setembro 30, 2004

Apologia de Sócrates

Ao contrário do que supõem os excelentes mestres da Esquerda, os cidadãos não estão interessados em grandes esforços. Um certo esgotamento em relação à política tomou conta do eleitorado - não estão disponíveis para grandes "fracturas". Eu dou-lhes razão. A maior parte dos geniais pensadores da Esquerda que trabalha no Estado ou no sector público vem da Assembleia da República ou da Universidade; pode pensar à vontade, brilhar na Imprensa e falar de coisas que não têm sentido para a maioria dos cidadãos - por isso estão dispostos a sacrificar uma parte da sua liberdade e do seu prestígio (porque lhes foram ambos garantidos) em nome de valores ideológicos. A maioria dos cidadãos não gosta de abdicar nem da sua liberdade nem da possibilidade de mudar de opinião; conhece o valor de ambas, porque nunca lhe foram garantidas. Sabe que a "depressão nacional" não é um conceito discutível no divã - existe porque há depressão económica, porque falta dinheiro, porque as coisas estão difíceis.

A maioria dos cidadãos anda de autocarro e dá valor a coisas insignificantes. Preza os intelectuais mas não gosta de sugestões sobre moral e compromissos. Tem a noção do ridículo, mas reconhece a hipocrisia à distância, a impostura. A maioria dos cidadãos até pode achar que o dr. Louçã tem razão em algumas coisas - mas teme-lhe o dedo levantado, a ameaça de Torquemada, a insensatez de quem acha que tem mesmo razão em tudo o que fala. A maioria dos cidadãos conhece os perigos reais: as filas de espera nos centros de Saúde, os preços dos manuais escolares, os orçamentos familiares reduzidos, as prestações mensais. E, farta de conhecer esses perigos, comete os disparates que se conhecem: endividamento sucessivo, gastos desnecessários. Porque a vida tem um preço elevado em relação ao tempo de que dispõem para a gozar. Os mestres dizem que o preço dos romances de José Saramago não é tão elevado como o dos bilhetes de futebol ou dos telemóveis - mas a maioria dos cidadãos acha que tem direito à sua pequena estupidez, gastando parte do seu orçamento em coisas inúteis - porque a vida também é inútil, muitas vezes, e não querem viver amargurados todos os dias do ano. É essa a razão porque aceita o combate ao défice: que o combata o Governo, que pode, mas que não lhe estendam a factura diariamente, lembrando-lhes sacrifícios. A maioria dos cidadãos está habituada a eles, farta deles, farta das operações bancárias, farta do crédito malparado.

A maioria dos cidadãos é ligeiramente amoral, acha graça aos cafajestes, mas não os quer no Governo. Acha que eles devem gozar, sim, mas "cá fora", onde são inofensivos e onde se divertem às suas custas. A menos que haja compensações. A maioria dos cidadãos não gostaria de estar no "Big brother", e não acha que seja prestigiante estar lá - mas aprecia quando um bando de palermas se dispõe a fazer figuras ridículas. É por isso que a maioria dos cidadãos despreza o seu "jet set" lusitano, cheio de imbecis e de gente vulgar, incapaz de dar um exemplo; não lhe tem respeito, não o acha decente. Faz bem. A maioria dos cidadãos diverte-se com as pilantrices de Santana Lopes (e despreza os moralistas), mas preferia em São Bento alguém que lhe dê garantia e que não passe a vida em rumbas passionais. A maioria dos cidadãos percebe de política.

Por isso, José Sócrates percebeu que não pode partir em campanha pelo país a fim de evangelizar e educar o eleitorado, como pretende a Esquerda - ele dirá, simplesmente, que vai ser primeiro-ministro. A sua frase será "Adeus, Santana Lopes". Vai ser assim durante dois anos, em fogo lento, com ligeiras ebulições, até que Santana Lopes, deprimido ou aliviado, regresse ao seu mundo.

