia, de Fernando Campos (Dífel), onde Gonçalo Mendes, casado com uma princesa moura (marroquina, no caso), nos explica o significado da guerra e das religiões em guerra.

O meu amigo Saïd Benabdelouahed ensina em Casablanca e é a prova de que o passado pode não ter importância. Apai­xonou-se pela nossa língua e lê os nossos poetas. Filomena Alves, responsável pelo ensino do português na cidade, passeia com os alunos nas ruas. Viajar para Casa­blanca é reencontrar o passado e retomar o percurso comum das duas cidades.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Abril 2007

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abril 16, 2007

A credibilidade e a moral

A credibilidade do primeiro-ministro ficou, sem dúvida, afectada pelo episódio da Universidade Independente. E isso acontece apesar de terem sido razoáveis as explicações que deu e convincente o seu discurso sobre o assunto. Admitindo a razoabilidade das suas explicações, há - naturalmente - coisas que ficaram por explicar e que continuam a suscitar "dúvidas legítimas" na opinião pública. Ou seja, invertendo a ordem dos factores apesar do incidente, continua a manter-se a prerrogativa da fé em José Sócrates e no seu trabalho como primeiro-ministro.

Longe de se tratar de uma tentativa de "assassinato de carácter" (como murmuram alguns "operacionais" de quem o primeiro-ministro sabe que tem de desconfiar), as dúvidas manifestadas eram inteiramente legítimas. Ao contrário do que se disse, para a opinião pública a questão não era a de determinar se o primeiro-ministro podia ou não usar um título académico, ou se o possuía. São questões de pormenor. Doutores é o que há mais. A questão era a de saber se o primeiro-ministro fez o que muita gente fez sem idêntica falta de escrúpulos.

É claro que, ao fornecer as explicações que ouvimos, José Sócrates entrou num terreno minado qualquer notícia, qualquer pormenor, qualquer pequena revelação que ponha em causa as informações agora prestadas, será decisiva e definitiva para a sua imagem na opinião pública. E, então, nada o salvará - nem esta presunção de inocência de que partilho.

É certo que, fragilizado ou não na categoria da "credibilidade", o primeiro-ministro tem uma vantagem acrescida sobre os desafios lançados pela oposição. Ou seja, mantém-se a conjuntura que foi favorável nas eleições que o levaram ao poder, coisa que não teria acontecido se fossem outros os personagens.

O melhor que poderia acontecer a José Sócrates seria a discussão entrar nos territórios da moral. Como em tempos escrevi neste jornal (a propósito da campanha eleitoral que conduziu à vitória eleitoral de Sócrates), "os moralistas têm vida curta entre nós; não apenas são gente de mau aspecto como se trata de pessoas cheias de inveja". A distinção entre os territórios da vida privada e da vida pública é flutuante, geralmente pantanosa e quase sempre um incómodo. Para a generalidade dos eleitores, desde que a vida privada não assalte a vida pública, o sono está garantido. Além disso, porque são manhosos e aprenderam - com os políticos e com o poder - que a moral é sempre relativa, sabem que a tentativa de moralizar não lhes vai ser útil nem agradável. Porque são, também, gente de moral flutuante. Santana Lopes perdeu definitivamente as eleições, na época, quando fez insinuações infelizes sobre a vida privada do então candidato a primeiro-ministro.

José Sócrates teve, de novo, a sorte dos audazes. Para a generalidade da opinião pública, um "canudo" é coisa sem substância, porque também aprenderam que o rigor, a excelência e a qualidade académica são valores interessantes mas pouco compensadores e, muitas vezes, um empecilho. Sócrates não apenas é exemplo dessa vontade de vencer na política e na vida - identificando consigo muitos eleitores - como defende essa ideia contra o território perverso da moral na política. Limpinho.

P.S. - O primeiro-ministro defendeu-se das críticas da oposição de esquerda (que o acusa de governar à direita), dizendo que as leis do aborto, da procriação médica assistida e da paridade são evidentes medidas de esquerda. A isso estamos reduzidos. Salvo erro, tem sido esse um dos factores que tem provocado esta desertificação ideológica admitir que os valores da esquerda são um resíduo de coisas "fracturantes". Sócrates tem sorte: pode tratar dos negócios do Estado à direita, como convém, mas fazendo qualquer coisa "de esquerda" de vez em quando, para contentar aquelas pobres almas.

in Jornal de Notícias - 16 Abril 2007

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abril 14, 2007

Pátio das cantigas


No Arvoredo, em Paço de Arcos, a ementa é significativa e decente. Um restaurante a redescobrir.

