janeiro 30, 2006

Melancolia em Verín, não sei porquê




Almôndegas, pequenas, perfeitas, redondas – comidas a um balcão de Espanha, enquanto a tarde cai.





Na minha Galiza quase natal, quase pré-adolescente, em Verín, havia um pequeno boteco, El Meson de La Chispa, onde uma vez por quinzena - diga-mos que fim-de-semana sim, fim-de-semana não - íamos em peregrinação.

Foi lá que aprendi a alegria de comer. Eu conhecia o prazer e o apetite; tinha-os aprendido com a cozinha da minha avó, no Douro, uma cozinha inventiva, natural, simpática, comovente, cheia de ternuras e daquela abundância das casas modestas mas acolhedoras. Mas a alegria, a alegria devastadora, aquela que nos leva, ainda às portas da adolescência, a desejar a chegada “daquele dia” em que se entra no restaurante minúsculo, cheio de fumo de tabaco e de cheiro de fritos, de reservados obscuros, de mesas de madeira onde se tinham acumulado quase todas as moléculas do mundo, de bancos oscilantes que nunca se quebravam, essa alegria eu conheci-a no Meson de La Chis­pa, de Verín, na Galiza.

Foi ali que deixei de ter medo da comida vendo como, do outro lado do balcão, se fritavam calamares, se temperavam pinchos com pedacinhos de carne escrupulosamente apimentados, se cortavam rodelas de pulpo de feira retirado de panelões de ferro que tinham fervido junto da lareira, se colhiam empanadas de tabuleiros que saíam de um forno de lenha. Foi lá que bebi o meu primeiro vino de ribeiro. Foi lá que comi as minhas primeiras almôndegas. Anos depois, perdido no meio de uma tarde de Inverno, sentei-me num solitário Meson de La Chispa que tinha perdido clientela miseravelmente roubada pelas casas de hamburguesas), a uma mesa igualmente solitária, picando o mais delicioso polvo da minha infância passada, salpicado de azeite, grãos de sal e colorau. Recordei tudo. Quase tudo. As almôndegas. Um retrato de Julio Iglesias, vestido de jogador do Real Madrid, pendurado na zona dos reservados. Um cartaz anunciando corridas de toiros em Salamanca. Um retrato do castelo de Monterrey datado de 1971. Um outro retrato de Di Steffano, também com a camisa do Real. Um quadro com um provérbio sobre a arte de beber vinho. Um pequeno anuncio a cerveja Estrella Galicia. E havia ainda aqueles cinzeiros de plástico ou de porcelana, com publicidade a Cinzano, a Estrella ou aos chorizos Revilla. E havia o habi­tual Voz de Galicia sobre uma mesa, aberto na seccão de deportes, enquanto a radio passava uma cancão irritante de um irritante Joaquin Sabina. Já me esquecia que foi no Me­son de La Chispa que ouvi cancões fabulosas, de que me envergonho, de melancolias de Amancio Prada a barcarolas de Maria Ostiz. Nessa tarde bebi vinho branco Monterrey, fumei Condal e pedi un cafe con unas gotitas, homenagem ao café preparado numa cafeteira velha perfumado com aguardente de Ginzo de Limia.

Mais tarde, em casa, preparei as almôndegas à sorte, ao azar, à vontade. Misturei a carne picada (500 g) com dois dentes de alho, meia cebola, uns grãos de pimenta, uma gema de ovo, um nadinha de salsa e duas fatias de pão caseiro demolhado. Amassei a mistura durante um bocado e deixei descansar; meia hora depois, formei as almôndegas, bolinhas perfeitas, ternas, evanescentes, passando-as depois por pão ralado. Enquanto bebia uma Estrella (que trouxe de Verín) preparei um refogado com cebola em rodelas finas, alho e lou­ro; juntei-lhe as almôndegas, deixei que ganhassem cores e acrescentei quatro tomates muito maduros, sem pele e cortados aos pedacinhos. Um copo de vinho branco. Deixei ferver, mexi, esperei, juntei três medidas de agua, um ramo de salsa e abandonei o tacho durante meia hora, cozinhando e fervilhando em fogo lento. Quando regressei, temperei de sal, acrescentei uma malagueta, salsa e sumo de meio limão, rectificando o caldo com um pouco de agua quente. Afastei-me mais um quarto de hora, voltei para retirar a salsa e o louro.

Melancolia, nem sei porquê. Nem sei porquê as almôndegas, que comi na minha primeira barra espanhola.

Ingredientes
Para as almôndegas:
+ 500 g de carne picada
+ 2 fatias demolhadas e espremidas de pão caseiro sem côdea
+ 1 c. sobremesa de salsa picada
+ Pimenta
+ 2 dentes de alho
+ Meia cebola picada
+ 1 gema de ovo
+ Pão ralado

Para preparação:
+ 1 cebola media
+ 2 dentes de alho
+ Azeite
+ 2 folhas de louro
+ 4 tomates maduros
+ 1 copo de vinho branco
+ Meio limão
+ 1 malagueta
+ 1 ramo de salsa


in Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Fevereiro 2006

janeiro 29, 2006

Sobre o fim do mundo


O fim do mundo fica longe de mais. Muitas vezes temos a tentação de falar dele ou de imaginar um ponto onde tudo acaba. Não é apenas o sonho ou o pesadelo de marinheiros antigos que enfrentavam o mar à espera do grande precipício. É o nosso sonho e o nosso pesadelo. O fim do mundo é a nossa obsessão, na verdade. Quando eu comecei a fazer o inter-rail, o fim do mundo ficava naquela linha imprecisa onde começava o circulo polar árctico e a linha de abetos se cruzava com a da neve, a da tundra, a do sol que se transformava numa cinza desbotada escondida nas florestas. Também ficava para lá de Tristão de Cunha, é verdade, mas esse era um fim do mundo demasiado distante. E ficava para lá do estreito de Magalhães, E ficava para lá das cores do Índico. Havia, portanto, uma geografia, uma referência e um limite.