Jornal de Notícias - 30 de Setembro de 2004

setembro 29, 2004

Um pouco de biografia

Francisco José Pereira de Almeida Viegas, conhecido do grande público pelo seu percurso jornalístico, é sobretudo um escritor versátil que já publicou obras de divulgação, de poesia, romances, contos, teatro e relatos de viagens. Nascido em 14 de Março de 1962, em Vila Nova de Foz Côa, viveu na aldeia de Pocinho (Alto Douro) até aos oito anos, altura em que os pais, ambos professores primários, se mudaram para Chaves.

As reminiscências de uma infância passada no campo servem-lhe frequentemente de referência para a escrita, nomeadamente no primeiro romance, Regresso por um Rio, que o autor caracterizou como «um cântico de louvor e de saudades, da minha terra, dos meus lugares, do meu rio, da minha família, da minha infância». Além de ser a última paragem da ferrovia do Douro, percurso apreciado pelo esplendor de uma beleza natural ímpar, que o autor viria a homenagear no álbum Comboios Portugueses, a aldeia de Pocinho está situada na confluência de três rios, o Sabor, o Côa e o Douro. Resulta talvez daí, além da metáfora e do simbolismo próprio do elemento água, a imagem recorrente do Rio presente na poesia e na prosa de Viegas, uma vez que, apesar de cultivar géneros diversos, a suas obras apresentam perspectivas temáticas e referenciais comuns.

Para o autor, o género poético situa-se fora da literatura, como se se tratasse de uma arte distinta dos restantes géneros literários, algo que emerge do sentimento religioso, uma vez que, segundo considera: a Poesia «não deriva da linguagem mas do sagrado». Deste modo, muitos dos seus textos reflectem uma demanda religiosa que o levou a abandonar o catolicismo da sua tradição e a converter-se à religião judaica.

O poeta João Luís Barreto Guimarães caracteriza a obra poética de Francisco José Viegas como «envolvente e melancólica, lugar da perda e da inevitabilidade, palco de um recorrente apelo ao ancestral em que a partida e o regresso reflectem aturadamente a eterna procura de um lugar onde mereça a pena existir». Para Fernando Pinto do Amaral tratam-se de poemas próximos de «um equilíbrio entre o real, os sentidos e a memória».

Escritor multifacetado, Francisco José Viegas afirma, por outro lado, que «toda a literatura é policial», tendo parodiado em vários romances, desde 1989, um género que admira, no qual conjuga a prosa poética, a gastronomia, o futebol (outras das suas paixões) e os lugares a que o ligam elos emocionais: Açores, Galiza, México, Irlanda, Escandinávia, Brasil. Naqueles romances aborda questões como a solidão masculina, o desencontro, o desencanto, dúvidas existenciais e pequenos prazeres. O crime é apenas o mote para enredos centrados na relação de amizade entre as duas personagens principais que criou, a dupla de inspectores Jaime Ramos e Filipe Castanheira. Alguns dos seus policiais (Um Crime na Exposição e Um Crime Capital) foram publicados, em jeito de folhetim, nos jornais Diário de Notícias e Jornal de Notícias, respectivamente.

O seu mais recente romance, Lourenço Marques (2002), foi sendo escrito e reescrito durante sete anos. O plano inicial contemplava mais uma aventura da dupla Ramos/Castanheira, mas a narrativa foi amadurecendo até se transformar numa história de amor e nostalgia em que a “averiguação” gira em torno da alegria da «África dos portugueses», evitando e circundando o complexo colonial. O escritor angolano José Eduardo Agualusa refere-se a este romance como parecendo «ter sido escrito por um africano».

Licenciado em Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa, leccionou Linguística (Teoria do Texto, Semântica e Teoria da Linguagem) na Universidade de Évora entre 1983 e 1987. O Alentejo, aliás, viria a marcar a sua escrita, também muito influenciada pela cultura açoriana, galega, irlandesa e africana, como se Francisco José Viegas preferisse os últimos redutos de uma vivência autêntica, em que reencontra a infância transmontana, ao cosmopolitanismo das grandes cidades onde o indivíduo perde a identidade no meio da multidão.