Arvoredos fatais; estes são os mesmos, eu o mesmo não sou. Começo por uma citação totalmen­te truncada de Tomás António Gonzaga, um dos meus poetas preferidos, voz estranha de andarilho e, diz-se, de gastrónomo anódino. Nasceu em Gaia, viveu em Ouro Preto (Brasil) e, na sequência da revolta da Inconfidência Mineira e do suplício de Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier), foi depor­tado para Moçambique, onde foi funcionário das alfândegas da época. Penou na Ilha de Moçambique. "São estes os lugares, eu o mesmo não sou" remete-me para os seus poemas a Marília de Dirceu, musa do poeta, inspiradora de muitas visitas actuais a Ouro Preto, a antiga capital de Minas Gerais.

Ora, porque cito eu Gonzaga? Por isso mesmo: "São estes os lugares, eu o mesmo não sou." Eu conhecia estas paragens, mas tinha do Arvoredo uma memória diferente. No mesmo lugar, inclinado sobre a vila de Paço de Arcos, lugar de refeições modestas, sem grande imaginação, banais, corri­queiras, próprias do chamado "dia-a-dia" de quem come em restaurantes por recurso e se contenta com os "pratos do dia", certinhos a cada dia da semana, iguais em todas as quadras do mês, com as diferen­ças pontuais que a estação do ano impõe - para que se substituam os brócolos pelo feijão-verde no acompanhamento, ou para que haja sardinhas a partir de Maio (ah, que nunca mais chega a temporada das sardinhas!), ou melão na altura certa, ou cerejas quando as houver. Este Arvoredo fazia parte da lista desses restaurantes maneirinhos e escondidos na minha velha Paço de Arcos.

Pois, senhores, lembram-se do 'Pátio das Cantigas'? Então recordem o momento em que Ribeirinho, debruçado da janela, grita para Vasco Santana: "Ah, meu pai, descobri o Brasil no rés-do-chão de nossa casa!" Era o anunciado namoro com a filha de dona Rosa, arremedo de Carmen Miranda, a cantora de Marco de Canaveses.

Pois onde me falaram do Arvoredo foi no Rio de Janeiro: "Vai no Arvoredo, meu filho, que tem boa cozinha." Luciana Fróes, a colunista omnívora de 'O Globo', mencionara-o no jornal e eu fui, apesar das suas queixas de que Paço de Arcos parece um labirinto. Tinham-me falado do seu bife com molho de alheira, no bife recheado com queijo de cabra – e nas 'potato skins' servidas com molho picante ou nos mexilhões gratinados. Pois há uns meses lá fui; ao que supus, o cardápio fora ligeiramente encurtado, mas a amostra é significativa e decentíssima, com um bom 'carpaccio', queijo de cabra com 'courgettes' e noz (aliás, o res­taurante tem uma boa amostra de queijos e de fuma­dos - de várias origens), e intromissões regionais com novidades ligeiramente simples, como a morce­la beira servida com abacaxi. Há os bacalhaus à Zé do Pipo e "à minhota", o cação de coentrada muito bom, o arroz de tamboril e gambas, a raia "à algar­via" e uma boa e simpática lista de peixes na grelha, além do polvo à lagareiro, que satisfez os meus amigos brasileiros, mesmo nos pratos vegetarianos, que incluíam uma lasanha de espinafres e um patê de legumes servido com arroz e natas de soja.

Nas car­nes, pois rondemos o bife com molho de alheira, os maranhos da Beira Baixa (na verdade, bons) na com­panhia de uma couve salteada que me reenviou às memórias da minha terra em pleno Inverno (apenas faltava um golpe de vinagre...), costeleta de vitela, as alentejanas migas de espargos "com carne do algui­dar" e uma sua variante com morcela frita, além do peito de pato em molho de alperce, ou pato em vinho do Porto. Não encontrei nas minhas escolhas o arroz de perdiz de que me tinham falado, mas hei-de voltar.

