julho 30, 2005

Entrevista no Mil Folhas

Francisco José Viegas foi professor universitário, é escritor e jornalista. Durante 14 anos dirigiu a revista "Ler". Actualmente tem um programa sobre livros na televisão, Livro Aberto (na RTPN e na RTP2), e um programa de radio, Escrita em Dia (na Antena 1). Continua a escrever crónicas no "Jornal de Noticias", na revista "Elle". Publica receitas que qualquer pessoa pode seguir na "Grande Reportagem" (de que foi director, no período pós Miguel Sousa Tavares) e na "Volta ao Mundo", revista para a qual também faz reportagens de viagens. Esse amor pela confecção de alimentos vai transformar-se, ainda este ano, num progra­ma de cozinha, a passar na RTP2, onde Viegas irá cozinhar em diferentes cozinhas de convidados.

Há vários anos inventou uma personagem, com a qual entrou no mundo da literatura: Jaime Ramos, um detective do Porto. "As Duas Aguas do Mar", "Um Céu Demasiado Azul", "Um Crime Capital", "Morte no Estádio" e "Um Crime na exposição" são os livros on­de ele aparece. E agora em "Longe de Manaus" (todos publicados pela Asa).

Mantém alguns blogues, uns com mais regularidade do que outros: o Aviz (pessoal), o Gávea (sobre literatura brasileira), o Livro Aberto (sobre o programa) e por fim, em teoria, mantém uma colaborarão no Fora do Mundo. Isto dos blogues a certa altura deu em "vicio". Tinha de “postar” todos os dias. Uma hora por dia era sagrada na dedicação ao blogue. Foi aliás agarrado a um computador portátil que transporta consigo numa mochila que o Mil Folhas o foi encontrar num hotel de Lisboa, onde decorreu esta entrevista.
Estava de partida mais uma vez para o Brasil. E já tinha escritos num caderninho preto, Moleskine, alguns capítulos da próxima história de Jaime Ramos.


"Lourenco Marques", o seu romance anterior, que foi um sucesso de vendas, não tinha a per­sonagem Jaime Ramos. Como é que foi regressar ao seu detective?
O "Lourenço Marques" estava para ter o Jaime Ramos, mas percebi que não podia. A ideia desse livro apareceu-me quando estive em Moçambique, pela primeira vez, em 1995. Aconteceu-me o que normalmente acontece quando vou a um sitio novo. Penso sempre: "Aqui dava para fazer uma história!" Nessa altura, escrevi os primeiros capítulos de uma história policial. Quando voltei pela segunda vez a Moçambique, meses depois, apanhei uma história com­pletamente diferente.

Qual era?
Era a história dos portugueses de Moçambique. Que me reenviava também para o tempo em que era um miúdo de liceu, quando começaram a chegar os retornados. Ti­nha família em África que regressou nessa altura e o contacto com eles permitiu ver que tinham uma cultura diferente, outros hábitos alimentares. um corpo mais disponível, mais “mostrável”.
Sempre quis escrever sobre essa África dos Portugueses. Pegar naqueles Portugueses e contar que tinham tido uma vida feliz em África. Ou seja, permitir que eles dissessem a frase, que é muito Karen Blixen: "Eu tive uma quinta em África". Durante muito tempo isso era impossível, politicamente incorrecto, essa gente esteve durante muito tempo escondida, não podia mostrar o seu grau de felicidade na memória.

Porque é que não podia ser uma história com Jai­me Ramos?
Porque era muito diferente de uma história policial. Era uma história sobre memórias, sobre medos, sobre perdição. Como costumo dizer, tinha um contrato com o Jaime Ramos há muito tempo e portanto tinha de Ihe dar trabalho. Por outro lado, queria continuar, de certa a mane ira, o trabalho de "Lourenço Marques". Ou seja, o trabalho daqueles Portugueses que não estão em Portugal, que vivem fora e que têm uma má relação com o país mesmo assim.
A certa atura isso revelou-se-me. Estava em Timor, muito longe, no velho hotel Timor, onde há uma mesa enorme que todas as sextas-feiras era ocupada com um jantar com Portugueses que estavam lá. Eram novos, bonitos e reuniam-se para falar mal de Portugal com uma grande ternura e dedicação. Quis escrever sobre este tipo de sentimento anti-português e, ao mesmo tempo, sobre a solidão de quem está fora e não quer voltar de maneira nenhuma para Portugal. Alguém cuja única identidade é o passaporte, os sítios por onde se passa, sendo português por esses sítios todos.

Acabou por encontrar uma história real. Como chegou a ela?
Através de um jornal ("Jornal de Noticias"). É a história de um homem que é assassinado e não tem em sua posse documentos, só um passaporte. Em conversas com "contactos" da Judiciaria, acabei depois por inventar esta história de um português que viveu sempre fora de Portugal, que procurou a sua feli­cidade longe, longe. Por outro lado havia a ideia, já antiga, de fazer uma coisa com Brasil dentro. Não só tenho uma relação especial com o Brasil, já ha muitos anos, como tive a sensação de querer fazer algo deste género a primeira vez que cheguei a Manaus para fazer o programa de televisão Avenida Brasil, nos 500 anos da descoberta do Brasil. Subi o Amazonas de barco e quando se sobe a primeira vez é avassalador. Quando se está no meio do rio, há vários pontos em que se olha para a margem direita, vê-se essa margem, mas já não se vê a margem esquerda: é largo, imenso.

E a cidade?
É espantosa para quem chega de barco. Manaus é uma cidade tão grande que ninguém se encontra e ninguém se perde, pois realmente não há nada para perder porque está tudo rodeado de floresta. Uma ilha rodeada de floresta e de agua é Manaus. E é uma cidade onde chegou todo o tipo de gente.