Perante a possibilidade de prosseguir a carreira académica, o autor optou pelo jornalismo, onde já se estreara enquanto crítico literário. Colaborou nos periódicos Jornal de Letras, Expresso e Semanário e foi editor da área cultural de um semanário de curta duração, O Liberal. Em 1987 tornou-se chefe de redacção da revista trimestral Ler, cuja qualidade de formato e conteúdos, à época inovadores no nosso país, muito deveram à direcção de Viegas entre 1989 e 2000. Foi talvez o único escritor português que dirigiu em simultâneo uma revista literária e um jornal desportivo (o quadrissemanário Gazeta dos Desportos, em 1995).

Enquanto divulgador cultural, as qualidades inovadoras de Francisco José Viegas manifestaram-se também em programas cujo formato é pouco usual nas televisões portuguesas: a promoção do Livro e dos Autores Portugueses em «Escrita em Dia» (na SIC) e «Ler para Crer» (na RTP2). Foi editor da revista Oceanos – publicada pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – e director da revista de grande informação Grande Reportagem, tendo colaborado em quase todos os principais órgãos de comunicação social portugueses: na imprensa (O Jornal, Sete, Jornal de Notícias, Visão, Diário de Notícias, O Independente, Record), na televisão («Falatório», «Prazeres», «Primeira Página» e «Avenida Brasil», para a RTP), na rádio (TSF, Antena 1, RCL). Mantém alguns blogs sobre temas variados: língua portuguesa, gastronomia, música, viagens... É responsável pelo único programa totalmente dedicado à literatura actualmente em exibição na televisão portuguesa – «Livro Aberto», na RTPN – além de apresentar e conceber o magazine radiofónico «Escrita em Dia», na Antena 1.

Franscisco José Viegas reside actualmente no Brasil, onde se dedica à literatura, não tendo, no entanto, deixado de colaborar regularmente na imprensa portuguesa com crónicas, comentários e artigos.

in "Centro de Documentação de Autores Portugueses" 09/2004

setembro 23, 2004

Mais uma trapalhada

Parece que o problema das colocações de professores é, de acordo com a melhor das investigações, informática. Todos estamos habituados a essa resposta. A gente vai a um banco e não pode fazer esta ou aquela operação; motivo: "o sistema" não funciona. Na "sociedade de informação", eufemismo criado para designar um mundo onde a circulação de dados se faz pelas redes informáticas (em princípio, acessíveis a toda a gente com um computador), os dados não circulam na rede informática. O absurdo da frase não invalida que a ideia esteja certa. Problema português. O "sistema" é o inimigo número um da própria sociedade - ou seja, das pessoas reais, uma categoria em desaparecimento acelerado, para vantagem das pessoas virtuais, aquelas de quem o Estado gosta de falar, e para quem gosta de falar.

Já perdi um avião por causa do sistema, e deixei de enviar uma crónica para este bom jornal por causa "do sistema". O "sistema" é inimigo das pessoas.

Num mundo em que os grandes sistemas informáticos permitem o cruzamento de dados, a vigilância de pessoas e de bens, arquivo de informações e nomes, há empresas portuguesas capazes de listar - num minuto - mais de um milhão de nomes relacionados com o consumo de detergentes domésticos ou de automóveis importados. Toda a gente sabe que é assim. Em pouco tempo, podemos saber quantos portugueses se deslocam ao estrangeiro, quantos votam regularmente (tarefa cada vez mais fácil, aliás, tendo em conta o crescimento da abstenção), quantos estão no desemprego e quantos são do Benfica. Só uma coisa os computadores não estão aptos ou preparados para fazer: determinar onde são colocados milhares de professores.

O facto de o ano lectivo começar com uma ou duas semanas de atraso é grave, embora não adquira foros de escândalo ou de hecatombe - tirando os problemas para as famílias, evidentemente, que deviam ser ponderados sempre em primeiro lugar. Não haver, até agora, uma explicação inteiramente satisfatória para o fenómeno é ainda mais grave. E é mais uma trapalhada. Esta clara incompetência devia ser castigada e servir de exemplo. Mas o facto de os professores não terem sido colocados é, a todos os títulos, quase vergonhoso. Não se compreende que "o sistema" falhe a este ponto e deixe milhares de cidadãos, de quem o Estado e a sociedade precisam, sem resposta nem informações.

