julho 31, 2006

Portugal mal amado

O chamado "caso de Maria João Pires" adquiriu contornos de alguma esquizofrenia portuguesa. A pianista anunciou, ou fez anunciar, que deixava Portugal e se iria fixar na Bahia. Uma decisão de carácter privado e que, em tempos de globalização, não aquece nem arrefece. Conheci bastantes portugueses que se fixaram nos lugares mais recônditos do planeta - e sem nenhuma justificação. Viver aqui ou viver nas ilhas Vanuatu, onde, segundo um estudo recente, se acham as pessoas mais felizes do mundo, é uma decisão do foro individual. Muitos portugueses apreciariam viver noutro lugar. Estão de mal com o país. Não acho isso chocante. Há quem goste de viver em Mirandela e quem queira ir viver para o Canadá (pessoalmente, acho estranho) ou para a Argentina (o que eu compreendo).

O caso de Maria João Pires é inteiramente diferente. Ao contrário da larguíssima maioria dos portugueses, a pianista poderia viver onde quisesse - no rigor gelado das ilhas Spitzberg ou na civilizada Suíça, bem mais perto de públicos que valorizam o seu trabalho. Escolheu, no entanto, viver nos arredores de Castelo Branco, em Belgais, onde criou um centro destinado ao estudo da artes que, contando com o seu empenhamento, o seu dinheiro e os seus amigos, necessitaria também de apoio do Estado. O projecto de Belgais é mais do que interessante. Num país onde a "cultura literária" domina claramente a "cultura científica", a "cultura artística" ou o ensino das artes têm sido menosprezados e ignorados. É raríssimo encontrar uma escola pública que possa ensinar música, por exemplo. As artes ou são um luxo desprezado ou uma excepção sobrevalorizada. A ideia de Belgais é, por isso, generosa.

Acontece, porém, segundo entendi, que o dinheiro de Maria João Pires e os apoios do Estado (cerca de dois milhões de euros) não bastavam. Era necessário mais. Isso constitui um problema sério no país que tem dificuldade em gerir fundos tão pequenos como os atribuídos a uma direcção-geral ou ao pelouro da cultura de uma autarquia. Maria João Pires acha que isso, não conseguir levar adiante o projecto de Belgais, a levou a ser vítima "de uma verdadeira uma tortura" e que precisava de "fugir dos malefícios de Portugal".

Como se sabe, é fácil ser-se vítima em Portugal, sobretudo quando se tem uma ideia errada ou deficiente do país. O discurso de Maria João Pires acaba por ser banalizado e por corresponder a uma forma de ressentimento muito vulgar hoje em dia, demasiado marcada ideologicamente. Poucas pessoas estarão em condições de dizer a Maria João Pires o que Maria João Pires devia fazer nas suas exactas circunstâncias. Mas houve pessoas que estiveram em circunstâncias semelhantes e que tomaram outra atitude. Maria João Pires tem toda a liberdade de ir viver para Salvador - e mais toda a legitimidade e todo o direito. Pessoalmente, acho uma posição sensata e digna. Mas eu iria e não me queixaria da Pátria, essa ingrata.

Muitos intelectuais e os artistas têm digníssimos desejos de transformar Portugal num lugar mais agradável e onde a arte, a ciência e a cultura tenham um papel diferente na vida dos cidadãos. Querem fazê-lo porque acham bom e decente para o país. Infelizmente, uma parte deles tem pressa demais e outra parte sente-se iluminada diante da turba ou desiludida quando o país revela a sua face e as suas impossibilidades. O despeito e o ressentimento são as menos nobres reacções, nessas circunstâncias. Mesmo que sinceras.

No fim de contas, em Salvador vive-se muito melhor do que em Castelo Branco.

Jornal de Notícias - 31 Julho 2006

julho 29, 2006

A vida não é fácil

A Estalagem do Caçador, em Macedo de Cavaleiros, faz parte da história, cheia de aromas domésticos e de evocações dos anos de ouro.

NOS FINAIS dos anos setenta, a Estalagem do Caçador era um lugar perfeito para grandes comoções: jornais estrangeiros sobre as mesas, bebidas fortes, conversas em surdina. Foi lá, salvo erro, que bebi o meu ‘armagnac’, num daqueles Invernos que transforma qualquer um em personagem de romance – sentado à lareira, escolhendo o cálice, folheando o jornal, como numa estalagem em pleno ‘countryside’ inglês. Passada uma década, abandonada a adolescência, descobri os seus quartos maravilhosos. Escrevo ‘maravilhosos’ e não me enganei: colchões altos e acolhedores, luz suave dos candeeiros, ar quente e perfumado de casa campestre, odores que chamam para o pequeno-almoço matinal ou para o jantar – quando vem o final de tarde escuro de Trás-os-Montes, a neblina que atravessa as ruas e nos impede de ver o Café Central, do outro lado da praça, vinda de todas as serras em redor.

Esclareço que a novidade é maior para os forasteiros, naturalmente. Nesses anos, mesmo durante a década de noventa, depois de atravessar a serra de Bornes, depois de nos arrastarmos pelo vale do Douro e de descobrirmos os primeiros castanheiros à medida que se sobe no mapa na direcção do Nordeste, a Estalagem do Caçador era sempre uma promessa para visionários que aceitavam a dádiva do repouso concedida ao viajante, recebido sem ademanes mas com brio e compreensão. Uma década depois (falo já deste século) voltei, também de Inverno, depois de uma viagem entre arvoredos que resistem à desertificação – e ali estava a Estalagem. Encontrei jornais espalhados pela sua sala de estar, encontrei os mesmos sofás acolhedores diante da lareira, os mesmos copos adequados para cada digestivo, as mesmas estampas e gravuras de caça nas paredes, os mesmos tapetes dando cor às salas da estalagem – e, o que é pior para uma alma pouco dada a tormentos espirituais, mas capaz de os reconhecer ao longe, os mesmos aromas à hora certa. Portanto, dai-me uma semana na Estalagem do Caçador, como diria o poeta, e reconstruirei uma parte do mundo.

O restaurante compõe-se de uma sala discreta, decorada com o mesmo estilo do resto da Estalagem (motivos de caça, exuberantes, paisagens transmontanas, discretas, retratos que ficam bem) e de mesas familiares e situadas a distância recomendável umas das outras. E compõe-se disso, também: dos aromas da sopa, caseirissíma, apuradas, aveludadas, cremosas, vindas da horta com a passagem regulamentar por uma cozinha onde se conhece o paladar tradicional: de legumes, variados (rica abóbora, quando a há), de alho francês, de espinafres – ou o creme de marisco, rescendendo. Entradas simples: salmão fumado em fatias generosas, tomate & mozarella, melão com Vinho do Porto, espargos com atum, saladas mistas, omeletes (de gambas, de queijo) e ovos mexidos com presunto (que é muito bom e não é servido em fatias transparentes), antes de passarmos ao polvo à lagareiro, ao bacalhau de cebolada ou às pataniscas do mesmo, ao arroz de tamboril ou aos peixes grelhados (robalo e linguado entre os mais recomendáveis) e, naturalmente, ao desfile de carnes e caça. Enumeremos algumas das imagens desta graciosidade: posta de vitela à Estalagem, medalhões de vitela no espeto, língua de vitela de fricassé, mãozinhas de vitela estufadas ou arroz de pato abrem hostilidades gerais, para que celebremos, com aplauso, o arroz de lebre, o peito de pato com três pimentas e as alheiras da casa – além das tradicionais, transmontanas, a de javali e a de caça. Depois, basta encomendar, a perdiz com castanhas e o cabrito no forno – ambos muito tradicionais e suculentos. O cabrito, aliás, insisto, convém reservá-lo. E tome nota deste aviso da Estalagem: diga o que quer comer, com alguma antecedência, e tudo se fará. Assim é que são cozinhas honradas, que ainda apresentam um pudim de gemas (com amplos benefícios para o nosso amado colesterol), um creme queimado, um pudim de laranja e um arroz doce a abrir a lista de tartes (chocolate, morango e coco, por exemplo). Depois, no sofá, quase se adormece, com uma aguardente de Valle Pradinhos (ou seja, produzida em casa – a família Pinto de Azevedo é a responsável), depois de passear de novo os olhos pela lista dos vinhos Valle Pradinhos disponíveis. A vida não é fácil.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 78
Vinhos Brancos: 29
Portos & Madeiras: 11
Uísques: 24
Aguardentes & Conhaques: 20

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Relativamente fácil
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao fim-de-semana
Preço médio: 25 Euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

ESTALAGEM DO CAÇADOR
Lg. Manuel Pinto Azevedo
5340 - 219 Macedo de Cavaleiros
Tel: 278 426 356

in Revista Notícias Sábado – 29 Julho 2006

julho 24, 2006

Outro Rio no meio do Porto

Anteontem, o "Expresso" publicava um artigo sobre "a comunicação" do governo e as novas regras a que a imprensa terá de se sujeitar para lidar com o executivo de Sócrates. Parece que este governo segue, com uns anos de atraso, aquilo que o PS criticava há anos nos tempos de Cavaco - está, portanto, no bom caminho. A regra, segundo o "Expresso", é muito clara quem dirige a informação do governo é o próprio governo e não "a intriga" que geralmente tem as costas largas mas que todos praticam com abundância de recursos e de conhecimentos.