Para o velho Arvoredo, é uma mudança e tanto (que já leva bons três anos), muito respeitável; as incur­sões, como mencionei, não impedem que as sobremesas sejam de velha estirpe: fidalgo, papo-de-anjo, encharcada, toucinho-do-céu - enfim, propostas que não deixam o colesterol andar na mó de baixo. Pois aqui está um arvoredo simpático e lustroso, por cuja esplanada se escapam perfumes nada negligen­ciáveis.

À lupa
Carta de vinhos: * * *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço à mesa: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos brancos: 24
Vinhos tintos: 87
Aguardentes & Conhaques: 10
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 22
Espumantes & Champanhes: 6

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: complicado
Adequado levar crianças: sim
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 25 euros

ARVOREDO
Rua Carlos Bonvalot, 4
2780-576 Paço de Arcos
Telef: 214 421 158
Encerra aos domingos ao jantar

in Revista Notícias Sábado – 14 Abril 2007

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Vida Imperial


Uma máquina de cerveja pode mudar a vida de um homem. Os prós e contras da novidade.

Provavelmente, este é o meu texto mais autobiográfico - ou seja, para sermos claros, aque­le em que não posso enganar-me a mim próprio. Acontece raramente uma circunstância destas; a mim aconteceu-me ao meter dentro de casa uma máquina de tirar cerveja à pressão: fino, imperial, caneca, lambreta, príncipe, nenhum destes formatos ou designações tem segredos para mim a partir de agora.

Onde antes havia latas e garrafas à espera de serem recicladas ou apenas de desaparecer para ganhar espaço na despensa, há agora uma máquina perver­sa, diabólica, condenável pelos princípios de uma vida regrada e impoluta. Quando chego a casa, ao final da tarde (ah, naquele final de tarde em que apetece uma bebida!), ela olha-me, tenta-me, fala baixinho; sinto, na cozinha, o seu murmurar eléc­trico, um ronronar surdo e grave, diante do armário onde guardo os copos. Às vezes passo por ela a meio da noite, esquivando-me - e então desvio o olhar, fixo-me nas caixas de cereais e nas garrafas de Água das Pedras, um dos meus vícios; enfim; resisto.
Muitas vezes me ocorreu, ao fim da manhã, depois de trabalhar, ouvi-la como um canto da sereia, cha­mando, rumorejando, convocando, chilreando. Volto-lhe as costas, tapo os ouvidos como os velhos marinheiros no alto mar, mas aquela tentação per­manece. Vamos e venhamos, praticamente deixou a minha vida num inferno. Mas habituei-me. E, na verdade, habituei-me com volúpia e - simultanea­mente - sentido do dever.

Ao longo de vários meses, enquanto escrevia as notas para o meu livro sobre cervejas ['99 Cervejas + l, Ou como Não Morrer de Sede no Inferno', ed. Esfera dos Livros], armazenei garrafas que chegavam de várias procedências e que, além de ocuparem duas prateleiras na despensa, man­tinham desperto aquele ar profissional que con­vém mostrar no momento da prova. Várias delas, eu sabia, eram melhores na sua versão 'draught', de pressão, do que em garrafa. Quase todas as cer­vejas apresentam uma espuma mais cremosa e uma maior vivacidade de corpo (maior carbonatação) quando são tiradas à pressão; evidentemente que depende do tempo de vida útil do barril, da qualidade do frio e da limpeza do seu sistema de tiragem - mas, por norma, um "fino", ou "imperial", bate a cerveja engarrafada nesses dois pontos. E, vejamos, não se trata de aspectos negli­genciáveis. A espuma, por exemplo, é essencial para manter a frescura da bebida e o borbulhar do líquido; quanto mais cremosa, mais tempo de vida útil tem o nosso copo de cerveja. Para garantir um frio adequado, deixe o barril por três horas no congelador (as instruções sugerem, em alternativa, doze horas no frigorífico, mas pes­soalmente prefiro o tratamento de choque), aplique-o, aguarde cinco minutos e comece a exercer os seus legítimos direitos.

