agosto 30, 2005

Viajar, depois da viagem

Num romance de Alberto Mora­via há uma personagem que ganha a vida como escritor de viagens. Um dia, recebe a incumbência de escrever sobre o Nilo, o Egipto, enfim. E iria de cruzeiro, navegando so­bre as águas azuis do Mediterrâneo, deitado numa cadeira do convés, observando como as turistas da classe média italiana se bronzeavam e as famílias se aplicavam no buffet. A proposta era tentadora. Por vários motivos - mais romanescos e pessoais - a altura não era a melhor na sua vida. De modo que, ao sair de casa, pediu ao táxi para, antes de se dirigir ao porto e ao paquete branco e luminoso que deveria levá-lo de viagem, passar pela estação de correios, onde depositou, devidamente selado, um enve­lope dirigido à revista onde trabalhava. Dentro desse envelope ia, dactilografada e sem rasuras, a reportagem que fora encarregado de escrever. Só depois embarcou, aproveitando para dormir durante a viagem. Os leitores teriam acreditado nele e na sua reportagem?

Claro que isso não acontece na Volta ao Mundo. Aqui, as pessoas gostam de viajar e de escrever sobre o que Ihes acontece. Eu conheço-os. E conheço-me. É esse, aliás, o segredo de qualquer reportagem: ir, ver e contar. Se possível, cativar os leitores. Mas, confesso, isso não é o objectivo: a própria viagem selecciona os leitores e os aventureiros que partem para a Birmânia ou para o Brasil, para os Picos da Europa ou para a Tasmânia. E há as imagens, claro: sem as imagens, poderíamos dizer, os lugares não existiam; elas são a prova de um relato de viagem. A personagem de Alberto Mo­ravia não se preocupava com isso; na altura, bastavam umas imagens de arquivo, fotografias de um Mediterrâneo azul e brilhante, de paisagens tépidas e agradáveis, monumentos e cidades históricas.

Muitas vezes, depois de uma via­gem, revejo fotografias. Elas levam-me ao passado recente, a uma respiração que senti noutro lugar do mapa, a uma rua onde vivi no meio de outra língua, a um restaurante onde experimentei surpresas ou confirmações. Mas a verdade é que não colecciono fotografias de viagem; nem das minhas. O que me traz problemas de vez em quando, sobretudo porque um dos meus filhos é um céptico às vezes obstinado. Por exemplo, um dia contei-lhe que tinha estado na Costa do Marfim e que tinha atravessado as florestas do interior ate chegar a Abidjan, no meio de tempestades tropicais (e, já agora, de uma gripe desagradável). Ele olhou-me, considerou a viagem, achou-a interessante e esticou o dedo: «Isso está muito bem. E as fotografias?» Não tenho. «Não tens?» Não. «Então não houve viagem, praticamente.» Achei que estava diante de uma das vertigens dos tempos modernos. Em linguagem vulgar.

Se não colecciono fotografias, colecciono literatura de viagens e interrogo-me sobre a vida desses escritores antigos, dos séculos de ouro da viagem, quando de Lisboa ao Porto se demoravam dias e se murmurava tanto sobre a existência de monstros que engoliam os viajantes como de amazonas formosas e devoradoras que seduziam os marinheiros e os impediam de voltar à Europa. Fernão Mendes Pinto, Vespúcio, Colombo, Vaz de Caminha, Diogo do Couto, Castanheda, os cronistas do renascimento fascinados por Marco Polo e pela descoberta da Abissínia como das novidades que vinham da China como da Améri­ca: teriam eles contado a verdade? Podemos fiar-nos nas suas descrições? Eram mesmo formosas as índias brasileiras de Caminha, que tanto teriam fascinado os nossos marinheiros a ponto de alguns deles terem fugido da armada de Cabral e ficado lá como nossos primeiros foragidos? Existiam mesmo as paisagens de Pinzón, naquilo que hoje sabemos ser o Ceará e Jericoacoara? Que imagem temos da entrada de Orellana e dos outros marinheiros espanhóis, cruéis e cobiçosos, que penetraram no Amazonas pensando que estavam no Ganges e que tinham chegado ao Cathay?

As viagens são, de facto, momentos gloriosos de uma existência destinada à imaginação e ao delírio. Se hoje não houvesse imagens, preguiçosos como somos, ninguém acreditava que se podia ser feliz só por poisar o dedo noutro lu­gar desconhecido do mapa. Como podemos convencer alguém da verdade intensa de um sabor e da doçura de uma paisagem ? É esse o segredo do bom viajante: contando historias. Uma coisa ao alcance de cada um. Mas hoje há fotografia digital, não é?

in Outro hemisfério - Revista Volta ao Mundo, Setembro 2005

agosto 29, 2005

Fajitas em casa

Sabores mexicanos ao alcance de todos. Isto é simplicidade absoluta, sim senhor. Mas para quê mais?