Imagino a missão que o rei inglês destinou a Thomas Cook que, parece, foi encarregado de descobrir que o mundo acabava em determinado pon­to. Essa ideia de descobrir o vazio, o fim de tudo, parecia apaixonante mas não resultou: o mundo continuava para lá das primeiras tempestades do Grande Sul, não existia o grande precipício sobre o nada.

Nós, europeus, temos muitas vezes essa tentação fatal de encontrar um fim do mundo. Não um fim do mundo real, mas uma geografia que nos devolva a uma sensação de plenitude e de confiança. A ultima vez que senti ou pressenti es­sa sensação foi, exactamente, no Fim do Mundo. A reportagem desse encontro foi publicada na Volta ao Mundo, mas, na verdade, começou pelo próprio voo entre Buenos Aires e Ushuaia. A primeira sensação foi de estranheza e, confesso, de desilusão: o avião estava cheio. Uma centena de turistas preparava-se para destruir, em questão de horas, todas as minhas imagens sobre o fim do mundo, ou seja, a Terra do Fogo, o território a sul do estreito de Magalhães, a passagem para a Antárctida. Felizmente que houve esse pormenor uma escala intermédia, daí a uma hora ou duas - uma paragem em Bariloche, onde três quartos da população turística saiu para as estâncias de neve. Os vinte passageiros, ou menos, que seguiram para Ushuaia constituíam já um número aceitável como companhia de viagem para o fim do mundo.

Dois ou três dias depois, rente a Puerto Williams, a cidade chilena do outro lado do canal Beagle, eu imaginava a primeira viagem de Charles Darwin à proa do navio, enfrentando os ventos gelados e a escuridão austral dos mares do Sul. A paisagem não era desagradável: verdejante, de um lado; vermelha e cor de fogo do outro; nua e árida à medida que caminhávamos para o Sul, empurrados pelo vento ou em busca de uma historia para contar, como acontece com um jornalista, onde quer que ele esteja. Mas, na verdade, não havia nenhuma historia para contar - havia aquele silêncio só interrompido pelo vento, pelo ruído do mar e pela passagem da neve rente aos glaciares. As duas cidades mais a sul do mundo, Ushuaia e Puerto Williams, eram cidades onde não se passava nada senão a chegada esporádica de um avião ou a saída ou entrada de um navio que se demorava apenas o tempo necessário. Expliquei a mim próprio que aquilo era mesmo o fim do mundo. Estava escrito na paisa­gem, estava escrito na minha memória daqueles dias. Os viajantes antigos (que não eram turistas mas viajantes), que não procuravam a pacificação nem a plenitude, mas apenas a aventura, a perdição ou, em alguns casos de loucura superlativa, a fortuna, tinham encontrado ali o lugar onde todas as esperanças acabavam. Mas onde nada poderia persegui-los; nem uma memória, uma carta, um apelo da família. Senti isso ao dobrar os pequenos promontórios de Lapataia, os seus caminhas verdes.

Sei hoje que esse meu fim do mundo particular, o canal por onde passou Darwin e que Fernão de Magalhães soube evitar e antecipar, não é o lugar ideal para férias. Não tem o luminoso mar que procuramos uma vez por ano. Nem a facilidade dos lugares onde há hotéis, estradas, praias com bom acolhimento. Mas é o Iugar onde nos defrontamos com o silêncio total, absoluto, profundo, vin­do do final da terra e não do seu centro. Se alguém tenciona perceber como é o fim do mundo, eu recomendaria Ushuaia e o que fica para lá de Ushuaia.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Fevereiro 2006

janeiro 28, 2006

Árvores e apetite

A Carvalheira fica nos arredores de Ponte de Lima, rodeado de arvoredo romântico e de ar muito respeitável. O ar ajuda - depois de um jantar reconfortante que se transforma numa lição para o paladar.

Eu não devia confessar fraquezas destas. Há uma certa honorabilidade na crítica de restaurantes que a transforma numa disciplina superior, evidentemente, e não nos devemos poupar a esforços para a sua reabilitação. Mas estas coisas são flutuantes. O crítico de restaurantes deve ser discreto, deve manter em ordem a sua disponibilidade organoléptica (seja lá o que isso for) e, sobretudo, deve saber distinguir um confit de canard de uma embalagem do McDonald's.

Isso nem sempre acontece. Mas na paisagem deslumbrante de Ponte de Lima é muito mais fácil. O centro da vila é coisa para se visitar sempre, sobretudo naquela hora crepuscular em que as suas ruas transportam melancolias, mesmo à beira do rio. A mim, a hora crepuscular, além de evocar poesia, abre-me o apetite, esteja onde estiver. De modo que pela décima vez ai fui na direcção de Arcozelo, depois de uma sesta providencial, de fim-de-semana, em Vila Nova de Cerveira (onde voltarei em breve para subir a serra e almoçar). Um dos meus preconceitos, até agora não desmentido, prende-se com a ideia de que o Minho, e sobretudo o Alto Minho, é a região portuguesa onde melhor se come. Estou aberto a contraditório, mas não para já: antes, A Carvalheira, em Arcozelo, Ponte de Lima, uma casa recolhida entre folhagem, bom ar, ambiente de boa província. Um casarão simpático e acolhedor onde as mesas se estendem por algumas salas de boa profundidade, cobertas de toalhas e sem peraltices, rodeadas de estantes onde se alinham boas colheitas, simpáticos rótulos dos melhores vinhos (uma selecção de 260 tintos talvez seja convincente) e aguardando as entradas da ordem. São simples: pataniscas de bacalhau, aposta conservadora e honrada, muito boas - para acrescentar aos cogumelos com fumados, as favas com chouriço (escorrendo, tenrinhas, cozinhadas com vagar - e sem ervas!) e a um misto de enchidos e de fumados que fará as delícias de esfomeados - com uma alheira muito boa. Estas informações são, já, comoventes; porém, como nem só de comoções vive o homem (e muito menos a mulher), aproximam-se os pratos de sustância, encabeçados pelo bacalhau com broa. Avesso a utilizar o dicionário de sinónimos, vou chamar baca­lhau ao bacalhau - e este é um bacalhau excelente, bem escolhido e bem cozinhado, com a pele no lugar certo e o azeite sem exageros. Nada a dizer.

