fevereiro 26, 2007

Os problemas com Jardim

Portugal tem um problema com Alberto João Jardim. Sou insuspeito para o dizer, porque andei em bolandas com o homem, de tribunal para recurso e de recurso para prescrição - um tribunal (do Funchal, claro) mandou-me pagar-lhe uma indemnização choruda por ter dito que o presidente do governo regional da Madeira era "um dos candidatos a palhaço da política portuguesa". Foi há anos, e entretanto já se lhe chamou coisa pior. E ele também abusou da língua. Outra instância mandou repetir o meu julgamento, por achar que o tribunal (do Funchal, claro) tinha exorbitado e errado. Ficámos por aí. Esta é a minha declaração de interesses andei em guerra com o homem mas não sou de ressentimentos.

Isto não me impede de reconhecer que é suspeita a quase unanimidade nacional contra Jardim e a sua figura. A política portuguesa, que é classista e cheia de castas (ou de iluminados, ou de proprietários da República, ou de velhos terratenentes do carreirismo), odeia Jardim. Sinceramente, odeia Jardim não pelo que ele tem feito na Madeira, mas pela sua figura. Enfim, é-lhe antipática aquela figura de homem que come carapaus e bebe copos de ponche nas festas do Chão da Lagoa. Também não lhe apreciam os trajes em que o homem se passeava na Avenida Arriaga durante o Carnaval. Em última instância, invocam o défice, o orçamento, a dívida e o orçamento. Mas em primeiro lugar detestam Jardim por ele ser como é. Que ele gastasse o dinheiro do orçamento para construir vias rápidas que encurtam o trajecto entre o aeroporto e o Funchal, aceita-se (facilita a vida do turismo continental). Mas quando chega a hora de fazer contas, o orçamento regional aborrece-os como não os aborrece no continente que alguém seja mais perdulário do que Jardim (e há casos, há casos). Creio que têm alguma razão Jardim gastou-o vastamente e, se considerarmos os retratos da ilha nos anos setenta, vê-se alguma diferença. A vida, lá, melhorou bastante. Não tudo. Porque nem tudo é dinheiro. Mas os tribunais deveriam regular o resto: os desmandos e mandos do governo junto da comunicação social (comprando-a ou hostilizando-a), a proximidade com os amigalhaços, a alarvidade do poder, que é tão grave na Madeira como em qualquer concelho continental.

Mas a figura, a figura, é que os destrói definitivamente. A figura e o descaramento. E se, quanto à figura podemos discutir, porque ela esconde os problemas do orçamento e do endividamento, é preciso reconhecer a Jardim a coragem de se dirigir a Lisboa sem medo e sem baixar o tom de voz. Pessoas destas aguentam-se com dificuldade e são incómodas, evita-se apresentá-las às visitas. São o nosso Bei de Tunes à falta de bombo da festa, por exemplo, bate-se "no Jardim".

O facto é que Jardim incendiou a pequena política portuguesa. O que a oposição queria que ele fizesse há muito, ele fez voluntariamente - demitiu-se. Ele é um homem sem tempo para minudências, e devemos agradecer-lhe essa prova de honestidade. Outros teriam feito contas mais complexas e calculado perdas e danos. Certamente que Jardim o fez, mas o resultado seria o mesmo se a contabilidade lhe saísse furada. Não consta que tenha enriquecido com a política. Não consta que ande a fazer acordos para dormir com o inimigo.

Eu, que não gosto dele, reconheço-lhe a rara coragem que anda a faltar há muito na política portuguesa a de afrontar os adversários. Na política doméstica, cheia de ademanes e salamaleques, todos têm de gostar de todos. Jardim não gosta de todos e não faz segredo disso. Elege inimigos, adversários - e, estranhamente, até amigos. A unanimidade nacional dos pensadores confortáveis em redor de Jardim (atacando-o e escolhendo bem os adjectivos) faz-se espécie. Eles também construíram a figura de Jardim, também a desenharam. Se é para caírem, Jardim arrasta-os consigo. É bom que saibam que o homem não os deixa a rir pelas costas.

in Jornal de Notícias - 26 Fevereiro 2007

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fevereiro 25, 2007

Notas do outro lado

1. Washington debaixo de neve fica ainda mais interessante. Falo por Georgetown, claro. O nevão amplificou o silêncio da manhã de domingo. Tudo é pretexto para regressar à Barnes & Noble. Ontem à noite, o The Little Book of Plagiarism, de Richard A. Posner, a nova edição do guia de cervejas de Michael Jackson (são quinhentas!) e, por recomendação do Nuno Mota Pinto, Guns, Germs and Steel. The Fates of Human Societies, de Jared Diamond, uma leitura fantástica. Levo já a meio, lido e dobrado entre papéis, o The Conservative Soul, de Andrew Sullivan. Hoje foram revistas, as habituais. Um saco de livros no meio da neve.

2. Brunch no Peacock Cafe depois de um mini-corona fumado no meio da rua, a ver cair a neve dos beirais. Os americanos falam muito alto, o que, às vezes, é saudável. Mesmo enquanto lêem o jornal ao balcão, são barulhentos. Ementa saudável e recomendada pelos dietistas de todas as religiões e tendências médicas: calamares com molho picante e, depois, corned beef hash com ovos escalfados em molho holandês; para beber, água e Black Label. E um café expresso notável, muito bom, um ristretto perfeito. Depois, voltar à rua para fumar e andar entre gente que faz o mesmo.

3. As lojas de tabaco são lugares muito confortáveis rodeadas de um mundo hostil. Há alguns anos tinha estado nesta mesma loja de charutos – continua confortável. Compro dois Partagas churchill, maduros (dominicanos, claro), dois robustos e um small black robusto (sou adepto da tradição da Connecticut leaf). As pessoas que entram têm um ar saudável e parecem preparadas para um bom charuto de domingo.

4. Na melhor loja gourmet de Washington, a libra de queijo da Serra amanteigado custa 36 dólares. E os sabonetes de banho Ach. Britto custam $16,92; os mais pequenos «apenas» $6,92. É o sucesso português fora de portas; são os mais caros de toda a loja. Parece que Madonna usa os produtos Ach. Britto. Imagino-a a espremer a bisnaga de creme de barbear Musgo Real.

5. Caminhada do centro até ao campus da universidade. Um rapaz, em calções, esfrega neve pelas pernas; deve ser uma cerimónia ritual.

in A Origem das Espécies - 25 Fevereiro 2007

fevereiro 24, 2007

Hasta que llegue el tren


Em San Carlos de Bariloche, na Patagónia, há um restaurante que conquistou Francisco José Viegas.

Eu tinha partido para Ushuaia para ver se ainda existiam rastos dos personagens de Chatwin, pelo menos em redor da Estancia Harberton, muito perto do lugar onde a América termina, do outro lado do canal Beagle. Acho que, de certa maneira, temos o direito a uma certa alucinação, não só ao refazer o percurso de Bruce Chatwin (Na Patagónia), de Buenos Aires a Ushuaia, mas ao imaginar, por exemplo, Charles Darwin à proa do HMS Beagle, quase tocando Puerto Williams ou visitando Lapataia.