Lembro muitas vezes os tamales, os generosos tamales de Puebla; os sopes de tortilla estaladiça, picantes, recheados com linguiça e coentro que comi em Tuxtla Gutiérrez, a capital de Chiapas; e aqueles ovos estrelados a pingar manteiga sobre o arroz de tomate e pimento numa taberna nos limites de Coyoacán; o pavo de escabeche com arroz de granados, peru crocante saído do forno, humedecido pelo seu moIho adocicado e acompanhado de arroz de romãs; os fritinhos de milho, de amarelo ocre, do restaurante La Normita, de San Cristobal de las Casas; o assado resplandecente, de cordeiro, comido numa varanda sobre o zócalo ajardinado de Oaxaca, enquanto os bandos de mariachis estacionavam diante da esplanada; a massa estaladiça de chichurrón devorada na praça diante de uma igreja em México DF; a sopa de feijão negro com tiras de milho e fios de queijo, no Las Mañanitas, o mítico restaurante de Cuernavaca, depois de uma peregrinação pelos lugares abandonados de Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry (a voz do cônsul, a personagem do livro, podia ouvir-se: «Mi casa es su ca­sa...»!); os chapulines refritos (ah!), trincados para acompanhar cerveja gelada; mesmo a comida sofisticada do San Ángel Inn, na ca­pital, ou o ceviche de peixe fres­co, marinhado e picante, na costa do Pacífico, depois de abandonar Guadalajara. Eu podia continuar.

A comida mexicana não tem fim e não se reduz ao complexo texmex, devorado com Coronas tingidas de limão para gosto de quem não sabe o que é uma cerveja verdadeiramente me­xicana (uma Tecate dos bons tempos, uma Pacifico Clara, uma Montejo ou Casta Morena noctívaga); a partir de nada, o pais produz sabores raros, retirados a partir de ervas e molhos suaves, frutos e legumes raros - claro que há também iguanas no for­no, que eu nunca comi nessas viagens - mas, fundamentalmente, aprecio no México essa simplicidade comovente, temperada de limão e coentro. servida à mão, como as fajitas do Norte, o exemplo que lhes trago hoje, e que é um exemplo descomprometido de cozinha igualmente descomprometida, ligeira, suave e sem manias ou erudições.

Em primeiro lugar é necessária uma chapa ou frigideira de ferro, pesada e que nunca tenha passado por detergente. Tenho uma, mexicana de lei que foi usada centenas de vezes e é lavada apenas com agua, um pano limpo e umas gotas de azeite. É nela que sirvo um nadinha de azeite (uma colher de sobremesa apenas), justamente, e deposito os legumes essenciais: rodelas de pimento colorido, rodelas de cebola, um picadinho de coentros muito miúdos. Deixo que tudo acabe por tostar de um dos lados antes de abrir um espaço no centro da frigideira, que é larga e tem de ser agarrada com a ajuda de um pano de cozinha, para aí depositaras tiras de carne de va­ca ou de frango, antes marinadas e que devem frigir com rapidez.
Há duas ideias sobre isso. Uma: que a carne deve ser ape­nas cortada e temperada com sal e pimenta, nada mais; outra, que as tirinhas de carne devem ser cortadas e marinadas durante um tempo (vinho branco, alho, pimentas várias). Siga o que o coração lhe ditar - a cozinha é, também, um grande espaço aberto para o coração e para a tentação. Mesmo que se revele suicida.
Passem, pois, as carnes pela chapa da frigideira de ferro, revolvidas apenas uma vez.
Ao mesmo tempo, as torti­llas devem estar preparadas, apenas com farinha de milho, sal e água - ou compradas já feitas, embaladas e disponíveis para forno microondas; não tenho na­da contra. Ao lado, deve estar preparado o feijãozinho picante, estufado e quase esmagado - nada a ver com os frijoles refritos enlatados: apenas feijão estufado com linguiça, paio, um nadinha de chiles poblanos (pimentos), até quase perder o molho. Estenda-se uma tortilla sobre a mão: depositem-se nela as tiras de carne, os pimentos e as rodelas de cebola, embrulhe-se como um crepe. Coma-se. Isto é sim­plicidade absoluta, sei. Mas para quê mais?