Nesta altura, aliás, silêncio quase absoluto para que se dê entrada ao cabrito no forno, tostado e tentador, com as costelinhas quase caramelizadas e a pele funcionando como uma cobertura de gelatinas que se soltam do seu tempero caseiro, perfumado, aliviado de artifícios. Devo dizer-lhes que é uma obra de arte. Até esqueço o arroz. Os mais devoradores debicam agora no pernil, com uns grelos saturados e exangues - e umas batatinhas apresentadas como se viessem do ourives, douradas por fora, mas cremosas por dentro. Uma palavra sobre os grelos: em restaurantes destes há mais respeito pelos vegetais do que nos restaurantes vegetarianos, onde não conhecem os legumes senão pelo nome - aqui, os grelos salteados, ou migados, são tratados como merecem. Tenho uns amigos que arrancam do Porto, em peregrinação, para devorar o pernil do A Carvalheira: pelo caminho ocupam mais de vinte minutos com a descrição dos seus sucos e texturas. Ficam muito excitados, e compreendo-os, mas protejo-me. Para concluir a ronda, vem o arroz de pato. Não é das minhas preferências e classifico-o abaixo da expectativa, esbranquiçado; espero mudança na sua receita, mas compenso-o com a religiosa evocação do leite-creme queimado e com a pêra borrachona, material delicado e elegante, muito familiar (alem disso, apenas o bolo de bolacha, a maçã assada e umas rabanadas de época, nadando sobre um molho que se foi transformando em caramelo).

Ao ser devolvido à Estrada Nacional, depois de passar pela violenta lista de digestivos, perfumada por um bom café e um charuto, resmunguei, mas achei que o mundo estava mais perfeito. Não admira.

À Lupa
Vinhos:* * *
Digestivos: * * * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Tintos: 260
Brancos: 25
Verdes: 25
Aguardentes: 40
Portos e Madeiras: 60
Cervejas: 4

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Parque privativo
Levar Crianças: Sim
Bengaleiro: Sim
Reservas: Aconselhável
Preço médio: 20 Euros

A Carvalheira
Antepaço-Arcozelo
4990-231 Ponte de Lima
Tel: 258 742316
Encerra à 2.ª feira

in Revista Notícias Sábado - 28 Janeiro 2006

Tem lume?

À medida que desce o número de fumadores de cigarros, cresce o de apreciadores de charutos. E o número de mulheres que se iniciam nessa arte de tradições até há pouco tempo apenas reservada a homens. Aqui ficam algumas sugestões suaves e perfumadas a que nem elas conseguem resistir.

Muitos se recordam desse momento ilustre da história do cinema: “Have you got a match?” - Laureen Bacall, na tela do cinema, com aquele olhar brilhante, a pequena ruga apetitosa ao cantinho direito da boca, os dedos segurando um cigarro, pedia lume a Humphrey Bogart e o momento ficou. Com o tempo, como se sabe, o tabaco e o acto de fumar foram sendo desperdiçados e ameaçados. Natural. Razões médicas, os imponderáveis da saúde e - mais importante ainda - as substâncias e aditivos que figuram nos cigarros embrulhados em papel: do chumbo ao açúcar, do amoníaco aos condensados de alcatrão e aos derivados de nicotina. Provavelmente, para muitos não há - hoje - nada de romântico na figura desse herói mítico do cinema e da literatura, acendendo cigarro atras de cigarro ao balcão de um bar. Humphrey Bogart seria o modelo: os olhos semi-cerrados, evitando o fumo que Ihe passa mesmo à frente, o isqueiro produzindo aquele clic-clac clássico, a cigarreira guardada no bolso direito do casaco assertoado. Mas também como disse Laureen Bacall, ou Marlene Dietricht, ou Mae West.

Esse tempo terminou. Quando os correios franceses quiseram assinalar o centenário do nascimento do escritor Andre Malraux, produzindo um selo, retiraram-lhe o cigarro da fotografia. O mesmo tinham feito a Albert Camus. Tal como Estaline procedia com os seus adversários, eliminando-os da vida real mas também das fotografias, as autoridades limpam o passado. E corrigem-no, deixando-o indefeso e falso. Mas saudável. Reduzir o acto de fumar ao consumo de cigarro é uma perversidade. Ao mesmo tempo que, com alguma felicidade, se reduz o consumo de cigarros em todo o mundo, aumenta sensivelmente o de charutos. O fumador de charutos é uma categoria à parte. Fumador compulsivo ou não, ele reconhece que há um momento certo para usar o seu charuto; compreende que um charuto se apaga de tristeza se é fumado em circunstâncias adversas ou diante de olhares inimigos; sabe que um charuto é uma obra de arte, o resultado de uma tradição que vem do fundo dos séculos e de um trabalho afectuoso que condensa aromas, perfumes, condições de terreno, aproveitamento da luz solar - e se destina a ser consumido com parcimónia e em homenagem ao prazer simples de quem não abdica da sua própria humanidade.