De que género?
Toda a gente. Por exemplo, a comunidade judaica portuguesa no início do século XX cm Manaus era enorme. Os Portugueses que vieram de Mazagão foram para a Amazónia, não para ai exactamente, mas um pouco mais para cima para o Amapá, mas muitos deles também chegaram depois a Manaus. Os libaneses e sírios que foram para Manaus, uma das tradições é fixada pelo MilIon Hatoum, que é, de facto, o grande escritor de Manaus; os índios de Manaus; os Portugueses e os ingleses da borracha. Aquela cidade é fabulosa! Tem o símbolo maior da loucura luso-brasileira que é o Teatro Amazonas, a Ope­ra de Manaus. A única coisa realmente brasileira além das obras de pintura do Crispim do Amaral são as madeiras e nem todas, tudo o resto veio da Europa, os cristais, os tecidos, tudo c europeu! Há toda aquela mitologia do filme com o Klaus Kinski, "Fitzcarraldo", de Werner Herzog e a mitologia de que o Caruso esteve lá. Ele nunca esteve lá! O Teatro Amazonas encerrou depois do ciclo da borracha, já não havia dinheiro, e uma das ultimas pessoas a tocar lá foi o Villa-Lobos. Nos livros falamos daquilo que gostamos.

Pode visitar-se tal como fez o Jaime Ramos no livro?
O Teatro Amazonas está aberto a visitas e tem actividades, concertos. Com a zona franca, Manaus transformou-se numa metrópole onde tudo é possível, desde a maior corrupção, a maior onda de criminalidade. Ali­ás um dos acontecimentos do Iivro — o assassínio daquelas meninas no barco — aconteceu há um ano com deputados e médicos. Ma­naus é um sitio impossível, nunca se encontra ninguém, nunca se perde ninguém. É tudo muito flutuante. O próprio bairro flutuante de Ma­naus é a metáfora da cidade. Tem aqueles sabores — o tucupi, tem aquela poeira da Amazónia, tem o cheiro do rio que as vezes não é agradável, tem os aromas do mercado, das ervas. Por um lado é muito afrodisíaco e, por outro, é muito perigoso, pois nunca se sabe se uma das ervas é maligna ou não. Quem vive em Manaus tem a noção de que só pode sair dali ou de barco ou de avião e de barco a viagem é muito longa. Aquela praça diante do Teatro Amazonas que tem buganvílias é estranhíssima. E a memória dos portugueses, Lisboa teve um rabino que era casado com uma senhora de Manaus.

Quanta ao titulo do Iivro, "Longe de Manaus". Por­quê?
Precisava de um sitio onde um português se refugiasse. Os Portugueses escondiam-se onde? Na Bahia, no Nordeste, porque têm aquela noção dos Mares do Sul. Para qualquer europeu, os mares do Sul, são azuis, claros... É mentira, não são nada disso. Os mares do Sul são horríveis, tem ventanias, são escuros. Basta ler o (Francisco) Coloane, chegar à Patagónia, ao Chile e à Argentina para perceber isso. Encontrei um português que se escondeu em Manaus, mas para fugir para lá ele tinha de ter uma razão qualquer, ou vai para lá fugido, fugido mesmo, ou chega lá através de alguém: foi aí que quis meter os libaneses de Manaus, que eram personagens fantásticos.

Dai a história do delegado Osmar Santos.
Vi uma exposição justamente em Manaus sobre a emigração de árabes, sírios e libaneses para lá e fiquei maravilhado. Além de ser gente muito bonita, manteve as suas tradições e muitos deles, que saíram de Manaus para São Paulo, tornaram-se pessoas importantíssimas. E a memória deles era encantadora. Depois conheci o Milton Hatoum, um dos maiores escritores brasileiros, autor dos livros "Dois Irmãos" e "Relates de Um Certo Oriente" — numa conversa contou-me uma história que era de certo modo a história da família dele, da ida do avô e do pai para Manaus com uma passagem pelo Acre. O Acre antes de ser um estado brasileiro era o território do Acre, foi comprado ao Peru, basicamente. O Acre é onde se cometeram imensos crimes que só dificilmente foram investigados. Aliás, o (jornalista) Zuenir Ventura tem uma história sobre o (seringueiro) Chico Mendes, mas o Acre ainda é mais lon­ge do que se possa imaginar. Aqueles rios estranhos, a floresta, a paisagem aterradora. Também foi muito colonizado por libaneses que iam pelos rios até chegar lá. Este mundo também me interessava. Não como história, mas como paisagem. Tenho a tentação de primeiro procurar a paisagem, o cenário, e só depois escolher a história. Foi sempre assim. E vai voltar a ser assim de novo.

Mas insisto, “Longe de Manaus” porquê?
Porque ha essa sensação de Manaus estar longe de tudo. As personagens estão longe do resto do mundo. Tudo o resto está longe de Manaus. Quando Manaus começa a perder a importância económica no inicio do século XX, com o fim do exclusivo da borracha, ficou perdido e só recuperou com a zona franca que é relativamente nova. A vida das pessoas do Porto, onde se passa parte da história do Iivro, a vida das pessoas de Luanda, tudo está longe de Manaus. Em conver­sa com o (jornalista) Ferreira Fernandes disse-lhe um dia que estava a escrever uma história sobre Manaus. Ele contou-me que a primeira vez que viu Manaus, ele que é de Luanda, pensou: "Isto é Luanda, estou em Luanda!"

O Iivro começa aliás com uma cena de striptease em Luanda. Durante a leitura do Iivro pensamos que a vamos seguir mas...
Aquilo é um plano.

Quem está a ler não sabe.
Depois há um outro plano que se passa numa outra zona qualquer. E a seguir temos planos que também n3o fazem parte da história: os planos da Daniela. São planos, imagens, pedaços de filme.

Quando se acaba de ler o Iivro, pode voltar-se ao principio por se pensar que houve alguma coisa que nos escapou. Quem era aquela mulher da cena do striptease? Vê-se então que era Mara. Mas então , porque é que não sabemos mais sobre isto? Pode ficar a interrogação.
Exacto. Há sempre qual­quer coisa na memória das pessoas que é muito traiçoeira, que se esquece. Isso é um teste também. Esqueces, mas, se tens boa memória, vais lá. É como ver a própria história da Mara. Quando Jaime Ramos, em Manaus, vê aquela fotografia de uma mulher bonita, vestida daquela maneira, com aquele mar azul daquela ilha de Luanda — acontece-me muito vezes essa tentação quando vejo fotografias de há muitos anos, de gente que não conheço, de fazer essa história daquela imagem. Escrevo a partir de fotografias, para descrever o passado procuro uma fonte.

