dezembro 29, 2005

O medo é que é perigoso

Vamos directos ao assunto o dr. Mário Soares informou o país que a eleição de Cavaco Silva é "perigosa". Tamanha novidade merecia atenção redobrada. Meses antes, o antigo presidente da República tinha esclarecido a Imprensa estrangeira sobre os perigos que vivia a nossa democracia, afirmando que só não havia um golpe militar porque éramos membros da União Europeia. Também já tínhamos sido esclarecidos, por pessoas que lhe são próximas, sobre como era perigoso votar em Cavaco Silva e que isso representaria uma hipótese, digamos, de regresso ao passado - quem sabe se ao fascismo, dado a nossa democracia estar tão periclitante. Há dias, considerou "uma tragédia" a eleição de Cavaco. Antes de anunciar a sua candidatura, um pouco antes, o ex-presidente informara-nos que José Sócrates, com os seus ares modernos, os seus fatos elegantes, a sua moderação equilibrada e a sua insistência nas tecnologias, era perigoso - e que não passava de uma reciclagem do pior guterrismo. Que seria, suponho, uma espécie de líder de esferovite. Nos últimos dois anos temos sido sucessivamente informados, pelo dr. Mário Soares, sobre perigos e tragédias iminentes. Infelizmente para o autor das profecias, algumas delas não se realizaram e as que podem realizar-se não são tragédias; pelo contrário. A sua pontaria tem diminuído. Só assim se explica que José Sócrates seja agora visto como alguém com garra e que se digam coisas ditirâmbicas sobre António Guterres. É, suponho, um intervalo - a interrupção deve-se à campanha eleitoral, durante a qual se devem apontar todas as armas para "o monstro". O monstro é Cavaco.

Anteontem, depois das declarações de Cavaco Silva a este jornal, gerou-se uma tal onda de queixinhas e de indignações que qualquer cidadão seria levado a suspeitar de que alguma coisa estaria errada. Está. O que está errado é o clima de medo em que querem transformar estas eleições. Esta pobre estratégia populista parte do princípio que os portugueses são um bando de medricas ou de crianças que é preciso proteger a todo o custo de perigos imaginários e de tragédias improváveis. Esse medo é que é perigoso - é o medo da democracia, no fundo. Em todas essas queixinhas que se ouviram durante o dia (com aquele ar escandalizado das virgens velhas das peças de Lorca) não se viu uma ideia, um combate, uma prova de que Cavaco estava errado. Limitaram-se a aparecer em bicos de pés, lembrando "a tragédia" e "o perigo" que rondam a vida dos portugueses, esses ignorantes que deram a vitória a Sócrates e se manifestam por Cavaco.

Ora, o que a candidatura de Cavaco (para temor de soaristas e de cavaquistas) vem fazer, no fundo, independentemente de si mesmo, é interromper um ciclo conservador onde o "republicanismo" se sobrepõe aos "valores republicanos" e onde as manobras de bastidor são sempre mais importantes do que a clareza das ideias que se exprimem. Ao acusarem Cavaco de todas as ignomínias apenas porque ele se limitou a sugerir uma medida da mais elementar eficácia governativa (que ninguém discutiu, de resto), os seus adversários apressaram-se a acenar com banalidades e com a existência de "indícios", mostrando claramente o seu jogo a aposta no medo.

A penosa campanha eleitoral em curso, longa de mais, mostrará até ao fim esse tom de dramatização e de perseguição populista, de insinuação. Por detrás disso está o medo. Não o medo de Cavaco, mas o medo da própria democracia e do jogo claro que ela devia impor e tornar necessário. De dedinho espetado, indignado, esse medo é que é perigoso e reaccionário. E, além do mais, pretende fazer dos portugueses gente sem discernimento ou inteligência.

Jornal de Notícias - 29 Dezembro 2005

dezembro 28, 2005

O México, ao acaso

O Canon del Sumidero, em Chiapas, no México, é uma das grandes obras da natureza. Sei isso porque me aproximei duas vezes das suas ravinas, e uma delas de noite, quando - num velho Volkswagen verde e amolgado - percorria a estrada que vai de Tuxtla Gutierrez, à capital do estado, a San Cristobal de las Casas. Não é um bom caminho para se fazer de noite, é verdade, sobretudo porque, na época, em 1994, os militares montavam barricadas de 20 em 20 quilómetros para fiscalizar os carros, aborrecer jornalistas e, marginalmente, encontrar guerrilheiros zapatistas.