Ora ao longo da historia tem sido vasto o número de mulheres fumadoras de charutos - um objecto tradicionalmente e injustamente reservado para os homens. Quando, de acordo com as prescrições médicas da altura, o tabaco era bem-visto para o tratamento de asma, doenças respiratórias ou do aparelho digestivo, cefaleias e reumatismo, gripes e falta de visão, Catarina, a Grande, era fumadora de charuto (e é-lhe, aliás, atribuída a invenção das cintas ou anilhas dos charutos, a fim de não sujar ou marcar os dedos). Tal como George Sand, a excelente escritora e amante de Chopin, de Musset ou de Prosper Merimée. Nomes não faltam, alias: Marlene Dietricht, Gertrud Stein, Colette, Karen Blixen e ate Ana Plácido, a mulher de Camilo Castelo Branco. Também é verdade que a primeira coisa que se fez na corte britânica depois do velório da rainha Vitoria foi autorizar o consume de charuto. Escolham as vossas parceiras: a rainha Vitoria de um lado, ou Raquel Welch, Demi Moore, Claudia Schiffer ou Jodie Foster do outro. A vida não é fácil. Sinal de elegância, de poder, de sofisticação - mas também de uma discreta chama de perversidade, de um subtil erotismo -, o consumo de charutos por mulheres não indicia a prática de vícios cruéis nem a banalização do vício. Um charuto tem uma circunstância e, tirando os clássicos exemplos de Winston Churchill (que fumava dez a quinze por dia), de Groucho Marx, de Mark Twain ou de John Ford, há uma hora para tudo: depois de uma refeição especial, num momento escolhido, talvez a tentação ocorra.

A finalidade deste artigo não é incitar ao consumo de tabaco - mas apenas, caso “a tentação ocorra”, aconselhar alguns charutos delicados para iniciação a fumadoras que queiram deixar de fumar cigarros mas tenham uma secreta nostalgia do novelo de fumo que suaviza uma digestão ou ameniza uma conversa pacífica. Ha formatos mais indicados para isso - não apenas a vulgar cigarrilha produzida em série - e aqui se apresentam algumas propostas.

in Revista Notícias Sábado - 28 Janeiro 2006

janeiro 26, 2006

Adeus Cavaco

Cavaco Silva ganhou as eleições. Algumas almas insistem em contar décimas para desvalorizar uma vitória à primeira volta, como se os candidatos de esquerda, afinal, tivessem sido uma e a mesma pessoa, um candidato apenas. Não eram. Apenas numa coisa estavam unidos, de facto: em atacar Cavaco Silva. Fizeram-no desde Julho, permanentemente, numa guerrilha que também percorreu um caminho sujo, desde questões de carácter até ao insulto infame. Passou. Essas coisas passam sempre. São coisas de campanha, parece, como se durante a campanha eleitoral o “combate político” permitisse uma certa e “excepcional” largueza de linguagem e autorizasse a má educação e a ameaça aos eleitores. Acontece que não há interrupções de avaliação no percurso de um político. Essas coisas passam, mas não se esquecem.

Outras coisas que não se esquecerão são as expressões de piedoso desalento de pessoas que se sentem constrangidas pelo facto de Cavaco Silva ter sido eleito: se uns vivem o momento com o sentimento de terem sido “despromovidas” (como Vital Moreira), muitas outras mais não fazem do que exercer o seu complexo de classe contra o filho de Teodoro Silva, o modesto homem de Boliqueime. Essa punição classista e snob, usada sem parcimónia pela esquerda e pela direita, junta-se à miséria da ideologia que andou no palco durante a campanha: Cavaco seria apenas o economista a quem falta “uma dimensão humanista” (ninguém explicou bem o que isso é), o professor, o homem que não exibe a sua biblioteca diante das câmaras nem cita de cor os “Lusíadas”. A esses falta perceber que “cultura” não é essa invocação permanente de bibliotecas – mas um certo sentido de tolerância, a disponibilidade para ouvir, o esforço de compreender, elegância na forma como se escutam as críticas e como se tolera a diversidade.

Creio que, depois destas eleições, regressamos à normalidade, à vida concreta, às tarefas comuns. Não vão cumprir-se as profecias de tragédia e de catástrofe, anunciadas para o caso de Cavaco Silva ser eleito. Os eleitores não tiveram medo; já ninguém receia ameaças. E suspeito que ninguém vai exilar-se. A normalidade implica, também, que se diga adeus a Cavaco. O novo Presidente sabe o que isso quer dizer, e ele próprio o anunciou na noite da vitória: que a maioria que o elegeu se dissolvia naquele instante. Estamos dissolvidos; adeus Cavaco. O que significa, também, adeus cavaquismo. Agora é outra coisa.

Cavaco Silva tem pela frente uma tarefa rigorosamente inédita: ele é o primeiro presidente eleito que não responde pela herança do PREC ou pela tradição do anti-fascismo. Trinta anos depois do 25 de Abril, este momento traduz a inauguração de um novo ciclo na vida portuguesa. Não apenas na “vida política”, mas na sua dimensão cultural e afectiva, até aqui prisioneira da bênção dos “proprietários da história” e do “republicanismo histórico”. A sua eleição significa que a Presidência deixou de ser encarada como património dessa herança e dessa memória. Em vez do “republicanismo”, os valores republicanos (o respeito pelas leis, o rigor e a qualidade da vida pública). Em vez do respeito acrítico pelo passado, a necessidade de uma atenção permanente à vida dos portugueses. Para isso se quer um presidente: que ele seja exigente e rigoroso num país que tem de ser mais exigente e mais rigoroso. O presidente sabe que não tem de ser o exemplo ou o símbolo dos nossos lugares-comuns; esses, temos em abundância, misturados com defeitos e virtudes. Pelo contrário, tem de ser o exemplo desse novo ciclo da vida portuguesa e da transformação que o deve acompanhar.