Onde?
Em postais ilustrados, em foto-biografias, em livros ilustrados, em colecções de fotografias de pessoas amigas. A certa altura do livro aparece um retornado a contar na primeira pessoa como é que era a vida no Lobito e em Benguela. Aquelas fotos existem. A personagem diz: "Há tantas pessoas a entrar na agua, só há três pretos e eu conheço-os a todos." É uma foto publicada num livro sobre Angola. Procuro esses materiais dispersos. Ou vou lá, aos sítios, e fotografo.

Uma marca de originalidade deste “Longe de Manaus" é a opção por utilizar a grafia brasileira nos capítulos que se passam no Brasil. Saiu-Ihe assim ou foi premeditado?
Aconteceu por dois motivos. O primeiro foi por uma irritação muito grande contra os Portugueses que acham que são proprietários da língua. Os brasileiros são 180 milhões, fazem o que quiserem da língua portuguesa e têm, feito, felizmente! Queria mostrar que era possível num livro português coexistirem as duas grafias. For outro lado, quando começo a pegar na Daniela fiquei de tal modo apaixonado por ela e pela Helena, que para dar exactamente a imagem que eu tinha da Daniela não a podia pôr a falar português de Portugal. Ela tinha de falar uma outra língua. As próprias enumerações que estão na cabeça dela quando começa a inventariar o passado, tudo aquilo é realmente brasileiro e ela não podia dizer aquilo em português de Portugal. Percebo que alguns leitores ao pegarem no livro sintam estranheza quando a certa altura começam a ver "teto" sem "c"; trema em "sequëncia ", e ainda bem que as pessoas tem essa sensação, porque é uma língua diferente. É impossível falar de comida, de amor, do corpo, das relações afectivas, amorosas em português de Portugal.

Pediu a alguém para corrigir?
Sim, uma pessoa que conheci entretanto, a Patrícia, que me ajudou, foi corrigindo, explicando "isto nós não dizemos assim, dizemos de outra maneira". Por exemplo, a expressão "ir ao cinema" diz-se, mas é mais comum dizer-se "ir no cinema". "Ver um filme" diz-se, mas o mais normal é "assistir a um filme”. Depois há pormenores, mas o grosso eu próprio escrevi. Consigo escrever em português do Brasil sem grandes erros.

Ao mesmo tempo isto e um policial diferente dos outros: tem muitas divagações.
Sempre vivi com esse trauma.

Os leitores habituais do detective Jaime Ramos vão interrogar-se sobre o que está aqui a fazer?
Não, notam que ele envelheceu. Acho que ele se adaptou à idade. É uma personagem com quem eu fiz um contrato no "Morte no Estádio".

Como é isto de ter um personagem que se acompanha, como é que se constrói?
Precisamos de um alter-ego. Para viver uma série de sensações, precisamos de uma personagem. Não é só o Calvin que tem o Hobbes. Na nossa vida também temos vários Hobbes. Não podemos deixar morrer essas pessoas, sob o risco de ficarmos esquizofrénicos. O melhor é encontrar uma personagem para viver isso. Eu sei onde é que ele mora no Porto, na Rua Barão Nova Sintra, sei qual é o café onde ele vai, e isso mantém-se assim. A única pessoa que se esquece da vida do Jaime Ramos é o próprio Jaime Ramos, que nem sabe de que é que a Rosa é professora.
Se por um lado Jaime Ramos tem aquele lado de alter-ego que vive aquelas histórias, por outro é a maneira como eu imagino uma certa pessoa e a construi ao longo de alguns anos. Neste livro, Jaime Ramos encontra uma parte de si. Quando ele se depara com Álvaro Severiano Furtado e diz "este homem não tem biografia, e eu também gostava de ser assim". Descobre esses Portugueses e descobre o seu próprio passado. Porque há também o encontro com o advogado que era seu su­perior hierárquico na guerra na Guiné.

Mas estava a falar de um trauma...
Estava a dizer que sempre tive o trauma das 20 regras para escrever um romance policial do S. S. Van Dine, o criador do detective Philo Vance. No fundo, são as regras do romance policial clássico Ele diz: o narrador do livro sabe tanto como o leitor, não se pode esconder nenhum dado ao leitor, não se pode guardar nada na manga. O investigador não pode ter paixões, nem estados de alma. O investigador é duro ou pelo menos racional, faz a sua própria investigação não está cá com poesias. O crime é um facto. Não há mistérios, não há intervenção de coisas metafísicas. São 20 regras muito precisas. Há uma alteração nesse cânone do policial quando Raymond Chandler escreve o ensaio "The Simple Art of Murder" e muda completamente o sentido da literatura policial. Ou seja, dizendo, a morte é morte, mas a morte tem razões sociais, emocionais, matar não é um divertimento superior. Nós temos um cânone que é o dos policiais clássicos, que são deliciosos, e que têm o crime como um divertimento superior, isto é vamos chegar a, isto por deduções e deduções. E a partir do Chandler e da geração do romance negro americano isso muda muito. Eu sempre vivi com esse trauma do S.S. Van Dine e com aquilo que as pessoas diziam sobre o próprio policial.

Tais como?
As pessoas diziam coisas como: isto não é bem um policial, o policial tem de ser seco e tu não o fazes. Eu também queria assumir claramente, não é que isto não seja um policial, é que se pode fazer um policial de outra maneira, com estados de alma.

Por isso este livro tem no, inicio a frase: “Um romance policial, como se sabe, tem as suas regras. Este não tem."
A mim tanto me fez ser policial como não, é-me completamente indiferente. A ideia de fechar um género entre quatro paredes e muito reaccionária, não faz sentido. O que faz sentido e pegar nas regras e fazer com elas aquilo que nós quisermos. As regras mantêm-se no fundo, estão lá. Ha um crime, há uma investigação, ha um cadáver.