Seja como for, o México teve sempre esse perfume de revoluções, sobressaltos, tiroteios, poeira levantada do chão, cavaleiros que percorrem os desfiladeiros e viajantes que pernoitam em cidades quase abandonadas. Eu fui destes últimos e o Canon del Sumidero a minha fronteira com o irreal. Explico. Durante toda a minha adolescência, e certamente na do leitor que anda pelos quarenta, ou um nadinha mais, o México era exactamente esse território. O general Francisco Villa e Emiliano Zapata enchiam todos os filmes dessa memória, tal como o futebol. E havia a grande aventura. Havia aquele número inusitado de viajantes que atravessava a fronteira do Texas ou da Califórnia para se perder numa pequena cidade do interior ou num hotel vagamente instalado a beira do Pacifico. Havia o viejo gringo. Depois, com mais idade, havia a literatura — de D. H. Lawrence (o de Serpente Emplumada) a Graham Greene (o de O Poder e a Gloria), de Malcolm Lowry (o de Debaixo do Vulcão) aos autores mexicanos que romperam o isolamento: Juan Rulfo (Pedro Páramo é um dos grandes romances contemporâneos e o fundador do chamado «realismo magico latino-americano»), Octavio Paz, Carlos Fuentes. Escuso de falar do cinema, claro (pese embora ser quase sempre o olhar americano, o olhar do gringo, sobre o silêncio mexicano). Mas falaria da música: só com a idade os mariachis se tomaram encantadores e perderam aquele ar vagamente ridículo e mortal. Mas os boleros imortais de Augustín Lara operaram milagres depois de ouvir pela primeira vez Noches de Veracruz, ou Consuelo Velazquez, Gabriel Ruiz, as composições de Vicente Garrido ou de Gonzalo Curiel e tantos outros.

O México, explico, foi uma libertação. Raras viagens foram tão comoventes e cheias de revelações. Eu tinha lido Artaud e sabia o suficiente dessa misteriosa Frida Kahlo por quem nunca consegui apaixonar-me depois de ver a obra de Diego Rivera. Mas o prazer da viagem nunca foi tão inten­so - justamente porque se tratava de andar perdido, totalmente perdido. As longas distâncias foram sempre um remédio para temperamentos impacientes. Tomar um autocarro na ca­pital, com destino a Oaxaca ou a Gua­dalajara, era sempre uma tarefa monumental, coisa para vários dias de via­gem, atravessando vulcões extintos e planícies desertas, o rigor da noite fria ou o calor que arrancava suor pela tarde fora, no meio da poeira e das vozes sobressaltadas de anónimos companheiros de viagem. Lamentei sem­pre aqueles que reduziram a sua viagem mexicana as praias de Cancún. E, de entre estes, aqueles que não entenderam o apelo do Grande Golfo, daquele grande mar que toca Merida, Campeche, ali bem no Sul.

Por isso, o Canon del Sumidero, onde dizem que voa o quetzal (teria de ser numa floresta assim, de verde intenso, exuberante, escura) e onde se perde o jaguar, foi sempre uma fron­teira implacável. Atravessei-o a cami­nho do México do Pacifico, quando os areais se prolongam para que surfistas ou casais aventureiros pernoitem à vontade. E atravessei-o para encontrar o México que nunca vinha nem nas paginas dos jornais nem nos programas turísticos, profundo, distante, talvez pobre, sim, mas comovente e inamovível. Essa foi a minha fronteira: entre o México e o México. Quando me perguntam que país mais mudou a minha maneira de viajar, eu penso no México.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Janeiro 2006

dezembro 27, 2005

Visitação ao Belize popular





Arroz e Feijão, comida dos trópicos, mesmo diante da Jamaica. No Belize.





Cheguei ao Belize num domingo de Março, duas ou três semanas depois de um furacão ter passado pela velha capital, Belize City (a nova, e oficial, é Belmopan, a cerca de hora e meia de viagem pelo meu ritmo de pára-aqui-pára-acolá).

Poucas vezes cheguei a uma cidade e vi que era ali que não me importava de ficar uns tempos, a escrever, a vadiar ou até, para variar, a não fazer nada: casas de madeira. hábitos de sesta pela tarde fora, taxistas atenciosos, um mercado acolhedor, restaurantes baratos, musica apetitosa - e, confesso, comida interessante.

Eu sei que “interessante” não quer dizer grande coisa, mas serve para o que comi durante esses dias: frango frito com mango & papaya chut­ney, breadfruit muffins, escabeches vários e deliciosos, o classico rice-and-beans, peixe frito ou vários green ba­nana puffs. Elementos muito simples, preparação sem rigor; o ideal para chefs anarquistas e para cozinheiros inventivos. Imagino Anthony Bourdain (o autor de Cozinha Confidencial, publicado pela Dom Quixote e leitura obrigatória, juntamente com A Cook's Tour - In Search of the Perfect Meal, ainda não traduzido em Portugal) perdido nestas cozinhas, sobretudo na do Lily Rose Cafe and Patio, o restaurante preferido de River Phoenix (para não mencionar o do hotel de Francis Ford Coppola. rnais para o interior)..