Ingredientes
+ 400 g de carne de vaca (lombo)
+ 2 pimentos verdes
+ 2 pimentos vermelhos
+ 2 cebolas grandes
+ 1 colher de sobremesa de azeite
+ 2 embalagens de tortillas já preparadas para microondas


in Atlas de cozinha - Revista Volta ao Mundo – Setembro 2005

agosto 25, 2005

O fogo obsceno

O Governo não tem culpa pelo facto de o país arder; isto não é uma grande novidade. A responsabilidade pelos 180 mil hectares de árvores, mato, floresta, vinhas, olival, amendoal, pomar, hortas, canavial, dejectos, porcaria, erva que arderam, neste Verão, não deve ser atribuída ao Governo. Já o combate aos incêndios, se revela hesitação e manobras para esconder a verdade, depende do Governo.

Na verdade, Portugal não arde por motivos obscuros e metafísicos e sim porque há aquecimento global, porque os pinhais e eucaliptais infestaram o país e não são limpos, porque o Estado não tem dinheiro para cuidar das florestas, porque há incendiários à solta e porque não existe uma lei que puna exemplarmente esse crime contra a comunidade, porque não há meios aéreos suficientes, porque o acesso aos montes que desaparecem entre labaredas não é fácil, porque há poucos bombeiros profissionais, porque Portugal não gosta de árvores - e as deixa ao abandono, aqui e ali, rodeadas de lixeiras.

Sabemos todos que, em 1998 e em 2003, Portugal ardeu mais do que este ano, até agora. Portugal ardeu, proporcionalmente, mais do que a Amazónia. Em termos absolutos, ardeu mais do que Espanha.

O Governo não tem culpa de Portugal ser consumido pelas chamas. Ninguém de bom senso dirá que o Governo, só por ser socialista, é culpado pela desgraça. Por isso mesmo, é estranho recapitular o dia-a-dia das últimas semanas e ver que a primeira reacção do Governo foi, precisamente, a de dizer que não tinha culpa.

Este princípio subdesenvolvido, primário e imbecil, de que todas as desgraças devem ser atribuídas ao Governo, acabou por minar o próprio Governo. José Sócrates regressou de férias e, com aquele ar de quem decreta a tranquilidade só por estar presente, anunciou que não se tratava de calamidade. A Pampilhosa, Coimbra, Viseu, o Alvão e Santa Luzia ardiam.

Criou-se, no país inteiro, a ideia de que sofremos de falta de confiança. Infelizmente, a auto-estima, a confiança e a tranquilidade não substituem o ressentimento e a alarvidade só por serem mencionadas. Precisam de gestos nobres e intensos, verdadeiros, até dramáticos; precisam de números claros e de apelos sérios. Pelo contrário, a atitude do Governo diante dos incêndios não ajudou.

Em vez de encarar o desenho de um país a arder e de intervir com determinação, o Governo alinhou nesse cenário tentou limitar, até onde pôde, o drama dos incêndios. Como se fosse culpa sua as matas arderem e como se dependesse do gesto de Sócrates (ou de António Costa) as chamas suspenderem o seu avanço.

Para quem leu a imprensa estrangeira de anteontem, o retrato era tudo menos pacificador. Os aviões e equipas de estrangeiros, as imagens lancinantes de chamas e de colunas de fumo - tudo negava o desmentido de que a realidade não era ou foi assustadora (e, na verdade, só depois da chegada de Sócrates se mobilizaram meios internacionais para combater os incêndios).

É triste verificar que o debate entre Governo e Oposição passa pela discussão em torno dos números de hectares ardidos. Essa lengalenga miserável e grotesca mostra até que ponto se tornou obsceno o debate político.

O Governo perdeu uma batalha importante, em matéria de credibilidade. Quando devia ter aparecido a dizer "sim, a realidade é dramática", e encarado a situação de frente, pedindo ajuda, reunindo apoios, houve quem tentasse tergiversar, iludir as imagens e, mesmo, censurá-las.

Caso não tenham notado, foi mais um capital de confiança que desapareceu. Que ardeu na fogueira obscena da política portuguesa.

Jornal de Notícias - 25 de Agosto de 2005

agosto 21, 2005

FJV fechou o "Aviz" mas prepara site pessoal

A "comichão nos dedos" que sente ao folhear a imprensa do fim-de-semana é uma das razões porque não vai ficar longe do ciberespaço. Na passada quinta-feira, Francisco José Viegas escreveu o último post no seu blogue, o Aviz. Mas o jornalista e escritor não fechou a porta. Em Novembro vai lançar um site. Outro blogue está, também, nos seus horizontes.