No seu caso há vários.
Ha vários para tornar o cadáver mais barato por livro. (risos). Mas depois como se escreve ou se chega ao processo final, isso é completamente diferente, depende da pessoa e daquilo que se quiser fazer respirar. Depois tem a ver com essa banalização e com esse lugar-comum de que, no policial, as personagens, o meio e o cenário só podem ser negros. O detective tem de ser um pintas, ter aquela linguagem de Lisboa ou do Porto, tem de viver sozinho, ser alcoólico, beber imenso “whisky” e fumar. Isso é uma coisa um bocado desgraçada, no fundo estamos todos a repetir o Dashiell Hammett. Éramos todos Sam Spade ou Mickey Spillane. Isso não funciona. A vida não é assim. Nem os polícias são assim.

Porque e que escolheu o Porto para a cidade do Jaime Ramos, um detective burguês do Porto?
Quando escrevi "A morte no Estádio " que é uma história sobre o Porto não ia pôr um detective de Lisboa. Tirando o França, o detective do Miguel Miranda, que é também do Porto, mas é o maior detective do mundo e é privado, são todos de Lisboa. Este é um polícia, é um burguês, é um tipo que tem o seu café, vive num apartamento que é um quarto-sala, namora uma professora de liceu...

Tem um obsessão pela sua cozinha.
Há coisas que lhe empresto (risos) que ele não tinha a princípio.

Neste livro só há uma receita.
Neste livro só faz arroz de bacalhau. Mas o próximo livro começa com comida. E há a ideia de publicar para o ano as receitas dos livros de Jaime Ramos. O facto de ele gostar de cerveja, de gostar de ir à pesca, não é o detective pintas. Esforço-me por não repetir clichés do tipo que vai aos bares e se deita às quatro da manhã. Ele gosta de se deitar cedo.

Parte das diligências de Jaime Ramos passam-se ainda em Vila Flor. Outra parte do livro decorre ainda em Cabo Verde, uma história paralela. Há alguma razão para isso?
Para preparar o próximo livro precisava do Corsário (personagem de "Longe de Manaus"). Numa história temos as personagens principais de quem na verdade a história nasce e temos personagens que aparecem à nossa frente, tal como na nossa vida. Temos pessoas com quem vivemos, por quem nos apaixonamos e que são nossos amigos para sempre. E temos outras que passam brevemente pela nossa vida, e as personagens são assim. De repente eu precisava de outra coisa. As pessoas perguntam-me a Daniela aparece porquê? Porque me apaixonei por ela.

Ela é importante para percebermos quem é o homem que vai ao banco.
Por isso mesmo também não teríamos Jaime Ramos em Vila Flor se a Rosa não fosse de Vila Flor. Portanto, as coisas não estão desligadas mas reconheço que há umas que aparecem, que flutuam, há a Daniela, a Helena, o Corsário, a Fátima, Amarante. São coisas. Na nossa vida nem tudo é coerente. Nem tudo é um exercício de geometria.

A seguir vamos para Cabo Verde e depois? Vamos para S. Tomé? Ou será que S. Tomé na literatura portuguesa já está arrumado?
Não, não (risos)

Gostava de perceber se há aqui uma estratégia.
Não tem estratégia. Tem a ver com apetites, porque há dois anos fui a Cabo Verde pela primeira vez. E aconteceu-me a mesma coisa. “Isto dava uma história”, aqui, como cenário. Tenho que me fustigar a mim próprio: “Cala-te, não tens aqui uma história.” Mas obviamente que tenho, tenho ali aquela ilha e depois a ilha em frente que é um colosso. Vou fazer um história em Santo Antão. Os cenários, Mindelo, Santo Antão, e mesmo as cidades, como São Paulo, por exemplo, comovem-me muito.

Não estará a entrar num circulo de onde não poderá sair?
Não, não vou. Mas este é o circulo onde vivo e onde vivem aquelas personagens. Se eu vivo assim porque é que as personagens não hão-de viver assim? E perfeitamente normal, O Jaime Ramos vai ao Brasil. E a primeira vez que ele vai ao Brasil e diz que pensa que vai repetir a primeira viagem de um tio. Ele junta tudo como eu junto tudo. Ele junta a viagem do tio com a sua viagem de natureza profissional. E há cenas que não entraram como nos DVD, onde depois existem as partes dos extras. Sabe em que condições um policia viaja? Quando chega à fronteira tem de tirar a pistola, mostrar, fazer declarações. Há uma cena que escrevi com a partida do Jaime Ramos do Porto, escrevê-la para mini foi hilariante, mas entra no próximo.
Depois tento ao máximo evitar repetir os clichés do meu meio. Já aqui tive uma tentação, mas peço a mim próprio para não meter professores universitários nem jornalistas nos livros.

Mas podemos transpor isso para "só meto ex-colónias”.
Porque me tocou muito a quantidade de pessoas que conhecemos na rua e que têm relação com Angola, Moçambique, não se pode ignorar isso. O meu contacto com África foi todo depois da descolonização. Eu só visitei África quando (Angola, Moçambique...) já eram países. O primeiro país que visitei foi a Guiné e quan­do cheguei lá senti: "Tanto me faz que tenha sido portuguesa como não." A única coisa que para mim foi portuguesa é que acabei por ter de ir ao cemitério dos soldados Portugueses em Bissau. Nessa altura, o (jornalista) César Camacho estava a fazer uma viagem com o (oficial do Exercito] Matos Gomes e falou-me de uma personagem fantástica, é a mulher do "Loureço Mar­ques" que fugiu para a ilha e desapareceu. Há pessoas com vidas extraordinárias ligadas a África. Provavelmente eu escreveria da mesma maneira se tivesse o mesmo fascínio pela Europa de leste, mas tenho este fascínio por África. Não sou um africanista, nem sequer sou um especialista em África, mas é um universo que me seduz muito – tal como o da América Latina. Tive uma proposta divertida de um editor brasileiro para escrever um livro que é um “Crime em Frankfurt” e obviamente vai matar o (escritor) Paulo Coelho. Aí provavelmente escreverei só sobre Frankfurt e sobre a Europa. Mas não! Vou meter um português e um brasileiro e vou destruir isso tudo! (gargalhadas) Até há cidades europeias que adoro, mas não tenho o mesmo apetite.

Entrevista de Isabel Coutinho
in Mil Folhas (suplemento do Jornal “Público”), 30 Julho 2005

julho 28, 2005

Pedagogia de quê?