No regresso, desconfiado, parei em Bariloche, San Carlos de Bariloche – e quis visitar a mítica estação ferroviária que marca os trânsitos na Patagónia. Acabei por encontrá-la ao fim da tarde – e era, agora, um restaurante, Hasta que Llegue el Tren, com uma magnífica reserva de vinhos, uma carta de cervejas inesquecível, e um fantástico gigot de cordeiro (além de um prato de queijo assado com chalotas, é o que eu me lembro ter pedido para provar algumas cervejas de El Bolsón).

Depois, a luz fantástica do final da tarde, o humidificador de charutos e um conhaque de Mendoza. Para quem vinha carregado de literatura até aos ossos (chovia muito, estávamos em Julho), o Hasta que Llegue el Tren foi uma surpresa quase tão grande como atravessar as cordilheiras para ver o Pacífico. Só que muito mais saborosa. Recomendo-o.

Hasta que llegue el tren
Av. 12 de Octubre, 2400 Estación San Carlos
Barriloche, Rio Negro - Argentina
Tel. (+54) 294445-7200
http://www.hastaquellegueeltren.com/

in Fugas, suplemento do Jornal Público – 24 Fevereiro 2007


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Recordações de Marrazes


Era uma vez no Oeste um restaurante que foi dos primeiros a atrair grandes peregrinações de apreciadores de entradinhas. Regresso a um clássico: o Tromba Rija, perto de Leiria.

Houve um tempo, na história da obsessão por res­taurantes, em que ir ao Tromba Rija, em Marrazes, Leiria, era sinónimo de refeição avantajada. Significava isso, antes de mais, que a mesa estava posta para quem quisesse comer bastante, comer muito, comer bem. Não eram sinónimos mas, enfim, a coisa andava lá perto, uma vez que a quali­dade dos produtos apresentados era satisfatória, quase nunca descia daquele patamar que elevava o restaurante ao pódio das referências.

Era um certo tempo, sim – o Tromba Rija era, no fim de contas, o único "restaurante buffet" de cozinha portuguesa e de produtos portugueses. Antes de che­gar ao seu famoso bacalhau e da sua vitela no forno, o comensal passava pela mesa onde perto de cin­quenta entradinhas aguardavam os apetites mais vorazes. Como o leitor adivinhou, eu gosto da desig­nação entradinhas – faz supor um manancial de delicadezas, de 'petit-fours', de coisas maneiras, de palavras ternas. Com o tempo, a quantidade alas­trou. Contei noventa e oito entradinhas dispostas sobre a mesa: enchidos (paio, chouriços, alheira, farinheira, morcelas, morcela de arroz, lentrisca, bucho, etc.), variadíssimos; carnes frias, bastantes (do presunto ao rosbife); depois, uma sinfonia de pequenos pratos que a nossa tradição não devia per­der – feijão guisado, feijão-frade, pimentos assados, feijoca, favas, peixinhos da horta, coração, rins, tortilha de batata, couve-flor panada, orelha, ovos com espargos, ervilhas guisadinhas, ovos verdes, o rosbi­fe, a salada de polvo, moelas, chispe, rissóis, croque­tes, bolinhos de bacalhau, espinafres com pinhões, coelho estufado, pataniscas, filetes, torresmos, arro­zes, o que se quiser imaginar; queijos, enfim, com mais parcimónia, mas substantivos na sua origem (um ligeiro Serra, um Serpa, um de Nisa e outro de Castelo Branco, São Jorge, uma amostra de Azeitão, picante, em azeite, entre outras variedades dispostas junto dos vinhos).

Essa abundância à mesa é convi­dativa – ou constitui uma fonte de cansaço espiri­tual, uma vez que a enumeração deve ser longa, exaustiva, minuciosa e apetitosa. É coisa suculenta. Uma pessoa serve-se, repete, varia, faz combinações, senta-se, levanta-se, descobre uns ovinhos de codorniz, vê se o abastecimento de rissóis foi mudado e se estes vêm quentes (os de camarão ou os de carne), pica aqui e ali, volta a sentar-se, pede um vinho, debica (o verbo é incorrecto, claro), e aguarda que esteja pronto o bacalhau assado com migas e batatas a murro. É este o programa de uma ida ao Tromba Rija.

Numa noite recente, depois de uma travessia da A8, entrámos em Marrazes. Chovia largamente. O Tromba Rija estava fechado? Não, as portas esta­vam fechadas porque ainda não eram oito horas – deixaram-nos entrar, apiedados em noite de ven­daval. A mesa ainda não estava repleta de "entradinhas" mas elas estavam a caminho - fomos assistindo ao seu gradual aparecimento e devo dizer que é um espectáculo. Na meia hora seguinte, o restaurante
foi enchendo com grupos vorazes, com casais de ar feliz e apopléctico ou com famílias de faces ligeira­mente vermelhuscas, cheias de apetite visível. É bom ver o espectáculo. Um cacharolete de versões instrumentais de George Michael e dos Wham enchia a sala – as empregadas de mesa, simpáticas e com jeitos de "antiga portuguesa", pediam, solícitas e generosas, que não desistíssemos logo à terceira ronda. Repetimos. Ainda esperámos o bacalhau para morder uma lasca, banhada em azeite, e eu levantei-me, cobiçoso, diante do quindim exposto à vista de todos, fatiando-o sem dó nem piedade. Havia ainda formigos, mousses (maracujá e chocolate), farófias, brisas do Liz (excelentes), doces diversos, toucinho-do-céu e papos-de-anjo, aletria e arroz-doce, entre outras amostras.

Há restaurantes onde vamos experimentar novida­des e outros onde vamos possuídos por apetites monumentais. Neste caso, depende tudo da luminosidade do 'buffet'; se lhe agrada o género, tente-se; se acha que um jantar ou um almoço é apenas para petiscar, não vale a pena o esforço. E confie na sorte. Há Tromba Rija em Gaia e em Lisboa, mas ainda não visitei.

À lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 26
Vinhos brancos: 10
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 8
Aguardentes & Conhaques: 8

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Parque nas proximidades
Levar crianças: Sim
Área de não-fumadores: Não
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 30 euros

RESTAURANTE TROMBA RIJA
Rua Professores Portela, 22 – Marrazes
Tel: 244. 852 277
Aberto de Sexta a Domingo

in Revista Notícias Sábado – 24 Fevereiro 2007

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Das maldições e da vantagem da sorte

1. Há uma maldição no Sporting? Há. Vem desde José Peseiro pelo menos, para não irmos à his­tória de Alvalade. O empate com o Aves é um daqueles golpes de azar que destrói as esperanças de Pau­lo Bento e do clube. Não por ser um empate com o Aves, mas porque o Sporting está a habituar-se a resultados que o deixam no limite da glória e no átrio da perdição. É uma maldição, sim.