Ora, o que se conclui (e se confirma) é que o Estado é naturalmente incompetente. No Ministério da Educação, existe uma renovável capacidade de evidenciar essa qualidade incontestável. Cada ministro que entra tem, em primeiro lugar, de negociar com uma vasta lista de interesses, lóbis, aptidões, ideias gerais, pedagogos e pedagogas (que cresceram na frustração de verem que o Mundo não gosta deles), e burocratas que, da Avenida 5 de Outubro, se foram transformando em proprietários das escolas e da educação públicas. Não há nada a fazer. Quem enfrenta esse pelotão está, naturalmente, fuzilado.

Uma ideia é, naturalmente, a de transferir para as escolas, com concursos transparentes, vigiados e públicos, a responsabilidade pela colocação e captação de professores. Não me parece uma coisa estapafúrdia. Pelo contrário, seria benéfico para a qualidade de ensino e para a vida dos professores, sem mencionar o mais importante - para os alunos.

Mas isso significa tirar uma boa parte do negócio aos cavalheiros da Informática (que não funciona) do Ministério da Educação, não é? Deus nos livre de ter a dra. Teixeira e o dr. Sucena de acordo.

Jornal de Notícias - 23 de Setembro de 2004

setembro 16, 2004

Futebol, já

Se bem se lembram, oito dias depois da final com a Grécia (já não se lembram, não é?) já os portugueses - e as portuguesas, como dizem os políticos, nas suas declarações públicas - pensavam na "crise política" e na formação de um novo Governo. Mas algumas coisas ficaram: as bandeiras penduradas nas casas e presas aos tejadilhos dos carros, os nomes dos jogadores e, sobretudo, esse nome estranho e confuso gritado em estádios, ruas, supermercados, repartições, pracetas, bombas de gasolina: "Portugaaaaaale!"

Como vi a maior parte dos jogos fora do país, ao regressar à Pátria, na altura, vi-a completamente modificada. Em primeiro lugar, nunca julguei que fôssemos tantos - nem tantas. Tinha saído de Portugal e sabia que éramos vagamente uns milhões; uns milhões tímidos, mas uns milhões. Quando regressei, éramos já uns milhões valentes e decididos. Multiplicámo-nos. Sobretudo as mulheres - multiplicaram-se. Eu sabia que havia bastantes e que o seu número era superior ao dos homens, mas não imaginava que fossem tantas, tão efusivas e tão explícitas. Há muito tempo que não via tantos umbigos de portuguesas pela televisão: redondos, morenos, cavos, quase lisos, dissimulados por piercings, gordinhos, pálidos, esticados, mas umbigos. E decotes, sim, a televisão revelou os decotes portugueses e comuns, acessíveis, compreensivos, extensos, francos, com donaire, desembaraçados, indiciando - peço perdão pelo meu olho lúbrico - seios generosos, destemidos, espirituosos, magnânimos, elegantes, matreiros.

O outro reduto a ser ultrapassado foi o controlo da televisão. Até aqui propriedade exclusiva ou prioritária dos homens, houve casos em que assistimos a uma alteração radical do equilíbrio de forças nas famílias portuguesas. "Deixa-me ver o Telejornal…", pedia o marido. "Nem penses, quero ver o República Checa-Alemanha", dizia ela. Voltava ele: "Mas ninguém se interessa pela Alemanha, não é do nosso grupo." Ela: "Interesso-me eu pelos checos, há aquele jogador de pernas rápidas, o Baros, marcou não sei quantos golos. E é pena que o árbitro não seja o Frisk." Ele: "Está bem." À noite, no doce aconchego do leito conjugal, ele prepara-se para ler mais um quarto de página de um romance de José Saramago quando ela se aproxima, estendendo o braço, os corpos no Verão têm um calor estranho: "Achas que ele vai meter o Postiga de início?" Ele: "Quem?" Ela: "O Scolari. Achas que ele vai pôr o Postiga logo no princípio?" Ele: "É um miúdo." Ela: "Também o Cristiano Ronaldo, vê no que deu." Ele reabre o Saramago e avança pela oitava linha do seu quarto de página quando, de repente, ouve uma voz: "Ele joga bem, mas é um bocadinho magro de mais." Volta-se para ela: "Quem?" Ela: "O Ricardo Carvalho. Mas defende bem, só que não tem os músculos do Couto. Não se compara. O Scolari também foi defesa. Não te esqueças de comprar a cerveja para o jogo de amanhã. É pena que o árbitro não seja o Frisk." Ele: "Está bem." Não chegou a completar o seu quarto de página do romance. Ela, a terminar: "Por que é que o Frisk não pode arbitrar jogos em Portugal?" As feministas nunca imaginaram que o futebol as libertasse.