"O Aviz é um blogue de um tempo terminado", disse ao DN Francisco José Viegas, sublinhando o que escreveu no derradeiro post "teve uma temporada". Confessando-se "cansado", o escritor diz que "ultimamente falava muito do Brasil e não tinha muita coisa para dizer em relação ao andamento da Humanidade". Além disso - considera - "há blogues muito bons, não vale a pena estar a preencher só por preencher, senti que estava um bocado esgotado".

O Aviz chegou à blogosfera em Julho de 2003 e actualmente recebia 2500 visitas diárias, de acordo com o autor. É considerado um "farol" da blogosfera lusa. Francisco José Viegas ri-se "um farol não alinhado, uma brincadeira politicamente liberal à moda antiga...".

Numa mesma semana, o escritor pôs o ponto final em dois blogues. O Fora do Mundo, que partilhava com Pedro Mexia e Pedro Lomba, deixou de ser actualizado na quarta-feira. O trio vai voltar à blogosfera, "provavelmente em projectos individuais".

Francisco José Viegas prepara um site, para Novembro, "com o meu trabalho como escritor, os livros...", revelou ao DN. Quanto ao próximo blogue, sabe que o vai ter mas para já quer descansar.

Entretanto, vai continuar a dedilhar diariamente blogues, onde gosta de encontrar bons pedaços de português ("é uma das grandes descobertas da blogosfera"). Interessam-lhe mais "do que as discussões políticas". Percorre com afã os blogues brasileiros (muitos foi apresentando no Aviz) e sublinha a qualidade de projectos nacionais como Blogame mucho, Blasfémias, Grande Loja do Queijo Limiano, A Voz do Deserto, Miss Pearls, A Praia, Contra a Corrente, Mar Salgado e Causa Nossa. Entre outros.

Diário de Notícias on-line - 21 de Agosto de 2005

agosto 19, 2005

Uma proposta de viagem pelo sul


A ideia de que o Brasil e um território dominado a sul pelas colinas de Itacaré, pela baía de Ilhéus e pelo mar picadinho de Trancoso, e a norte pelas dunas de Jericoacoara ou os restaurantes de praia entre Pipa e Natal, é profundamente injusta e resulta de um erro de perspectiva grave dos Portugueses actuais, matraqueados pela industria turística e pela preguiça. Se compreendo a indústria turística, já a preguiça acho, neste caso, uma coisa perigosa: trata-se de viajar.
E viajar, ao contrario do que pensavam os bons iluministas europeus, não contribui apenas para melhorar a nossa índole, o nosso conhecimento e a nossa capacidade de pensar; além disso tudo, faz bem a pele e é um bem para a saúde. Lamento se isto não interessa a feitios intelectuais.

Uma das afirmações mais absurdas que se podem escutar no nosso país, sobretudo de quem foi duas vezes ao Brasil, é a de que «isto é o verdadeiro Brasil». Por dois motivos: primeiro, porque não há «o verdadeiro Brasil»; segundo, porque, o Brasil não existe - em vez de Brasil há Brasis. Os Brasis. Era assim que muitos autores do nosso século XIX se referiam ao imenso mapa que falava português abaixo do Equador e de S. José de Macapá, para não dizer, entre as barreiras verdes e densas do Oiapoque (ligeiramente acima de S. José de Macapá, umas oito horas de estrada poeirenta até à fronteira com a Guiana), e as neblinas do pampa, rente ao Uruguai, lá no Chuí. Conheço os dois pontos. São lugares espantosos, sobretudo porque, na mesma altura do ano, as temperaturas chegam a atingir 40 graus centígrados de diferença. Esta é a prova exacta de que não existe apenas um Brasil. Nem dois, sequer. Por isso, quando alguém me obriga a escutar uma batucada e diz «isto é a verdadeira música do Brasil», eu rio e proponho uma chula ou um fandango da serra gaúcha, um violão gemendo em Goiás ou uma canção de Lupicínio Rodrigues, o negro de Porto Alegre. Onde está o verdadeiro Brasil?

Eu tenho os meus. Talvez um deles seja Salvador, sim, para contentar apetites ancestrais e aquele desejo de exotismo que nos surpreende a todos. Mas também o verdadeiramente interior Brasil de Minas Gerais, de Ouro Preto. Diamantina, Tiradentes (e Belo Horizonte, sim). E o outro é o meu Brasil de São Paulo, vertiginoso, culto, voraz, cosmopolita, a cidade onde melhor se come no mundo. E o do Rio, também, apetitoso, artificial. E o de Porto Alegre, a cidade das arvores, cheia de sotaques. Nada tem sido tão prejudicial ao Brasil como este exagero de Nordeste, reduzindo o mapa a um aglomerado de resorts baianos e de artesanato do aeroporto de Fortaleza. Para Nordeste já dei.