Claro que ninguém é inocente em matéria de intriga política. Mas o governo defende, e bem, o princípio de que só fala do que quer e se vir que é relevante (naturalmente, para a sua propaganda e para o seu bem-estar). Criou-se um hábito, em Portugal, sobre a obrigatoriedade de "falar à imprensa" sempre que "a imprensa" quer que se fale. Trata-se de um hábito deselegante que gera equívocos e que levou a SIC, em tempos, a promover um debate entre dois candidatos sem que um deles tenha aceite participar. É evidente que existe um dever, da parte das entidades públicas, de prestar contas sobre as coisas públicas - precisamente porque são públicas, ou seja, nenhuma actividade pública é assunto privado de quem exerce o poder. Esse é um dos fundamentos da democracia.

O respeito pelo trabalho da imprensa, pela sua inoportunidade e pela sua irreverência, é outro dos fundamentos da democracia. Aconselha-se a quem não tem feitio para suportar o riso público, o cepticismo dos outros, o escrutínio permanente e até a má-fé, que não aceite lugares na coisa pública. Fazer depender toda a avaliação do trabalho público da opinião e do trabalho da imprensa é meio caminho andado para o oportunismo e para o populismo - quando não para o conformismo, como aconteceu durante a era de Guterres. Mas, tentar transformar a imprensa em monstro é um risco que comporta perigos fatais quer para a transparência da República, quer para a própria democracia.

O presidente da Câmara do Porto acha que lhe basta ir a votos de quatro em quatro anos para que o seu trabalho seja avaliado. Pelo meio, o presidente da Câmara do Porto, ou alguém por ele, trata aqueles que são cépticos em relação à sua gestão, ou que o criticam, ou que discordam dele, como inimigos da Câmara do Porto, o que é um abuso extraordinário. Rio tem virtudes bastantes (demonstrou-as ao não ceder à tentação populista) e é provável que a sua administração deixe uma marca positiva na cidade. Mas vamos e venhamos a ideia de que a atribuição de subsídios implica a aceitação de um pacto de silêncio em relação à autarquia, mesmo que sob a explicação da ideia de "civilidade", é absurda e passará a significar, para entidades que aceitem apoios municipais, que estão manietadas no seu direito de opinião sobre a mesma Câmara. Ou seja: para quem está de fora significa que "os subsídios" também servem para comprar o silêncio. Se isso é verdade, trata-se de um abuso de autoridade. A atribuição de dinheiros públicos não supõe que os que estão, transitoriamente, a gerir a coisa pública, sejam proprietários dela.

Rui Rio acha-se vítima da imprensa. Faz mal. Vítimas é o que mais há, e Rio não é, certamente, inocente nem ingénuo. O presidente da Câmara do Porto, ou alguém por ele, devia saber que "a verdade" não tem nada a ver com o ressentimento, que parece animar as suas últimas posições - e que a função da imprensa não é a de transmitir os comunicados do poder. Devia ter aprendido alguma coisa com a inabilidade de Santana Lopes a gerir as relações com a imprensa. Pode ser que, em regimes de excepção, populistas ou ditatoriais, o poder se contente bastante em inventar inimigos externos e em criar azedume. Mas o Porto é uma cidade liberal que não merece essas engenhocas.

Jornal de Notícias - 24 Julho 2006

julho 22, 2006

Lavrar a terra

Em Trás-os-Montes, Chaves, fomos encontrar O Lavrador - um nome sensaborão que, no entanto, indica o seguinte: produtos fantásticos, frescos, apetecíveis. É isso que queremos, às vezes.

PELO VERÃO FORA visitam-se muitas vezes restaurantes inexplicáveis, perdidos numa estra­da, numa ruela de uma cidade de província, numa praia improvável. Eu gosto dessa deambu­lação que nos desculpa a ortodoxia à mesa. Ela também merece descanso – e a bolsa igualmente, sejamos sinceros. Muitas vezes, a comida desses lugares não oferece garantias de nenhuma felici­dade, mas depois das minhas mais recentes desilusões no Algarve – que já não visitava há anos senão para confirmar a excelência dos três ou quatro lugares de excepção – eu devia experi­mentar essa cozinha substancial transmontana que, apesar de tudo, se aligeira um pouco no Verão. Mas não muito.

Há quem pense que devemos ser, todos, saudáveis. Essas pessoas têm razão. Infelizmente, numerosos desobedientes às mais elementares normas do bom senso prosseguem a via-sacra do seu mau comportamento; não entendem como é exageradamente feliz uma existência saudável. Um desses desobedientes era Mark Twain, que me permito citar antes de vos falar de um naco de carne grelhado na companhia de uma puríssima salada fresca: "É uma lástima que o mundo tenha de desperdiçar coisas boas apenas por não serem saudáveis. Dúvido que Deus nos tenha dado algum refresco que, bebido com moderação, seja prejudicial para a saúde, com excepção dos micróbios. Mesmo assim, há pessoas que se pri­vam de toda e qualquer coisa comestível, bebível e fumável que tenha certa má fama. Pagam esse preço pela saúde. E saúde é só o que recebem em troca. Eles mesmos me disseram isso. Que estran­ho; é como pagar todo o dinheiro que se tem por uma vaca que já não dá leite."

Pois naquilo que era, outrora, uma das saídas da cidade, e que hoje faz parte da cidade em si mesma, fica um dos restaurantes apresentáveis de Chaves, O Lavrador. Este restaurante faz parte de um conjunto que se procura quando se está "de passagem" – o que, por vezes, nos devolve boas surpresas. A primeira delas é que a entrada nos obriga a passar pela cozinha; isso é uma garantia. Ao passar diante daquelas mesas e fogões, do lume que incendeia molhos e apura caldos e grelhados, o espírito começa a flutuar. E é, portanto, um bom sinal.

Desta vez, a lista – que flutua, certamente, ao sabor do clima e dos produtos do mercado – apresentava as carnes habituais, próprias da região, onde descortinei um naco na pedra, muito saboroso, uma posta grelhada com o seu molhinho suculento e bem temperado (ligeira­mente acidulado, como é de lei), um entrecosto de vaca (ou, para conhecedores da arte do chur­rasco, "costela de tira"), muito difícil de encon­trar, cada vez mais difícil. As opções andaram pêlos grelhados – e foram boas opções. Umas lulas superlativas, que me parece terem vindo da vizi­nha Galiza, juntamente com amêijoas que tinha suspeitado antes. Mas o festival das carnes foi o mais aplaudido. Evitando fornecer um montículo de carne grelhada, cercada de batatas fritas e de gordura, O Lavrador estimulou o apetite com um corte quase exemplar, suculento e cheio daquela "tenra e amarela gordura" que, como dizia Twain, "forma um distrito nesse abundante condado de bife". Foi esta a opção, juntamente com uma sala­da exemplar, de alface genuína, saborosa e tenra.

Passámos os olhos pelas propostas abundantes, de forno, de panela e de grelha. Havia um cabrito no forno, sim, e vários bacalhaus que mereciam atenção, juntamente com a habitual selecção de legumes (ou os grelos, em os havendo, ou a couvinha - penca - cozida e salteada ou estufada). Mas há dias e dias; ficará para mais tarde, para outra visita. Neste final de tarde, uma simpática e ruidosa delegação de evangélicos entrou no restaurante e rodeou-nos a mesa. Temia o pior, mas também, ai deles, sucumbiram à graça de O Lavrador.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * *
Acolhimento: * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 50
Vinhos Brancos: 20
Portos & Madeiras: 10
Uísques: 15
Aguardentes & Conhaques: 22

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Fácil (existe Parque próximo)
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao jantar de fim-de-semana
Preço médio: 17 Euros

RESTAURANTE O LAVRADOR
Rua D. Afonso III, Caneiro
5400-027 Chaves
Tel: 276 332838
Encerra às segundas

in Revista Notícias Sábado – 22 Julho 2006

julho 18, 2006

Da série "Noite, o que é?" [21 - 30]

A NOITE, O QUE É? 21.
Mesmo sem olhar à volta, vejo quase sempre as mesmas coisas: as sombras, a relva, a varanda, as árvores que amo, o sabor da cerveja, do café, os aromas, os primeiros sons, a luz que entrava pela janela, um livro, a cozinha. Os olhos. A primeira voz. A recordação é sempre em ponto mais pequeno, como um esconderijo, uma revelação a salvo, como um segredo, um eclipse, a floresta de pinheiros, os pés nus no chão. E então conto os dias, conto as noites, o que inventamos, o que nos espera. A casa da minha vida fica aí, nesse retrato. A voz da minha vida. Tudo se escreve numa língua desconhecida, sem gramática, sem frio.