Por isso mesmo, adeus Cavaco. Agora, senhor presidente, é consigo. Conforme estava prometido.

Jornal de Notícias - 26 Janeiro 2006

janeiro 22, 2006

Poeira, 1.

Havia poeira, naqueles dias de Inverno e sol. Barraquinhas de churros, farturas, algodão doce e as primeiras pipocas que chegavam à cidade. A evocação é infantil, pré-adolescente, mas junta-se à das barraquinhas de matraquilhos, tiro ao alvo, ruído do poço da morte, carros-de-choque e várias juke-boxes instaladas ao longo da avenida. E soldados vestidos com farda completa, verde-azeitona, saídos do Batalhão de Caçadores 10, passeando de braço dado com vagas namoradas sazonais, promessas de Outono, de Inverno, da Primavera ameaçada. E havia poeira dançando entre os plátanos. E moedas de 1$00 trocadas para produzirem canções como aquelas, hinos luminosos e inesquecíveis, vozes de um portento chamado Nelson Ned. As juke-boxes competiam. Nelson Ned. Tudo passou, tudo passará. Nelson Ned (o de «Domingo à tarde») e Nilton César (o de «Espere um pouco, um pouquinho, mais»). E Lindomar Castilho. E Teixeirinha. Havia uma versão unplugged de «Sentado à beira do caminho» (mas nós não sabíamos o que era «unplugged» no país que cantava acompanhado à guitarra e à viola), que ele tinha composto para Roberto Carlos. Os meus ouvidos lembram-se ligeiramente de Bartó Galeno (que cantava «No toca fitas do meu carro») e de Marcos Roberto ou Dori Edson. As canções de Cauby Peixoto também ecoavam nesses recintos de feira. As raparigas passeavam com os militares do Batalhão de Caçadores 10, os que iriam depois para Bafatá ou para a Baixa do Cassanje; eram pobres, modestas, vestiam casacos de malha e saias de xadrez, quando nós recusávamos as calças à boca de sino. As moedas de 1$00 (um escudo) davam para uma canção apenas, mas havia o bónus de três canções por 2$50, com o prémio suplementar de uma partida de matraquilhos. Ao fim-de-semana, elas passeavam também com os empregados das lojas de fazenda, das mercearias e das repartições, e ouviam Gabriel Cardoso cantando «O autocarro do amor» quando nós fugíamos para casa a ouvir Songs from the Wood, os discos de Van Der Graaf, o que restava da guitarra de Deep Purple, os sintetizadores dos Emerson Lake & Palmer, dos Uriah Heep, a guitarra dos Slade (a de Dave Hill a acompanhar «I won't laugh at you when you boo-hoo-hoo coz I luv you, yeah, I can turn my back on the things you lack coz I luv you»). Eu lembro Songs from the Wood porque foi um disco que mudou uma das minhas primaveras, antes ou durante a revolução, não recordo. Flautas. Guitarras. Vozes vindas dos pântanos. Ofereceram-me o disco juntamente com duas cassetes dos Fairport Convention. Não tive culpa. Mas eu não tinha culpa de haver canções de Nelson Ned a sair das juke-boxes da avenida. Na altura eu ouvia o disco que mudaria a minha vida, os Temptations cantando «Papa Was a Rolling Stone» («Papa was a rollin' stone, wherever he laid his hat was his home») e, depois, «Just my Imagination» («Each day through my window I watch her as she passes by, I say to myself you're such a lucky guy, to have a girl like her...»). Sim, eu depois falo-vos de Harold Melvin & The Bluenotes, de Gladys Knight & The Pips, de Barry White, de Marvin Gaye ou Tammi Terrell. Mas eu lembro-me é dessa poeira, dos casais atravessando a avenida ao som António Teixeira cantando «Adeus Guiné, serás sempre Portugal» e de Nelson Ned cantando «Tudo Passará». E nunca pude, na verdade, rir-me de Nelson Ned nem de Nilton César ou Lindomar Castilho. Quando a bossa nova começava a chorar, do lado de lá do mar (e nós não sabíamos), nenenhén, nenenhén, os casais tristes ouviam com alegria aquela inocência malvada de «Dois num só coração» ou de «A namorada que sonhei».

Publicado aqui.

janeiro 21, 2006

Heroísmo e valentia

Se o leitor não quer esperar pela aletria que só vem na secção das sobremesas, pode entreter-se com o cabritinho assado em forno de lenha ou as caras de bacalhau servidas com arroz de feijão encarnado - as caras são literariamente chamadas “larocas”, o que serve para dizer que estamos no Porto. E bem no Porto. Na Rua do Heroísmo, que pouca gente sabe que era, antigamente, a do Prado. É ali, no centro do Porto burguês e liberal (onde se evocam os combates de 1833), que fica a Cozinha do Manel. E, se o heroísmo vem directamente do século XIX e da tradição liberal do Porto, já a Cozinha do Manel, que abriu as suas portas em 1989, evoca, antes, a tradição da nossa gastronomia. Ainda bem, porque só essa tradição permite ver, como eu vi a estas mesas, adversários políticos trinchando o mesmo cabrito - ou, em mano-a-mano, rivais do futebol comungando dos mesmos filetes de pescada.