2. Há sobre José Mourinho uma maldição – a dele próprio. Creio que vive bem com isso e com o seu imenso, avassalador génio e com o formidável talento que apregoa. Todos nos lembramos da ocasião em que afirmou "estar escrito" que o F. C. Porto seria, campeão. O pequeno mundo português tremeu; há muito tempo que ninguém tinha desafiado a deliciosa pequenez lusitana daquela maneira. E, no entanto, ha­via naquela frase uma certeza e uma determinação apaixonadas – no próximo ano seremos cam­peões. Mourinho passou então a ser o bruxo de serviço, porque foi campeão, sim. Também disse, numa fase da Liga dos Cam­peões, que ia ganhar à Grécia de­pois de um resultado duvidoso nas Antas. Foi. Há quem diga que ele sabia que ia perder a derradei­ra Taça de Portugal para o Benfica e que, com uma semana de antecedência, adivinhou as substitui­ções do Benfica naquele derradei­ro Benfica-F. C. Porto no velho Es­tádio da Luz e teria mandado vigiar
Sokota, que não jogava há semanas. Esse talento transformou-se em maldição. Na semana passa­da, antes e depois do jogo do Chelsea com o F. C. Porto, Mouri­nho e Wenger, o treinador do Ar­senal, discutiam sobre quem era o melhor do mundo. Mourinho não viu a maldição cair sobre ele. Mas caiu. Admitiu que era o melhor. Se Wenger e o Arsenal ganharem e se o Chelsea perder com F.C. Porto, Mourinho está tramado. É uma maldição que o seu talento não merece mas que o seu feitio está a pedir. Mas não é crime ter feitio.

3. Há uma maldição nos jogos do F. C. Porto com os ingleses? Não. De­pois do jogo contra o Chelsea, esta semana, a segunda mão em Stamford Bridge está ao alcance. Basta não quebrar a equipa com trocas de alas, como aconteceu na quarta-feira.

4. O Benfica jogou bem com a equi­pa dos coxos de Bucareste e mere­ceu ganhar. A vantagem da sorte chama-se PSG, a eliminatória se­guinte. Com o Braga, agora estra­nhamente comandado por Jorge Costa, o Benfica confirma um bom momento de vantagem do seu fute­bol: claro, transparente, lúcido. Não criativo nem exuberante. A exube­rância chama-se Miccoli.

5. Quaresma mostrou mais uma vez quem é: sobre ele paira a maldi­ção do talento e o azar de viver num país de invejosos. Mourinho teve medo de Quaresma.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 24 Fevereiro 2007

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fevereiro 19, 2007

O PSD diante do seu deserto

Sou um distraído e não sabia que José Miguel Júdice ainda valorizava a sua condição de militante do PSD. Os argumentos de Júdice, que abandonou o partido, sendo pessoais e sérios podem, simultaneamente, parecer ingénuos para o frequentador da política. Mas ninguém pode duvidar da sinceridade deles.

Evidentemente que as pessoas mudam; provavelmente J.M. Júdice mudou e o PSD não é o partido onde ele caiba, se é que as pessoas têm de caber em algum partido. Júdice considera que o PSD é, hoje, um partido “muito mais conservador do que há vinte anos”, quando Portugal acabava de entrar na União Europeia e Cavaco era primeiro-ministro. Há decerto algum simbolismo na saída de J.M. Júdice do partido que ajudou a criar, mas não sei se é aquele que o próprio lhe atribui – na verdade, o PSD está actualmente a rever o seu programa e existe uma comissão onde se encontram ou se encontravam os nomes de Manuela Ferreira Leite, Alexandre Relvas, José Pacheco Pereira ou David Justino.

Por isso mesmo é importante uma afirmação de Júdice que me parece importante: “O PSD mudou muito de natureza e não consegue captar para o seu seio os dinamizadores ideológicos porque não tem nada para eles.” Tenho insistido nesse ponto desde a vitória de José Sócrates, não porque o PSD seja obrigado a rever os seus princípios em função de ciclos eleitorais ou porque eu seja parte interessada no assunto, uma vez que não sou “eleitor pertinente” do PSD. Na verdade, o vazio do PSD constitui um assunto interessante do ponto de vista sociológico e um dos exemplos da repulsa que a direita portuguesa tem pelo seu tempo e que pode transformar-se em medo do seu tempo.

Não vale a pena fazer a história do partido para perceber que matérias como o debate intelectual, a interrogação à sociedade e ao que ela pensará do futuro têm sido cuidadosa e habilmente mantidas fora das preocupações do PSD. Vamos e venhamos, o PSD pode ter uma política de emigração, uma política para o ensino superior, uma estratégia para o crescimento económico, uma política para as cidades – o problema é que não tem ideias sobre esses assuntos. São coisas diferentes. Durante todo este tempo, a direita portuguesa investiu muito mais no “alinhamento dos jornais e telejornais” para controlar “a esquerda das redacções” ou a filiação esquerdista do “sector intelectual”, do que na libertação dos seus horrores históricos ao debate, à política ou às formas culturais contemporâneas. Um dos absurdos que daí resulta é a célebre designação de muitos eleitores como “culturalmente de esquerda” e “politicamente de direita”, por exemplo. O que significa isso? Rigorosamente nada.

Os dirigentes históricos do PSD, um partido que nasceu flutuante, pós-marcelista, alimentado pelas classes médias receosas da “bancarrota”, do comunismo e do desvario das contas do Estado (muito embora alimentadas por elas), pensaram que para prolongar a vida do partido lhes bastava promover a rapaziada da “jota” (sempiternos candidatos a um cargo político de baixa ou média dimensão, consoante soubessem vestir-se), agitar com algum efeito os temas morais do passado e falar de economia. Como se vê, os efeitos não se fizeram esperar.

A saída de J.M. Júdice do partido constitui, no entanto, um duro golpe desferido contra a imagem de José Sócrates como dirigente de esquerda. Visto à distância, Júdice diz mais ou menos isto: não vale a pena estar no partido, uma vez que José Sócrates ocupou o espaço do PSD. Na verdade, o que o PS de Sócrates ocupou, e bem, não foi o espaço político do PSD mas sim o deserto que o PSD deixou criar à sua volta ou até no seu interior. Nada que não mereça.

in Jornal de Notícias – 19 Fevereiro 2007

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fevereiro 17, 2007

À beira do Bairro Alto


Vai uma sopa de abóbora asiática com tofu frito e camarão tigre? É apenas uma das muitas sugestões na carta do Flores, no Bairro Alto Hotel. Um nadinha afectado, sim – mas bom.


Às vezes lamento não ser tão informado – mas nem sempre. Há uma razão para isso: trata-se de uma defesa contra as modas, que, sendo em geral passageiras (não se pode querer eternidade a todo o custo), merecem ser ainda mais rápidas a desapa­recer. No princípio dos anos oitenta, os bifes com frutas fizeram estragos; depois, chegaram as gastronomias repentistas e, mais tarde, as "reduções" e os nomes de pratos complexos para atribuir a 'carpaccio' de novilho. Há tendências que alber­gam uma grande dose de insanidade. E há coisas relativas que assentam sempre num problema de linguagem; por exemplo, atribuir e malbaratar classificações de superlativo, incontornável, exímio, genial, supremo, extraordinário, transcen­dente, isso a mim deixa-me preocupado. O que dizer a seguir, quando se encontra qualquer coisa verdadeiramente "superior"? Portanto, poupemos nos adjectivos.

Mas, mesmo assim, às vezes lamento ser tão pouco informado. Quantos restaurantes novos abrem as portas por, digamos, semestre? Ignoro. Sigo reco­mendações, evito ouvir os adjectivos, acredito nos amigos. Às vezes agradeço a minha deficiente informação sobre os "restaurantes da moda"; vou a um ou outro, agradeço, provo, surpreendo-me - e deixo passar até à próxima visita.