A NOITE, O QUE É? 22.
A meio da noite pergunto se posso dizer esse nome. Quando adormecer será perto dele, segredo dos segredos, relâmpago dos relâmpagos. A casa da minha vida, a vida da minha vida. Penso nisso também, é por ela que desperto a meio da noite e já não faço perguntas. Rodeado de calendários, sonho com o tempo das florestas, os caminhos que levam aos jardins, as tardes de calor caindo sobre a relva, coisas que me dizem esse nome.

A NOITE, O QUE É? 23.
Quase nada. Sons vindos das matas, trabalhos leves, flores — plantas — que se compram à beira da estrada para plantar depois. Elas crescerão de Verão a Verão, hão-de conhecer o sentido da palavra solstício, o sentido da palavra equinócio, o sentido da palavra que espera a altura de ser dita. Há uma grande ventania neste lado do mundo, neste lado do mar. Chove, arrumo jornais e folhas de papel, há uma certa brutalidade nisto tudo, mas a verdade é que tudo o que tenho pertence agora a esse dicionário: uma mesa, o cheiro da erva, o ruído que vem de dentro de casa. Se não durmo, se a noite se estende, é porque as coisas me acordam de cada vez que isto acontece.

A NOITE, O QUE É? 24.
Os primeiros dias são tristes, as primeiras noites, há ainda qualquer coisa sem nome a rodear a vigília, livros amontoados, perdidos, poemas soltos, nenhum respira verdadeiramente. Penduradas sobre a varanda, as trepadeiras, o jasmim, o café, o pão, os passos às primeiras horas do dia, as primeiras coisas vindas da janela aberta, sempre aberta. Tudo o resto é aquele silêncio onde os olhos ficam mais perdidos, aquilo de que raramente sabemos dizer o nome.

A NOITE, O QUE É? 25.
Muitas vezes, esperar que o frio passe, que a noite propriamente dita vá de um lado a outro, que os cigarros acabem, que o silêncio não se perceba mais. Esperam-se muitas coisas, nessa altura: a voz, os olhos, a cor dos olhos, aquilo que ficou, aquilo que será, uma nova vida. Escreve-se devagar, cada palavra tem um som, uma letra, um mapa. Lembro as plantas, a tarde, o anoitecer antes da noite verdadeira. Lembro de ficar acordado à espera.

A NOITE, O QUE É? 26.
Entre dois mares, entre dois climas, entre as árvores. Quando chove, de noite, precisamos mais de saber onde está o rosto que mais se ama — é uma coisa que ainda não tem nome, essa imagem que protege do vazio. Mais tarde, quando chega, traz consigo toda a madrugada.

A NOITE, O QUE É? 27.
Não conseguir dormir longe dessa sombra, dos ruídos da noite, estradas solitárias, nomes desiguais, designações. Como uma tempestade, a noite termina à hora a que acordo, demasiado tarde para ouvir esses ruídos, demasiado cedo para falar.

A NOITE, O QUE É? 28.
Revelações de quase todos os dias: onde é a tua casa, onde fica esse lugar em que te sentes próximo da terra, próximo do céu (quando o céu está mais próximo da terra), próximo de ti? Há um destino errante na tua vida, olhas para ele quando a noite se mantém em silêncio, como se fosse um reencontro. E depois fazes a pergunta: onde é a tua casa, onde é o teu lugar, onde adormeces no meio das árvores, onde nasce o teu dia? E as imagens voltam, como o cenário diante de uma varanda debaixo desse céu do sul: Cassopo, Fénix, Grou, Centauro, o Cruzeiro do Sul, Mimosa e Acrux. Estrelas de outro mar.

A NOITE, O QUE É? 29.
Esperar. Se não ouvir essa voz, a impressão de que toda a vida foi em vão, desordenada, sem varandas sobre a tarde, sem música, sem riso, sem vagas no mar. É por isso que, muitas vezes, nos encontramos nos sonhos.

A NOITE, O QUE É? 30.
Há um momento qualquer em que fico mais comovido. Lembro-me de uma coisa ou de outra, coisas vagamente sem importância, sem certeza e sem razão. Então, passo por vários mapas onde gostaria de viajar, de levar a noite em passeio.

Textos publicados originalmente no Blog "Aviz"

julho 17, 2006

Quando se trata de Israel

Quando se trata de Médio Oriente, ou seja, quando se trata de atacar Israel, a tarefa está facilitada em larga escala. Um contingente de meninas idiotas e genericamente ignorantes, que assina peças de "internacional" nas nossas televisões, não se tem cansado de falar na "agressão israelita" e apenas por pudor, acredito, não tem valorizado os "heróis do Hezbollah". Infelizmente, nem a ignorância paga imposto nem o seu atrevimento costuma ser punido.

Isolado desde 1947, quando as Nações Unidas decidiram pela criação de dois estados na região (um israelita, outro árabe) Israel não enfrenta apenas a provocação deliberada ou pontual do Hamas e do Hezbollah. Essa provocação tem sido permanente e é ela a razão de não existir na região um estado palestiniano livre e democrático - não o quiseram, primeiro, os estados árabes da região que invadiram Israel mal a sua independência foi pronunciada; não o quiseram, depois, os estados que tutelaram os actuais territórios da Faixa de Gaza e da Cisjordânia; não o quis, depois, todo o conjunto de organizações militares terroristas nascidas à sombra da OLP e da figura tutelar de Yasser Arafat, a quem cabem historicamente responsabilidades directas na falência dessa tentativa de criar um estado palestiniano.

Quando se trata de Médio Oriente, ou seja, quando se trata de atacar Israel, a tarefa não está apenas facilitada - os caminhos abrem-se para o lugar-comum, como se vê pelas declarações, tiradas a papel químico, de Chirac e de Zapatero, esses dois superlativos génios da política externa europeia. Não passou pelas suas cabeças, uma única vez, pedir responsabilidades ao Hezbollah e ao Hamas pelos motivos que levaram a esta reacção de Israel. Para ambos é, pois, normal que um governo do Hamas possa alimentar uma facção militar independente, que actua em guerra permanente com Israel; é também normal que um estado da região, o Líbano, possa albergar campos militares do Hezbollah, abastecidos pela Síria e pelo Irão, e destinados a atacar um estado soberano - que, além do mais, é o único estado democrático da região; e é para eles normal que Síria e Irão, além de abastecerem duas organizações militares terroristas, se regozijem abertamente com o rapto de soldados israelitas.

A preocupação destes diplomatas da recessão é, fundamentalmente, com a "reacção de Israel"; em seu entender, a reacção ideal de Israel seria o silêncio total; Israel devia conformar-se com o seu destino e permanecer como o alvo de todo o terrorismo da região, pacientemente alimentado, aliás, pelos europeus que continuam a manifestar "ampla compreensão" pela atitude dos bombistas suicidas e pelos que disparam rockets a partir de Gaza ou do Vale de Bekkah; Israel deveria, pura e simplesmente, acatar.

Evidentemente que nenhum desses cavalheiros pensou pedir ao Hamas, partido vencedor nas eleições dos territórios, eventuais responsabilidades na escalada de violência na região. É para eles natural que o governo do Hamas não reconheça o estado de Israel e esteja a alimentar, com toda a clareza, as facções militares que continuam, naquele folclore infantil de danças e gritos pelas ruas de Gaza, a pedir a eliminação de Israel e a vinda de mísseis iranianos para "destruir o estado sionista". Esse folclore imbecil, sim, talvez os devesse preocupar ele é também pago com contribuições da União Europeia e do seu politicamente correcto.

Jornal de Notícias - 17 Julho 2006

julho 15, 2006

Sonho de uma noite de Verão

Cascais cozinhou bem. Depois, cozinhou para turistas, que tentava enganar. Agora, há uma pequena revolução. O 100 Maneiras é parte dela.