A vocação conciliatória da Cozinha do Manel, juntando liberais e miguelistas, ficaria provada depois de uma breve analise da sua ementa, que é, nessa tradição portuense, equilibrada e pouco dada a exuberâncias. O grupo de entradas é supimpa: tripinhas enfarinhadas, costelinhas em vinha d'alhos, uma suculenta tábua de salpicão minhoto, além da alheira transmontana, permitindo ainda uma incursão relativamente galega para que se trinquem uns pimentinhos de Padrón. Nada de espanto, mas nada de reprovável.

Depois, ah!, depois, começam as dificuldades. Eu chamo “dificuldades” num restaurante aos problemas de consciência que tomará conta do leitor quando se depara com opções controversas. Enquanto decide, vigiemos a carta de vinhos, que apresenta 322 tintos, a maior parte deles nada conservadores - e uma justificada insistência em brancos durienses. Esses brancos serviriam para acompanhar as caras (ou larocas, eu já disse) de bacalhau com arroz de feijão encarnado, os filetes de pescada (brancos, muito frescos, levemente perfumados de alho, limão e pimenta) que também aparecem enlaçados com o arrozinho de feijão, ou uma cabeça de pescada que exige preparação, circunstância e tempo para a comer. Confesso que os filetes são, como se dizia na critica académica de há alguns anos, superlativos. Muito, muito bons. Depois deles depenicados, os fieis admiradores de rojões parece-me que entram num êxtase que atinge proporções metafísicas, porque estes são fantásticos; na ementa vem escrito “rojões de reco ibérico de sarrabulho à minhota, com papas”.
Por mim, prefiro o triângulo onde se apresentam os seguintes vértices: cabrito assado no forno de lenha - vale a pena experimentar esta pele tostada com vagar e sem ervas e gorduras adicionais; vitelinha arouquesa assada com arroz no forno a lenha - fatias generosas, tenras, suculentas, ligeiramente humedecidas; iscas de fígado de vitelinha de cebolada - muito bem temperadas e de corte exigente, servidas com batatas cozidas muito saborosas, como é de lei. Dependendo do dia ou da noite, há ainda um polvo assado no forno, um “arroz de frango-de-pé-descalço- (muito justamente gabado) e um bacalhau na broa. Contento-me com o que comi, mas prometo regresso. Uma das razoes por que regressarei tem a ver com a aletria, servida num leite-creme generoso, rescendendo a colesterol (do bom, está claro) e a produtos caseiros, se bem que admita pedinchar, para o café, uns bolinhos de gerimú, onde os fiozinhos de abóbora mal se desprendem da massa e do açucar. Não cheguei a provar a tarte de claras com ovos moles e gila, mas, como eu disse, eu regresso. E o leitor pode fazer o mesmo. Zé Antonio, prepara-te.


À Lupa
Vinhos: * * * * *
Digestivos: * * * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Tintos: 322
Brancos: 23
Verdes: 20
Aguardentes: 26
Portos e Madeiras: 18
Whiskies: 64
Cervejas: 12

Outros dados
Charutos: Não há
Estacionamento: Parque privativo próximo
Levar crianças: Não
Bengaleiro: Não
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 20 Euros

Restaurante Cozinha do Manel
Rua do Heroísmo, 215 – 4300 Porto
Tel: 22.5363388
Reservas: 91.9787598
Encerra aos Domingos


in Revista Notícias Sábado – 21 Janeiro 2006

janeiro 19, 2006

O estaleiro

Se não fossem as presidenciais, haveria outros assuntos para tratar esta semana: as escutas telefónicas; a ida, amanhã, do procurador-geral da República ao Parlamento; a nomeação de Mafalda Almeida, uma portuguesa de 23 anos, para o comando da GNR de Pombal; os estudos sobre a desigualdade social em Portugal, e até o início das comemorações dos 50 anos da Gulbenkian em Portugal.

É muito provável, no entanto, que estas eleições sejam demasiado importantes para o final de um ciclo político e cultural português. E será tão mais significativa a mudança quanto mais natural recomece a vida na segunda-feira, o que significa que este novo ciclo foi já, afinal, inaugurado na cabeça dos portugueses. Também por isso, é estranho que parte dos candidatos à Presidência insista em parlamentar com o passado, em ajustar contas com o passado, em esgrimir com o passado, sem se dar conta de que o processo democrático português leva 30 anos de avanços e de recuos, mas que a sua "normalização" não significa empobrecimento, nem banalização, nem entristecimento. Pelo contrário simboliza a sua idade madura, a normalidade com que os eleitores e os cidadãos (uma coisa sem outra é impossível) encaram mudanças inadiáveis ou continuidades insuspeitas. E a idade madura é demasiado importante para a deixarmos à solta. Ela é a nossa idade.

Há, na campanha política, evidentemente, um desejo de euforia, de apelo permanente a mudanças de interlocutores e de projectos. Simplesmente, aquilo que os analistas políticos encaram como a mudança "nas suas vidas" (de comentadores) não significa, realmente, benefício na vida das pessoas concretas. Um exemplo? O modo como os comentadores assinalam coisas do género "Fulano faz uma campanha notável." Na verdade, a ideia de "campanha notável" significa muito mais encenação do que propostas exequíveis e aceitáveis, mais ruído do que substância, mais poeira do que outra coisa. Fazer uma "campanha eleitoral notável" significa aparecer mais na televisão, transportar capitais de simpatia ou de magnetismo pessoal - características que emprestam brilho a um herói das multidões, mas que acrescentam e multiplicam desilusão depois das eleições.

