agosto 27, 2007

O tempo em que havia mestres

Eduardo Prado Coelho foi meu professor. Há frases assim, descritivas, banais, que são o retrato mais fiel de uma comoção. Hoje não temos grande respeito pelos professores – ou pelo menos pela própria noção de “respeito pelos professores”. Durante os meus tempos de faculdade, íamos aqui e ali, ouvi-los, aos professores. Assisti à última lição de Vitorino Nemésio, às derradeiras aulas de Jacinto do Prado Coelho, aos últimos seminários de António José Saraiva, por exemplo, com a sensação de estar diante de três das grandes figuras da universidade. O que esperávamos desses momentos não era propriamente a revelação de um saber que nos redimisse ou salvasse no meio da nossa própria ignorância, mas que se confirmasse essa comoção – o “grão da voz” que subia mais alto.

Alterávamos horários e sacrificávamos horas de lazer para atravessar a cidade e escutar António José Saraiva, que nos interrogava e deixava surpreendidos a cada lição dos seus seminários – sobre Vieira, sobre o sebastianismo, sobre a Geração de Setenta. Eu apreciava-lhe o sentido de humor, mas também o sarcasmo, que era uma explosão de fúria num homem generoso e bom. Eram cruéis, os professores. Estes e outros. Os mestres. Nós também éramos diferentes e tínhamos prazer em ouvir, em aprender e em sermos desafiados para outras leituras e recordações.

Às vezes olho para as estantes e vejo os seus livros – títulos que se conservam sempre por mais que mudemos de casa e rearrumemos a biblioteca. E um halo de respeito regressa, uma comoção, qualquer coisa que só se comunica verdadeiramente a quem pode compreender a sensação. O respeito pelos professores. Óscar Lopes, Saraiva, Nemésio, Prado Coelho, Aguiar e Silva, Helena Rocha Pereira, David Mourão-Ferreira, Mário Dionísio, Luís Albuquerque, Vitorino Magalhães Godinho, Serrão, Oliveira Marques, Lindley Cintra. Podíamos não frequentar as suas aulas, mas íamos ouvi-los uma vez por outra. Esse era, aliás, um dos princípios da Universidade: estarmos ali para ouvir, para testar a nossa disponibilidade.

Mas esses eram os nomes de outra geração. Cresci na dúvida sobre o saber, o conhecimento, o ensino, a palavra dos mestres. Um dos nomes derradeiros era Eduardo Prado Coelho, que – repito a menção ao meu orgulho pessoal – foi meu professor. Foi, depois, meu amigo. Por vezes, num artigo, numa declaração, Eduardo referiu-se a mim e dizia: “... que foi meu aluno.” Eu também tinha orgulho nisso. Também alterei os meus horários para, depois de um ano em que fui seu aluno, poder frequentar um dos seminários que dirigia, naqueles fins de tarde comuns, quando os corredores da faculdade se esvaziavam e as pessoas estavam cansadas ou queriam, apenas, voltar para casa. Íamos ouvi-lo como, antes, o líamos: para ver o que dizia EPC. Com o tempo, a maturidade, a vaidade e até a coragem e sobretudo o trabalho, pôde ter desaparecido o fascínio pelo seu discurso, pelas suas citações e leituras, pelo seu brilho, pelas suas opiniões – mas o respeito mantinha-se.

Hoje discorda-se muito antes de estudar, de trabalhar, de guardar silêncio. Nessa altura sabíamos que só se podia discutir sobre o que se tinha estudado verdadeiramente. Só se podia duvidar dos mestres – que tinham duvidado dos seus mestres – depois de ter estudado aquilo que eles ensinavam ou pensavam ou escreviam. Esse era o segredo das “humanidades”. Parte da minha geração teve muito trabalho para duvidar de Eduardo Prado Coelho ou para discordar dele. No momento em que a sua morte gera todo o tipo de excelentes elogios, gostava de guardar esta imagem de EPC. Ele era brilhante, eufórico, fascinante, um leitor infatigável. Eu não concordava com ele em muitas coisas, da política à literatura. Éramos amigos. Mas sobretudo foi meu professor. Íamos ouvi-lo, o que constitui uma homenagem viva. De certa maneira, foi um dos últimos grandes mestres do nosso século.

in Jornal de Notícias – 27 Agosto 2007


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agosto 25, 2007

Viagens na minha terra


Num dos mais belos percursos do Douro, entre a Régua e o Pinhão, o D.O.C, é uma revelação.