CASCAIS é uma das minhas tentações. Já foi mais. Já foi menos. Já gostei da vila ao longe, já gostei dela bem perto. A democracia fez-lhe bem, a democracia fez-lhe mal. Perdeu, infelizmente, o ar repenicado de vila aristocrata e independente de Lisboa, uma espécie de pequena república finória e elegante. Havia esse lado – mas havia, também, o lado que mais me agradava em Cascais: ter essa fama e ser, na verdade, outra coisa, mais madura, mais saudável e mais aberta ao mar, ao sol, ao céu da baía.

Durante anos, que me perdoem, havia apenas uma meia dúzia de restaurantes onde valia a pena ir e onde se era bem servido; o afluxo do "turismo de ónibus" transformou grande parte dos restaurantes de portas largas em fornecedora de refeições a peso; nessa altura, era preciso procurar de porta em porta, experimentar com o risco da própria vida para não comer gato por lebre (é uma maneira de dizer). Com o tempo, e com a experiên­cia da massificação, Cascais aprendeu com os próprios erros e talvez recupere algum do seu ar arrebitado. Eu gosto desse ar arrebitado, se bem que já não seja possível retomar as histórias e as descrições de Maria Archer ou de Ramalho Ortigão.

Frequentemente vou pelo paredão do mar até à proximidade da vila, tal como há uns anos ia à Galileu comprar livros e passear pelas suas ruas de Inverno a abastecer-me de oxigénio. Também aqui a referência ao oxigénio passa por ser uma maneira de dizer. Esperando que Cascais tenha aprendido a lição, vou agora mais vezes à vila, sabendo que o tempo não pára (lamento entrar lá por aquela bifurcação que divide a marginal e nos empurra para a rotunda, mas não há nada a fazer), mas que o 100 Maneiras é parte dessa renovação gastronómica do lugar (onde há bons exemplos, quer de cozinha portuguesa, quer de experiências ita­lianas ou orientais, por exemplo - de que falarei em breve). Cabe um lugar de honra a Ljubomir Stanisic, que comanda a cozinha e tem respon­sabilidade certa e séria no bom gosto do cardápio - e a José Avillez, que abriu o restaurante e lhe deu o conforto da sabedoria e da graça. Os restaurantes portugueses andam sem graça; o 100 Maneiras vai no sentido contrário.

A vista é bonita; a esplanada obriga-nos a arrecadar algumas das melhores imagens da baía da vila, do mar – e até a marina, ao longe, promete ser apetitosa, contanto que não faça barulho nem abur­guese ainda mais o espaço em redor, enchendo-o de carros, de multidões e de "turismo de ónibus". Fica dito. Mas sentado a uma mesa do 100 Maneiras o que ocorre é que, ao contrário da tradição ligada à própria expressão do seu nome (100 Maneiras de Cozinhar Bacalhau, 100 Maneiras de Ser Feliz e de Enriquecer com Bons Negócios, 100 Maneiras de Fazer o Nó da Gravata, etc.), há no restaurante um tom minimalista que agrada: delicadeza, suavidade, a luz do mar. Em
tempos, tive vontade de sair do restaurante logo depois de provar um 'foie gras' de pato com uvas onde havia uma redução de vinho do Porto e maracujá: tamanha perfeição incomodava. Mas uma garfada no prato vizinho (maçã e Moscatel de Setúbal) mostrou-me que havia salvação para a humanidade. E voltei à mesa. Combati a delicadeza do 'risotto' de polvo, dos filetezinhos de carapau marinados (finíssimos, delicados), da perna de bor­rego assada, do robalo salteado com cogumelos e do lombo de bacalhau - excelentes. Isto e o mar. A carta de vinhos passou-me pêlos dedos, com amostras de boas escolhas.

Da próxima vez regres­so para um menu de degustação completo - tenho a impressão de que o Verão me parecerá Outono, ainda mais romântico, ainda mais sensual. O bolo tépido de chocolate que deixei para provar depois, tal como o 'strudel' de maçã com gelado e espuma de baunilha aguardam-me, espero que na mesma mesa tranquila, onde se é atendido com a discrição que faz suspeitar uma pequena nódoa de felici­dade. Todos temos direito a isso. Quem sabe, dormirei no Albatroz – uma vez não são vezes.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 110
Vinhos Brancos: 50
Portos & Madeiras: 21
Uísques: 30
Aguardentes & Conhaques: 26

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Fácil (existe Parque próximo)
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 45 Euros
Cartões: MB. V, D, M, AM

RESTAURANTE 100 MANEIRAS
Rua Fernandes Tomás 1
Hotel Villa Albatroz 2750-342 Cascais
Tel: 21 4835394
Encerra aos domingos ao jantar e às segundas

in Revista Notícias Sábado – 15 Julho 2006

julho 10, 2006

Bom proveito e pouca azia

1. Ontem pedi a derrota dos dois, de Itália e da França - quase consegui. Até a de Zidane. Mas os penáltis também são jogo, só assim se entendendo que a Itália seja hoje campeã do mundo de futebol. Significa isso que é a melhor de todas as selecções? Não. Trinta e duas vezes não. Podem argumentar-me que chegou à final com a perseverança e a paciência que geralmente a "squadra" usa para este efeito, começando mal, andando mal lá pelo meio, mas ultrapassando cada adversário com sabedoria. Eu, essa sabedoria não quero. Quero outra a do bom futebol. Milhares de portugueses que durante o Mundial me insultaram (porque ousei pronunciar a expressão "bom futebol") estão hoje felizes com a Itália campeã, eficaz, chata e matreira. Bom proveito e pouca azia, é o que lhes desejo.

Não vi a primeira parte do jogo - mas a segunda e o prolongamento deram-me uma ideia básica das coisas. Uns cientistas que eu li na imprensa gabaram-me a virtude da eficácia: tantos remates, tantos golos, divide-se por tanto, obtém-se uma média de eficácia. Ora bolas - até eu os mando aprender a ver futebol, eu que não saio do sofá nem da bancada. Se é disto que gostam, ó cientistas, o jogo que vemos é sempre diferente. Vós sacrificáveis Garrincha e Maradona, eu acho-os bom demais para serem vistos pelas vossas dioptrias. Ganhar? Sim, eu sei - é o mais importante em fases destas, finais, finalíssimas. Mas continuo a preferir a mão de Maradona ao circunspecto talento de Materazzi. Prefiro um livre marcado por Schuster a um penálti apontado por Grosso. E, ó memória, dá-me um Cubillas (e um Cruijff, um Didi, um Jairzinho) e entrega o Sagnol a estes cientistas. Bom proveito e pouca azia.

2. Os repórteres não se cansavam de chamar a atenção para o "espírito de grupo" e para a "grande amizade" entre os jogadores portugueses aclamados ontem no Jamor. Não sei onde foram desencantar tanta imaginação ao ver uns rapazes contentes por terem ficado em quarto lugar. Aclamai-os, ó repórteres; mas tento na língua. Não é o fim do mundo, calma (como dizia o Poeta), é apenas um pouco tarde para tanto espalhafato.

3. Até daqui a quatro anos.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 9 Julho 2006

julho 09, 2006

Sem talento não há golos

1. Para que não me acusem de ingrato foi uma posição muito razoável neste mundial. Portugal está entre as quatro primeiras selecções. O investimento realizado, o entusiasmo, a pequena ditadura - tudo isso resultou. Não sou ingrato. Nada a dizer. A derrota de ontem não foi nenhuma catástrofe.

2. Schweinsteiger fez de Portugal um arremedo melhorado do Liechtenstein (quando Portugal empatou com o Liechtenstein, como se recordam) três tiros, três golos. Várias múmias lá à frente, foi um futebolzinho pouco prático diante da Alemanha; nesta matéria limito-me a dizer que esperava mais da equipa: mais eficácia (a palavra de ordem, se se recordam), mais futebol ofensivo, mais carácter e, claro, menos golos sofridos. Mas é a vida. Está feito.

3. Eu acredito que Ronaldo queria entrar na baliza dos alemães; se não fosse a dar toques, pelo menos de tiraço do bico da área ou até de maca, se fosse preciso. Aqueles assobios entusiasmaram-me. Se eles tivessem assobiado a Scolari, ter-me-iam visto no sofá da sala (cabeceando, cheio de sono, é certo) a chamar-lhe nosso. Para assobiar os nossos, só nós temos verdadeira competência e autoridade moral. O rapaz que se atire ao chão quantas vezes quiser e que continue a dançar sobre a bola.