É preferível encarar a política como o domínio do realizável. Esta proposta, que muitos leitores se hão-de apressar a rotular de conservadora ou conformista, é realmente inovadora. A mais inovadora, aliás, num país que deixou banalizar a corrupção e o laxismo, e alastrar o provincianismo cultural. Não se trata de retirar o sonho do domínio da política; trata-se, antes, de subtrair a política ao exclusivo domínio do sonho e da moral - e de a ligar ao mundo das pessoas. Portugal, bem vistas as coisas, está um estaleiro. Os últimos dois anos, em vez de terem contribuído para reorganizar esse estaleiro, em vez de se terem traduzido num aumento de exigência à nossa disponibilidade para sermos portugueses (na grandeza e na pequenez, na euforia e no quotidiano) e ao nosso sentido de responsabilidade, deixaram o país mergulhado em ressentimentos e fugas. Votar num candidato presidencial, nestas circunstâncias, não é votar num símbolo mas escolher um diagnóstico o mais correcto possível da situação em que nos encontramos. Se, na segunda-feira encararmos o resultado das eleições presidenciais com esse pressentimento de normalidade, poderemos dizer que este ciclo político está em vias de ser encerrado. Lamento, mas a política também quer dizer isso.

P.S. Pela primeira vez, apoiei publicamente um candidato presidencial, Cavaco Silva. Avisei os leitores previamente, como tinha de o fazer. Espero que ele ganhe as eleições. Mas o problema de Portugal não é o de saber quem ganha. O problema, mesmo, é o país.

Jornal de Notícias - 19 Janeiro 2006

janeiro 12, 2006

O estalinismo susceptível

Jerónimo de Sousa, que é um homem cordato e simpático, ficou chocado com a simples invocação de Álvaro Cunhal feita por Manuel Alegre. Recordo ao leitor que Manuel Alegre estava diante de um dos símbolos do fascismo e do regime de terror que permitia as prisões políticas, o forte de Peniche. Álvaro Cunhal esteve aí preso. Eu não tenho simpatia pelas ideias do antigo secretário-geral do PCP, mas invocarei o seu nome quantas vezes me apetecer, em campanha eleitoral ou fora da campanha eleitoral, em que circunstâncias eu julgar adequado e não pedirei autorização. Nem Jerónimo de Sousa ou qualquer dirigente do PCP me podem proibir de pronunciar este nome Álvaro Cunhal. Nem este nem, felizmente, qualquer outro, ao contrário do tempo em que não podíamos, nem eu nem o leitor, pronunciar certos nomes. Portanto, e que fique claro, eu, que não tenho simpatia pelas ideias políticas de Álvaro Cunhal, citarei o seu nome diante do Forte de Peniche ou onde me apetecer. Jerónimo de Sousa, e uma corte de homens carregados de moral, ética e património histórico, investiram contra Manuel Alegre por esse facto. Eu saio a defender Manuel Alegre e seja quem for que alguém queira calar. Portugal está cheio de velhos e de novos estalinistas.

Outro coro de gente vergada à moral, à ética e ao património histórico, apareceu a criticar Cavaco porque em Grândola se cantou "Grândola, Vila Morena", durante a visita que o candidato fez à vila alentejana. Escândalo. Não percebo, senão à distância, a virgindade ofendida. Ora, "Grândola, Vila Morena" foi um dos símbolos do 25 de Abril e, portanto, essa memória é comum e colectiva. Também é minha. Não admito que ma roubem; têm de me pedir licença.

Ora há aqui um fenómeno risível e disparatado o dos estalinistas renovados - eles são os proprietários da ética, da moral, do 25 de Abril, da República, do património da Presidência, da virtude, da virgindade, do humanismo, das canções, do Forte de Peniche, do republicanismo, da Constituição, da verdade, do Prémio Nobel da Literatura, do sentido de Estado, do bom comportamento, do bom gosto, do bom senso, do Hino, de Alves Redol, dos Jerónimos, da cultura ou, provavelmente, da verdade. Na verdade, apenas reproduzem o seu medo dos outros e a ideia de respeitinho que gostavam de ver estendida a todos os ramos da política, do jornalismo e do debate. Eles queriam um país desenhado a régua e a esquadro, de onde fossem expulsos ou onde fossem, pelo menos, silenciados, aqueles que não cabem na sua ideia de perfeição.

Esse tique, suave em alguns, escandalizado noutros, e apenas disparatado em certas almas, é uma perversão do debate político entre nós. Apropriando-se do 25 de Abril, do discurso sobre o "estado social", da "cultura" e da noção de "ética", gostariam de um país onde pudessem deter toda a verdade - um país silencioso e respeitador, onde todos fossem obrigados a pedir a bênção antes de tomar a palavra.

A ideia de que Manuel Alegre não pode citar os nomes que entender e em que circunstâncias entender, ou a de que os apoiantes de Cavaco Silva não podem, em Grândola, cantar "Grândola, Vila Morena", é mais do que absurda. Portugal mantém esses tiques ridículos. De vez em quando, aparece um desses pequenos sacerdotes nos jornais o senhor não pode falar sobre esse assunto; fulano não deve pronunciar-se sobre o outro assunto. Esta vontade de censurar, de proibir e de esganiçar a voz em tom escandalizado, é congénita a parte da alma portuguesa. É um estalinismo demasiado susceptível. E é uma pena.

Jornal de Notícias - 12 Janeiro 2006

janeiro 11, 2006

Casa Fernando Pessoa: as novidades

Casa Fernando Pessoa deve ser pólo de atracção para os jovens

Francisco José Viegas, o novo director da Casa Fernando Pessoa (CFP), quer o equipamento mais visível na cidade, para públicos distintos, com muitos estudantes, e ponto de encontro para poetas e escritores, portugueses e estrangeiros.

"Planear e executar a programação da Casa Fernando Pessoa é um desafio fascinante. Mas há que tomar contacto com as potencialidades da casa e confrontá-las com os projectos. Tenho ideias alinhadas mas não são definitivas", disse ontem o jornalista e escritor, na conferência de imprensa em que o vereador da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, José Amaral Lopes, o apresentou como sucessor de Clara Ferreira Alves, que se demitiu na semana passada.