Ao contrário de outras propostas existentes no mercado, em que se liga a torneira directamen­te ao barril de cerveja (caso de marcas holandesas e alemãs), esta, com o tamanho aproximado de uma máquina doméstica de café-expresso, liga-se à electricidade e guarda a cerveja no seu interior. É uma grande vantagem. Mas, no fim de contas, o principal risco desta máquina de cerveja preparada para os barris Super Bock (são cinco litros) é que sua a validade é, sen­sivelmente, de cinco dias. Ao fim de uma semana na máquina a cerveja já não apresenta aquela fres­cura inicial, detectada quando, ao fim das duas primeiras imperiais, o creme adere às paredes do copo como um fio de manteiga fresca, rescendendo ainda a lúpulo e ao seu amargor (uma das características desta cerveja é o tom de frescura, ligeiramente afrutado, próprio da marca). Mas durante esses cinco dias não há remédio: ela olha-nos, lá da cozinha, ronronando. O ideal, portanto, é estrear um barril uns minutos antes de um bom jogo de futebol, se calha os seus amigos irem visi­tá-lo - pela grande amizade que lhe devotam, naturalmente, e não por ter aquele canal de TV cabo ou, imagine-se, por ter uma máquina de cer­veja de pressão em casa. A amizade é que conta. Outro ponto importante e óbvio: os copos. Experimente copos diferentes, veja qual se adapta melhor ao seu modo de beber - desta vez não tem de usar os copos padronizados das cervejarias e restaurantes. Prefira-os altos, finos, e use-os secos (às vezes apetece-me usar um copo de tamanho médio e largo, que leve apenas 0,20 cl). Não caia na tentação de reencher um copo - use outro - porque a qualidade da tiragem é totalmente diferente, para pior.

A tiragem da cerveja, aliás, merece discussão. O método mais apreciado consiste em encostar a torneira à parede interior do copo, ligeiramente inclinado. Entendimento diferente tem, por exemplo, a maior parte dos alemães (ou ingleses, quando se trata de 'pints'): o copo está direito, na vertical, imobilizado, e a cerveja cai sobre ele, pro­duzindo espuma abundante; aguarda-se que o volume da espuma desça e acrescenta-se mais cer­veja; repete-se a operação até conseguir dois a três dedos de colarinho. Confesso o meu pecado: pre­firo-a assim. Portanto, aproveite a oportunidade de ter uma destas preciosas máquinas em casa para ir treinando o seu próprio método.

É provável que, nos primeiros dias, detecte alguns sintomas de uma ligeira apreensão: querer chegar a casa para ver como está a cerveja, rondar a máquina durante as horas mortas (para ver se está no sítio, evidentemente, e para testar a capacida­de de lhe resistir), interrogar-se acerca da existên­cia de barris no supermercado das redondezas, meditar sobre o sentido da vida quando - afinal - já temos cerveja de pressão em casa. Um fino, ou uma imperial, se me permitem.

X-PRESS SUPER BOCK

Máquina
Design: * * * *
Arrumação: * * *
Dispêndio de energia: * * *
Ruído: * * *
Montagem: * * * * *
Substituição de barris: * * * *
O melhor: prático, fácil de montar
O pior: o ruído do motor

Cerveja
Espuma: * * * *
Cor: * * * *
Transparência: * * * *
Aroma: * * *
Sabor: * * * *
Carbonatação: * *
O melhor: espuma, limpidez, cor
O pior: existe apenas ‘lager’ (seria bom experimentar a ruiva e a ‘stout’)

Preço
Máquina: € 197
Barril (5L): € 12

in Revista Notícias Sábado – 14 Abril 2007

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A explosão do Manchester e a bola mal chutada

1. O jogo do Manchester foi uma explosão. Não pelos números, extraordinários em si mesmos, mas pela atitude da equipa que sabia que bastava jogar a primeira parte. Os 4-0 eram mais do que suficientes, mas não veríamos o segundo golo de Cristiano Ronaldo. Também houve coisas que não vimos: nenhum sintoma de mialgias, de cansaço no rosto dos jogadores, de esgotamento nas suas pernas. Eu sei – ouço daqui o reparo – que depois de marcar quatro golos à Roma (bem feito) o entusiasmo teria de se manter firme e elevado. Mesmo assim. Não houve quarenta e cinco minutos maus (a primeira parte do Benfica, a segunda do FC Porto). Não houve perdas psicológicas, não houve "recuo previdente", não houve "economia de meios", não fizeram "gestão do plantel". Jogaram. O meu dever (e a minha vantagem, como adepto) não é compreender a estratégia ou a táctica dos treinadores: é querer ver jogar bem e humilhar os adversários. Nelson Rodrigues falava das maravilhosas vitórias por 1-0 (como as de Mourinho), porque no futebol não há certezas absolutas: 1-0 e 7-1 fazem parte do mesmo universo. Por isso, o jogo de Manchester foi uma explosão.

