junho 13, 2006

O que eu quero mostrar-lhes

Geralmente nunca penso nisso. Nem quando vou ao médico. Nem quando adormeço, nem quando acordo. Desta vez pensei nas florestas do Reno e nos jardins de Heidelberg onde as pessoas se deitam ao primeiro sol de Pri­mavera. Dir-lhes-ei que as pessoas não devem transformar a sua vida numa tra­gédia e que há sempre uma segunda oportunidade para todas as vidas que es­peram por nós. Talvez lhes diga isso se al­gum dia formos a Toledo. Não só para ver El Greco, mas para apreciar a sombra das ruas estreitas junto da sinagoga. Ou então enquanto passeamos pêlos becos de Haiffa, subindo e descendo, procuran­do o perfume do melhor falaffel. Ulti­mamente tenho pensado no que gostaria de mostrar aos filhos numa viagem que nunca lhes prometi — e penso nisso, penso nos três viajando comigo.

Penso numa praia em Baucau, em Timor, numa das manhãs mais encanta­das da minha vida. E penso nas varandas de Ermera, onde conheci algumas jovens professoras portuguesas, isoladas do resto do mundo, que me ensinaram o significa­do das palavras humildade e dedicação. Coisas simples. Gostava de lhes mostrar esse lado do mundo. Não só pela paisa­gem, se bem que há uma comoção que nos atravessa ao ver o Grande Recife de Coral, a caminho da Austrália. Como há outra comoção ao sentarmo-nos na rel­va do jardim botânico de Bali, diante do lago, com o piquenique dos domingos. E penso nos castanheiros dos outeiros de Vinhais, os mais belos. Nos carvalhos es­curos. Nos caminhos desenhados por en­tre as sombras da serra. Penso mostrar-lhes tudo o que se esconde numa flores­ta, que é o lugar ideal para pensar no sentido que as coisas têm - entre o vento, no meio da respiração da floresta e do cre­púsculo que os caminhantes sabem apre­ciar. Há coisas que não posso deixar de lhes mostrar: o pôr-do-sol no Guaíba, o entar­decer entre as águas da Amazónia, as nu­vens entre os arranha-céus, os caminhos pulverizados por essa poeira de geada no Inverno, os castelos, as estradas que não levam a nenhum lado e se perdem na Patagónia. São coisas minhas.

Viajar é isso, guardar coisas nossas. Fica-se muito me­lancólico quando se viaja a sério, quando muda qualquer coisa em nós – uma acen­tuação, um riso que antes era de outra maneira, uma roupa que deixa de se usar. E há coisas inexplicáveis. Mas, sen­do inexplicáveis, o Sul do México entra nesse mapa onde os levarei de carro, para dormirmos ao acaso em casarões de bran­co e ocre, para ouvirmos mariachis acom­panhando as primeiras cervejas, para descobrir a alegria de não ter pátria. E, não conseguindo explicar essa beleza intensa de Oaxaca (raramente consigo, eu sei), é essa beleza que gostava de lhes mostrar. E as colinas escuras do Cañon del Sumidero. Os bailes ao som de rancheras ou de boleros românticos, os jantares prolonga­dos no La Normita, em San Cristóbal de Ias Casas. Desço no mapa para ouvirmos reggae em Belize City, enquanto não che­gam os tufões às ilhas diante da sua baía, enquanto as tempestades não interrom­pem as estradas do Citrus District.

A primeira vez que aterrei na Gua­temala lembrei-me deles, ao ver as montanhas negras. Por isso prometi demorar-me mais tempo no Rio de Janeiro para que nenhuma cidade se lhe possa com­parar depois, senão para visitarmos os restaurantes de São Paulo, as suas livrarias intermináveis e as lojas de alfarrabistas enternecidos (o mesmo em Buenos Aires). Faremos isso, sim. Visitaremos os velhos museus na nossa Europa, as ruas de Antuérpia, as estradas da Toscana, o azul do mar Morto antes do Neguev, as mon­tanhas das Astúrias e o seu mar. Comere­mos ostras em La Guardia, subiremos de barco até Svolvaer, dormiremos num cer­to hotel da floresta. Nenhuma viagem tão perfeita. Antes que venha o fim.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Junho 2006