Gostaria de apresentar a receita do belizean stew chicken (um frango estufado em alho, pimentas, cebolas e frutos à escolha - em que ossos e peles acabam por ser retirados para ficar apenas a carninha de ave), mas o que me apetece realmente é cozinha descomprometida, solta e própria para acompanhar cerveja (a cerveja local, a Belikin é excelente): assim, vamos ao arroz & feijão à moda do Belize.

Primeiro, coze-se o feijão (pode ser o nosso vermelho) em água e apenas alho (bastante) durante uma hora somente. Numa panela de fundo grosso faz-se um refogado com óleo e alho, juntando-se o feijão semicozido e, logo depois, alguma água; ao fim de meia hora de ebulição, juntam-se carnes salgadas cortadas em pedacinhos miúdos, uma chávena de chá de leite de coco, uma cebola roxa em rodelas muito finas e um raminho pequeno de salsa. Mexe-se bem e deixa-se cozinhar de modo que os ingredientes se abracem naquele conluio espiritual que os bons cozinheiros detectam à distância. Digamos que cinco ou seis minutos bastam. Nesta altura eu junto uma de duas coisas: ou umas pimentinhas indígenas, bem picantes, ou um picadinho tabasco. Escolha. Na verdade, eu prefiro o segundo processo. O arroz (por favor: arroz carolino português, ou então arroz local, que pode ser encontrado nos nossos supermercados, vindo da Costa Ri­ca ou do México) deve ser acrescentado neste momento: depois de uma lavagem apressada, os grãos descem sobre o caldo, a que fui acrescentando apenas a água quente necessária para se cozer o arroz. Deixo cozinhar durante 15 minutos, vigiando para que não pegue ao fundo; ao desligar o fogo agito a panela e deixo cair umas gotas de limão.
Tradicionalmente, o rice & beans serve-se nos restaurantes do Belize para acompanhar frango frito, frango estufado ou peixe frito. Num pequeno café do porto de Belize City, ao final da manhã, comi o arrozinho num prato de alumínio, acompanhado de uma omelete simples, cortada em tiras, servida mesmo em cima dos grãos, e regada com mais limão e molho picante. Foi aí que começou a minha desgraça, bebendo Belikin atrás de Belikin. Nunca mais fui o mesmo.

Ingredientes
+ 1 lata de feijão encarnado(250 gl)
+ 1 chávena de leite de coco
+ 3 dentes de alho
+ Sal e pimenta
+ Salsa
+ 1 cebola roxa
+ 1 chávena de chá de arroz Caroline
+ 150 g de carne salgada à escolha (bacon, entremeada,
ou costela de vaca salgada)
+ Azeite (para o nosso gosto) ou óleo de coco
(para a receita tradicional)


in Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Janeiro 2006

dezembro 22, 2005

Mais um mês

Não sei se se deram conta mas o derradeiro debate televisivo entre dois candidatos ocorreu anteontem e ainda estamos a um mês das eleições. O que significa, mais coisa menos coisa, que ainda teremos tempo suficiente para todo o género de demagogia.

Ora, dois a três meses de demagogia são um excesso para os eleitores. Se imaginarmos, por um minuto que seja, que existe a possibilidade de haver uma segunda volta, teremos ainda mais tempo inútil. Ora, o país merece férias.