Por isso, ao arrepio das convenções, eu recomendo o sul. Santa Catarina e Florianópolis, evidentemente, se puder ser, De contrário, o mais distante do Brasil nordestino: o sul, o grande sul. Porto Alegre é uma cidade belíssima, «europeia», cheia do charme dos seus escritores (Scliar, Tabajara Ruas, Veríssimo, Noll, Assis Brasil - e a poesia de Mário Quintana) e dos seus músicos (Vítor Ramil, CIáudio Levitan, Nei Lisboa), dos seus restaurantes como dos seus hábitos. Eu gosto desses hábitos: ser do Grémio, tomar chimarrão na Redenção, ser apanhado pelo entardecer diante do Guaíba, beber o melhor chope do mundo (no Liliput concerteza, cremoso, gelado, cheio de nuvens - mas também aquele outro, delicioso, do Dado Bier), comer no Copacabana ou no Gambrinus, passear no Bonfim ou em Moinhos de Vento. Depois, tomar a serra gaúcha; sair para Gramado, desviar-se de Canela e chegar a São Francisco de Paula, onde faz mesmo frio, e verdadeiro, nesta altura do ano. Com coragem e brio, avançar ate Cambará do Sul e São José dos Ausentes, no meio de «canyons», florestas, vento - e regressar uns dias depois, passando por Bento Gonçalves para saborear os novos vinhos do Brasil (sim, quem disse que "o verdadeiro Brasil» só tem cerveja?), nas coli­nas húmidas que sobem para Caxias. São vinhos que aprendem, lentamente, a ganhar vida. Daqui a alguns anos, se eu conheço os brasileiros, esses vinhos estarão aí, e eu quero estar preparado.

Lamento não vos falar da beleza aplaudida do pôr-do-sol no Leblon e do folclore habitual de belezas retratáveis, de Olinda a Ipanema, do Pelourinho soteropolitano (ah, o que eu gosto desta palavra!) à Academia Brasileira de Letras. Mas já é a altura de conhecer alguma coisa mais.

Jornal de Letras – 17 Agosto de 2005

agosto 18, 2005

Regresso a casa

Eu conheci os colonos de Neve Dekalim, Netzarim, Atzmona, Kfar Derom, Shirat Hayam, Netzer Hazani ou Rafiah Yam. Vi como viviam. Algumas dessas comunidades estabeleceram-se muitos anos antes de 1948 nesse território de dunas, quase deserto. Outros, depois de 1967 e da Guerra dos Seis Dias. Outros, como os de Atzmona, vieram do Sinai depois dos acordos com o Egipto na sequência da Guerra de Yom Kippur. Sucessivos governos, rabinos e aventureiros fundamentalistas tinham garantido que aquele território de areia, terra poeirenta, à beira do mar, fazia parte do Grande Israel. Por isso, assentaram as suas casas, explorações agrícolas, estufas de flores e frutas, pequenas indústrias, escolas, sinagogas, bibliotecas, "yeshivas" e piscinas. Eles sabiam o risco que corriam. Suportaram, portanto, os morteiros e os rockets al-Qassam. Também não ignoravam que os seus territórios eram de grande interesse estratégico para Israel, uma vez que impunham uma linha de separação entre Gaza e o Egipto (em Rafiah e Termit). E tinham uma missão religiosa fazer parte do Israel bíblico anunciado no final da década de 60 por líderes extremistas (como o rabino Kook), a maior parte deles chegados dos EUA, e para quem uma teocracia fazia mais sentido do que um estado democrático. Eu não entendia o absurdo de viver debaixo do fogo contínuo do Hamas e do Hizzbullah, mas compreendia a paixão e o heroísmo.

A sociedade israelita, no entanto, tem outra grande paixão a democracia. Vivendo por décadas sitiados por estados ditatoriais e militaristas que albergavam todo o género de criminosos, de terrorismo e de anti-semitismo, e que dariam tudo pela destruição do estado de Israel (a paixão de Arafat, aliás - e do "mufti" de Jerusalém, que chegou a pedir aos nazis que os ajudassem a trazer a "solução final" para a região), os israelitas nunca abdicaram de ser a única democracia naquele lugar do Mundo. Mantiveram o ideal democrático nas piores circunstâncias: durante as agressões sucessivas dos estados árabes e as duas guerras maiores que atravessaram depois da independência, durante as vagas de atentados, mesmo durante o isolamento internacional decretado com a cumplicidade de "estados aliados" europeus e da opinião pública ignorante e imbecil, treinada para considerar o sionismo como uma ameaça. A retirada de Gaza, que representa um cenário de dor para cerca de dez mil colonos que deixam para trás as suas casas, os seus cemitérios e décadas de vida, é um custo assumido unilateralmente por Israel. Provoca, certamente, divisões profundas na sociedade e o ressentimento de uma "vasta minoria" de cidadãos - mas é um acto de profundo heroísmo e de grande dignidade. E, naturalmente, é uma decisão estratégica tomada diante da desagregação demográfica do país, além de constituir, também, uma "reparação", termo que deve usar-se no sentido mais profundo do que isso significa para a cultura e a ética judaicas.