4. E Figo entrou no final a fazer o passe para Nuno Gomes (por momentos ainda temi que o casmurro metesse Postiga) barba por fazer, arrancado à sesta, despenteado, quase estremunhado, lá foram buscá-lo para tentar fazer alguma coisa. E ele fez. Figo, como Ronaldo, é a prova de que não vão conseguir impor aquele futebol sem arte, sem imaginação e sem originalidade (o da Inglaterra, por exemplo). Pode haver "espírito de grupo" (como os peregrinos à Santa), "união no grupo de trabalho" (como se fosse uma comissão excursionista) e até burrice promovida a estratégia ganhadora - mas sem talento não há golos. Por isso foram arrancar Figo ao divã: porque, a dez minutos do fim, precisavam de futebol. Apesar de haver gente satisfeita por ver equipas bípedes transformadas em quadrúpedes.

5. Hoje, na final, vou pedir a derrota dos dois.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 9 Julho 2006

julho 08, 2006

Elogio da agricultura

O Casa Agrícola, no centro da cidade do Porto, merece visita. Visita e demora. Devia ter uma salinha para se poder dormir a sesta.

FUI LÁ NUM DIA DE CHUVISCOS, cinzento, pálido – e quente. O que poderia eu dizer sobre estes dias do Porto que não esteja já escrito em toda a literatura da cidade? Leiam-se os clássicos sobre o assunto. Camilo não era muito dado a questões meteorológicas, o que se compreende – preocupavam-no mais os assuntos pessoais, as multidões de personagens que cabiam nos seus romances, nas suas novelas, nas suas fúrias. Júlio Dinis pôde captar essas nuvens eternas do Porto, o empréstimo de melancolia que o clima proporcionou à cidade. Outros assinalam a profunda tristeza da sua foz, ou a honradez do seu carácter, ou a pusilanimidade dos seus novos-ricos. Os poetas, sim, frequentemente assinalam a pedra escura das suas ruas e as ondas nubladas que assaltam o seu céu. Mário Cláudio aprecia a euforia romântica das suas memórias, uma cidade de excepções dramáticas, saborosas, profundas, arrancadas ao coração. E Agustina Bessa-Luís, bom, Agustina retrata o Porto vibrante e cheio de desvarios, defende o carácter burguês e altíssimo das suas mulheres e homens que desafiam a morte e o anonimato. Eu gosto do Porto reflectido nessas páginas, burguês e romântico, desafiador e corda­to, ligado às coisas essenciais mas atrevido, cheio de bairros e de casos. Sabem ao que me refiro – sobretudo ao atrevimento. Haver um restaurante destes na casa da antiga Quinta de Nossa Senhora do Bom Sucesso é um atrevimento notável. E a sua natureza também, dividido entre a comida cordata e burguesa do Porto e do Norte e a música electrónica do seu bar nocturno. Tamanha conciliação de opostos lem­bra-me que o mundo é possível e é um lugar muito conveniente.

O espaço é notável, amplo, generoso e convida­tivo. O caminho até à sala de refeições é uma ver­dadeira antecâmara para nos levar à mesa e nos abrir o apetite – até lá vamos descobrindo salas, memórias, objectos, sinais que despertam o olfac­to e preparam o estômago para os fritinhos de bacalhau, os ovos mexidos com cogumelos bravos, os 'carpaccios' fundamentais, os 'patês', os escabeches, as carnes defumadas, os cogumelos salteados ou grelhados, as carnes vindas do forno. Mas antes disso recomendo também que se experimente um queijo 'chèvre' grelhado com tomate.

Gostei muito, na primeira vez que visitei a Casa, de uns ovos escalfados com puré de feijão e legumes (incluídos num "cardápio vegetariano" onde constam 'tagliatelle' verde com legumes e cogumelos grelhados com arroz de legumes), que depois não pude repetir; se bem que petiscasse os lombinhos de pescada, o bacalhau albardado (servido com milhos), um polvo assado no forno excelente e um outro na grelha, acompanhado de batatinhas, e até um carré de borrego delicioso, de textura amanteigada e cremosa, diluindo-se num prato onde havia grelos salteados e um dos arrozes primordiais do Porto. Vi, entretanto, passar uma alheira, servida com batata cozida, como deve ser (para que a batata receba um nadinha de azeite que se mistura aos grelos, enquanto a alheira vai pin­gando à medida que se esgota no prato), um arroz de polvo pecaminoso, rosado, intenso, fumegante, acompanhado de filetinhos também de polvo, tensos; uma cataplana de tamboril; e uma das refe­rências da casa, o medalhão de boi na grelha. Não provei o 'magret' de pato com redução agridoce, mas cortei com a faca uma fatia de excelente ros­bife, servido com batata palha verdadeira e um esparregado onde não havia poupança de sabores nem de vergonhas.

O pãozinho, no cesto, também me comoveu, devo dizer – bem como a abundância de escolhas na carta de vinhos. Passemos ainda pela lista de sobremesas: leite-creme, 'mousse' de 'capuccino', bolo de chocolate e café, folhado com 'chantilly' e creme de frutos silvestres, folhado recheado de doce de ovos e amêndoa, ou o gelado de leite condensado com amêndoa torrada. O que eu comi? O pudim do abade de Priscos, em busca dos meus níveis de colesterol, que andavam precisados.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 210
Vinhos Brancos: 80
Vinhos Verdes: 42
Portos & Madeiras: 41
Uísques: 42
Aguardentes & Conhaques: 30

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Fácil (existe Parque próximo)
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao almoço
Preço médio: 20 Euros
Cartões: MB. V, D, M, AM

RESTAURANTE CASA AGRÍCOLA
Rua do Bom Sucesso, 241-243
4150-150 Porto
Tel: 22 6053350
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 8 Julho 2006

O velho Portugal faz bem ao Brasil

1. Hoje Portugal joga com a Alemanha. Uma vitória e, portanto, o terceiro lugar no Mundial, vinham coroar uma campanha muito razoável. O país ainda está cheio de bandeiras que ninguém escondeu depois das meias-finais; seria (para quem as teve sempre desfraldadas) um acto de covardia metê-las no baú ao primeiro desaire depois de cinco vitórias. O terceiro lugar é muito bom, o quarto lugar simpático.

2. Parece que o Brasil já tem novo treinador. Estará guardado no segredo por quanto tempo?

3. O interesse dos brasileiros pelo destino português no Mundial é comovente e cínico. Bares do Rio de Janeiro, pátios de São Paulo, botecos de Porto Alegre e terreiros de Salvador encheram-se para acompanhar as meias-finais. Está claro que o "ingrediente Scolari" era importante no país que caricaturou os portugueses como padeiros, donos de açougue e emigrantes que se recusavam a tomar banho. Há, no Brasil, uma interessante xenofobia antiportuguesa, que não deixa de ser compreensível ou simpática, cheia de anedotas sobre Maneis e Joaquins - muito diferente dos festejos que se fazem em Luanda de cada vez que os portugueses são derrotados. Há várias maneiras de contrariar o riso brasileiro sobre os portugueses; uma delas é contar anedotas sobre brasileiros. Eles ficam muito ofendidos porque se julgam os proprietários do humor e porque vêem Portugal como o país era há 50 anos ou mais, cheio de mulheres vestidas de preto e de vítimas do seu humor malandro e maldoso. Também aí Scolari foi o nosso trunfo. Felipão já tinha humilhado o eixo Rio-São Paulo, o futebol de Luxemburgo e Émerson Leão, e imposto a sua alma de gaúcho irascível, capaz de agredir jornalistas e de pôr Pelé no seu sítio. Quando Portugal ultrapassou o Brasil neste Mundial, o Brasil - cujos comentadores viveram excitados o Euro 2004 ao descobrirem que as portuguesas já não tinham bigode e mostravam umbigos mais libidinosos do que os de Ipanema - não teve outro remédio senão reconhecer a sua derrota diante do velho Portugal. Faz-lhes bem. Sobretudo se contratarem Scolari.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 8 Julho 2006

julho 07, 2006

"99 cervejas + 1 ou Como não morrer de sede no Inferno"


Branca ou preta, leve ou encorpada, a cerveja é um mundo tão diverso como a ONU e quem quiser saboreá-lo dispõe agora de um guia, escrito pelo romancista Francisco José Viegas.

«Dizer que a cerveja é toda igual é um caso de manifesta ignorância e de comprovada má fé. Cada cerveja exige uma circunstancia e cada momento selecciona uma cerveja determinada», afirma o autor de «99 Cervejas+1 ou Como não Morrer de Sede no Inferno».

Em declarações a Agência Lusa, Francisco José Viegas realçou também que «a cerveja está ligada ao mundo do prazer e ao convívio» e ao contrário do que ainda se pensa em Portugal, «não é uma espécie de refrigerante com uma certa percentagem de álcool».