A verdade é que, desde há cinco anos estamos a viver em ciclos eleitorais incompletos e a assistir a demissões sucessivas de responsáveis políticos. Isso devia ter-nos vacinado contra malabarismos. Mas não. Normalmente, não valeria a pena recordar as desculpas esfarrapadas de Guterres acerca do "pântano" em que "isto" se transformou, mas a circunstância é excepcional. "Isto" era o pobre país, aquele cenário idílico de telemóveis para todos e de férias no Algarve; espero que se lembrem deste desenho feito pelo próprio primeiro-ministro de então, a anteceder o verdadeiro pântano em que "isto" se transformou. Depois, o curto e incompleto ciclo de Durão Barroso que saltou para o "comboio europeu" mal ele passou à porta; não duvido que tenha sido uma boa promoção na carreira de um político profissional, mas o problema é que Durão julgava que lhe bastava entregar "isto" a um político tão inconsequente como malabarista, para que a sua consciência repousasse no limbo dos heróis. Erro. O presidente da República também errou, ao não convocar eleições antecipadas logo na primeira hora. Nem vale a pena inventariar mais argumentos. A soma de incidentes absurdos, de pequenos fenómenos marginais, de trapalhadas incontroláveis, à mistura com o ressentimento geral, e a falta de um líder capaz de clarificar, dirigir e escapar à maldição das sondagens e das primeiras páginas, fez o resto, e o cenário devia ter servido para que alguém aprendesse alguma coisa. Perante isto, só um político absolutamente indigente seria capaz de perder eleições contra Santana Lopes cheio de gripe, agasalhado e rodeado das suas próprias inabilidades. Sócrates não fez senão o esperado não prometeu, não ameaçou agir, não apareceu para reacender os ressentimentos. Fez o que lhe mandava a intuição política do momento; os eleitores queriam normalidade e o regresso à vidinha. Eles tinham esse direito. O direito à vidinha é inalienável.

Resumir os últimos anos portugueses desta maneira anedótica pode ser redutor. Mas a verdade é que os últimos anos foram anedóticos, inconsistentes, perdidos no meio da poeira. Fracturas importantes vieram dividir o país não em relação a escolhas que o país tivesse de fazer para si mesmo, mas acerca da América, de política internacional e do Iraque. Quando Sócrates e os eleitores que lhe deram a maioria de Fevereiro abriram o livro, as surpresas começaram afinal, havia mais vida para lá do défice, sim, mas era preciso combatê-lo. E, ao contrário do que pensam os iluminados do regime, o problema da auto-estima não é mental nem psicológico: tem a ver, antes, com dinheiro no bolso e com essa coisa mesquinha que é libertar a sociedade deste ciclo de vaidades do regime.

As presidenciais são, já que não está em causa a liberdade, nem a democracia, a oportunidade para devolver o país a si mesmo. Devolver o país às suas tarefas e às suas necessidades. O programa pode não ser luminoso ou cheio de glamour, mas há momentos assim. Nada que nos envergonhe.

Jornal de Notícias - 22 Dezembro 2005

dezembro 18, 2005

Para memória futura

É muito provável - inteiramente provável, aliás - que eu tenha da vida uma ideia completamente diferente da de Cavaco Silva. Mas o combate nestas eleições presidenciais é entre diferentes modos de entender a vida de um país, não entre modos de entender a vida ou a vida de cada um. O objectivo da política, como se sabe, não é o de garantir a felicidade - mas o de possibilitar que cada um possa procurá-la como entender, livremente.Acredito também que o tipo de presidência exercida por Cavaco Silva permitirá que os governos governem e que os cidadãos sejam cidadãos de pleno direito - e que actuará com tranquilidade. E que Portugal precisa dessa tranquilidade para se repensar e reorganizar. E que é necessário alguém com o seu perfil na Presidência. Alguém que esteja atento aos outros. E que garanta o respeito pelos valores republicanos de seriedade, responsabilidade individual, estudo, rigor, respeito pelas contas do Estado, lealdade às leis e à vontade dos eleitores. Eu votarei nesse Presidente.

Texto retirado deste site

dezembro 15, 2005

O lado humano

Os comentadores queixam-se bastante que os debates são mornos e entediantes, cheios de fórmulas e de frases feitas. Têm uma certa razão, se pensarmos que metade deles assistiu a debates cheios de agressividade ou de polémica, e que a outra metade ou ouviu falar desses confrontos televisivos ou os viu na RTP Memória. Outros tempos. Nessa altura não era preciso forçar o espectáculo na televisão; acontecia naturalmente. Tal como hoje, as frases eram feitas e os parágrafos eram estudados com alguma antecedência - mas o tom aguerrido era obra do tempo, resultava com aquela naturalidade com que o telespectador se identificava e que passava tanto pelos "Donos da Bola" como pelo "Jogo Falado".

Depois, os líderes políticos passaram a ser ainda mais calculistas, a usar teleponto, a cuidar de cada frase, a preparar longamente os improvisos.

Uma legião de "analistas de texto", disposta a sacrificar uma boa ideia em nome de uma má declaração que passasse para a primeira página dos jornais, passou a vigiar meticulosamente adjectivos e advérbios. Os debates continuaram, mas os candidatos aprenderam cautelas, cuidados e frases feitas. Um deslize podia ser a morte do artista.

