O que eu quero mostrar-lhes
Geralmente nunca penso nisso. Nem quando vou ao médico. Nem quando adormeço, nem quando acordo. Desta vez pensei nas florestas do Reno e nos jardins de Heidelberg onde as pessoas se deitam ao primeiro sol de Primavera. Dir-lhes-ei que as pessoas não devem transformar a sua vida numa tragédia e que há sempre uma segunda oportunidade para todas as vidas que esperam por nós. Talvez lhes diga isso se algum dia formos a Toledo. Não só para ver El Greco, mas para apreciar a sombra das ruas estreitas junto da sinagoga. Ou então enquanto passeamos pêlos becos de Haiffa, subindo e descendo, procurando o perfume do melhor falaffel. Ultimamente tenho pensado no que gostaria de mostrar aos filhos numa viagem que nunca lhes prometi — e penso nisso, penso nos três viajando comigo.
Penso numa praia em Baucau, em Timor, numa das manhãs mais encantadas da minha vida. E penso nas varandas de Ermera, onde conheci algumas jovens professoras portuguesas, isoladas do resto do mundo, que me ensinaram o significado das palavras humildade e dedicação. Coisas simples. Gostava de lhes mostrar esse lado do mundo. Não só pela paisagem, se bem que há uma comoção que nos atravessa ao ver o Grande Recife de Coral, a caminho da Austrália. Como há outra comoção ao sentarmo-nos na relva do jardim botânico de Bali, diante do lago, com o piquenique dos domingos. E penso nos castanheiros dos outeiros de Vinhais, os mais belos. Nos carvalhos escuros. Nos caminhos desenhados por entre as sombras da serra. Penso mostrar-lhes tudo o que se esconde numa floresta, que é o lugar ideal para pensar no sentido que as coisas têm - entre o vento, no meio da respiração da floresta e do crepúsculo que os caminhantes sabem apreciar. Há coisas que não posso deixar de lhes mostrar: o pôr-do-sol no Guaíba, o entardecer entre as águas da Amazónia, as nuvens entre os arranha-céus, os caminhos pulverizados por essa poeira de geada no Inverno, os castelos, as estradas que não levam a nenhum lado e se perdem na Patagónia. São coisas minhas.
Viajar é isso, guardar coisas nossas. Fica-se muito melancólico quando se viaja a sério, quando muda qualquer coisa em nós – uma acentuação, um riso que antes era de outra maneira, uma roupa que deixa de se usar. E há coisas inexplicáveis. Mas, sendo inexplicáveis, o Sul do México entra nesse mapa onde os levarei de carro, para dormirmos ao acaso em casarões de branco e ocre, para ouvirmos mariachis acompanhando as primeiras cervejas, para descobrir a alegria de não ter pátria. E, não conseguindo explicar essa beleza intensa de Oaxaca (raramente consigo, eu sei), é essa beleza que gostava de lhes mostrar. E as colinas escuras do Cañon del Sumidero. Os bailes ao som de rancheras ou de boleros românticos, os jantares prolongados no La Normita, em San Cristóbal de Ias Casas. Desço no mapa para ouvirmos reggae em Belize City, enquanto não chegam os tufões às ilhas diante da sua baía, enquanto as tempestades não interrompem as estradas do Citrus District.
A primeira vez que aterrei na Guatemala lembrei-me deles, ao ver as montanhas negras. Por isso prometi demorar-me mais tempo no Rio de Janeiro para que nenhuma cidade se lhe possa comparar depois, senão para visitarmos os restaurantes de São Paulo, as suas livrarias intermináveis e as lojas de alfarrabistas enternecidos (o mesmo em Buenos Aires). Faremos isso, sim. Visitaremos os velhos museus na nossa Europa, as ruas de Antuérpia, as estradas da Toscana, o azul do mar Morto antes do Neguev, as montanhas das Astúrias e o seu mar. Comeremos ostras em La Guardia, subiremos de barco até Svolvaer, dormiremos num certo hotel da floresta. Nenhuma viagem tão perfeita. Antes que venha o fim.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Junho 2006
Penso numa praia em Baucau, em Timor, numa das manhãs mais encantadas da minha vida. E penso nas varandas de Ermera, onde conheci algumas jovens professoras portuguesas, isoladas do resto do mundo, que me ensinaram o significado das palavras humildade e dedicação. Coisas simples. Gostava de lhes mostrar esse lado do mundo. Não só pela paisagem, se bem que há uma comoção que nos atravessa ao ver o Grande Recife de Coral, a caminho da Austrália. Como há outra comoção ao sentarmo-nos na relva do jardim botânico de Bali, diante do lago, com o piquenique dos domingos. E penso nos castanheiros dos outeiros de Vinhais, os mais belos. Nos carvalhos escuros. Nos caminhos desenhados por entre as sombras da serra. Penso mostrar-lhes tudo o que se esconde numa floresta, que é o lugar ideal para pensar no sentido que as coisas têm - entre o vento, no meio da respiração da floresta e do crepúsculo que os caminhantes sabem apreciar. Há coisas que não posso deixar de lhes mostrar: o pôr-do-sol no Guaíba, o entardecer entre as águas da Amazónia, as nuvens entre os arranha-céus, os caminhos pulverizados por essa poeira de geada no Inverno, os castelos, as estradas que não levam a nenhum lado e se perdem na Patagónia. São coisas minhas.
Viajar é isso, guardar coisas nossas. Fica-se muito melancólico quando se viaja a sério, quando muda qualquer coisa em nós – uma acentuação, um riso que antes era de outra maneira, uma roupa que deixa de se usar. E há coisas inexplicáveis. Mas, sendo inexplicáveis, o Sul do México entra nesse mapa onde os levarei de carro, para dormirmos ao acaso em casarões de branco e ocre, para ouvirmos mariachis acompanhando as primeiras cervejas, para descobrir a alegria de não ter pátria. E, não conseguindo explicar essa beleza intensa de Oaxaca (raramente consigo, eu sei), é essa beleza que gostava de lhes mostrar. E as colinas escuras do Cañon del Sumidero. Os bailes ao som de rancheras ou de boleros românticos, os jantares prolongados no La Normita, em San Cristóbal de Ias Casas. Desço no mapa para ouvirmos reggae em Belize City, enquanto não chegam os tufões às ilhas diante da sua baía, enquanto as tempestades não interrompem as estradas do Citrus District.
A primeira vez que aterrei na Guatemala lembrei-me deles, ao ver as montanhas negras. Por isso prometi demorar-me mais tempo no Rio de Janeiro para que nenhuma cidade se lhe possa comparar depois, senão para visitarmos os restaurantes de São Paulo, as suas livrarias intermináveis e as lojas de alfarrabistas enternecidos (o mesmo em Buenos Aires). Faremos isso, sim. Visitaremos os velhos museus na nossa Europa, as ruas de Antuérpia, as estradas da Toscana, o azul do mar Morto antes do Neguev, as montanhas das Astúrias e o seu mar. Comeremos ostras em La Guardia, subiremos de barco até Svolvaer, dormiremos num certo hotel da floresta. Nenhuma viagem tão perfeita. Antes que venha o fim.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Junho 2006
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