Dois golos e uma bofetada
1. Há uma questão de fé no futebol acreditar num treinador, na eficácia de um avançado, no renascimento de um jogador, na euforia dos adeptos. Olhem Ronaldo, "o fenómeno". Há muita gente que não vê nele aquilo que via há quatro anos - hoje envelhece-se mais depressa, é certo, mas o talento deixa o seu rasto. Eu gosto de Ronaldo; aquela gritaria em nome da sua "ineficácia" durante o primeiro jogo do Brasil (com a Croácia) teve toda a razão de ser: Ronaldo teve a bola nos pés durante 23 exactos segundos. É pouco. Deu um golo para Adriano marcar. E anteontem marcou dois. Quem esperava?
Retomo isso - hoje envelhece-se mais depressa, não na idade real, a idade verdadeira, mas na idade de exposição. As televisões consomem mais rapidamente os rostos da fama ou da pequena glória; o ressentimento das pessoas quer renovação nos ecrãs - para consumir outros rostos e poder levá-los ao tapete. E, no entanto, há jogadores cuja idade não pesa. Lembram-se de Preudhomme? Olhem Figo, o motor de arranque da selecção. Não há nada mais cruel do que esse tom de desprezo escutado nas bancadas e dirigido a rapaziada de 30 anos "Está velho." Garrincha envelheceu demasiado pelo álcool num tempo em que os jogadores de futebol não tinham os mimos dos preparadores físicos, outros dos magos da bola. Mas custou ouvir Lula, o barbudo corintiano com voz de urso constipado, a chamar "gordo" a Ronaldo, "o fenómeno". Mais respeito - pelo menos nas palavras. Ronaldo respondeu-lhe à letra, inteligente e cortante. E enviou-lhe dois golos para Brasília. Num mundo em que os esqueléticos são considerados bonitos e os anafados são destinados a abate prévio, os dois golos de Ronaldo são uma bofetada. Aceito-a com alegria. As pessoas detestam miúdos como Ronaldo, "o fenómeno", miúdos que casam demasiado depressa, que têm talento mas se lesionam, que se movem pouco. É mais um caso de inveja, tão desumana neste caso. Desculpa, Ronaldo, se pensei que estavas lesionado.
2. Descansem. Se o juízo não encolheu, vai regressar o alinhamento que ganhou ao Irão.
in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 24 Junho 2006
Retomo isso - hoje envelhece-se mais depressa, não na idade real, a idade verdadeira, mas na idade de exposição. As televisões consomem mais rapidamente os rostos da fama ou da pequena glória; o ressentimento das pessoas quer renovação nos ecrãs - para consumir outros rostos e poder levá-los ao tapete. E, no entanto, há jogadores cuja idade não pesa. Lembram-se de Preudhomme? Olhem Figo, o motor de arranque da selecção. Não há nada mais cruel do que esse tom de desprezo escutado nas bancadas e dirigido a rapaziada de 30 anos "Está velho." Garrincha envelheceu demasiado pelo álcool num tempo em que os jogadores de futebol não tinham os mimos dos preparadores físicos, outros dos magos da bola. Mas custou ouvir Lula, o barbudo corintiano com voz de urso constipado, a chamar "gordo" a Ronaldo, "o fenómeno". Mais respeito - pelo menos nas palavras. Ronaldo respondeu-lhe à letra, inteligente e cortante. E enviou-lhe dois golos para Brasília. Num mundo em que os esqueléticos são considerados bonitos e os anafados são destinados a abate prévio, os dois golos de Ronaldo são uma bofetada. Aceito-a com alegria. As pessoas detestam miúdos como Ronaldo, "o fenómeno", miúdos que casam demasiado depressa, que têm talento mas se lesionam, que se movem pouco. É mais um caso de inveja, tão desumana neste caso. Desculpa, Ronaldo, se pensei que estavas lesionado.
2. Descansem. Se o juízo não encolheu, vai regressar o alinhamento que ganhou ao Irão.
in "Topo Norte", Jornal de Notícias - 24 Junho 2006
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