O anúncio da candidatura de Soares à presidência, preparado e calculado há bastante tempo, veio interromper a modorra da política ou reconduzir os caminhos da política para lá dos limites do défice. Os portugueses terão, agora, mais com que se preocupar. Vai ser uma festa. Uma fonte próxima de Soares declarou ao jornal "A Capital" que espera uma campanha alegre e com ideias. Em simultâneo. Vai ser uma festa. Outra fonte próxima mencionou também a necessidade de mais ideias. Portugal vai, finalmente, regurgitar de ideias graças às presidenciais. Vai ser mais do que uma festa, porque se trata, ainda de acordo com essa fonte, um "acto cívico e pedagógico".

Eu compreendo que se trata de um acto cívico dos 35 anos em diante, um dos direitos dos cidadãos é o de poder candidatar-se à presidência da República. Mas não entendo a natureza pedagógica da candidatura presidencial. Admito que o dr. Mário Soares tenha coisas para dizer (o que faz, aliás, num programa de televisão) e que tenha, até, ideias para discutir; o regime deve-lhe bastante e essa dívida tem sido paga em reconhecimento, respeito, silêncio e também veneração - infelizmente, há quem ache que o respeito pelas suas ideias se deve confundir com o respeito pela sua idade, o que é lamentável e o deve desgostar bastante. Não encontro nesta candidatura "virtudes pedagógicas" maiores do que em qualquer outra. A sabedoria que se retira da velhice é boa para relermos Séneca, mas não deve aprisionar-nos quando se trata de política. O pior que se pode fazer a Mário Soares e à sua candidatura é manifestar-lhe o respeitinho moral que fará dele um bonzo da República ou uma velharia aceitável e comovente. Parte da Esquerda vê nessa candidatura a salvação; provavelmente, até Sócrates a acolhe com alívio, ele que foi publicamente humilhado por Soares (que lhe chamou a parte "menos feliz da herança guterrista, pela falta de firmeza nas ideias"): porque esta candidatura "cívica e pedagógica" é entendida como "supranacional" ou apenas "superiormente orientada para o mundo das ideias" (já ouvi isto e ninguém se riu).

Evidentemente que é um erro - e grave - dizer que a idade é um argumento sério contra Soares. No país que tem cada vez mais a mania imbecil da juventude eterna, a velhice merece ser valorizada, mas não idolatrada ou desculpada. E a candidatura de Soares servir-se-á certamente da idade como um valor essencial do seu marketing vejam como o velho combatente regressa; vejam como ele se submete ao confronto; vejam como ele tem, aos 80 anos, coragem de subir ao ringue e de assumir este "acto pedagógico"; vejam como a sua experiência é um valor. E virão então as imagens nos tempos de antena da candidatura: o velho resistente ao fascismo; o republicanismo a reboque; o regresso do exílio; os tempos da luta contra os militares e os comunistas; a primeira eleição presidencial; as suas presidências abertas contra Cavaco, "o gajo"; a sua amizade com "intelectuais e artistas"; a sua participação nas manifestações contra a guerra; e essa biografia avassaladora, cheia de momentos sublimes, de vitórias e de discursos, será servida como um antídoto contra a política e, justamente, contra as ideias. As dele, talvez; mas, certamente, as dos outros. O que estão a fazer a Soares é transformá-lo no semi-deus da democracia. O que é, manifestamente, um perigo para todos. Talvez uma derrota eleitoral o faça descer à terra e ser humano. Nessa altura discutiremos ideias.

P.S. Votei uma vez em Mário Soares nas eleições para a presidência da República porque não queria a vitória de um candidato antiliberal (Freitas do Amaral). Era bom que as pessoas se recordassem desses tempos.

Jornal de Notícias, 28 de Julho 2005

julho 21, 2005

A bandeira da moral

Três dias antes da eleição histórica de Lula da Silva como presidente do Brasil escrevi neste mesmo jornal um artigo cuja ideia geral era "oxalá me engane". Tamanho atrevimento provocou engulhos. Eu não era apenas um perigoso reaccionário - era, também, um homem sem fé, coisa que pouco me incomodou sempre pensei que a fé não tinha nada a ver com a política. A patrulha ideológica não pensou o mesmo; duvidar da excelência de Lula e do PT brasileiro era um pecado venial. Em Portugal, Lula encarnava toda a esperança da Esquerda, coisa que, como escrevi, era uma das tragédias com que o novo presidente teria de viver: ele teria de, no Brasil, redimir as velhas e mais ou menos novas bandeiras que a Esquerda não conseguiu reerguer depois dos anos 70.

De então para cá, as coisas aconteceram e, como eu temia, não me enganei muito desde o anúncio de casos de corrupção até ao assalto do aparelho de Estado por um partido leninista como o PT, que sempre se afirmou como detentor da bandeira da moral e da ética. Acusações e suspeitas de gravíssima corrupção, um homicídio não totalmente resolvido, desvio de fundos, malas e cuecas cheias de dinheiro transitando por Brasília, alianças contranatura com Paulo Maluf (na eleição perdida em São Paulo), com as bases que apoiaram Collor e com o pior do PMDB. E não só: funcionários do partido recrutados para a administração pública e enriquecimento dos cofres do PT, demissões forçadas de funcionários do Planalto acusados de corrupção, escândalos de nepotismo e de protecção a presidentes de instituições públicas (como o Banco Central), além do natural embevecimento com o poder, do peso do marketing e da publicidade, e da confusão entre o partido e o Estado (o Banco do Brasil chegou a patrocinar um jantar de angariação de fundos do partido), sem falar da perseguição a funcionários que também duvidavam da excelência do novo Governo ou que se limitaram a cumprir a lei contra os novos detentores do poder. Agora, isto: um velho aliado (do PT e de Collor, note-se) diz que o PT e a sua cúpula são responsáveis pelo "mensalão", uma propina vergonhosa paga a deputados que votassem conforme as indicações do Governo, a par da existência de corrupção nos Correios. Demissões várias: o próprio presidente do PT (José Genoíno) foi afastado, depois da queda do número dois do governo (José Dirceu, controlador do aparelho de Estado) e do tesoureiro do partido (Delúbio Soares), envolvido em negócios com sacos e malas de dinheiro, além de empréstimos duvidosos ao partido, contraídos junto da banca "aliada" e de empresários e grupos de currículo suspeito.Nada disso põe em causa o Brasil, cuja economia recupera de alguma maneira e cujos pagamentos ao FMI foram antecipados.