E significa um sinal e uma porta aberta. O sinal de que talvez seja possível avançar para a criação de um estado palestiniano democrático. A porta aberta para outras etapas de negociação.

As imagens que nos chegam de Gaza transportam, por isso, uma ventania e um silêncio. A ventania que obriga a respirar no meio da dor. O silêncio incomodado dos que nunca esperavam que Ariel Sharon pudesse ser o intérprete de um papel histórico tão decisivo.

Jornal de Notícias - 18 de Agosto de 2005

agosto 11, 2005

Indiferenças

O pais volta-se para dentro. Não há outra maneira de dizer: voltar-se para dentro, para onde as coisas ardem, onde as casas são consumidas pelo fogo, onde as florestas se despedem. Foi o mesmo há dois anos, quando a tragédia se revestiu de mais coisas além de imagens: teve números, consequências e escândalo, Foi o mesmo no ano passado: números. Foi o mesmo este ano, O espectáculo do Verão é dramático e passa nas televisões. Vejo Boticas, Vila Pouca de Aguiar e Manteigas a arder, Ao longe, sentado diante de uma televisão, na cidade, o país parece outro país, consumido pelas chamas, devorado pelas corridas de bombeiros e pelo queixume dos que são atingidos.

Os pinhais da minha infância morreram há muito, na estrada de Vidago para Boticas e no que restava do Alvão. Mostrei aos meus filhos arvores centenárias que já arderam, no meio de montanhas que se cobriram de negro. Quando atravesso o meu pais, de comboio, ou de carro, vejo esse rasto de cinzas e comovo-me. Uma pessoa comove-se facilmente quando atravessa as serras destruídas pelo fogo. Há repórteres de televisão que se comovem todos os anos – aqueles que não acham que todos os espectáculos sao iguais e que a dor merece um retrato mas não aceita banalidades.

Parece que são as condições meteorológicas, eu sei. E que os níveis de poluição atmosférica são dramáticos (Lisboa coberta por uma nuvem de fumo, cheirando a arvores queimadas). Mas sinto que é necessário fazer, definitivamente, alguma coisa. Não se trata de repensar o debate que ocorreu há dois anos, nem as queixas moderadas que resultaram do ano passado, Depois do Verão vem o Inverno, os debates desapareceram e alguma agua há-de cair, juntamente com o silêncio. Para que tudo recomece no Verão. É isso que é precise evitar: a repetição do drama, o regresso da tragédia.
Portugal regista os níveis de incêndios mais altos do sul da Europa; proporcionalmente, Portugal arde mais do que a Amazónia. Daqui a uns anos, por este ritmo, não resta nada para arder. De uma vez por todas, é necessário fazer algu­ma coisa, sob o risco de ficarmos indiferentes ao nosso próprio desaparecimento.

2. Os Portugueses, sabe-se pelas sondagens, acham que o resto do ano de 2005 vai ser pior e que 2006, enfim, vai pelo mesmo caminho, mas, mesmo assim, muitos deles pensam que vai haver coisas melhores. Há aqui uma aparente contradição, mas eu penso que o raciocínio está essencialmente correcto. Este cenário, que representa um perigo fantástico, diz-nos apenas que estamos a ficar mais indiferentes.

3. Uma pequena historia: nas televisões passaram imagens do sítio da NASA na internet, a propósito do regresso do vaivém espacial (vem lá tudo: o que comem os astronautas, quanto custa a viagem, quem patrocina, qual o
itinerário de desastres que ocorreram antes, etc). Um jornalista, ao apresenta-las, não consegue evi­tar a piadinha do costume; "É as­sim que os americanos vendem o seu peixe." É precise dizer que o jornalista vive num pais onde se diz que existem vários estudos sobre o provável futuro aeroporto da Ota - mas nenhum deles esta acessível aos cidadãos. Como não conhecemos os relatórios finais sobre os acidentes na construção do metro de Lisboa ou sobre o prolongamento da actual rede. Também não temos números exactos sobre o défice do metro do Porto. Para que os cidadãos tivessem acesso ao ranking das universidades e escolas públicas, foi preciso muita insistência. Vivemos no país do segredo, na verdade. Mas os americanos, esses, sabem é "vender o seu peixe". Chama-se a isso transparência; nós, em Portu­gal, vamos ficando indiferentes.