Ao fim de uns meses de outro hemisfério, peço humildemente que organizem já outro Euro. Isto, assim, está enfadonho, como de costume. Portugal anda com má cara. Desculpem-me pelo facto de me interessar cada vez menos pela política e pelas piruetas do Bloco de Esquerda - mas os telejornais não ajudam.

P.S.: Não vi o dr. Bagão Félix em directo. Mas ouvi e li as críticas da Esquerda. Estou quase a acreditar que o ministro falou bem.

Jornal de Notícias - 16 de Setembro de 2004

setembro 09, 2004

As ilusões do Beslan

Um dia destes, num telejornal, um actor de Tomar explicava o essencial sobre a lenda e o pouco que se conhece acerca de Viriato, o chefe dos Lusitanos - a propósito da encenação da sua história num espectáculo montado diante do belo cenário de Almourol. Heroísmo, honra, casamento, intriga, nacionalismo. E a perfídia do império romano, naturalmente, que liquidou Viriato à traição - e ocupou a maior parte da Península. Trezentos anos depois, o império romano cairia. Não por causa de Viriato, com certeza, mas porque a vida dos impérios está escrita com esse desfecho à espreita; nenhum sobreviveu até hoje. "O império americano também vai cair", acrescentava o actor, em tom de "moral da história" e avisando-nos a todos, incautos que somos.

Esta certeza absoluta é impossível de contrariar e não custa a admitir a excelência do paralelismo. A queda do império romano, sabemos hoje, não foi a ruína da Humanidade senão durante uns séculos; a questão está em saber que ordem substituirá a convulsão dos nossos tempos de crise. O cenário não é deslumbrante.

Daqui a dois dias, assinala-se o 11 de Setembro quando o Mundo ainda tem o pesadelo de Beslan para recordar. O terror invadiu a nossa época, mas nem isso é um lamento - não se trata de uma invenção moderna. A história da Europa está cheia de revelações nessa matéria, e de ensinamentos. A banalização do mal também não é uma novidade - há 50 anos, o Mundo reconhecia, estupefacto e traído, os limites do mal executado friamente em Auschwitz, Dachau, Bergen-Belsen; 20 anos depois, por muito que custasse à tendência dominante do pensamento europeu, a mesma parte do Mundo assistia, com a amargura de quem vê ruir as utopias mais modernas, a revelações brutais sobre o Gulag soviético. Os poetas da época assinalaram o nosso silêncio; como seria possível a poesia depois de Auschwitz? Brodsky, Akhmatova, Mandelstam e outros perguntaram-nos como seria possível a vida depois do Gulag. As interrogações desse tipo não acabam, porque as utopias fabricaram sempre os seus campos de morte e nem sempre puderam escondê-los por muito tempo.

O massacre de crianças, por muito que nos custe a admitir, também não é novidade. Temos uma longa tradição de horror pela frente e a imagem que o espelho devolve, quando o Ocidente e o Oriente se olham nele, nem sempre é decente. Mas pressinto que a sensação de estarmos diante do mal absoluto começa a desaparecer, face à repetição de massacres que já não chocam; são apenas factos repetidos no interior de uma tradição de barbárie. O que sabemos de Beslan não esconde o que conhecemos de Grozny, de que pouco resta, e onde as tropas russas muitas vezes ignoravam quem estavam a combater.

Tudo bem que o império americano termine, nem que seja para não desiludir o actor que em Almourol interpreta Viriato, o rebelde lusitano que recusava a lei romana e não se deixava governar por ela. O problema está em saber que mundo lhe sucede e em determinar o que recusamos dessa ordem imperial. Eu temo bastante que já tivéssemos desenhado o seu sucessor. Mas se Bassaiev e as suas viúvas negras vierem a substituir os governos fantoches de Putin na Chechénia, então tenho as minhas dúvidas.