O livro, o primeiro desde que o autor ganhou o Grande Prémio de Romance e Novela da APE (Associação Portuguesa de Escritores), há cerca de um mês, será lançado dia 19 de Julho na Cervejaria Trindade, em Lisboa.

Segundo o autor, trata-se do primeiro guia do género publicado em Portugal, um país tradicionalmente vinícola, e assenta nas crónicas que ele publicou há alguns anos na revista Grande Reportagem.

Francisco José Viegas descreve com minúcia e «muito prazer» o sabor de cem cervejas de mais de vinte países, desde a Argentina ao Japão.

Mais de metade são europeias, nomeadamente de Portugal, Alemanha, Ingla terra, Bélgica e Republica Checa, mas há também marcas do Brasil, Índia, Sri Lanka, Cuba, México, Canadá, Estados Unidos, Israel, Austrália, Cabo Verde e Moçambique. Depois deste guia, Francisco José Viegas está já a preparar uma segunda versão, para lançar em 2007, «com 400 a 500 cervejas», incluindo algumas sem álcool, e que, na sua opinião, «também são muitas boas».

«Isto não tem nada a ver com literatura. Gosto de cerveja e escrever sobre cerveja faz parte do lado festivo da vida que é preciso preservar», disse.

Diário Digital / Lusa - 07.07.2006

Uma surpreendente elegância

1. O "Daily Telegraph" de ontem fazia o resumo do jogo das meias-finais na última página, ao fundo. No lugar nobre da página, a vitória de Federer no ténis e o pedido do Chelsea para que se investigue o cerco que o novo presidente do Real Madrid, Ramon Calderón, terá feito a Arjen Robben. Ressentimentos. Por que não pediu o Chelsea para investigar as negociações com Cristiano Ronaldo? Porque o "Telegraph" precisava de Ronaldo como personagem do seu artigo sobre as meias-finais. Agradeço, por mim Ronaldo foi a figura do jogo de anteontem, e a invocação do nome do miúdo continua a humilhar os ingleses de cada vez que eles pensam no seu fado - triste fado, aliás: o melhor futebol que eles fizeram foi contra Portugal. Por isso a desilusão inglesa foi maior. Nós compreendemos e gostamos. O futebol também é isso: humilhar a Inglaterra está entre o que dá sentido ao nosso jogo, de cada vez que nos encontramos. Devemos passar a amar a Inglaterra: a sua equipa nacional de futebol só nos dá alegrias. Amemos a Inglaterra. A Inglaterra é nossa amiga.

2. Michael Owen, o inglês do Newcastle, que saiu do Mundial com os ligamentos em frangalhos, questiona a validade dos penáltis para decidir uma eliminatória. É tarde. A Inglaterra que não se queixe; Eriksson estava surpreendido porque tinham treinado penáltis antes do jogo mas, na hora decisiva, falharam. Como se sabe, treinar penáltis não é tudo. É preciso ter um treinador como Fernando Brassard a afinar a técnica dos guarda-redes. É um trabalho de prestidigitação. Se a palavra é complicada, escolhamos outra é preciso merecer defender um penálti.

3. Os jogadores portugueses estavam tristes. Mas não havia neles a mágoa do ressentimento. Mesmo quando acusaram o árbitro uruguaio (esse, o estrábico) de práticas inconfessáveis, fizeram-no com uma surpreendente elegância, quase literária. Coisa de cavalheiros ao abandonar o salão de esgrima e guardar o florete no veludo. Em 2000, Figo despiu a camisola e, em 2002, João Pinto abraçou-se com os punhos a Angel Sanchez. É uma diferença substancial.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 7 Julho 2006

julho 06, 2006

Os franceses não nos merecem

Atravessei o nosso país cheio de eucaliptos e de bandeiras para esmagar os franceses; muni-me de vários pares de óculos para ver o penalty assinalado contra Portugal e acabei por descortinar o penalty não assinalado contra a França. Sou um “hooligan” nestas condições.

Aos 77 minutos desesperei. Estava a ver o jogo na casa de Cacela, no Algarve, e desesperei com o falhanço de Figo depois do disparo de Ronaldo. Aos 79 minutos desesperei outra vez quando Cristiano Ronaldo se deixou cair no chão da área francesa diante de Barthez, o mãos-de-manteiga. Aos 82, quando Ricardo Carvalho se atirou às pernas do francês, vi que era o fim. Aos 83, Deco tenta fazer um passe de calcanhar com uma displicência de elefante. Quatro sinais sem importância num jogo perdido por falta de concretização e com um penalty encomendado ao som da Marselhesa por um árbitro uruguaio de reconhecido estrabismo.

Até ao lavar dos cestos é vindima, disseram-me aos 85 minutos. Não era: a baliza francesa estava fora da mira, no meio da desorganização portuguesa – na defesa, no meio-campo, no ataque. Aos 92 minutos, já não desesperei com aquele tiro de Meira: enfureci-me de novo e definitivamente. Senti-me um fanático, dos verdadeiros, insultando Scolari por não ter feito entrar Nuno Gomes em vez de Postiga e por não ter rendido alguém por Quaresma (eu tinha de dizer isto ao fim de três meses em que não o disse). Gritei em cada uma das jogadas portuguesas nos derradeiros cinco minutos e assinalei jogadas perdidas por cada um dos nossos.

Se é certo que, nas partidas anteriores, Portugal nunca jogou “bonito” e nunca jogou realmente bem, fiando-se na natureza da “eficácia”, este último confronto mostrou uma equipa enfraquecida e sitiada pelo adversário, sem (ah!, que bonito é o futebolês) “soluções atacantes”. Mas não interessa. Sejamos sérios, no fim de contas: não choremos sobre o jogo e limitemo-nos, como qualquer adepto que gosta de futebol, a insultar os franceses, que nos eliminaram em 1982, em 2000 (de penalty) e em 2006 (de penalty). Francamente, eles não nos merecem.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 6 Julho 2006

julho 05, 2006

O Grêmio, Scolari e o futebol que ganha

1. O grande mérito da França foi o de ter conseguido equilibrar-se até eliminar um Brasil medíocre e cheio de estrelas. Por isso, agora, os franceses dizem que Portugal tem um futebol trapalhão. Eu admitia o reparo se ele viesse de alguém que jogasse futebol que se entendesse e não de uma equipa sem laterais e assente na defesa. Mas a França joga muito como Portugal, com a diferença que tem Henry, Vieira e Zidane, exactamente. Que o futebol de Portugal não é "bonito", ninguém discorda (sim, eu sei, os que faziam "futebol bonito" estão eliminados). Mas tem sido o mais pragmático de todos, como um bloco, o mais eficaz. E os vários deuses da sorte também têm ajudado. O que a França está a fazer é simples: envia recados sobre a hipótese de uma derrota depois de ter sacrificado o Brasil.

2. Para que serve o futebol? Para ganhar. Não vejo outro motivo tão evidente e tão claro. Também serve para "jogar bonito", se o "jogo bonito" resultar em golos. Eu gostava da Espanha a jogar, mas a França trapalhona mostrou que Cesc, Torres e Raúl não conseguiram ser eficazes. Por isso eu apreciava muito o Grêmio de Luiz Felipe Scolari, e dos jogos que terminavam com nove em campo - mas felizes depois de uma vitória. Scolari foi buscar Jardel ao banco do Vasco e sabia que ele jogava mal com os pés (era vaiado até quando se sentava no banco de suplentes), mas pôs a equipa a jogar para a cabeça do cearense (o talento que depois Veiga destruiu) e Jardel marcava golos de uma elegância forçada - mas eficaz. Scolari pensa que Nossa Senhora do Caravaggio e as velas que acendia a Santo António eram responsáveis; problema dele; em campo, o Grêmio portava-se como se tivesse a santa e o santo a empurrá-los e a justificar aquele género de futebol. Jogo de gana. Duro. Tal como o Grêmio, Portugal tem uma boa dose de cartões amarelos e de manhas praticadas com bom "timing".

Os franceses não viram o Grêmio jogar; julgam que a vitória do Brasil em 2002 se deve apenas à equipa de estrelas magníficas - e desconhecem o pragmatismo de Scolari, fatal nestas fases de competição.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 5 Julho 2006

julho 04, 2006

Desconhecia que houvesse tantos portugueses

1. Há uma coisa que não entendo a agressividade dos "scolarinianos". Têm tudo: a vitória, a perfeição dos penáltis e das arbitragens, a glória - e o reconhecimento da Pátria, engalanada de bandeiras. Mas o ressentimento estraga-os e danifica um pouco as vitórias. Claro, interessa ganhar, ganhar profundamente, ganhar terrivelmente - essa é a glória do futebol. Ninguém quer ter o futebol admirável de Zico e Sócrates e perder para uma Itália manhosa e medíocre. Quando muito, queremos ser a Itália manhosa, mas ganhando já nesta quarta-feira - e isso eu entendo perfeitamente. Mas não percebo a caça às bruxas aos "traidores" que desmerecem a valorosa pátria que anda pelas ruas.