2. Luiz Felipe Scolari deu uma entrevista ao "Estado de São Paulo" em que, diante da pergunta do jornalista sobre um cenário hipotético ("treinar de novo o Brasil?"), deu uma resposta cheia de hipóteses (sim). Houve um certo exagero na maneira como os portugueses reagiram, noticiando que Scolari estaria a preparar o seu adeus português. Tratou-se apenas de matéria para consumo brasileiro. Na verdade, Scolari está farto de nós. Ele vive forçado a fazer coisas que não quer. Só que nós sabemos.

3. Depois de, em tempos, ter dito que Nani era muito superior a Ronaldo (Nani seria o sucessor de Figo), Scolari ficou rendido ao miúdo que os scolarinianos queriam ver afastado do Mundial, porque era "muito individualista"; quer dizer, não era da sacristia de Scolari. Hoje, Scolari usa Ronaldo e há-de ser forçado a usar Quaresma. Ele vive forçado a fazer coisas que não quer.

4. Cuidado com o Sporting. Há um tom compacto naquele futebol; não maravilha na primeira parte nem desilude na segunda, mas, mais importante do que isso, tem a vantagem de pensar na "possibilidade do título", o que é uma vantagem sobre "ter o título ao alcance".

5. No estádio da Luz, para culminar uma boa carreira europeia, o Benfica enviou bolas à trave e esteve perto de marcar para afastar a divisão espanhola da Catalunha. Bola à trave, já se sabe, é bola mal chutada. Mas reconheçamos o essencial: esteve quase. Não falo de justiça, porque em futebol há factores muito mais flutuantes. Há quem diga que o facto de o Espanyol jogar vestido daquela maneira também contou muito.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 14 Abril 2007

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abril 09, 2007

A boa e a má vida académica

Vamos lá ao assunto. Em Portugal prezam-se bastante os títulos académicos; não porque se venere a carreira académica, ou o currículo dos investigadores e professores, mas porque é impossível conceber que alguém exista (atrás de uma secretária, nas sombras de um gabinete, onde quer que seja) sem um "Dr." ou um "Eng." antes do nome. António José Saraiva propôs em tempos, para acabar com o flagelo, que mal requeressem o primeiro Bilhete de Identidade, a todos os portugueses fosse logo acrescentado o "Dr.", ficando assim satisfeito o desejo de milhões de cidadãos serem tratados por "doutor". Ou por "engenheiro".

Há uma discussão e uma suspeita, pelo país fora, acerca da licenciatura do primeiro-ministro. Contrariamente ao que foi dito, neste momento o problema não é o da forma de tratamento devida a José Sócrates em circunstâncias formais e em função dos seus estudos universitários. Também ao contrário do que se diz, não vejo razões para falarmos de uma conspiração e acho de mau gosto a designação de "jornalismo de sarjeta".

Evidentemente que é bom, para a democracia, saber em que condições e sob que condições foram emitidos os títulos de licenciatura do primeiro-ministro.

O problema é, também aqui, outro e inteiramente diferente - tem a ver com a interessantíssima ligação entre os dirigentes políticos, os partidos, e as universidades privadas que nasceram como cogumelos nos anos oitenta e noventa. Quem não se recorda dos nomes de políticos a quem nenhum ponto do currículo recomenda especialmente e que foram nomeados para postos e cargos académicos de responsabilidade? Paulo Portas e Santana Lopes, por exemplo, passaram pela Moderna como directores de um centro de sondagens. O que os fez merecer o cargo? Professores de jornalismo e de sociologia, de "relações internacionais" e de "comunicação" multiplicaram-se pelo país fora, sobretudo nessas universidades que foram abençoadas por dirigentes políticos, até aí inacreditavelmente incultos ou, mesmo, semi-analfabetos. Era difícil, nesses quadros académicos, não encontrar um dirigente partidário, uma boa representação de deputados ou um grupo de "especialistas em ideias gerais". O que tinham eles feito pelo ensino, pela carreira académica, pela investigação, pela ciência, pelo conhecimento? Nada. Ao contrário de outros países, onde há políticos saídos da universidade e com um currículo aceitável e recomendável, em Portugal fez-se o caminho ao contrário como havia poucos dirigentes políticos com um passado académico que os valorizasse, criavam-se universidades onde eles teriam assento. Estaria resolvido o problema do título académico e garantida a influência da universidade. Façam a lista dos deputados, futuros ministros, secretários de estado, líderes de partido ou de tendência, que receberam esses títulos ou que "ajudaram" a criar universidades. É numerosa. E dá conta de um saudável regime de colaboração multipartidária, registe-se.