P.S.: Há qualquer coisa de intrigante na forma como a Esquerda se tem entretido a eleger o aborto como a sua bandeira. É certo que existem outras bandeiras, outras causas, mas a euforia dos intervenientes deixa de fora poucas hipóteses (tirando a de Manuel Alegre, evidentemente, que parece consistir em dizer "eu sou de Esquerda" até à exaustão).

Jornal de Notícias - 9 de Setembro de 2004

setembro 02, 2004

A santa aliança

É inegável que a questão do aborto se transformou em matéria de confronto político. Fora da Pátria, vejo pela televisão o dr. Louçã, desgrenhado, em directo, acusando todos os que lhe apetece. Bem vistas as coisas, não se lhe pode criticar nem a pose nem o método. São muito dele ambas as coisas. O dr. Portas, o do Governo, responde-lhe como um espelho; tanto a pose como o método são muito dele, igualmente. Diante do sorriso cheio de acidez moralista do líder do Bloco, o líder do PP expõe o seu melhor tom escandalizado diante dos desvarios da moral pública. Ambos são moralistas, cada um à sua maneira; um, no tom e na arrecadação de certezas; outro, na raiz quadrada dos seus discursos. Graças a eles e aos seus vários acólitos, a discussão sobre o aborto transformou-se numa guerrilha moral e política sem sentido, impedindo que possa ser encontrada uma solução moderada e aceitável que não ponha a sociedade em balbúrdia e que impeça a histeria de aumentar descontroladamente.

A ideia de transformar o barco holandês em símbolo da liberdade é um manifesto exagero que desvaloriza e inviabiliza qualquer entendimento sobre a matéria (o aborto); a decisão de avocar meios militares para defender a pureza virginal das nossas águas da Figueira da Foz é tão estapafúrdia que nem merece riso, mas sim condenação. Com o tempo, e conforme o previsto, esta radicalização do universo político, emprestando-lhe tons militares e linguagem de espalhafato, é um retrato perfeito do país. Depois do "bloco central", segue-se o "esvaziamento do centro", confirmando que estamos destinados a viver entre o oito e o oitenta: a Esquerda prisioneira das "propostas fracturantes" e a Direita prisioneira do papismo moral. Nenhum lugar para a tolerância e para o entendimento. Está tudo como eles queriam.

A breve prazo, isto terá consequências, sobretudo para a Direita, evidentemente: o seu discurso sobre a moralidade, as virtudes morais, a rigidez dos princípios e as doutrinas inquestionáveis, não tem ponta por onde se lhe pegue. Mais tarde ou mais cedo, abrirá brechas onde menos se espera. O discurso da Direita, nesta matéria da moral, ainda "não deu a volta": à mínima escorregadela, invoca os deuses e os princípios; acossada, vai buscar métodos de antigamente, levanta o dedo indicador, pertinaz e pernóstico. É uma desgraça. E uma pena. E uma falta de inteligência.

O bispo D. Januário Torgal Ferreira, de quem a Esquerda gosta de aproveitar as frases conforme as conveniências, deu o tom: "Ninguém pode impedir a liberdade de expressão". Afrontar o folclore da Esquerda televisiva com meios militares, revistas a embarcações, solenidades escusadas, direito marítimo e internacional, fotografias de fetos e o ar de quem acaba de descobrir que o Mundo tem destas coisas, é a resposta mais risível de todas. Aquela lengalenga sobre "o direito à barriga" e o "não te prives" é deplorável, sim, e folclórica; mas esta exibição militar de segunda ordem é o Verde Gaio em defesa da moral e do Tratado de Zamora.

O dr. Louçã diz que o Ministério da Defesa e do Mar não é propriamente o da Saúde. Tem razão - mas o barco holandês também não é uma dependência da rede pública de hospitais. O seu espelho no Governo, o dr. Portas, responde-lhe com fragatas e exercícios militares. Estão bem um para o outro. Uma santa aliança.

Jornal de Notícias - 2 de Setembro de 2004