2. Os ingleses, quando querem, são rufias. Esperava-se isso dos tablóides - mas não do "Independent" ou do "Times", por exemplo, que descobriram que Ronaldo piscou o olho aos seus colegas depois da expulsão de Rooney. Isso provaria que o rapaz correu para o árbitro argentino a pedir a expulsão do colega do Manchester United; uma série de idiotas, entre os quais Shearer e Lampard, já disseram que Ronaldo não pode voltar ao United sem levar um estalo de Rooney. Cretinos. Uma piscadela de olho era o mínimo que Ronaldo podia fazer depois de Rooney ter dado um pontapé nas partes de Ricardo Carvalho. Eu, no meu sofá, fiz muito pior. Pisquei mesmo os dois olhos quando vi o pé de Rooney entre as pernas de Ricardo.

3. Quando vem esta fase de pré-época futebolística, tenho sempre saudades de Robson. Quando a Inglaterra foi eliminada pela Argentina e pela mão de Maradona, Robson, que treinava a selecção, estava irritado mas apenas pediu "Que Maradona passe a jogar com os pés." Tamanha elegância apareceu de novo anteontem. Robson diz que Rooney devia pedir desculpa aos ingleses, à equipa e ao treinador.

4. Desconhecia que houvesse tantos portugueses. Julgava que éramos aqueles que constam do Arquivo de Identificação e do Instituto de Estatística. Mas parece que somos mais. Estamos a assistir a níveis insuportáveis de superpopulação, um estranho fenómeno demográfico nesta fase do Mundial.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 4 Julho 2006

Tristão da Cunha,o meu arquipélago

É o lugar que sempre quis conhecer. Quinhentos anos depois do seu descobrimento, os portugueses ignoram-na olimpicamente, o que é uma tristeza: o arquipélago formado pelas ilhas de Nightingale, Inacessível, Gough (antigamente, Diogo Álvares), do Meio, Stoltenhoff e a principal, Tristão da Cunha, faz parte dos meus sonhos de viajante. Descoberta em 1506 por Tristão da Cunha, navegador português que viria a ser o primeiro vice-rei da Índia, nomeado por D. Manuel, a ilha era considerada inacessível: penhascos altísssimos, falésias, enseadas desabrigadas, aspecto agreste. Imagino o espectáculo de há quinhentos anos. Ao contrário da imagem idílica, próxima do paraíso dos trópicos, a ilha devia ter um aspecto assustador. A falar verdade, também não devia ser coisa para o nosso navegador, habituado a pompas e grandezas – Tristão passou por Madagáscar, Moçambique, foi comandante de Afonso de Albuquerque (seu primo), antes de, sete anos depois, chefiar a monstruosa delegação que o nosso rei enviou ao papa Leão X, cheia de pedras preciosas, animais, escravos e plantas trazidas dos novos mundos. De certo modo, essa representação ao papa devia ser vista como um símbolo daquilo que os portugueses malbarataram e daquilo que eles inventaram: a riqueza e a grandeza.

Nem riqueza nem grandeza existem em Tristão da Cunha hoje em dia. Leio, periodicamente, os jornais do arquipélago através da internet, sei quem parte e quem chega à ilha maior (coisas que vêm anunciadas na coluna social do “Tristan Times” – por exemplo, sabia que o mais novo habitante das ilhas se chama Jamie Kenneth Lewis Glass, nascido em Março passado? e que acaba de falecer Peter Swain, de 63 anos, que se deitou tranquilamente na noite de 22 de Maio, e que não mais se levantou?), conheço a maior parte das estampas – antigas – do albatroz classificado como Tristão da Cunha e sei de cor o horário de partidas e chegadas de navios que demandam o velho porto da ilha principal. Devo dizer-vos que durante o mês de Julho há navios regulares a sair e a entrar nos dias 7, 14, 21 e 25 (menos do que em Agosto, apenas a 11 e a 18).

Mesmo assim, gostava muito de ir a Tristão da Cunha. É um dos meus projectos. Serei ornitólogo como a maior parte dos visitantes, que não procuram ali o calor ou a doçura das praias (Napoleão morreu em Santa Helena, no exílio, e não me parece que a visse como um paraíso), mas as manchas de neve de The Peak, o seu ponto mais alto. Coleccionarei selos de Tristão da Cunha, pois a filatelia é, a par da exportação de lagostas, a maior fonte de rendimento do arquipélago. Parece que, agora, a ilha já tem dois “pubs” com restaurantes acoplados. Será o ideal para ler meia dúzia de clássicos que tenho reservados para momentos de puro isolamento, enquanto os meus filhos frequentam a única piscina pública disponível.

Os portugueses, que vivem de glórias passadas e da memória de colónias abandonadas, nunca ligaram muito às ilhas de Tristão da Cunha, cheias de penhascos e onde neva no Inverno. Quinhentos anos depois, ignoraram o feito. É por isso que eu quero mesmo ir a Tristão da Cunha.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Julho 2006

julho 03, 2006

Cantar o hino na perfeição

1. Uma amiga disse-me que, ao ver Figo e Beckham lerem as suas mensagens anti-racistas, no início do Portugal-Inglaterra, suspeitou logo sobre quem ganharia o jogo - que um jogador que se preze não vai à manicure no dia anterior. Eu tentei, quando as câmaras de TV mostravam o pé do marido de Victoria Beckham, ver se havia ali sinalzinho de verniz - ou não. Na verdade ele anunciara que pedia sempre unha pintada. Eu queria repetir o que aqui escrevi há dois anos, no Euro 2004 os metrossexuais foram para casa. Não pude, mas a intenção fica: os metrossexuais foram para casa.

2. Os franceses vêm aí agora. Jean-Marie Le Pen diz que a França foi prejudicada pelo treinador nas suas escolhas para a selecção - onde diz que há muitos jogadores pretos ou, pelo menos, não "genuinamente franceses". Thierry Henry é um deles, tal como Zidane, Thuram, Makelele. Em Portugal também tivemos um treinador que falava de "portugueses legítimos", a quem preferia largamente para efeitos futebolísticos. O resultado foi a condizer. Também Figo, na sua fase mais triste, dizia que para jogar bem na selecção era preciso cantar o hino com convicção. Conversa de idiotas, como se sabe. Para Le Pen, eu gostava que a vitória portuguesa fosse conseguida por Miguel, Costinha ou Boa Morte. Com Deco ainda - para festejar Zagallo que, há três anos, disse que jogadores como Deco tinha ele com fartura no Brasil. Não tinha. Ou não os pôs a jogar.

3. O Brasil regressou ao Brasil, e faz-lhe bem. Ontem, a imprensa descobriu que, enquanto Henry marcava o golo solitário e eficaz da França, Roberto Carlos estava "a ajeitar a meia". A imagem não engana ninguém - na verdade, lá está o gesto técnico, preciso, elegante, de Roberto Carlos a puxar as meias. Não sei exactamente o que fez do Brasil uma equipa tão destreinada (além de Parreira, com o seu futebol sem graça), mas suponho que foi a arrogância e o estrelato. De certa maneira, a derrota do Brasil foi o epílogo de uma geração de futebolistas destinados à estratosfera - mas não ao trabalho. E eles cantavam o hino na perfeição.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 3 Julho 2006

julho 02, 2006

Não dizer o nome de Ricardo em vão

1. Não sei como começou o jogo - não me lembro. Provavelmente, o jogo não teve história por aí além. Nem história nem lances geniais, nem histeria nas bancadas, nem arrepios de frio. Um bom jogo deve ter esses arrepios, sim - quando está quase a ser golo da Inglaterra. Por isso não me lembro de como começou o jogo apenas uma imagem, a de Ricardo entre os postes segurando o primeiro dos remates de penálti. Aí começou o jogo verdadeiramente e prometi, no final, não dizer senão uma palavra sobre Ricardo nos próximos tempos. Apenas isto: obrigado, Ricardo. Mais nada. Não me ouvirão outra sobre o rapaz do Montijo. Nem que, contra a França, ele deixe a baliza esburacada. Está prometido.

