junho 24, 2004

O regresso do pântano

Portugal raramente nos serve. António Guterres queixou-se do pântano e aproveitou uma derrota eleitoral para se livrar do país. Bom, não devia dizer-se isto com esta leviandade, mas, intimamente, todos sabemos que não andou muito longe disso. Eu imagino Guterres nessa noite de desaire eleitoral, cercado pelo grupo de doutores do partido, pelos recados - ao longe - do dr. Soares, pelos avisos dos amigos, pelo arrependimento de não ter aceite os cargos internacionais, por alguma crispação alheia, pelo riso dos cínicos. E invocou as suas razões, hoje esquecidas de quase toda a gente, para sair.

Portugal não nos serve. Periodicamente, transforma-se num pântano. Guterres, como outros antes dele, leu na sua derrota o indício de uma ingratidão (do país, do partido), as sombras dessa guerra entre subgrupos socialistas para reivindicar vitórias em trânsito, coisas medíocres. Muitos dos que o criticaram em público comentaram, na intimidade dos subgrupos, que Guterres tinha razão: o pântano alastrara e todas as suas margens eram inseguras. Portugal não nos serve. É um país relativamente fácil, ao contrário do que se apregoa. Sucumbe, flutua, mostra-se cínico quando se lhe pede grandeza, alonga a biqueira do sapato para se mostrar moderno (obrigado, Eça).

Esta notícia de que Durão Barroso estaria talhado para presidir à Comissão Europeia pode bem ser uma armadilha, e traz suficiente água no bico. O primeiro-ministro sabe que é uma impossibilidade, do ponto de vista ético - mas a ética, toda a gente sabe, não devia ter nada a ver com a política. A Esquerda cobrar-lhe-á (não sem razão, diga-se de passagem) qualquer hesitação, mesmo que a coligação se desfaça(como parece estar escrito). Guterres viveu esse dilema diante da mesma hipótese e, acredito, Portugal serviu-lhe menos ainda, a partir de então: país pequeno, cheio de pronomes e advérbios, a precisar de incentivos, mesmo quando tem tudo para triunfar, minúsculo de teimosia, maiúsculo de ego.

Mas, seja como for, Durão Barroso sabe que se trata de uma impossibilidade, até porque o ciclo eleitoral não lho permite. Até lá - até ter uma oportunidade - tem uma coligação para resolver (e não se compreende tão bem o que Nobre Guedes e Telmo Correia têm vindo a dizer?) e alguns meses para fazer esquecer o período mais obtuso da sua governação, rendido ao "discurso da tanga". A partir de agora, não tem desculpas nem oportunidades. A depressão tem um período para se instalar e outro para se ultrapassar: ambos já passaram, irremediavelmente. Já não há álibis.

Guterres caiu definitivamente quando, depois de umas férias de Verão com as capivaras e os jacarés do Pantanal, regressou e pronunciou, em Esposende, uma inaceitável e constrangedora homilia que contrariava tudo aquilo que o bom senso aconselhava: onde se lhe pedia mudança, Guterres desculpou-se. Em vez do confronto e da escolha, Guterres preferiu o consenso geral e a concessão - para não dizer a ausência de personalidade.

Convém perceber que há uma diferença essencial entre "governar" e "gerir". Gerir com bom senso, qualquer burocrata, contabilista ou jovem diplomado pode fazer, com maior ou menor competência. Mas governar - ou seja, escolher, dirigir, ousar, imaginar, arriscar, não facilitar e, finalmente, entusiasmar - exige mais do que um gabinete para a gestão de crises correntes: exige ousadia. Com as coisas neste estado, as oposições não precisam de se esforçar muito - a menos que o Governo se encarregue de, com a regularidade de um pêndulo, se devorar a si próprio e de alimentar de suspeitas a perversidade dos eleitores. E aí sim, teríamos o regresso do pântano. É um cenário confrangedor.

Jornal de Notícias - 24 de Junho de 2004

junho 03, 2004

As quotas de medicina

Há coisas que nos fariam rir, há anos. Hoje, preocupam-nos. Esta semana, a reitoria da Universidade Federal da Baía, no Brasil, decidiu impor quotas especiais na admissão de novos estudantes nas suas faculdades: quotas para negros, estudantes vindos de sectores sociais desfavorecidos, descendentes de índios e estudantes que procedem das escolas públicas. Para cada um dos itens, a universidade encontra justificações prementes e até razoáveis. Numa sociedade em que os negros são uma percentagem fundamental, é deles também a maior taxa de desemprego e a maior taxa de analfabetismo. A procura de soluções no âmbito da chamada "acção afirmativa" traduz-se pela criação de quotas, medida que já tinha sido testada nos EUA: quotas para negros (ou afro-americanos, como diz a gíria), para mulheres, para orientais ou para hispânicos. Um aluno branco, com média (adaptando os dados à realidade portuguesa) de 17 ou de 18, poderia não ter entrada na universidade - que, ao abrigo da necessidade de cumprir a política de quotas, aceitaria um aluno negro ou hispânico, com média de 10.

Um dos argumentos favoráveis a este tipo de política diz que ela foi responsável pela chegada de algumas vagas de cidadãos destas etnias a empregos e profissões até então apenas reservadas a brancos - e, portanto, contribuiu bastante para o fim da marginalização social e racial, um problema real e indesmentível. A Universidade Federal da Baía seguiu por este caminho. Assim, cerca de 45% das vagas disponíveis no novo ano lectivo estão reservadas para estudantes das escolas públicas, havendo distribuição, por quotas, das restantes vagas. Os resultados serão observáveis daqui a quatro anos: sem dúvida que haverá mais licenciados negros ou de origem índia, mas assistir-se-á, também, a um "nivelamento por baixo" do Ensino, bem como a fuga de muitos alunos da chamada "classe média" para universidades privadas, dado terem sido impedidos de entrar para a pública, ainda que as suas notas fossem altas.

Nem de propósito, a Imprensa de ontem deu conta de um problema semelhante existente em Portugal: os cursos de Medicina têm mulheres a mais. O presidente do Conselho Directivo do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto, declarou mesmo que terão de ser criadas quotas para homens em Medicina (quanto mais não seja, para urologia e para ortopedia, embora ninguém se tenha preocupado com a quantidade de ginecologistas homens) caso não se altere o modelo de ingresso nesses cursos. Ora, ninguém vê muito bem como se altera "o modelo de ingresso" sem ser através de quotas ou de imposição artificial de qualquer outro mecanismo de selecção. A declaração mais espantosa vem, no entanto, do bastonário da própria Ordem dos Médicos, Germano de Sousa: é que "as estudantes têm mais juízo e estudam mais do que os rapazes" e por isso elas dominam, actualmente, os cursos de Medicina. Ou seja: elas lutaram mais, estudaram mais, trabalharam mais, estão melhor preparadas. Nada de admirar.

É um caso sociológico novo que devia preocupar os responsáveis. Admito facilmente que as declarações do prof. António Sousa Pereira, do Instituto Abel Salazar, pedindo quotas, não configurem alguma forma de machismo. Mas a situação é caricata: tomando as rédeas do seu destino, estudando e preparando-se para a entrada na universidade com nas mesmas condições que os seus colegas rapazes, elas, as raparigas, foram melhores, são melhores. Em Medicina, mas também em muitos outros cursos.

A sociedade quer, no entanto, por razões plausíveis e até aceitáveis, limitar-lhes a sua supremacia, invocando até a maternidade como factor de distúrbio na sua prática profissional. Temos aí um problema, meus senhores. Um problema sério.

Jornal de Notícias - 3 de Junho de 2004