Mas sou um conservador relapso. Apetecem-me frequentemente comidas caseiras; intervalo com "cozinha de fusão", aceito as recomendações dos chefes e leio os seus livros para ver como se chega "lá". Quando viajo, tento comparar, expe­rimentar, arriscar; quando vou à prova, tento ser educado, compreensivo, apenas um nadinha radical, se o assunto e a relevância prometem. Mas não tenho preconceitos. Já comi o que Deus sabe. Provei gafanhotos sem saber, no México. Mudei toda a minha experiência porque uma comida, preparada em algum lugar, me surpre­endeu em certo lugar. Dito isto, o restaurante Flores tem recebido encómios generalizados. A sua decoração está marcada pela elegância, pelas linhas suaves (e minimais) e pela luz, filtrada ou apenas confortável. Fica no Hotel Bairro Alto, diante do Largo de Camões, na penumbra do Chiado.

Começo por dizer o seguinte: gostei. Gostei do ambiente, que é simpático e apenas ligeiramente afectado – e da comida, que achei, digamos, cati­vante e de resultados bem conseguidos. Sopa de abóbora asiática com tofu frito e camarão tigre, uma amostra dessa elegância saborosa que me recordou uma prova de outros tempos, a sopa de couve-flor com azeite de trufa e sementes de sésa­mo. O 'carpaccio' de novilho com vinagrete de 'wasabi' e queijo de cabra, era delicado e a ligação à compota de cebola roxa emprestava-lhe um toque de ternura, uma coisa que só enobrece qual­quer 'chef, como, de resto, aconteceu com a terrina de 'foie gras', vinagre balsâmico e trufa preta. Gostei bastante do lombo de charolês laminado com 'pak choi', milho e 'chutney' de manga (o lombo de borrego pareceu-me muito suculento e levíssimo, ao mesmo tempo), provei o 'risotto' de mariscos e um nadinha do filete de garoupa com chouriço de porco preto, que estava, confesso – arriscando o adjectivo e pedindo desculpa –, "perto do sublime", reconhecendo similitude com o de cherne. Nas sobremesas, há uma lista como­vente de sorvetes (recomendado pelos meus ami­gos, e eu acredito neles, como disse) além de uma tarte de chocolate preto com gelado de tomilho que achei surpreendente.

Junto com isto, há um menu de degustação com vinhos escolhidos para cada circunstância e esco­lha – numa carta simpática, com boa selecção mas sem grande quantidade. A criação do 'chef' Henrique Sá Pessoa continua firme e emblemática para uma cidade que procura novidades à mesa e que, às vezes, se desilude com razão. No Flores não me desiludi, apesar do preço, que é elevado mas justificado. Longe disso, está na minha lista.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 46
Vinhos brancos: 12
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 12
Aguardentes & Conhaques: 8

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Parque nas proximidades
Levar crianças: Não
Área de não-fumadores: Não
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 55 euros

RESTAURANTE FLORES
Bairro Alto
Hotel Praça Luís de Camões
1200-243 Lisboa Telef. 21 3408288

in Revista Notícias Sábado – 17 Fevereiro 2007

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O futebol ao pé da mesquita

1 - Os meus amigos de Casablan­ca estão humilhados com o tratamento dado a José Romão, que se demitiu do seu clube marroquino de­pois de, no ano passado, se ter sa­grado campeão nacional. Este ano, estava ainda em posição de discutir o título, em terceiro lugar. Na verdade, lendo os textos do "Le Matin", princi­pal jornal do país, temos a impressão de que José Romão partiu com todo o ouro do país, ingrato depois de ter ganho o caminho para ganhar o título. Segundo o "L'Opinion", no entanto, José Romão é um "gentleman" que é preciso respeitar. No fundo, Romão conquistou um título e, farto das querelas com a Direcção do clube, partiu. Devemos, por isso, diz mais ou me­nos o "L’Opinion", conservar as me­mórias dos bons momentos e das vi­tórias.
O caso é importante para os marro­quinos e não apenas para os adeptos do clube. Ao ler este exemplo na Im­prensa marroquina nos cafés de Ca­sablanca, penso no destino do fute­bol, uma espécie de furacão onde não contam apenas as vitórias, nem o sucesso, nem o destino. O futebol é mais do que os golos marcados. Factores imprevisíveis como o humor e o mau humor também contam.

2. O procurador-geral da República acha que a Justiça se interessa finalmente pelo futebol. Se Pinto Monteiro não estivesse já relacionado com o futebol, seria caso para lhe darmos as boas-vindas. Visitando as listas dos chamados órgãos dirigentes da Liga ou da Federação, há no­mes bastantes que vêm da magistratura. O que acontece sempre nestes casos é uma espécie de ressen­timento contra o pai. E a uma velocidade que é ace­lerada por factores que deviam ser mais ponderados. Portugal estará transformado não numa república de juízes, mas numa espécie de protecto­rado de magistrados e de juristas. Sinceramente, isso é mau.

3 - Esperavam, portanto, que eu reju­bilasse com a derrota do Benfica diante do Varzim, no estádio onde vi os pri­meiros jogos de futebol da velha 1.ª Di­visão? Estão enganados. Fiquei con­tente por o Benfica ter ultrapassado o Dínamo no último minuto, como con­vém a uma vitória passional.

4 - Estou longe de Portugal, a sul de Casablanca. Os rumores do futebol chegam aqui como em toda a parte. Sentado no muro, junto de um café, ouço os golos do campeonato do Qatar numa televisão instalada ao pé da mesquita.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 17 Fevereiro 2007

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fevereiro 12, 2007

A felicidade por decreto-lei

Na semana passada, o Presidente da República esteve presente numa sessão plenária da Academia Portuguesa de Medicina e aproveitou a oportunidade para falar de saúde pública. Para o Presidente, “o progresso de um país também se mede pela melhoria dos cuidados de saúde”. Estamos de acordo, inevitavelmente: nas grandes cidades ou em Odemira, nas aldeias abandonadas de Vinhais ou nos bairros periféricos de Lisboa deve melhorar-se a chamada “prestação dos cuidados de saúde”. É um direito básico e inegável.

Há depois, nas palavras do senhor Presidente, a referência a “um enquadramento jurídico claro e de uma implementação rigorosa de políticas e procedimentos administrativos para lidar com fenómenos como o tabagismo, o consumo em excesso de bebidas alcoólicas, a toxicodependência, a obesidade ou os acidentes na estrada e no trabalho”; ou seja, a necessidade de legislação para combater os malefícios do mundo. É um tema totalmente diferente, mas percebe-se o que está em causa: diminuir efectivamente o consumo de álcool entre miúdos ou nas estradas, fomentar caminhadas nos jardins e bosques, evitar que vivamos em ambientes fechados ou que respiremos a poluição das cidades, tudo isso que o leitor certamente adivinha.

A saúde pública deixou de ser uma preocupação dos médicos, dos sanitaristas ou dos urbanistas – transformou-se num imperativo político. A política, em geral, não se escusa a falar da nossa felicidade como um direito; com os anos, substitui-se aos indivíduos, obrigando-os a serem felizes, mesmo contra a própria vontade. Para isso, várias cidades dos EUA decidiram banir o fumo do tabaco dos restaurantes, bares e locais de diversão pública; na Europa, outros países tomaram decisões radicais nessa matéria. O mundo ficará mais seguro, parece, sobretudo se tivermos em conta que a União Europeia tem uma política alimentar que vai eliminando redutos de colesterol, gorduras e até tamanho dos produtos.