Mas os analistas e comentadores querem assunto e querem polémica. Querem "o lado humano" dos candidatos, como se alguma vez isso fosse possível nesta altura. Têm saudades da Marinha Grande e do sopapo que transformou a campanha de Soares na sua primeira eleição presidencial. Alguns ficam chocados com a naturalidade com que Jerónimo de Sousa veste os seus fatos. Queriam que Louçã regressasse aos seus tempos de líder trotsquista e lhes desse matéria. Preferiam que Cavaco replicasse a cada amuo ou picardia de Soares. Sonham com um soneto recitado por Alegre em pleno debate. Todos queriam que "a política" regressasse por instantes, nem que fosse por instantes, ao espectáculo que a vida se encarregou de eliminar. Que houvesse comunistas e trotsquistas de antigamente, dispostos a colocar bombas e a pedir a prisão dos bispos e dos capitalistas, e que houvesse direitistas desejosos de fechar as fronteiras e de privatizar o Parlamento.

Ora, a eleição presidencial tem limites muito precisos. Salvo se se revelar um escândalo (um candidato abandona o lar para viver em pecado com uma bailarina ucraniana ou com uma sambista carioca), os debates serão confrontos de cautelas. Ninguém espera outra coisa.

Na verdade, o que disseram Alegre e Louçã, no debate entre eles? Que há questões graves a Constituição europeia, a privatização do sector energético, a "globalização neoliberal"? E o que decidiram eles? Que iam demitir Jardim e propor a saída de Souto Moura. E podem? Não.

Mais de 60% dos eleitores dizem que os debates televisivos, em princípio, não influenciarão a sua intenção de voto. São sábios, os eleitores. Reconhecem que aquilo é espectáculo.

Certamente que isso é uma desilusão para os "analistas de texto" e para os comentadores. Para estes, ao contrário da generalidade dos eleitores, a política é esse pequeno confronto entre cavalheiros da televisão e entre frases curtas que podem resultar de lapsos ou de premeditação. Deliram com um deslize. Uma pequena interjeição. Um erro fatal. Mas os eleitores sabem que um debate é apenas uma encenação entre pessoas bem-educadas, e que a política é outra coisa. E que farão as suas escolhas conforme for melhor para as suas vidas - e não para as vidinhas dos candidatos. Vão ficando espertos, os eleitores. Sabem que o "lado humano" é o seu, apenas.

Jornal de Notícias - 15 Dezembro 2005

dezembro 08, 2005

O pequeno escândalo

Parece que, nos meios políticos, académicos, suburbanos e paraliterários, vai um burburinho surdo e indignado. Quando esta gente se indigna, eu quero saber porquê. Interessa-me a hipocrisia.Desta vez há um livro, o de Maria Filomena Mónica, intitulado “Bilhete de Identidade” (edição Alêtheia).

Ora, o que conta o livro? Nada de mais, nada que não suspeitássemos e nada que envergonhe o género humano. São as suas memórias, coisa que acontece as pessoas decentes terem.Ao contrário de outros países em que as pessoas escrevem as memórias para que os seus contemporâneos as leiam (quem quiser, obviamente), Portugal escandaliza-se frequentemente com o facto. As pessoas contam nas suas memórias apenas o que lhes interessa, obviamente. Espera-se que um estadista revele telefonemas, mistérios da política, segredos de bastidores ou, até, pensamentos profundos – se lhe calha tê-los. Mas que a coisa não ande longe da verdade.

Filomena Mónica não é uma estadista. É uma socióloga, uma académica que escreveu vários livros e artigos. Lamentavelmente para a pequena intelligentsia, Filomena Mónica escreve bem, escreve claramente, estudou em Oxford e tem a coragem de dizer o que pensa, mesmo quando não pensa grande coisa. Graças a ela pudemos, em várias ocasiões, ser confrontados com a miserável mediocridade do sistema de ensino que há anos era inatacável. Nunca lhe perdoaram.As suas memórias não são o retrato maneirista de uma personagem em busca de glória. Se assim fosse, o livro não revelaria ingenuidades de adolescência, fragilidades da idade adulta e perdições comuns ao género humano. O livro seria, apenas, muito bem comportado.

Acontece que, oh Portugal de plástico e de esferovite, o livro diz nomes, conta coisas, refere datas. Em Portugal não se dizem nomes (usam-se iniciais ou deixa-se a suspeita), não se contam muitas coisas nem se referem datas. Não se incomodam as pessoas, tratando-as pelo seu nome, chamando António ao António e tratando-se Genoveva por Genoveva. Não. Em Portugal limitamo-nos a sugerir infâmias anónimas e baixarias de “alguém”.Maria Filomena Mónica, por absoluta e sincera ingenuidade, disse os nomes de pessoas que conheceu, com quem viveu, que a conheceram. As virgens do jornalismo, da moral familiar e da academia acham isto indigno. Não porque Maria Filomena Mónica lhes aponte indignidades – no livro as pessoas são naturais, humaníssimas e simpáticas. Mas porque ela abriu as portas do armário onde estão reunidos anos e anos de esqueletos e de aprendizagens. E de indignidades, sim, admito. E de segredos que geralmente não se confessam.