O responsável, que deve entrar em funções no dia 1 de Fevereiro, quer que a CFP seja "mais aberta", com "ateliers para os jovens das escolas de Lisboa", e local de encontro "para os amantes da poesia e da literatura". Um projecto, disse, que também passe por convidar autores estrangeiros "para escreverem sobre Lisboa".

Com a promessa de apresentar um programa detalhado dentro de mês e meio, Francisco José Viegas mostra-se "entusiasmado com o projecto" que sublinha ser de continuação das anteriores responsáveis. Sobre Clara Ferreira Alves, diz ter feito um "trabalho notável".

A divulgação de Fernando Pessoa nos PALOP e Brasil deverá ter, segundo o novo responsável, "especial atenção", dando destaque ao mote "Lisboa, cidade de Pessoa".

Os constrangimentos financeiros de que se queixou a antecessora não incomodam Viegas. "As limitações orçamentais não me afligem. Nesta fase da vida portuguesa temos de partir para um trabalho sem queixumes. Ou então não vale a pena."

O novo director tem a promessa por parte da vereação da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, de um pequeno reforço no orçamento e novos recursos humanos que virão da própria autarquia.

O jornalista pretende ainda relançar a revista Tabacaria, com periodicidade trimestral, e novo grafismo.

"A Tabacaria é um ícone da Casa Fernando Pessoa que importa reactivar porque se tornou única no panorama português".

Diário de Notícias - 11 de Janeiro 2006

janeiro 10, 2006

Francisco José Viegas é o novo Director da Casa Fernando Pessoa em Lisboa

Esta é a nova morada do Francisco José Viegas.
Este "armazém" felicita-o e espera que continue a haver tempo
para a escrita destas e de muitas outras coisas.

janeiro 05, 2006

Um ano mesmo novo

Portugal precisa de um presidente. Jorge Sampaio cumpriu razoavelmente a tarefa. Muitas vezes me manifestei contra as suas iniciativas e, na rapidez do contra-ataque, posso ter sido injusto; é a vida. De outras vezes, o actual presidente pôs-se a jeito. Coisas de feitio. Infelizmente, foram demasiadas vezes.

Eu compreendo-o. Não é por estar a despedir-se do cargo, mas eu compreendo-o. O Mundo seria muito melhor se fosse diferente, se houvesse melhores políticos, se houvesse mais compreensão e mais orçamento para governar com simpatia. Infelizmente, o nosso Mundo é este e, pior ainda, Portugal é isto. Jorge Sampaio aprendeu que o país era isto. Ouviu bastante, durante estes dez anos - um país queixoso, pobre, erguendo a cabeça, tentando ultrapassar-se a si próprio. Ouvimo-lo bastante, protestando contra isto, contra o país, "a cepa torta", o "imobilismo" - esse lado comovido e afectuoso fê-lo várias vezes cair em erros lamentáveis. Devemos ao presidente da República um respeito sério e atento, mas devemos-lhe críticas severas enquanto cidadãos. Porque ele não é a nossa bandeira. Não é o avô que nos protege das adversidades. Não é a voz consoladora que desculpa erros e deslizes. Um presidente deve ser uma garantia, mais do que um símbolo. Para símbolos bastam-nos a bandeira, o hino, os Jerónimos, a serra da Malcata, a ilha do Corvo, o dicionário da Língua ou o que o nosso afecto nos ditar. Um presidente deve ser fonte de energia, mais do que um risco de alarme permanente ou um homem relativamente amável.

2006 não será um ano particularmente diferente para a nossa vida. Mas pode ser um ano de mudança. A palavra mágica da "retoma" vai ser utilizada vezes sem conta. E, felizmente, a palavra "auto-estima" pode ser retirada da circulação. Os portugueses não têm problemas de auto-estima. Têm, antes, problemas com a vida. Só assim se compreende o seu permanente desejo de tragédia e de euforia.

Mudar isso supõe que este país queixoso, pobre, que ergue a cabeça de vez em quando, que não é um pântano nem o oásis de alegrias para as nossas vidas, seja mais exigente consigo próprio. Não é uma boa mensagem para 2006; nos últimos dois anos, Portugal sobrevoou as grandes questões, viveu de ressentimentos e de fugas. Mas sobrevoou também as pequenas questões, muito mais importantes para a nossa vida, desde o sistema de avaliação do Ensino Secundário, que deve ser mais rigoroso e exigente, até à forma como se permite uma escandalosa promiscuidade entre cargos públicos e políticos e interesses privados. Mudar alguma coisa em 2006 implica fazer escolhas difíceis e abandonar preconceitos que se têm revelado funestos do ponto de vista prático e desastrosos para as apostas do futuro, na Economia, na Educação, na Justiça e no comportamento dos cidadãos. Ser exigente é difícil. Acarreta uma disciplina para todos nós. Mas, sem isso, não há maneira de sair da "cepa torta", expressão tão do agrado de Jorge Sampaio.

2. O dr. Mário Soares, a quem devemos várias coisas importantes, porque somos pessoas com memória e porque conhecemos a palavra gratidão, está indignado com a Imprensa. Indignado com Imprensa e surpreendido com o país, porque o país, miseravelmente, não compreende nem o alcance das suas propostas eleitorais nem a sofisticação das suas queixas. A verdade é que o candidato do PS não tem grandes propostas, limitando-se a ser o principal foco de crispação e de vitimização. É uma atitude relativamente inútil. Mas alguém o devia ter avisado sobre a verdadeira natureza dos valores republicanos não há privilégios para ninguém.

Jornal de Notícias - 5 de Janeiro 2006