Nada disso põe em causa, sequer, a minha "brasilodependência". A Esquerda está mais chocada do que eu. Ao afirmar-se detentora da bandeira da moral e da ética, a Esquerda caiu de novo na armadilha. A "superioridade moral da Esquerda", um valor estalinista (e maoísta) caiu por terra mais uma vez. A única diferença é que isso aconteceu num dos países socialmente mais injustos do "segundo Mundo", juntamente com a queda de campanhas de marketing como o "fome zero" e outras utopias instrumentais, que visavam mudar a realidade, mesmo se a realidade não era aquela.

Esta derrota deveria servir de lição para todos, à Direita e à Esquerda, no Brasil como em Portugal. Ética e moral relevam da esfera individual. O exercício do poder tem pouco a ver com isso - mais com a seriedade do que com a utopia, que é sempre traiçoeira e autoritária. Lula, que vê a sua reeleição em perigo, já aprendeu que a ideia da "superioridade moral da Esquerda" é um engano brutal.

Jornal de Notícias, 21 de Julho 2005

julho 14, 2005

Portugal, apesar de tudo

De vez em quando, o país inteiro (três quartos da população, um quarto do território) dá-se conta de que existe um país incompleto (um quarto da população, três quartos do território). Há vantagens e desvantagens nisso. Uma das vantagens é que se promete sempre completar um pouco mais o "país incompleto" - o país vagamente feito de interior, de estradas menos boas, de escolas sem aquecimento, de aldeias abandonadas e de outras coisas aparentemente incompreensíveis para quem acha ou sabe que Lisboa é, de facto, o centro do mundo, a razão de ser da nossa cultura e do crescimento da nossa economia, um dos motores essenciais dessa economia moderna, financeira, especulativa e democrática, como há uns anos o Porto cumpria algum desse desígnio nacional. O "país incompleto" pesa pouco na balança dos créditos e constitui uma ameaça para o orçamento, cada vez mais apertado quando se trata de financiar "regiões improdutivas". Aconselho os leitores a um passeio por esse interior, de Bragança a Mértola, de Elvas a Sagres.

Ora, esse "país incompleto" (um quarto da população, três quartos do território) é altamente deficitário. Para uma economia estritamente liberal, seria conveniente arrendar esse território e ceder à exploração de uma entidade privada essa parcela populacional. O Estado lucraria imenso e livrar-se-ia de uma grande parte da taxa de analfabetismo, de agricultores humildes, de funcionários da administração pública, de guarda-rios, de professores deslocados e de médicos que ambicionam viver em Lisboa, Porto ou Coimbra. Três quartos da população (ainda que confinados a apenas um quarto do território) talvez não rejubilassem, porque grande parte deles conserva a sua condição de emigrantes na periferia das três maiores cidades, mas os responsáveis pela administração do Estado sorririam à ideia. De vez em quando há problemas em Miranda do Douro, em Portalegre, em Mogadouro, em Almeida, em Pias, na Covilhã ou na ilha do Corvo. Lamentáveis ocorrências apenas explicadas pela incúria e inoportunidade desse "país incompleto".

Sejamos realistas metade do país não rende. Quer dizer: não é prestável do luminoso ponto de vista da rendibilidade económica. De resto, só défice. Esse "país incompleto" é bom apenas por poucos motivos: oferece uma boa área para que as estradas que vêm de Espanha e do resto da Europa atinjam o litoral sem problemas de maior (tirando o IP5 e o IP3), pontuados aqui e ali de bombas de gasolina, de restaurantes e de lojas de artesanato; e é "a terra" de muita gente que vai lá às romarias ou ao jantar de Natal. De resto, são hortas, pastagens e muita pedra. Os agricultores despejam batata na rua porque Espanha a vende mais barata.

Não está posta de parte a hipótese de arrendar essa parcela do território. Ficariam com a bandeira portuguesa, sim. E até se mandariam professores. Mas, que diabo, seriam administrados por uma empresa privada que garantiria que o orçamento de Estado não geraria défices assombrosos com essa terra de ninguém que era bom entregar ao turismo rural e à "literatura fantástica" que se encarregaria de divulgar as suas potencialidades para os fins devidos.

Vêm aí as eleições autárquicas. O país rejubilará com o "mapa laranja" ou o "mapa rosa". Autarcas dinossauros ou estreantes aparecerão nas pantalhas. Os comentadores terão em conta a expressiva votação em Almeida ou em Vimioso, como no Alandroal e em Aviz? Não. Eles sabem que se trata de um quarto da população, três quartos do território. Esse país terá cartazes, outdoors, visitas do Tribunal de Contas. Tem estradas e IP, "acessibilidades" e Pólis, mas duvido muito que perceba as incidências do défice. Está em défice há muito tempo. Devíamos pensar nele por um instante.

Jornal de Notícias, 14 de Julho 2005

julho 08, 2005

Entrevista na TSF

julho 07, 2005

Coisas portuguesas

1. O primeiro-ministro respondeu a todas as perguntas na entrevista que concedeu à SIC. Prometeu não subir mais os impostos e declarou que acreditava no Estado social. Não fez mais do que a sua obrigação. O primeiro-ministro devia esse esclarecimento aos portugueses, ainda que eles saibam que os impostos vão subir mais e que o "Estado social" tem os dias contados.

Vão chegar mais dificuldades. As obrigações para o controlo do défice não deixam muitas hipóteses a qualquer governo decente. Os investimentos públicos anunciados e as parcerias público-privadas contentarão os empresários que vivem na órbita dos grandes projectos e dos "desígnios nacionais" que implicam construção e obras públicas ou grandes investimentos tecnológicos - mas os cidadãos sabem que isso melhorará a sua vida apenas a longo prazo. Fazem contas, como toda a gente e sabem que o curto prazo é o dia seguinte. Sabem que foram cometidos grandes erros, que existe mesmo um "monstro" de que todos querem livrar-se. Mas livrar-se do "monstro" implica custos sociais gravíssimos e que são incompatíveis com o "Estado social" tradicional. As garantias de emprego e de bem-estar estão hipotecadas. A memória está a regressar. E não traz grandes coisas. Todos percebem isso, intimamente, e essa é uma das razões por que as "jornadas de luta" não mobilizam quase ninguém - no dia seguinte, a vida continua, o défice continua, o "monstro" está lá, ninguém arrisca mudar o rumo.