E, pergunto, de novo o que fizeram esses cavalheiros e madamas pelo prestígio da universidade? Pouco, que se saiba. Em Portugal, os dirigentes políticos não lêem, não escrevem, não estudam, não investigam. Mas criam universidades e "fazem política". Uns com os outros.

PS - A fim de defender o primeiro-ministro, vários comentadores têm insistido num ponto particularmente sensível à mentalidade democrática actual a de que não é preciso um curso universitário para se ser um bom primeiro-ministro. O exagero compreende-se mas não se aceita e temo pelas consequências: como se pode explicar às "novas gerações" que não há necessidade de estudar? Um título académico não é uma página da "Caras".

in Jornal de Notícias – 9 Abril 2007

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abril 07, 2007

O Aleixo e os filetes

Filetes de polvo e filetes de pescada. Muito bons, onde? No Aleixo, no Porto. Tudo bem, se não fossem aqueles pufes...

O que é a cozinha de autor? Cozinha que leva, irrevogavelmente, a assinatura de um criador. Não há dúvidas sobre isso mas lanço o alerta, antes de ser crucificado: há criadores de outra cozinha para além da “fusão” ou daquilo que mais “trendy” existe hoje nos restaurantes. Há, desculpem, criadores de cozinha tradicional portuguesa e eu gosto deles especialmente; não mais do que os outros, mas enfim, aprecio o seu apego ao cânone, o seu respeito pela raiz, a sua aventura pessoal vigiada por milhares de especialistas em peixinhos da horta ou em bacalhau com broa.
Neste caso, nas encostas do vetusto Porto, inclinadas para Campanhã, a Casa Aleixo é o mais conservador dos restaurantes. Longe de considerar isso uma ameaça à estabilidade emocional e gastronómica dos seus frequentadores, vejo-o como uma excentricidade a ter em conta.

Quando inventei, para os meus próprios livros, um detective portuense, pu-lo a viver ali bem perto de Campanhã, na Rua de Barão Nova Sintra, apenas com a finalidade de ele poder ir a pé até à Casa Aleixo (o inspector Jaime Ramos, que me acompanha há quinze anos, é um excêntrico nessa matéria) para comer filetes de polvo “com arroz do mesmo” e para cair, do alto, no prato de chispe com feijão vermelho.

A Casa Aleixo é, na verdade, uma das glórias do Porto. Conheço cavalheiros e madamas que, saindo de Lisboa, descem em Campanhã e se dirigem à Casa Aleixo com o estômago pedindo filetes de pescada com arrozinho de feijão e uma daquelas sopas excepcionais, caseiras, perfumadas. É por elas que começo: pelo creme na base do caldo, de batata saborosa, farinhenta, de hortaliças saborosas e que não passam pelos mercados habituais – e de penca (a couve mais saborosa), de feijão, à antiquíssima portuguesa. Imagino panelões fervendo lentamente, apurando a sopa, como vem no “A Cidade e as Serras”, enquanto os comensais aguardam, de colher erguida. Brilhantes sopas caseiras. Depois, as tripas ao sábado, para quem é fanático – aconselho; o cabrito no forno à sexta-feira, o cozido à quarta (rico, generoso) e os bacalhaus das segundas-feiras. De resto, todos os dias, nesta casa que é, ou era, um altar de benfiquismo no Porto, há dois pratos simbólicos e fundamentais, como já disse: filetes de polvo e filetes de pescada. Os de polvo são excelentes, quer acompanhados de arroz de polvo quer com arroz de feijão – tenros, abertos, suaves, simples. Os de pescada são melhores ainda: pescada viguense, talvez, mas boa pescada, branca, perfeita, oferecendo-nos um sensualíssimo strip-tease no prato, desfazendo-se em lascas suculentas. O meu reparo: por vezes (ah, perdoa Casa Aleixo!) a dose de filetes de polvo é diminuta. Será, talvez, do meu apetite, mas reconheço que pagar o que se paga apenas por dois filetes generosos de polvo, é bastante. Alarga lá os cordões à bolsa.