Jornal de Notícias - 11 de Agosto de 2005

agosto 02, 2005

Regresso a Itália, por defeito

O Ossobuco é uma receita familiar. Suculenta, saborosa e rescendendo a aromas brutais - o estufado como grande arte.


Goethe, no seu Viagem a Itália, não podia mencionar o prato. Não porque não tivesse passado por Milão, mas porque Goethe é Goe­the. Pena. Pelo contrario, outros viajantes mais audazes e mais viscerais - e menos incomodados pela dificuldade de existir, convenhamos - provaram e ensandeceram com um verdadeiro ossobuco alla milanese. Durante algum tempo, os nossos supermercados e talhos foram impedidos de nos satisfazer o apetite. por razões bem conhecidas de todos. Creio mesmo que a União Europeia se prepara para nos interditar o ossobuco. juntamente com as costeletas de novilho. Razoes sanitárias é verdade - mas uma medida impiedosa e cruel, capaz de despedaçar os nossos corações, para não falar do mal que causara ao estômago e à alma, que geralmente andam a par, de braço dado.

O ossobuco é uma das primícias da cozinha italiana. A opinião é só minha, mas tem em conta o trabalho simples e feliz de preparar um dos seus pratos mais suculentos. A sua base é a perna de vitela, cortada transversalmente e incluindo o osso. Tomem-se, portanto, duas porções de ossobuco por pessoa (escrevo para corações e estômagos carregados de apetite), e recomendo que se atem a volta, com um fio de cozin­ha a fim de não perderem depois, durante o estufado, o seu aspecto arredondado e composto, uma vez que os olhos também devoram. Passemo-los por farinha de trigo de­pois de os temperarmos com sal, pi­menta, uma poeira de alho muito picado. Repousem agora.

Eu costumo fazer assim, quando são quatro comensais à mesa: num tacho bastante largo deixo cair duas a três colheres de azeite, aquecendo um pouco. De seguida, junto ao azeite duas cebolas picadas, cinco dentes de alho, umas três cenouras e um pimento vermelho aos cubinhos, e mexo até que ganhem cor e comecem a fritar Retire do lume.
Numa frigideira deixo cair azeite e frito os pedaços de ossofiuco, volitando-os com cuidado. Ganham for­ma e consistência, mas o interior deve ser preservado e manter-se cru, de modo que a fritura deve ser rápida e com lume forte. A medida que os pedaços de ossobuco vão ficando aloirados, deposito-os no ta­cho, sobre os legumes já refogados. Na mesma frigideira onde trabalhei o ossobuco. ainda ao lume, junto um quarto de litro de vinho branco seco, mexo bem de modo a absorver todas as matérias que se tinham agarrado ao fundo e até que consiga um caldo suculento a que junto uma lata de tomate cortado aos pedacinhos (ou tomate muito maduro, evidentemente, e sem pele). Mexo, junto um pouco de tomilho, uma folha de louro - e rego com este molho o ossobuco e os legumes onde repousa. Ligo o lume para o tacho, finalmente, junto cerca de um quarto de litro de água ou de caldo de carne, e deixo cozinhar du­rante uma hora em fogo muito lento, com a tampa fechada. Vigio de vez em quando.
Quase no final, retiro o ossobuco para Ihe cortar os fios, devolvendo-o ao tacho logo de seguida, rego com sumo de limão e deixo que caia sobre todo o conjunto uma finíssima poeira de salsa. Agito e levo a mesa, na companhia de um puré de batata (a opção também é minha).

Ingredientes
+ 2 porções de ossobuco por pessoa
+ Farinha para passar a carne
+ Sal, pimenta
+ Azeite, 2,5 dl de vinho branco seco
+ 5 dentes de alho
+ 3 cenouras
+ 2 cebolas medias
+1 pimento vermelho
+ 1 lata de tomate inteiro
+1 limão
+ Caldo de carne


in Atlas de cozinha – Revista Volta ao Mundo – Agosto de 2005

agosto 01, 2005

Portugal no sul do mundo

Buenos Aires demora para adormecer mesmo se já se trata da luz do dia. É verdade que às cinco da manhã Buenos Aires respira ainda o ar da noite que se vai recolhendo em taxis e caminhadas ao longo da Recoleta. Eu recomendo sempre que se comece a visita a Buenos Aires pela Recoleta ao cair da tarde, e só depois, na manha seguinte, nos passeemos pelos seus cafés e mercados; aqueles jardins e passeios com esplanadas devolvem-nos um pouco da Europa e muito de civilização.