Todos sabem que era necessária uma limpeza. Arrumar as contas tornou-se uma obrigação moral. O presidente da República, que durante os governos de Direita achava que havia vida para lá do défice, converteu-se à linguagem dos números e das necessidades mais cruas. Os socialistas, que murmuravam contra "o défice" e a sua obsessão, arranjaram um ministro das Finanças sitiado, que carregará aos ombros a despesa da impopularidade. Reduzir despesas, cortar privilégios (alguns absolutamente normais), emagrecer orçamentos, tornou-se a única linguagem permitida. Estamos reduzidos a essas parcelas, o que é mau para a política, embora seja razoável para as contas públicas.

No próximo dia 12, o blog Blasfémias organiza no Porto (no Café Guarany) um debate com este sugestivo título "Por que é que a Direita quando chega ao poder não é liberal?" Diante da linguagem deste Governo, também nos podemos interrogar sobre as razões que levam Sócrates a ter de ser mais liberal do que alguma vez pensou o seu próprio partido. Responder a isso era uma lição importante.

2. O dr. Jardim, num arroubo de grande coragem patriótica, diz que não quer chineses nem indianos na Madeira. Faz mal. Os chineses, os indianos, os pretos e os amarelos, os emigrantes brasileiros e ucranianos, seja quem for, paquistaneses e russos, podem mostrar como se encaram dificuldades e se organizam diante delas. Fazem concorrência a maus comerciantes e a funcionários sem brio. O dr. Jardim acha que a Madeira e Portugal precisam de empurrar "essa gente" para lá das fronteiras. Faz mal.

Mas o dr. Jardim não é um exemplo nessas matérias. Ele não pensa. Não porque não queira, mas porque não pode. É um bloqueio como qualquer outro, humaníssimo. Tenhamos misericórdia e empurremo-lo para a reforma.

3. Três dias antes da eleição histórica de Lula da Silva como presidente do Brasil, escrevi, neste mesmo jornal, um artigo que foi glosado e atacado em bastantes lugares. A ideia era "oxalá me engane". Infelizmente, não me enganei muito o partido de Lula está envolvido em tudo quanto é corrupção no Brasil. A realidade é uma coisa muito triste.

Jornal de Notícias, 7 de Julho 2005

julho 02, 2005

Delírio brasileiro

A todas as receitas de feijoada, para manter o seu espirito excessivo, falta sempre um pormenor: uma ambulância à porta.

Deixemo-nos de histórias e de discussões sobre as calorias, carbo-hidratos, colesterol e outros males que vêm do estômago, ou que Ihe andam ligados: a feijoada anda nesse caminho que fala do direito à felicidade. Aliás, é impossível a felicidade completa sem feijoada (roubo mais uma vez esta frase a uma amiga brasileira, autora de uma das melhores feijoadas de sempre). E, sinceramente, do que fala a feijoada? Do delírio. Do desregramento. Da desordem alimentar. Do carnaval alimentar. Da origem sem raízes. Do excesso. A história do prazer alimentar é feita, também, dessas categorias essenciais. Elas traduzem um estado de delírio digestivo e, se fossemos pessoas correctas e sensatas, nunca comeríamos feijoa­da - a feijoada «à brasileira», a feijoada de varias versões que confrontam os cânones, a feijoa­da repentista, a feijoada que assegura um certo e elevado grau de felicidade.

Se os leitores querem uma feijoada perfeita, sugiro-lhes que vão a São Paulo, onde podem sentar-se a uma mesa do restaurante Bolinha. Aí, tudo rescende à feijoada: do torresminho estaladiço ao caldinho de feijão que antecede a prova das carnes, da linguiça frita ou grelhada à cerveja gelada. Falta, evidentemente, aquilo que o grande Vinicius de Moraes, repetindo Stanislau Ponte Preta, exigia para o final: uma ambulância a porta.

Se querem fazer uma feijoa­da em casa, dentro de portas e dentro do país, eu tenho uma solução aproximada. Em primeiro lugar, o feijão preto, aquele pacotinho de um quilo (fazer feijoa­da com menos de um quilo de feijão é um desperdício - feijoada é um prato para muitas pessoas). Depois, as carnes: fumadas, secas, em enchidos. Como faço eu? Simples. Num almofariz, prepare uma massa com duas cebolas picadas, salsa, dez dentes de alho, um nadinha de coen­tro fresco, duas ou três mala­guetas. Numa panela de pressão disponho o feijão preto, cubro de agua, junto essa massa, as car­nes com osso, a costelinha fumada, a orelha. Tapo e deixo que coza por 15 a 20 minutos.
À parte, numa panela de ferro regulamentar, faço um refogado em azeite, com bastante cebola, a que junto os cubos de carne fumada e os enchidos (linguiça). Mal aloira, junto dois dentes de alho, duas folhas de louro, e o feijão meio cozido que entretanto salta da panela de pressão, devidamente acompanhado do caldo e das suas carnes. Mexo com uma colher de pau e deixo que tudo se misture. Dai a pouco, mal entra em ebulição, retiro cerca de duas conchas de feijão e desfaco-o com um garfo; devolvo à panela, tapo e bebo uma cerve­ja gelada. Deixo que cozinhe, embora possa rectificar com pimenta e malagueta.
Preparo o arroz: frito-o pri­meiro em duas colheres de sopa de azeite, junto três vezes o seu volume em agua e tempero apenas com sal. Simples. Na falta de couve mineirinha, tomo um bom molho de couve-galega e corto-o em tiras finas (dispensando os talos), lavando-o bem. Escaldo a couve em agua fervente, por dois minutos ou menos. Numa frigideira larga junto a três colheres de sopa de azeite uma cebola muito picada, cubos de bacon ou de toucinho (eu dispenso, mas a regra é a regra) e acrescento a couve, salteando-a, mexendo de forma a fritar ligeiramente mas sem perder a sua cor. Nesta altura, frita-se o torresmo, que deve ficar estaladiço e disposto em tacinhas pecaminosas ao lado da feijoada, que entretanto acabou de cozinhar.
Descasque-se uma laranja por pessoa e cortem-se às rodelas. Depois, tem a farofa. Nos nossos supermercados já existe, pronta, embalada e saborosa, importada do Brasil. Use-se com parcimónia de um dietista ou com o à-vontade de um sertanejo. A minha feijoada ficou pronta. E tem mais: independentemente da regra que também manda separar as carnes do feijão, eu gosto assim.