Ora, acontece que as pessoas acham que nunca são hipócritas nem indignas. Acham que são perfeitas, impolutas, intocáveis e indiscutíveis em absoluto. Acontece que não são. Que não somos. As pessoas são indiscutíveis para lá de certos limites, sim, definidos pelo costume e até pela lei. Mas o retrato de conjunto oferecido por Maria Filomena Mónica não ultrapassa esse limite. Não reavaliaremos a obra de nenhum autor à luz dessas revelações, a menos que sejamos patetas.

O que o livro de Filomena Mónica retrata é um pedaço da sua vida: a menina de Cascais (sim, a “beta” de Cascais – qual é o mal?) e a adolescente que lê Evelyn Waugh enquanto bebe conhaque num colégio londrino. A mulher que comete adultério durante o fascismo e que fica com mais do que um grão na asa ao jantar com um famoso professor de Oxford. A que deambula pelos corredores do curso de Filosofia e comenta a beleza dos rapazes. A que se desilude com a política e com a vida doméstica.

O que ficámos a saber, com o seu livro, é que aquela gente até tinha um certo grau de humanidade, de palermice e de generosidade. E é isso que indigna tantos sacerdotes. Ser humano incomoda muita gente.

dezembro 02, 2005

Pérolas da Turquia








Bolinhas trabalhadas com aromas e texturas de contrastes destinadas a enriquecer a vulgar carne picada: eis os keftes.




Na tradição dos judeus sefarditas, a Turquia representa uma memória grata e, muitas vezes, aprazível. A diferença explica-se facilmente. A gratidão testemunha a enorme quantidade de fugitivos, exilados e emigrantes judeus fugidos da Península Ibérica, da Europa e da Inquisição - e que encontraram na velha Constantinopla um lugar de refugio e de tolerância. Muitos Portugueses procuraram esse cruzamento entre o Oriente e o Ocidente. a luz do Mediterrâneo, para escapar às perseguições e à demência que tinha tomado de assalto os reinos atlânticos.

De entre as varias tradições acumuladas nessa memória sefardita, a gastronómica, ou apenas alimentar, não é das menos importantes. Pelo contrario: ela dá conta dos laços que prendem essa memória aos antigos territórios de origem, a Sefarad (a Península Ibérica) e as formas como, em qualquer lugar, havia uma adaptação aos lugares onde a diáspora assentava.

À Turquia, pois. E aos keftes de espinaka, para retomar a expressão original como ela era grafada nessa língua franca e musical em que se exprimiam os exilados. O que são os keftes? Bolinhas trabalhadas com aromas e texturas de contraste que se destinam a enriquecer um material pobre como é a carne moída, ou picada. Devo dizer, também, que o essencial neste prato não é a carne - mas o conjunto obtido com a carne e os espinafres.

Posso explicar corno faço em minha casa: numa panela com água a ferver, temperada de sal, mergulho durante dois minutos dois molhos de espinafres a que tirei apenas os talos mais grossos enquanto os lavava. Escorro e espremo as verduras, disponho-as numa tábua e pico com uma faca, em pedaços não muito pequenos. Aproveito a agua onde ferveram para demolhar umas três fatias de pão caseiro sem côdea. Numa taça ou tigela (do tamanho de uma saladeira, por exemplo) misturo os espinafres aferventados com dois ovos inteiros, uma cebo­la roxa picada muito finamente, as fatias de pão já demolhado, e a carne picada (originalmente, esta devia ser de borrego - mas reconheço que toda a gente prefere a de vaca; seja, pois, a de vaca), além de sal e pimenta a gosto. Eu acrescento um nadinha de cominhos secos e de cebolinho. Em dias de grande euforia, junto uma colher de chá de canela em pó. Mas isso sou eu, o leitor que proceda de acordo com o seu gosto, porque as variantes alimentares do Mediterrâneo aceitam muito bem as contribuições do Oriente. De seguida, começo por dividir, em porções do tamanho de uma almôndega, toda essa massa que misturei com as mãos e amassei durante uns minutos de forma a conseguir uma composição homogénea. Caso a massa esteja liquida, junto um pouco de pão ralado até conseguir a consistência desejada (por isso é que os espinafres devem ser muito bem espremidos). Então, passo as bolinhas de carne por farinha, primeiro, e ovo batido, depois, e frito-as ligeiramente em óleo. O objective é que fiquem douradas, sim, mas sobretudo com aquela solidez requerida pela operação seguinte: numa caçarola larga, servir um pouco de azeite (na tradição judaica não se podem misturar lacticínios com carne, daí não se usar manteiga na receita original, mas pode faze-lo em casa), deixar aquecer, juntar as bolinhas previamente fritas, acrescentar sumo de dois limões, agitar bem, e cobrir com a massa de quatro tomates maduros reduzidos a pasta no liquidificador. Agitar de novo. Espalhar uma co­lher de sobremesa de açúcar. Voltar a agitar. Deixar cozinhar em lume brando até que o molho fique mais solido.
Geralmente, sirvo com arroz branco, mas o leitor considerará - com alguma margem de tolerância - o seu apetite.