A saúde pública é um domínio vasto que frequentemente entra nos caminhos da moral e dos costumes. Os queijos com alto teor de gordura serão perseguidos, da Serra da Estrela a São Jorge e ao Pico. Um dia haverá fiscais vigiando o teor de sal no bacalhau. As casas de família irão, com o tempo, transformar-se em antros de pecado – aí podemos comer pastéis de massa tenra, pataniscas, “bacalao al pil pil” ou à lagareiro, feijoadas e compotas preparadas com açúcar em vez de adoçante (havendo até quem fume um charuto no final, mais perigoso do que uma “erva” simplória, muito bem admitida socialmente). Um dia, mais tarde, os inspectores de saúde pública entrarão em nossa casa e desaprovarão as migas de bacalhau ou o feijão no forno. Na escola, os institutos da saúde perguntarão subtilmente às crianças se os pais têm por hábito comer fritos e barrar o pão com manteiga, essa substância perigosa. Justificarão. Justificarão sempre. Querem o nosso bem.
Nunca sei o que é melhor, se a liberdade, se o comando da nossa saúde por políticos que elegemos com outras finalidades.

O Presidente não falou disto. Mas eu falo, porque temo bem que o “enquadramento jurídico claro” e a “implementação rigorosa de políticas e procedimentos administrativos” seja meio caminho andado para festejar a mania portuguesa de legislar e regulamentar.

Querem exemplos? No caso do tabaco, vem de Novembro de 1959 a proibição de fumar dentro dos recintos fechados onde se realizem espectáculos (trata-se do Decreto-Lei n.º 42661, de 20 de Novembro, para lembrar). Essa lei foi revogada em 1983 e substituída pelo Decreto-Lei n.º 226/83 de 27 de Maio. Bastaria, porque está lá tudo. Mas não basta: o espírito legislativo português precisa de mais. Não precisa de educar os miúdos e de facilitar a vida aos cidadãos – precisa de procedimentos administrativos e de leis. É isto Portugal.

in Jornal de Notícias – 12 Fevereiro 2007

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fevereiro 11, 2007

Antes das férias

No tempo de Ramalho Ortigão, o mundo era de uma grandeza consi­derável – por isso saboreamos esse livro suculento que é Praias de Portugal, Guia do Banhista e do Viajante, que faz a tra­vessia do século XIX para o XX com uma certa nostalgia. Não do mundo em si (não nos entra na cabeça a ideia de veranear em Vila Praia de Âncora de fa­to às riscas e cobertor pelos ombros em busca de iodo, nem entraremos nas águas de Algés), mas do olhar que ainda era possível — trata-se da descoberta do que já não é novidade. Ou seja: quando Ramalho Ortigão propõe que planee­mos as férias com uma estada pro­longada na praia de Paço de Arcos, on­de «as águas são saudáveis», pensamos nesse tempo em que havia território pa­ra descobrir.

Depois, o mundo mudou bastante – o fim-de-semana inglês foi uma conquista admirável, tal como as férias pagas e os hotéis da Costa Brava. Não é sarcasmo. É assim mesmo: do tempo em que a viagem era uma aven­tura prodigiosa, perigosa e reservada a eleitos ou a punidos (como no nosso sé­culo XVI) até ao tempo em que planea­mos um «fim-de-semana prolongado» vai uma distância profunda que não se mede pela conquista do tempo, mas também pela vitória sobre a escravidão, o trabalho e a resignação.

Garrett, tirando ser um homem so­turno e empertigado, teve o seu momento de glória ao invocar Xavier de Maistre no princípio das Viagens na Minha Terra: a verdadeira viagem, a mais intensa, era aquela que se podia fazer à roda do nosso quarto, desde que o espírito estivesse pre­parado. Nunca acreditei nisso. Faltava o cheiro, a poeira do céu, o silêncio dos ho­rizontes. Mas não interessa.

Nesta altura do ano, penso sempre nas cordilheiras dos Andes, mas creio ser uma mania pessoal. Atravessei-as com a sensação de estar a pisar terreno proibido à minha imaginação; a primeira vez que tomei o caminho de um pequeno glaciar andino para o ultrapassar e chegar «ao outro lado», suspeitei que ia anular anos e anos de suspeita e de sonho – que me mantiveram desperto para a fantasia de chegar lá. Soube sempre que, ao chegar à Islândia pela primeira vez, iria perder-se parte substancial das centenas de páginas de Loti e de Júlio Veme que desde a ado­lescência me tinham fascinado.

Seja como for, penso sempre que «talvez seja este ano» que atravesso definitivamente as cordilheiras (agora, a mi­nha fantasia é começar no Peru). Às ve­zes, limito-me a comprar um livro sobre os Andes, a ver um filme sobre os Andes – para poder, pacificamente, adiar a via­gem. Em vez disso, prometi aos meus fi­lhos levá-los a conhecer o México, se bem que o meu México nunca será – por agora – o deles: viagens sem horários, poisos indeterminados em restaurantes de beira de estrada, dormir em pousadas de aldeia, ouvir a música dos mariachis nas praças, escutar o som das florestas junto dos desfiladeiros onde se dizia que voa­vam os pássaros mais antigos e o puma se esconde, visitar a casa de Frida Kahlo, as catedrais de Oaxaca e de Mérida, pro­curar uma praia tranquila no corredor do Pacífico entre Chiapas e Oaxaca, entrar na Guatemala, rondar o Belize.

Sinceramente, estou hoje mais con­vencido do que nunca de que Ramalho Ortigão tinha razão, contra o ar soturno e embevecido de Garrett: a viagem é um elemento de perdição e de conhecimen­to. Talvez por isso eu queira que os meus filhos me acompanhem na travessia do México, e comam tamales, e bebam a pri­meira cerveja, e aprendam o ritmo da­quela música estranha que se ouve à bei­ra das estradas. Podem levar o Gameboy e o leitor de MP3. Podem até achar kitsch o kitsch das catedrais de Oaxaca. Mas sa­bem que existe um mundo que não aca­ba deste lado do mundo.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Fevereiro 2007

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fevereiro 10, 2007

Trás-os-Montes na linha


O Companhia do Azeite, em Cascais, herda as referências e os pontos cardeais de Mirandela,Trás-os-Montes. Isso é bom? É, e muito.

Domingo Chuvoso e quase tardio, ou seja, hora de almoço. Para quem se aproxima de Cascais, nada mais distante do que Mirandela. E, seja como for, onde está o mar, uma pessoa não pode colocar o Tua; onde está a estrada para Sintra, ao longe, não se pode montar, serpenteando, a estradinha que vai para Rio Torto e Valpaços; onde está a marginal não podemos imaginar que se trata do caminho para o Cachão e Vila Flor, mesmo que os velhos trilhos da Linha do Tua, ladeados por choupos, à beira do rio, façam lem­brar o da Linha do Estoril.