2. Não foi um jogo exuberante; havia duas equipas que não queriam perder mas só uma que tinha Ricardo e só uma que teve sangue-frio. É uma característica nova, essa de Portugal a marcar penáltis, a de resistir à pressão, a de aguentar o confronto, a de olhar de frente para os ingleses, as estrelas Beckham ou Rooney ou Lampard. Foi essa novidade que nos deu a vitória.

3. Carlos Alberto Parreira, o cara de peixe, tinha erguido a sobrancelha há dias, como se recordam não, não, o Brasil não precisava do futebol de Scolari, não precisava da energia de Portugal (a do jogo contra a Holanda), não. O Brasil tinha outras armas, um jogo de grande classe, jogadores de outra categoria. Eu disse na altura, ao ver a cara de Parreira: pela boca morre o peixe. Morreu. Um treinador, mesmo assessorado pela múmia de Zagallo (já não Zagallo, mas a sua múmia arrogante), e com aqueles jogadores de classe, deveria ter feito mais - e não fez. Foi uma derrota merecida, a do Brasil. Paz à sua alma.

4. Aliás, repetindo o que escrevi há dois anos sobre a selecção portuguesa depois do jogo inaugural do Europeu, com a Grécia, poderei dizer isto do Brasil foi uma equipa sem vícios - não fuma, não bebe e não joga.

5. Depois dos penáltis, volto a Portugal. Regresso devagar porque a sensação é perigosa e nobre, deve ser um regresso cauteloso. Estaremos em Berlim no dia 9? É provável, é possível. Rendo-me.

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 2 Julho 2006

julho 01, 2006

O Minho pitoresco

Espaço não falta. Nem apetite. Às vezes falta é o tempo para divagar entre os pratos e para digestões suaves.

PORQUE GOSTO EU DO MINHO? Não há razão plausível. Também gosto da Estónia e do verde da Irlanda e, no entanto, nada abre o meu apetite como o Minho. Questão de predisposição sim­ples, euforia poética, gosto (e prazer) em reco­nhecer a paisagem, em divagar pelas vinhas de enforcado e pelo mais belo mar da Península (aceitem o exagero, que me deve ser perdoado em nome da "arte da crónica", que deve mencionar exageros, obsessões, teimosias e erros ele­mentares), em passear pelas ruas de Viana, de Cerveira ou de Caminha. Até em ver o Minho português a partir de La Guardiã, antes de subir a Santa Tecla e de parar na encosta. Em ver as mon­tanhas de cinza esverdeado e parar numa certa varanda ou num certo restaurante para retempe­rar forças (esgotadas pela paisagem) e contentar-me com um vinho branco, uma sombra, uma conversa - e um prato de azeitonas.

Muitas vezes me ocorre, nesses passeios de ocasião, regressar ao que era o Minho da minha adolescência, com as suas praças iluminadas pelo sol, as veredas junto dos rios e a cor clara da pedra. Ao leitor isto sugere literatura; hoje em dia, além da literatura, sugere-me nomes de restaurantes e peregrinações até alguns deles. Problema de idade e de cepticis­mo acerca das vantagens da literatura. Recordo, por exemplo, uma dessas viagens de há uns anos, entre conferências eruditas e paragens, muito reflexivas, para comentar certo vinho verde. A manhã concluiu-se à mesa do bom Camelo, ou Costa Camelo, nos arredores de Viana do Castelo, em Santa Marta de Portuzelo (pode não acreditar, mas eu recordava Santa Marta de Portuzelo por causa de Pedro Homem de Mello) - um casarão de pedra e alguns paviIhões de onde partiam os aromas daquela nobre cozinha de campo, minhota ou "do Norte", assa­dos em profusão, bacalhaus variados, estufados profundos e cheios de evocações.

Estando feita a escolha, a desconfiança abriu as suas brechas – a sala era demasiado grande (confidenciou o empregado de mesa, orgulhoso: "É uma salinha para trezentas pessoas."), mas, curiosamente, o serviço decorria bem, sem os atropelos graves à segurança dos comensais ou à ordem geral do cardápio. Éramos um grupo esfomeado, concedo – as entradinhas (costelinhas, enchidos, azeito­nas, pãezinhos quentes) apareciam de vários lados, sacrificando-se sobre a mesa. O bacalhau à Camelo, prometido na nossa imaginação, arran­cou aplauso moderado sobre lascas monumen­tais, suculentas, cheias de gelatinas saborosas, que aproveitámos para saborear quando chegou o bacalhau na brasa, muito bom. Saltámos sobre o polvo à lagareiro, mas houve quem não dispen­sasse uma prova de filetes de pescada, muito fres­cos. Não era a época da lampreia, mas juraram-me que a lampreia com arroz, ou à bordalesa ou ainda no forno (uma idiossincrasia do Camelo) eram superlativas – não posso garantir, mas acre­dito na informação.

Entretanto, depois de uma breve pausa, chegou um dos momentos altos do almoço – a presença de um cabrito assado no forno. Acompanhavam-no um arroz perfeito (ah, os arrozes do Minho!, os arrozes do Porto!) e umas batatinhas que se desfaziam em murmúrios de alegria mal eram trincadas; o cabrito, com aqueles sucos do tabu­leiro do forno, era muito bom, tenro, saboroso e bem aromatizado. Pedi uns grelos salteados para acompanhar - e eram amargos, como convinha e se exigia deles. Já não tive estômago, nem dis­posição, nem metafísica, para petiscar dos pratos dos que pediram arroz de galo (uma cabidela cremosa) ou vitela no forno – mas o leite-creme queimado estava muito razoável e antecedeu um período de "depois da ordem do dia", cheio de libações e de coisas repreensíveis. Por razões morais, não as refiro nem comento, mas - ai de mim, ai de nós! - havia uma conferência ao final da tarde em Viana do Castelo, para a qual se deviam reservar as últimas energias. E assim foi. Mas só as últimas.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 98
Vinhos Brancos: 38
Vinhos Verdes: 35
Portos & Madeiras: 11
Uísques: 24
Aguardentes & Conhaques: 20

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Fácil (existe Parque)
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao almoço
Preço médio: 20 Euros
Cartões: MB. V, D, M, AM

RESTAURANTE CAMELO
Rua de Santa Marta, 119 - Santa Marta de Portuzelo
Tel: 258 839 090
Encerra às segundas-feiras

in Revista Notícias Sábado – 1 Julho 2006

Última lição: o futebol é o terreno do possível

1. A Alemanha, naturalmente. Quando vi a Argentina reti­rar-se para o seu meio campo, perguntei-me se um general sensato alguma vez se retiraria para o "pampa" a fim de con­servar a vitória. Não. Nunca - e conheço um pouco de história argentina. O mal da Argentina, como dizia um dos seus pais fundadores, Domingo Faustino Sarmiento, é o deserto que lhe nasce das entranhas. Ele es­creveu isso já não me recordo a que propósito, mas vem na bio­grafia que dedicou a Facundo Quiroga, um dos caudilhos his­tóricos da Argentina. Sarmien­to foi presidente da República mas, para mim, o seu feito mais nobre foi essa frase que explica o país. Pois foi também o deserto que a Argentina entregou aos alemães que provocou o que se sabe - aquele passe de Balack e a entrada de Klose, eu vejo-os como consequência do recuo para as linhas de defesa e do deserto entregue aos prussianos (eu escrevi "prussianos"?). Mes­mo quando vi que Júlio Cruz ia entrar em campo, não me pare­ceu convincente, Ah, como vejo maus presságios naqueles tan­gos à beira do precipício. Mas a Alemanha, de qualquer modo, apresentou um futebol convin­cente e amável, alegre e positi­vo. Pelo menos, eu gostei de ver Angela Merkel na tribuna - por instantes, ao vê-la rodar, naque­le fatinho rosa, temi que fosse dançar. Mas não. Há limites para tudo.

2. Não vi o Itália-Ucrânia. Não queria ver italianos. Há limites para tudo.

3. Só o Brasil garante, pelo me­nos até domingo, que o Mun­dial não se restringe à Europa -embora a larga maioria dos se­leccionados do escrete joguem no "velho continente". Gosto destas metáforas rezingas: "ve­lho continente", o "escrete", a selecção "canarinha", "a pérfida Albion", "a velha senhora", a "squadra azzura". Não querem dizer absolutamente nada. Tal, como não quer dizer nada o fac­to de todo os semi-finalistas, excepto o Brasil, serem euro­peus. Eu só tenho pena. Gosta­va de ver o Gana, o Equador e até a Austrália, a disputar ain­da um lugar. Mas o futebol é o terreno do possível, não é?

in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 1 Julho 2006