O leitor sabe que não sou imparcial, que frequen­temente sou injusto quando se trata de fazer comparações e que não acho graça a novidades. Dito isto, viajo ao longo do rio da minha infância, o Douro, para visitar um dos novos restaurantes da região.

Falhei, até agora, escrever sobre o Cepa Torta, em Alijo, que já há alguns anos se transformou numa espécie de santuário da gastronomia regional do Norte do Douro – mas não quero deixar de assinalar o D.O.C., o novo restaurante de Rui Paula (que, com a mão decidida e séria da sua mulher, Cristina Canelas, continua a manter o Cepa Torta), estaciona­do junto de um pequeno cais na Folgosa do Douro, a meio caminho entre a Régua e o Pinhão.

Não sei se conhecem esta estrada, a marginal do Douro, mas esclareço que se trata de uma das mais bonitas de Portugal. Seja como for, o crepúsculo desta marginal, rente à água, é matéria de romance. O D.O.C, tem, além de um cais fluvial, uma esplana­da que oferece uma das melhores paisagens do rio – e quando a noite cai é um espectáculo incompará­vel. Por isso, não o comparo com nada. Quem sabe do que falo, recorda; quem não sabe, pois que vá.

O cardápio do D.O.C., que nasceu em Abril passado, é cuidado, sazonal e apetitoso. Refiro, para abrir, o seu 'carpaccio' de polvo, os milhos de camarão, o recheio de sapateira com salada de tomate, o papo d'anjo de 'foie gras' de vinho do Porto e maçã, o 'magret' de pato fumado com salada de requeijão, amêndoa e mel e ainda o creme de espargos verdes com vieiras e azeite trufado.

Apaixonado que sou pelos milhos (a nossa "polenta"), foi essa a minha opção como entrada, dividida com uma chamuça de alheira e moira, e um 'carpaccio' de polvo. Os milhos eram excelentes, suculentos e molhadinhos, onde alguns camarões tinham adormecido com verduras a fazerem a cama. Cinco estrelas. A chamuça veio crocante, com uma massa muito bem definida, e o polvo, laminado, apareceu na companhia de uma salada cheia de sabor e uma fatia de queijo gratinado. A opção seguinte seria ainda a dos milhos, ao deparar com eles na companhia de bacalhau e rodovalho, além de um bacalhau com broa e um cherne em crosta de legumes. O novilho maronês, das encostas da serra do Alvão, cativou-me em duas amostras: pri­meiro, com isca de 'foie gras' e uma caminha de pi­nhões e feijão verde, muito, muito bom; depois, um medalhão de boa carne com creme de queijo da Serra (suavíssimo, nada do que se come por aí), acompanhado de um arroz de três cogumelos, fritinho e sabo­roso com polvilho final de cebolinho; fantástico. É necessário, aqui, um 'intermezzo': tínhamos come­çado com um espumante de Cabriz, para aligeirar apresentações – que é servido a copo, juntamente com outros vinte vinhos –, e seguira viagem com um outro tinto do Douro, ligeiramente refrescado, como se exige.

Houve ainda um polvo a passar pela mesa, grelhado com azeite, tenríssimo. Para trás ficaram o 'magret' de pato com arroz de frutos secos e figos em vinho do Porto, o cabritinho no forno, a perdiz do Douro com dois purés (geralmente, o de abóbora e o de castanhas), o 'risotto' de sapateira, a bochecha de porco bísaro com torrada de azeite, ou o cachaço de bísaro (cozinhado a baixa temperatura por doze horas).

Antes de pedirmos as sobremesas, veio a von­tade de repetir o 'foie gras', e pediu-se uma amostra da terrina, puríssima, odiada por vegetarianos e médicos do colesterol: perfeita, com uma torradinha auxiliar. Para facilitar, veio também um 'late harvest' do Douro. E as sobremesas chegaram então, devasta­doras: uma chamuça de queijo 'chèvre', com gelado de mel, requeijão, doce de abóbora e amêndoa, arrepiante; o queque de chocolate era um 'petit gâteau', ou 'demi-cuif, com o seu caldo interior de chocolate quente, servido com sorvete de framboesa; e então, culminando, com dois tipos de Porto para acompa­nhar (um 'tawny' Vista Alegre e um 'vintage' Noval), o vulcão: crepe de leite-creme crocante com frutas exóticas e molho de framboesa, primeiro. Seis estre­las em cinco. O vulcão e o 'tsunami' a seguir: tarte de maçã com queijo de cabra e gelado de azeite.