A única semelhança, salvo erro, está na existência do Companhia do Azeite, num dos bairros interiores da vila, o da Torre – um restaurante que nasceu para herdar a memória, a ementa e os sabores que vêm do Museu do Azeite, lá na Terra Quente. A Terra Quente não é uma ficção que apenas serve a geografia ou a literatura, limitada por Vila Flor, Alfândega da Fé, Macedo de Cavaleiros – é também a aridez das montanhas e os vales verdejantes por onde desaparece aquilo que foi um conjunto de rios e ribeiras hoje vencidos pelo deserto.

Rigor do Inverno, evidentemente, porque se está em Trás-os-Montes; mas um Verão por vezes inclemente, cheio de frutos e de sombras. Se houvesse um vento, seria uma espé­cie de Suão do Norte, descendo pelos planaltos, paralisando junto aos ermos, crescendo de intensidade nos vales, onde se iluminaria na Vilariça, por exemplo.

Basta de evocações paisagísticas, diz o leitor. Faz bem. Passemos ao Companhia do Azeite, onde desta vez há uma lareira acesa, rodeada de sofás acolhedores onde se espera a mesa – que é larga, iluminada pela luz que entra por rasgadas paredes de vidro – coberta de toalhas brancas. Há, informo a abrir, um levíssimo aroma da terra; os mais sonhadores acham que é esteva, carqueja, perfume de urze. Eu acho que é imagi­nação, porque o tabuleiro de entradas acaba de chegar à mesa com torradinhas de azeite, alheira grelhada, linguiça, fatias de presunto (cortadas "à transmontana", com generosidade e sustância) queijo de ovelha, azeitonas, pastéis de massa tenra - excelentes estes últimos, quase a pedir repetição.

A ementa promete leitão (assado no forno e marinado primeiro), posta, arroz de pato, manta de vitela, casulas, cabrito serrano, bacalhau, lombo de porco com castanhas – tudo para con­vocar o azeite (que já está na mesa, em duas tacinhas para serem usadas a fim de se provar o pão). Casulas (ou casulos), sabe o leitor do que se trata? De um cozido transmontano com o feijão seco na sua vagem (as casulas), rodeado de carnes e legumes; desta vez não há, mas avançam para a mesa, logo a seguir às entradas (e um vinho do Douro), o bacalhau, o cabrito, a posta e o lombo com castanhas, que parece suculento. O cabrito está conforme, tostado, saboroso, a carne soltando-se sob as investidas do garfo; o bacalhau nada em azeite; a posta, muito envaidecida da sua decoração; a posta de vitela é tenra – e alta, clara, elegante.

Há aqui um problema de gosto: quem gosta de azeite e quem acha que pode tratar-se de um excesso (por exemplo, na posta, onde eu pre­firo, quando ela é preparada na sertã, o "molho de feira" de Moncorvo, Carviçais, Felgar, enfim, da Linha do Sabor, ligeiramente tocado por limão ou vinagre). Mas o azeite é de boa qualidade e não massacra o estômago. Questão de gosto. No conjunto, dou a nota mais alta ao bacalhau. Ficou por provar a alheira com ovo, mas ficará para a próxima.

Quanto às sobremesas, há um toucinho-do-céu, um pudim de gemas e um leite-creme recém-queimado, que vêm para a mesa distribuindo-se pelos pratos, mas também a carta anuncia tarte de amoras ou requeijão com várias compotas caseiras. O pudim é superlativo e o serviço aten­cioso, cúmplice.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 46
Vinhos brancos: 18
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 12
Aguardentes & Conhaques: 8

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Parque nas proximidades
Levar crianças: Sim
Área de não-fumadores: Não
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 35 euros

RESTAURANTE COMPANHIA DO AZEITE
Rua da Torre, 1155-F
2750-756 Cascais
Telefone 214 868 400
Encerra domingo ao Jantar e quarta-feira

in Revista Notícias Sábado – 10 Fevereiro 2007

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Quaresma, Ronaldo e tetraidrocanabinol

1. Há duas hipóteses, qualquer delas credíveis. A primeira diz que o Brasil perdeu com Portugal porque jogou menos e porque, na fase final da partida, os portugueses não deram hipótese; a segunda diz que o Brasil porque Dunga vestia aquela inacreditável camisa de flores em branco e negro, com duas tiras suspensoriais à frente (desenhada pela sua filha). Escolham a hipótese que mais agradar. Eu também gosto da segunda hipótese.

2. Na verdade, Portugal ganhou porque jogou melhor e porque a dupla Quaresma-Ronaldo, funcionando daquela maneira, arrancou alguns dos melhores momentos do jogo. Ronaldo mostrou porque razão é uma estrela, detestada pela mediocridade portuguesa que não lhe perdoa o génio, nem o talento, nem a velocidade, nem o riso. Scolari chegou a dizer que preferia Nani a Ronaldo. Quaresma provou porque é o melhor ala do futebol lusitano, detestado pelos polícias de costumes e pelos moralistas de serviço. Foram duas grandes presenças, a par da boa entrada de Simão, do regresso de Jorge Andrade e do golo de Ricardo Carvalho.

3. Mas há outra verdade absoluta, sobretudo para quem está habituado a ver futebol brasileiro – os jogadores do Brasil têm vindo a banalizar a sua arte. Hoje, a concorrência é maior do que há vinte anos, quando aquela mistura explosiva de samba, pobreza, ambição e criatividade dava resultados espantosos. Se a melhor equipa do mundo a jogar futebol fosse aquela que esteve no Mundial da Alemanha, seria dramático. O Brasil está cheio de banalidades no futebol. E perder com Portugal faz sempre bem à pequenina arrogância de que está bem fornecido.

4. Mantenho, de resto, a minha posição: é a selecção – sobretudo Ronaldo, Quaresma e Simão, neste caso – que obriga Scolari a não jogar como Scolari gosta de jogar. Nada de ressentimentos.

5. José Mourinho disse ontem que tinha mais em que pensar. Referia-se ao jogo do Chelsea com o FC Porto. Vamos e venhamos, ele tem alguma razão e ninguém pode levar-lhe a mal. O FC Porto tem escorregado em todas as curvas. A imagem é má. Sabem porquê? Pela razão essencial: porque, nos jogos em que devia marcar golos, não houve ninguém a marcá-los. Poderia repetir isto até à insanidade, mas os especialistas em xadrez acham ridículo andar alguém a mostrar aquilo que é evidente: falta ataque (ataque explosivo, determinante, fatal, mortífero) ao FC Porto. Sem Quaresma, estrategicamente castigado, não há bolas que cheguem a Postiga. E é triste ver Postiga a fazer fitas de cada vez que falha uma bola.

6. Fernando Silva, o atleta do Maratona Clube de Portugal, confessou que “foi um erro”. Trata-se de doping. Fez bem em falar assim. Pelo contrário, o caso Nuno Assis continuará a desmoralizar o jogador, já prejudicado pela guerrilha que o seu clube manteve, servindo-se dele.

7. O meu caso preferido é o de Nilson Sergipano, que vi jogar no Bahia há uns anos. O Bahia está na terceira divisão (juntamente com o outro clube de Salvador, o Vitória). Parece que lhe detectaram tetraidrocanabinol. Quer dizer, maconha, marijuana. Nilson é o meu herói: não gosta de químicos; já a António Tavares, basquetebolista do Benfica, basta-lhe fazer tratamento para o cabelo.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 10 Fevereiro 2007

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fevereiro 08, 2007

Necessidades elementares

O Presidente da República assinala a «necessidade de legislação e procedimentos administrativos claros, não só sobre o tabagismo, mas no combate ao consumo excessivo de álcool, obesidade e estilos de vida sedentários». Percebe-se o que está em causa, diminuir o consumo de álcool entre miúdos ou nas estradas, fomentar caminhadas nos jardins e bosques, tudo isso.