Nas sobremesas, coisas tradicionais e purissimas. A minha escolha é óbvia: rabanadas, muito boas, atraentes; aletria sedosa e cremosa, para valer. Uma lista de vinhos aceitável e de boa presença duriense, como seria conveniente e indispensável.

Finalmente, uma pessoa pede café – e mandam-nos para a sala vizinha, onde umas mesinhas baixas e uns pufes nos aguardam. Acho mal. Sei que é uma tradição mas, sinceramente, já está na altura de acabar com ela; ainda por cima, os pufes obrigam a uma flexão abusiva que pressiona o estômago e é prejudicial à digestão. Sei que, assim, se libertam as mesas do restaurante para novos clientes – mas, que diabo!, comer filetes a este preço não é, propriamente, entrar numa linha de montagem onde temos de cumprir funções e poupar o mobiliário da casa. E o café, disso não saio, é para ser servido à mesa. Anos e anos de tradição seriam desperdiçados, eu sei, mas há excentricidades que um dia acabam por cansar. E se a comida é boa e saborosa, é legítimo que não gostemos que nos empurrem para os pufes, essa instituição que devia ser abolida e que nos obriga a dobrar excessivamente as pernas.

À lupa
Carta de vinhos: * * *
Carta de digestivos: * * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço à mesa: * *
Acolhimento: *
Mesa: * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos brancos: 30
Vinhos tintos: 82
Aguardentes portuguesas: 12
Portos & Madeiras: 14Espumantes & champanhes: 2
Uísques: 12

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: pode ser complicado
Adequado levar crianças: sim
Reserva: aconselhável
Preço médio: 25 euros

Casa ALEIXO
Rua da Estação, 216
4300-171 Porto
Telef: 22 537 04 62
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 7 Abril 2007

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Questões de fé

1. Jesualdo Ferreira diz que, na dúvida, os árbitros julgam contra o FC Porto. Tem razão. Já escrevi isso mesmo aqui; no entanto, a pressão exercida sobre os árbitros nos jogos do FC Porto é tão elevada como nos jogos do Benfica e do Sporting – mas em sentidos contrários. Veja-se o Benfica-FC Porto: porquê aquele amarelo a Bruno Alves e não, minutos depois, a Simão? Não se trata de má-fé do juiz; mas de aproveitar a fragilização do FC Porto para passar por “árbitro corajoso”. Males do império. Aguentar até ao fim é o remédio. Ter fé.

2. Mas, tirando isso, que é importante, há uma questão aflitiva: por que razão joga melhor o FC Porto, geralmente, nas primeiras do que nas segundas partes? Três hipóteses: 1) febre do controlo de bola depois de marcar o primeiro golo; 2) cansaço; 3) distracção. Voto pela última porque acho a segunda completamente ridícula se for verdadeira. O festival de falhas de passe nas segundas partes é assombroso; mas, para lhes fazer companhia, há outro festival nos dez minutos finais: o de golos perdidos. É preciso falta de fé.

3. O Espanyol, de Barcelona, não contava com a reacção do Benfica, que tem agora o caminho facilitado para a segunda mão. Ao contrário do FC Porto, o Benfica faz melhores as segundas partes do que as primeiras. Há um suplemento de energia ou substituições bem feitas? Há, sobretudo, alguns recursos vindos do banco, mas Simão (que marca nas segundas partes) joga desde o princípio. Digamos que regressam do balneário carregados de fé. Fernando Santos será bom catequista?

4. Paulo Bento foi nomeado “o Alex Fergusson do Sporting”. É cedo mas é uma boa notícia. Só que Bento não tem fé: “É uma realidade pouco ou nada usual no futebol português.” Tem razão. E veja-se o caso de Domingos Paciência na União de Leiria, que bateu com a porta depois de ter sido desautorizado a propósito de um jogador – o clube fez a escolha e preferiu o jogador a um treinador que tinha equilibrado as contas do campeonato. O caso do Braga ou, mais recente, o do Marítimo, também ajudam a confirmar os receios de Paulo Bento. O problema é o lugar do treinador no meio dos pequenos poderes que flutuam em cada clube. Entretanto, peço a vossa atenção para dois casos: o de Daúto Faquirá no Estrela e o de Jorge Jesus no Belenenses. Podem começar a fazer contas.