Ingredientes
+ Feijão preto, 1 kg
+ Carnes e enchidos ao gosto do cozinheiro (entrecosto, orelha, linguiça, bacon, toucinho, entrecosto fumado)
+ 3 cebolas
+ 12 dentes de alho
+ louro
+ 3 malaguetas
+ salsa
+ coentro fresco
+ sal, azeite
+ 300 g de arroz
+ Couve-galega (cerca de 500 g)
+ laranja (cerca de 1 kg)
+ Farofa


in Atlas de cozinha – Revista Volta ao Mundo – Julho de 2005

Os aeroportos

Eu gosto profundamente de aeroportos. Gosto muito de observar gente nos aeroportos - e de ficar sentado a espera de aviões. Gosto de horários de aeroporto. Daquele ruído de fundo, do voltear, de gente que parte e chega, de gente que pernoita nos aeroportos aguardando o primeiro voo da manhã. Gosto de gente que lê livros, sentada em cadeiras desconfortáveis ou apenas cadeiras de aeroporto - livros irreais, histórias fáceis, romancistas de segunda e terceira categoria. Gosto de gente que perde voos e que fica sentada esperando o próximo. Gosto da Music for Airports, de Brian Eno. Gosto de iPod nos aeroportos. Gos­to de tabacarias onde se vendem jornais em línguas desconhecidas e de cidades sem geografia. Gosto de áreas de fumadores em aeroportos longínquos, de restaurantes banais, desproporcionados, sem decoração. Gosto daquela simpatia rara do check-in em companhias aéreas do Oriente. Gosto do som de cidades murmuradas nos altifalantes, como Denpasar, Darwin, Colombo, Guatemala, Anchorage, São Paulo, Helsínquia, Montevideu, Porto Alegre.

Os aeropor­tos atraem-me profundamente: gosto de escalas de três horas em aeroportos distantes do destine final. Gosto de livrarias e de cervejarias de aeroporto.Gosto da área de fumadores do aeroporto de Singapura, um jardim com piscina, rodeado de restaurantes, plantas exóticas, ventania que vem das pistas, o ar tépido e húmido, arrastado - e dos que esperam ali antes de embarcar para outro lugar desconhecido. Gosto das sanduíches de salmão com creme de queijo no Harrods do aeroporto de Lisboa. Gosto das livrarias LaSelva dos aeroportos brasileiros. Gosto da desordem selvagem de Madrid, em plena madrugada, quando chegam os voos da América Latina. Também gosto da madrugada do aeroporto de Amsterdão, ao chegarem os voos do Oriente. Gosto dos restau­rantes, do de Frankfurt e das lojas de compotas e conservas de Heathrow. Gosto da simplicidade comovente e fria do de Keflavík, na Islândia. Gosto da sensação absoluta do fim do mundo anunciado em Gandem, na Terra Nova canadiana - e dos pântanos que se vêem do ar, em pleno crepúsculo.

Já passei noites em aeroportos vazios, como na Cidade da Guatemala. Já adormeci em aeroportos cheios de gente, embalado pela passagem de gente perdida ou apenas procurando um voo, um destino, uma cidade de painel electrónico, um mapa turístico de tabacaria, um jornal de há três dias.

E há essas coisas que se levam de aeroportos: revistas, roupa amarrotada, o cheiro de uma viagem por fazer, uma sanduíche que é igual em todo o lado, as promessas de amor contrariado, as juras de amor eterno, os últimos beijos, o primeiro beijo, o derradeiro abraço, lagrimas, um riso aberto, retratos de cidades invisíveis e que nunca existiram.

E a claridade tranquila do aeroporto do Funchal. O ruído de altitude quando se chega à Cidade do México. O jazz inaudível quando se atravessa a porta das chegadas em Nova Iorque, sobretudo em JFK. As melodias. A musica que é igual em todo o lado, os hits que se vendem nas lojas de discos, os centros de Internet onde todos navegam no Yahoo ou no Hotmail, as filas intermináveis do aeroporto de Jacarta. As escalas em Miami. O chão de pedra do de Estocolmo. A musica dos Madredeus na chegada ao Ben Gurion, de Telavive. Os pavilhões de madeira e tule em Belize City, depois de uma tempestade nos recifes. O aeroporto de Ushuaia, na Terra do Fogo, diante da Antárctida, com flocos de neve caindo sobre o canal Beagle - o que nos transporta para a imagem de Darwin à proa do seu navio. O de Oaxaca, no México, e a Canción Mixteca ouvida numa loja de mezcal, tocada por uma orquestra de marimbas. Os atrasos nos aeroportos de Cabo Verde. O ar sufocante na chegada a Moçambique, irrespirável. A tepidez desconfortável e os ruídos de baratas e de grilos em Bissau, na Guiné. O cheiro de fritos e o fumo dos autocarros diante do aeroporto de Abid­jan, na Costa do Marfim. Um voo que parte numa madrugada de Outono aus­tral, em Buenos Aires. O casal que fica sentado entre passageiros felizes enquanto se aproxima a hora de o avião de um deles partir para sempre. O rosto e o corpo de uma mulher vistos através do vidro de uma zona de partidas, aquele ponto de não-retomo, Os discman, o walkman. O Herald Tribune de fim-de-semana. As escovas de dentes descartáveis. As coisas que amamos de um aeroporto, um rosto visto através do vi­dro, as despedidas breves.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Julho 2005