Os antropólogos acham que é abusivo mencionar a Europa a propósito de Buenos Aires, mas tanto os porteños como os que têm saudades de Buenos Aires sabem que a Europa e a capital argentina andam de mãos dadas. E que me sinto mais europeu ali do que nas pontes destruídas de Sarajevo.

Mas os domingos de manhã com sol mostram o gigantesco pulmão da cidade, dividido entre os jardins e o rio da Praia. A viagem entre o centro e o porto é rápida, serve para uma despedida ligeira, um aceno breve - voltar-se-á sempre a Buenos Aires, pelo menos em sonhos, para visitar os cafés, os relvados, as ruas, as salas de baile, as livrarias (excelentes, com livreiros dedicados e atentos), os restaurantes, a roupa comprada nos mercados, e a memória de cada bairro.

Esqueci-me de mencionar Jorge Luís Borges, mas o leitor compreende; algum segredo teremos de manter. Dali, do porto, apanha-se o barco para a outra margem do rio da Prata.
Há cerca de quatrocentos anos, a 28 de Janeiro de 1680, o governador português do Brasil, Manuel Lobo, se soubesse da noticia, tinha ficado contente: o capitão António Velho, em cinco navios que tinham deixado o Rio de Janeiro a 8 de Dezembro, tinha chegado a terra firme. Não a uma terra firme qualquer, mas a terra firme diante de Buenos Aires, para fundar uma praça portuguesa na margem oriental do rio da Prata, conforme tinha determinado D. Pedro II. Chamou-se Colónia do Santíssimo Sa­cramento. O conflito geopolítico entre Portugal e Espanha agudizar-se-ia a um ritmo quase regular e terminaria apenas com o abandono definitivo da praça. Em 1777 os espanhóis desferiram o ataque definitivo sobre a Colónia, depois de cem anos de combates, e em 1801 urn tratado assinado em Badajoz legalizava a ocupação: Portugal ficava com os chamados Territórios das Missões (hoje no Rio Grande do Sul) e a Espanha retomava a Colónia del Sacramento.

Mas agora, a medida que o barco avança, largando a Argentina e juntando-se às aguas do Uruguai, a Colónia del Sacramento pode revelar, ao longe, o traço português. As primeiras ruas da cidade são a maior surpresa: museu português, a fortaleza, as casas de desenho colonial com telhado de quatro águas, as lajes das ruas, a forma das praças, a memória de uma igreja (a Matriz do Santíssimo Sa­cramento), a Calle de los Suspiros, o convento de São Francisco Xavier, a sombra das arvores também, e o pudim "de Lisboa" que se come num dos restaurantes da cidade velha. Há coisas que evocam outras, mas a Colónia del Sacra­mento evoca o que quisermos. Sitiada, isolada diante de Buenos Aires, o que a Colónia evoca destina-se apenas a quem procura as evocações, que é uma das condições do viajante: o resto é a noite, a noite dos restaurantes e dos bares, iguais em quase todo o mundo; e os dias, claro, os dias de praia no literal dos rios.

Mas a frescura absoluta e melancólica das manhãs que passei na Colónia, com as neblinas madrugadoras recebendo os ferries e o jetfoil que fazem ligação a Buenos Aires, essa é, indiscutivelmente, o melhor da cidade. Vai-se ao porto buscar o Clarín, o jornal argentino que é também um dos três melhores da América Latina, passeia-se pela alameda que vai dar a Pousada do Governador para ver quem está no barbeiro, quem se senta nos cafés, quem chegou de Montevideu. A península (que leva o nome de San Gabriel) parece, mal se sai dos limites da cidade velha, uma fortificação imensa.

Se se é português, mesmo quando nos estamos nas tintas para o patriotismo e para a história das colónias, não se consegue resistir a uma pequena comoção, que se volta a sentir depois, mais à norte, no território das Missões, onde se cruzam os ventos da Argentina, as planícies do Uruguai e a profundidade absoluta, a sensação de completo aban­dono que fornecem aqueles antigos caminhos secretos do Paraguai. Só que Colónia resiste, resiste ao tempo, resiste a vida que corrói a própria pedra em que ela foi inscrita. Portugal foi até ali, diante de Buenos Aires.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao mundo – Agosto de 2005