O mayor de Nova Iorque também quer uma cidade mais saudável e proibiu o tabaco, o colesterol e os fritos, prometendo combater a obesidade, o foie gras e o bacalhau salgado (no restaurante de Bourdain & Meireles). Já em outros locais, a vontade de uma vida saudável leva a outros excessos. Nunca sei o que é melhor. Se a liberdade, se o comando da nossa saúde por políticos que elegemos.

A saúde pública é um domínio vasto que frequentemente entra nos caminhos da moral & dos costumes. Os queijos com alto teor de gordura serão perseguidos, da Serra da Estrela a São Jorge e ao Pico. Um dia haverá fiscais vigiando o teor de sal no bacalhau. As casas de família irão, com o tempo, transformar-se em antros de pecado – aí podemos comer pastéis de massa tenra, pataniscas, bacalao al pil pil, feijoadas e compotas preparadas com açúcar em vez de adoçante (havendo até quem fume um charuto no final, mais perigoso do que uma erva simplória, muito bem admitida socialmente).

Um dia, mais tarde, entrarão em nossa casa e desaprovarão as migas gatas de bacalhau ou o feijão no forno. Na escola, os institutos da saúde perguntarão subtilmente às crianças se os pais têm por hábito comer fritos e barrar o pão com manteiga, essa substância perigosa. Justificarão. Justificarão sempre. Querem o nosso bem. Nunca sei o que é melhor.

in Origem das Espécies - 8 Fevereiro 2007

fevereiro 05, 2007

José Sócrates, o bom tradutor

O primeiro-ministro acha que só por falta de assunto a imprensa deu destaque às afirmações do ministro Manuel Pinho, e que tudo se transformou numa polémica “absurda e injustificável”. Não é verdade. Também não é verdade que seja uma matéria sem interesse para quem não entende nada de economia. As afirmações de Manuel Pinho dizem respeito a todos nós. Em primeiro lugar porque o ministro não faltou à verdade – Portugal tem, mesmo, os salários mais baixos da União Europeia.

O primeiro-ministro recitou a fórmula com outra limpidez; segundo José Sócrates, o que o ministro da Economia queria dizer é que os nossos “custos de trabalho de mão-de-obra mais qualificada” são mais baixos do que a média europeia. Ou seja, para retomar a tradução feita por José Sócrates, “temos custos de trabalho que são muito competitivos ao nível das pessoas mais qualificadas em Portugal”. Entende-se logo outra coisa. Feliz do país em que o primeiro-ministro pode perder um pouco do seu precioso tempo a traduzir o que um dos seus ministros disse antes. É um luxo que merecemos.

Vamos e venhamos, o ministro da Economia não tem culpa do grau de exigência em que anda metido o país. O país, erguendo-se na ponta dos pés, é que se pôs a imaginar que a frase foi escutada atentamente pelos empresários chineses – não foi. Eles não ligaram e têm mais com que se ocupar. A visita foi importante para meia dúzia de empresários, sim, mas portugueses – uns fizeram negócios, outros nem por isso; mas estiveram “lá” presentes. De resto, salários baixos é o que mais eles têm na China, por toda a Ásia, ou em África, onde têm investido bastante. Para efeitos de política caseira o discurso de Manuel Pinho, isso sim, teve importância, mas não pelas razões nobres que a oposição empunhou, ou pelas explicações misericordiosas dos nossos economistas.

Ora, o que disse verdadeiramente o ministro Manuel Pinho? Uma evidência com que nenhum português ousa discordar, ou seja, que temos salários baixos e que um chinês, se quiser abrir uma fábrica em Idanha-a-Nova ou em Mirandela, tem menos custos salariais aqui do que, imaginemos, num país escandinavo. Era preciso que José Sócrates traduzisse essa evidência? Pelos vistos, sim. E também para efeitos de política doméstica, onde custa admitir que os nossos “custos de trabalho de mão-de-obra mais qualificada” (não os salários, atenção!) são mais baixos do que “lá fora, na Europa”. Mas são. E isso não pode alterar-se por decreto. Vai demorar a mudar, vários anos de economia (de poupança, de limitações, de investimento).

Os chineses podem agradecer a sugestão e instalar-se em Aveiro ou em Santarém com fábricas e tecnologias, explorando os baixos salários portugueses. Na lógica de Pinho, os chineses vêm, os portugueses empregam-se, e, com o tempo, os salários crescem. Pode ser. Mas que um português não se indigne depois de ouvir as palavras de Pinho sobre a triste verdade da pátria seria abaixo de cão. Indignar-se, sim, mas contra o país.

Dizer que o ministro Manuel Pinho vai ser remodelado, que Sócrates anda sempre a corrigi-lo, é uma banalidade desinteressante e medíocre, coisa que só alegra gente de mau carácter.

Porque Pinho não errou. Pinho não se enganou. Ele bem tentou, aliás, vender o país o melhor que pôde. O país é que se acha outro país. E não é. É apenas este – pobrezinho, frágil, rendido. Custa a admitir que se fale assim da pátria do “choque tecnológico”, mas é a mais pura das verdades.

Por isso, José Sócrates tem de andar sempre a traduzir. Há um país na sua cabeça que, infelizmente e apesar da sua boa vontade, não tem tradução em nenhum dicionário. Só na sua cabeça. E cada vez mais.

in Jornal de Notícias – 5 Fevereiro 2007

fevereiro 03, 2007

Don Corleone no prato


O La Mafia é enorme e fica na zona mais popular de Matosinhos. Um restaurante francamente na moda.

Matosinhos é, na área limítrofe do Porto, propria­mente dito, um caso de florescimento de bons restaurantes; a Rua Brito Capelo e seus arredores (a chamada zona das marisqueiras) continuam a não desiludir na categoria "bom garfo", mas introduzin­do aqui e ali elementos quer de exotismo quer de cosmopolitismo (cozinhas francesa, espanhola, argentina, italiana...). É bom.

Entremos, pois, no La Mafia, no coração da zona: um salão amplo, vastíssimo, de um notável pé direito, decoração inspirada na filmografia do tema (sobretudo com cenas de 'O Padrinho'), tons claros, ilumina­ção que não pretende esconder nada. Fomos num sábado à noite — bandos de crianças percorriam os espaços deixados livres, e adolescentes acantonavam-se como podiam, em jantares colectivos que serviam para mostrar as indumentárias, as unhas, os ténis (perdão, as sapatilhas) e, aqui e ali, o vozeirão e o excesso de presença. De nada disto tem culpa o La Mafla, evidentemente — as coisas são o que são.