Ingredientes
+ 400 g de carne picada uma só vez
+ 2 molhos de espinafres frescos
+ 2 limões
+ 1 cebola roxa
+ Sal, pimenta. açúcar. farinha e azeite nas porções indicadas
+ 4 ovos (2 para a receita, 2 para usar antes da fritura)
+ 3 fatias de pão caseiro
+ tomates maduros
+ Óleo para fritar


in Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Dezembro 2005

Exercício de recordações

Há na viagem - e na distância em relação às coisas - uma soma incontrolável de recordações. Mais recordações do que memórias. Explico: a memória tem uma certa lógica; as recordações são fragmentos, enumerações, retratos, coisas sem nexo, As minhas memórias vêm desde a infância, ordenadas e passando de um calendário a outro, de uma casa a outra, de uma paisagem a outra. As minhas recordações são instantes de sorte, adversidade, paixão. Muitas delas têm a ver com a viagem e eu esforço-me por não Ihes dar nem ordem nem sentido: coisas sem importância, cães ladrando no pampa brasileiro, rente aos lagos; a extraordinária beleza do silêncio em altitudes inesperadas, para Iá dos trópicos; uma mulher caminhando pelas ruas de Buenos Aires; o ruído das florestas e dos comboios atravessando a Noruega; a fragilidade das pontes de madeira cruzando precipícios nos Andes; o mar do Belize; os meus pulmões resistindo enquanto subia as pirâmides do México meridio­nal; uma música escutada numa praça enquanto todo o álcool do mundo se reunia na minha mesa, numa esplanada em Oaxaca; um autocarro de turistas, desses de city tour, atravessan­do Nova lorque; um barco solitário ocupado por um pescador ainda mais solitário no lago diante da abadia de Killermore, na Irlanda, debaixo da chuva miúda e entre a luz do nevoeiro; o ruído dos grilos na noite de Bis­sau; o vento do fim da tarde no Índico, diante de Madagáscar; as varandas de árvores sem nome em Ermera, Timor.

Todos temos essas recordações - até mais, muito mais, do que essa memória catalogada. Somos muito esses fragmentos e essas travessias de ferry en­tre margens de um lago ou de um rio. A nossa cultura ocidental, muito ensaística, obriga-nos frequentemente a ser correctos em demasia - e a não dar importância a esse caos que povoa a nossa imaginação, as fotografias nas paredes e as gavetas onde guardamos lixo avulso. Ora, as viagens precisam de um pouco de desordem.
Conheço viajantes notáveis, mui­to organizados e preparados. Antes de partirem, coleccionam os endereços de monumentos indiscutíveis, os telefones de restaurantes e os horários dos museus. Têm horários e disciplina, leituras e método. Qualquer coisa me diz que Ihes falta alguma coisa: essa desordem amorosa que transforma a viagem em descoberta pura e desperta para o acaso, o inesperado, as sombras de uma paisagem, a chuva nas ruas de uma cidade, uma caminhada de quilómetros no meio do frio. Eu, que já encontrei académicos a discutir filosofia à beira do lago Myvatn (sentados diante daquela conjugação irregular de pseudo-crateras, protegida pelo glaciar), na Islândia, e pescadores balineses que me cozinharam um dos melhores arrozes de lagostim de que tenho memória, atribuo isso à desordem de grande parte das minhas viagens. Em Buenos Aires, sento-me nos cafés inesperados antes de ir ao Tortoni; em Dublin, vou ao primeiro pub antes de ir ao O'Donoghues. Há nisso um prazer irregular e contagiante, quando a companhia de viagem é apropriada. A disciplina fica em casa. Os bons hábitos reservam-se para a nossa vida. A viagem é outra vida, necessariamente.