5. Em nenhum dos vídeos do Benfica-FC Porto pude ver a mão de Quaresma a tocar na bola dentro da área. Mas a grandiosidade da fé manifesta-se nestes pequenos momentos, quando o adepto vê a mão de Quaresma a travar a bola. Mas, melhor do que isso é quando o adepto nem precisa de ver a mão a tocar a bola; basta-lhe dizer que foi assim que aconteceu. É a fé.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 7 Abril 2007

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abril 02, 2007

Sócrates e o fim da história

Há aqui uma estranha e delirante semelhança. Francis Fukuyama considerava que estávamos diante do “fim da história” com o advento da democracia liberal um pouco por todo o lado. Evidentemente que a guerra do Iraque, a resistência talibã no Afeganistão e todo um conjunto de desastres estratégicos, levaram Fukuyama a modificar a sua tese, nomeadamente acerca da “aceitabilidade” da democracia no mundo inteiro e das etapas para a sua institucionalização em países sem cultura democrática e sem condições económicas, ou onde é impossível afastar o factor religioso do universo da política.

Ao escutar os comentadores políticos deste final de semana – um pouco por todo o lado, quer debruçando-se sobre o conselho nacional do CDS, quer comentando a fraca oposição do PSD – poderíamos chegar à conclusão de que estamos a viver circunstâncias semelhantes. Ou seja: como todo o “centrão” político foi tomado de assalto pelo governo de Sócrates, resta-nos acreditar que chegámos ao fim da história. A tese é aceitável do ponto de vista teórico.

Praticamente todas as grandes bandeiras da “política real”, até aqui defendidas pela direita e pelo centro-direita, foram assumidas pelo governo socialista. As alterações no sistema de saúde, a política do ministério da educação, o combate ao défice e um rigoroso controle orçamental, a redução da despesa pública, e até questões aparentemente laterais como a disciplina militar ou a liberalização do negócio das farmácias não suscitaram – até ao governo de Sócrates – grandes entusiasmos por parte dos socialistas. Basicamente, chegámos a um ponto em que aceitámos que certas reformas políticas são ou eram indispensáveis ao bom funcionamento do país. Daí que a esquerda no poder as tenha assumido como inevitáveis. A estratégica passou por governar à direita e deixar aqui e ali alguns tons “de esquerda” – como a matéria do aborto, por exemplo. Basta ler as opiniões de muitos empresários, alguns deles tradicionalmente alinhados com o PSD ou o CDS, para perceber que estão contentes com o trabalho feito.

Este desenho é inquietante: o “centrão” político alastraria, não como uma “vaga de fundo” mas como uma mancha que anularia as diferenças e tornaria inúteis as alternativas – porque, lá está, “o que deveria ser feito estava a ser feito”. As saídas de José Miguel Júdice do PSD e de Maria José Nogueira Pinto do CDS, vão, de alguma maneira (tirando aquilo que é ambição pessoal ou problemas no relacionamento de cada um deles com as direcções partidárias), nesse sentido.

Portanto, diante deste quadro, em que Sócrates incarna as virtudes políticas do “centrão” (incluindo uma certa imagem autoritária, muito grata ao “espírito português”), de que vale fazer oposição? Se “o PSD não tem autoridade moral” para atacar as alterações no sistema de saúde, ou na estratégia de combate ao défice, ou na reforma da administração pública – porque defendia idênticos caminhos antes – de que vale fazer oposição? Quer queiram, quer não, é este o monstro que está a crescer sociologicamente entre nós. É um monstro cheio de auto-satisfação socialista e de resignação no eleitorado do centro direita. Tanto a auto-satisfação como a resignação deram, ao longo da história, maus resultados.

A ideia de que estamos diante do “fim da história”, uma etapa em que os conflitos se diluem, em que as ideologias perdem significado, em que “não há outro caminho”, não é uma catástrofe. Mas é inquietante pelo que permite.

in Jornal de Notícias – 2 Abril 2007

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