Famílias de um quarto e de meia-idade distribuíam--se também estrategicamente, aproveitando o sábado para conhecer um dos restaurantes da moda em Matosinhos. Saúde para todos, mas era ruído demais. Por estas e por outras, o nosso pedido demorou uma hora e vinte minutos a apresentar-se à mesa, depois de termos pedido dois vinhos que só existiam na carta e não nas prateleiras da casa. Escolhemos entre quinze saladas, treze entradas (com cinco 'carpaccios' e três pratos de ovos), cinco gratinados (duas lasanhas, verde e de carne, pastéis de beringela, almôndegas com molho de cogumelos e queijo), vários crepes (beringela; 'carpaccio' com mostarda; presunto, 'emmental' e ovos de codomiz; queijo de cabra, passas e pinhões; presunto, tomate, 'emniental' e azeite) e uma lista confortável de massas. Designações apetitosas: rigatoni, 'fusili', 'tagliatelle'; 'gnocchi', 'gnochetti', 'bumbetti', 'tortelini', 'cappelettí', entre outras, com molhos substanciais.

Para lá disto, o La Mafia apresenta uma lista de carnes onde há quatro bifes, e ainda 'involtini' com queijo e 'bacon', além de três "arranha-céus", ou seja, 'entre-cote' (que a tradução na lista apresenta como "entre-costo") com cogumelos, com pimenta ou em varian­te de quatro queijos, coberto de batata frita palha.

Vamos às provas? Do que nos calhou, os crepes eram razoáveis em se tratando da massa; talvez barroco o de presunto com ovos de codomiz planando, escalfados na manteiga do molho; dispensável o de 'carpaccio' com mostarda, uma vez que se perde a frescura do 'carpaccio' e não se ganha nada com a mostarda; um 'carpaccio' de novilho que se provou estava perfeito, muito apresentável com pãozinho quente, uma aproximação de 'foccacia'. Já nas mas­sas, registemos que o 'spaghetti nero', tingido de choco, é uma novidade nos cardápios e serve sobre­tudo para apascentar a imaginação burguesa. Digamos que estava no tom mediano, mas a quanti­dade de salmão era generosa. Quanto ao outro 'spaghetti', veio servido com gambás 'ajillo', ou seja, uma certa quantidade de bichos de tamanho médio, mas com massa que tinha passado o ponto — o resultado era uma pasta descaracterizada e ligeiramente seca, em que não se descortinava o destino dos mariscos; ou seja, estavam lá.

Nas carnes, há aqui um truque: o tom suculento do bife com patê de 'foie'. Verdadeiramente, o aman­te de carne quer carne — e esta era uma peça que assessorava qualquer apetite; acrescentando-lhe uma fatia de 'foie', a coisa torna-se perigosamente seduto­ra, percorrendo já metade do caminho. No caso do arranha-céus de entrecosto – ou seja, de 'entrecote' - com 'funghi', a peça veio laminada, com bom corte, coberta de batata palha de boa extracção, ainda quentinha. Não se percebeu a razão deste amontoado de batatinha sobre a carne, mas o fenómeno (misto de acontecimento geotérmico, de design & equilibrismo, e de recuo à infância) parece cativar a clientela.

A carta de sobremesas é interessante: além do 'tiramisu', há tarte Sacher, pastel siciliano, 'brownie' com gelado, profiteroles ou crepes de chocolate. Pena o ruído, a demora no serviço e alguns deslizes.

À lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * *
Acolhimento: * *
Mesa: * *
Ruído da sala: *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 26
Vinhos brancos: 11
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 22
Aguardentes & Conhaques: 4
Grappas: 4

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Parque nas proximidades
Levar crianças: Sim
Área de não-fumadores: Não
Reserva: Imprescindível
Preço médio: 35 euros

LA MAFIA
Rua Brito Capelo, 1133
4450-078 Matosinhos
Telefone 229 378 896
Encerra às segundas-feiras

in Revista Notícias Sábado – 3 Fevereiro 2007

Sem irritações, paciência

1. Não me lixem. Há muito boa gente que se vê, naquela pose de queixo bem assente e reflexivo, a perorar sobre as razões de queixa do F. C. Porto em relação às arbitragens que não, que há "ali" uma agressão de Quaresma (e logo com Tixier, com quem Quaresma teria contas a ajustar), que não se pode duvidar da boa-fé dos árbitros. É gente com sentido de humor. São os mesmos que não viram exagero nos cartões a Sougou e a Ivanildo. Conveniências pardas. A verdade é que, na dúvida, não é preciso ser-se Lucíiio de Baptista para se fazerem "arbitragens inteli­gentes" - desde o ano passado que, na dúvida, se penaliza o F.C. Porto. Pode ser-se ligeiramente medri­cas como Elmano Santos. Por pressão da "opinião pública", da "imprensa", dos do costume e da "necessidade de lim­peza". É de gargalhadas ver esta gente covarde a reagir como se o futebol estivesse sujeito a plebisci­to. Nos bons tempos de João Vale Azevedo, o presidente do Benfica chegou a dizer que as vitórias do F. C. Porto não eram boas para a competi­tividade do futebol português. Tretas, como se viu – eles querem futebol por televoto: há tantos benfiquistas, logo tantas vitórias do Benfi­ca; tantos sportinguistas, tan­tas cabazadas do Sporting; tantos portistas, logo uma certa quota de vitórias do F.C. Porto. E por aí fora. O "equilíbrio" dessa gente chama-se "equilibrismo", afinal. Até caírem.

2. O presidente do Benfica e o séquito do costume anda­ram a visitar os partidos polí­ticos. Levaram consigo uma sacolinha de queixas e de provas de que há corrupção no futebol. Tamanha jogada merecia a vitória no campeonato – e sem direito a discussão. Nos tempos do regime anterior, o Benfica era o clube do regime e não tinha nada a temer; agora, o "ex-clube do regime" visita os comícios (Vilarinho agradecendo favores de Durão Barroso, lembram-se?) e as sedes " dos partidos para denunciar coisas graves e imorais (o CDS e o PSD caíram na esparrela e mostraram-se chocados). Parece a história da Dona Pombinha da telenovela: muita moralidade e bons costumes. Vê-se pela cara. Mas estamos no tempo das "denúncias anónimas" e da "literatu­ra confessional". Nada de surpresas.

3. Contra o que dizem as primeiras páginas, o Sporting foi prudente em matéria de contratações. Prudente, sensato e sério. No festival de chega­das e partidas, é necessário conser­var algum bom senso. Se o Sporting não tem, imediatamente, compro­missos europeus, e se o plantei dis­ponível é também o plantei possível, não vejo razão para fazer "compras de Janeiro" apenas para alimentar as primeiras páginas.

4. Quaresma tem má imprensa, mas isso não é surpreendente. Há sempre abutres disponíveis para atacar quem não se junta ao "beautiful people". Às vezes, a má-fé contra Ricar­do Quaresma aproxima-se exageradamente do racismo, mas não vale a pena levantar suspeitas. Há as que bastam. No restante, parece que ele tem mau feitio. Parece que fica zangado quan­do perde uma bola ou não completa a jogada. Estas coisas (ter mau feitio e ficar zangado) ainda não são consi­deradas crime pelos nossos códigos. De resto, ao contrário do que querem fazer crer, Quaresma não é um agressor. Nenhum jogador (como aconteceu com Anderson ou Derlei) foi para o estaleiro por causa de uma jogada sua. Ele irrita-os, ape­nas. Paciência.

In Topo Norte – Jornal de Notícias – 3 Fevereiro 2007