Provavelmente, quando encontra-mos aquele lugar, queríamos que fosse o lugar da nossa vida. Mas a nossa vida é isto. Alguns atribuem algum grau de infelicidade ao facto de a nossa vida ser isto. Não se iludam: se a nossa vida fos­se essa outra coisa, não gozaríamos tanto as viagens, não procuraríamos nelas a desordem afectuosa que os nossos dias comuns não comportam. Deixem as coisas corno estão. As recordações também nos fazem felizes

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Dezembro 2005

dezembro 01, 2005

Os Lusíadas

A ideia é que é necessário conhecer "Os Lusíadas". Não me parece que conhecer "Os Lusíadas", de trás para a frente, seja uma falta muito grave e que a cidadania assente num conhecimento minucioso do episódio da Ilha dos Amores ou na capacidade de declamar as suas cinco primeiras estrofes. Suspeito, aliás, que a versão "cidadã" de "Os Lusíadas" seja banal e desinteressante. Considero o texto de Camões uma epopeia politicamente incorrecta para os dias de hoje, divertida e achincalhante, onde se prega o heroísmo português e se gaba o arrivismo, a soldadesca e o sentido de aventura dos marinheiros que mataram o que puderam e gozaram bastante fora dos muros da Pátria cinzenta e malcheirosa. É o poema do andarilho português e uma das mais belas epopeias, comparável à "Ilíada" (Harold Bloom diz que é superior).

Não sei se um presidente da República deve recitar o poema em público. Admito que sim, se estiver para aí virado. Imagino facilmente, e não me choca, que Manuel Alegre evoque Camões quando lhe apetecer; ele tem uma leitura pessoal e respeitável de "Os Lusíadas". Ocupou-se dela, reflectiu e não assenta em banalidades.

Ora, eu cito "Os Lusíadas" porque Mário Soares levanta permanentemente a questão do "humanismo" e do "perfil humanista" dos candidatos a Belém. Sinceramente, é um assunto que me preocupa muito pouco. Já me preocupou em tempos, mas sei hoje que a instrumentalização da cultura e dos autores é uma arma medíocre. Aliás, a propósito de "humanismo" (que é tomado, erradamente, por "conhecimento das belas letras"), não percebo por que é que os "humanistas" têm de conhecer "Os Lusíadas" mas podem ignorar Verney (que detestava Camões), Ribeiro Sanches, Luiz da Cunha, Francisco de Hollanda, Ribeiro de Macedo, Herculano, ou os polemistas do século XIX.

Mas o que está em causa é "um presidente que dê a ideia de ser um homem culto". A ideia é que ele respeite "a cultura" (a gente que assina documentos públicos e tem poder no "sistema cultural" e nas "associações do sector"), os músicos e os cineastas. Não é má ideia, tirando que a literatura não se faz nas "associações do sector" e que a cultura não é propriedade do "sistema cultural" e do complexo de cargos para que há nomeações e comissariados. O que me incomoda, e sempre incomodou, é a imagem do político que gosta de reunir essa gente e que treme de comoção quando "os artistas" lhe dizem que estão muito honrados por serem aceites na corte.

Um presidente que respeite a cultura e que não suborne os escritores, os músicos, os pintores, é bom. É magnífico. Mas eu prefiro que, além disso, o presidente deixe "a cultura" em paz e que, em vez disso, seja honesto, imune a pressões corporativas e pedidos de favorecimento, e seja incapaz de pressionar "a cultura".

Quais são os livros de Soares? Ah, "Os Lusíadas", a "Peregrinação", etc.. E quais são os livros de Alegre? Ah, "Os Lusíadas", a "Peregrinação", etc.. E quais são os livros de Cavaco? Ah, "Os Lusíadas", a "Peregrinação", etc.. Esqueci-me de Pessoa e de Eça ou Camilo, mas o leitor fará a lista mentalmente. Ora, esses livros são os "nossos livros", o nosso cânone e, curiosamente, livros que até já nem se estudam nas nossas escolas por obra e graça dos ministros da Educação desde os anos 80.

Como cada um deles lê "Os Lusíadas"? Não me interessa. Se eu quiser especialistas em Camões, leio Jorge de Sena, Graça Moura, Hélder Macedo, Aguiar e Silva, etc.. Eu quero que ele, o presidente, se ocupe do país, não que me dê más lições de literatura.

Se as eleições se transformassem numa sabatina, até imagino que teríamos uma surpresa. Mas eu não gostaria de ver os cidadãos mergulhados nessa metafísica tarefa de comparar conhecimentos literários. Seria um espectáculo triste.

Jornal de Notícias - 1 de Dezembro 2005