Ainda tive tempo para verificar que há 140 tintos muito bem escolhidos e apresentados, cerca de 70 portos à disposição, 20 moscatéis e colheitas tardias – e um menu de azeite que hei-de provar da próxima vez. Ao sair para a varanda sobre o rio, verifiquei que era noite de Lua nova, e que as estrelas continuam a favorecer o grande Douro. Com D.O.C. Parabéns.

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 146
Vinhos brancos: 48
Espumantes & Champanhes: 16
Aguardentes portuguesas: 16
Colheitas tardias e moscatéis: 20
Portos & Madeiras: 74
Uísques: 18

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: fácil, tem parque
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 35 Euros

RESTAURANTE D.O.C.
EN 222 - Folgosa do Douro
5110-204 Folgosa
Telefone: 2S4 858 123
Não encerra

in Revista Notícias Sábado – 25 Agosto 2007

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Algumas coisas divertidas

1. Começou o campeonato, regressou o hooligan. Eu. Vai ser uma época fatal. O Benfica já é campeão e do Mondego para o norte as pri­sões estão a abarrotar.

2. Mas isto acontece depois de uma semana divertida que se traduziu no afastamento de um treinador benfiquista, mas mal amado, por um treinador madridista, mas bem amado. Fernan­do Santos, ou melhor, a cabeça de Fernando Santos, foi servida à multidão como o bode ex­piatório de todos os males do Benfica – num só dia, o clube trouxe Camacho, pôs milhares no campo de treinos, encheu de pontos de excla­mação as primeiras páginas de "A Bola" e do "Record" e fez esquecer que Santos não era o culpado daquilo que Nuno Gomes quis denun­ciar mas não denunciou. A SAD benfiquista, a mesma que anunciou que tinha oitenta milhões para gastar em dois ou três jogadores, foi a res­ponsável pela entrega de algumas das melhores peças – não foi Santos. Mas da fama nin­guém o livra. O Benfica (ou seja, L.F. Vieira) pode estar-lhe grato: a sua melancolia impede-o de protestar contra o clube do seu coração. Não tem de estar surpreendido. O pesadelo já passou.

3. Nuno Gomes falou depois do jogo contra o Leixões; percebeu-se o que ele queria dizer. Como se sabe, não sou propriamente um fã do futebol de Nuno; ele pode ser bom a marcar golos mas foi, seguramente, e só com estas de­clarações, um campeão de más oportunida­des. Chutou, mas o jogo já estava decidido.

4. Dois leitores perguntam-me: se às vezes escreve o que escreve sobre o Benfica, por que razão às vezes escreve sobre o Benfica? Só uma resposta: porque é divertido.

5. Outra coisa divertida é escrever o seguin­te: "A Arménia, esse colosso." Há quem pen­se que não se deve brincar com as desgra­ças da selecção nacional. Pelo contrário, eu acho que só se deve brincar. O leitor já tinha percebido, quando Scolari anunciou que o relvado de Erevan era tramado. Depois do relvado, outra desgraça: o jogo. Aqui vai um brinde aos pequenos flibusteiros que perse­guiam todo e qualquer cidadão que tivesse dúvidas sobre Scolari. Afinal de contas, ele não é a Nossa Senhora do Caravaggio. É um homem como os outros. Tivessem mencio­nado isso e tudo se compreenderia. Até eu lhe dava uma palmada nas costas.

6. Lendo a imprensa da semana, também é divertido ver como, nos jornais "da cor" (eles sabem que seis milhões de leitores aos sal­tos são melhor negócio do que seis milhões deprimidos - só eu e os psiquiatras gosta­mos de ver multidões em depressão), se desvalorizou a vitória do F. C. Porto em Bra­ga. Para a generalidade da rapaziada, foi Quaresma que ganhou o jogo, inteirinho, contra o Braga. Eles nunca cedem às evi­dências para que as evidências não prejudi­quem a sua felicidade. Mas numa coisa eles têm razão: o segundo golo de Quaresma não é deste mundo.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 25 Agosto 2007

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agosto 20, 2007

A credibilidade do anonimato

Tudo começou quando o presidente do Benfica anunciou, com a compreensiva cobertura da imprensa, que tinha descoberto à porta de sua casa um dossier “anónimo” com “informações relevantes” sobre o fantástico mundo do futebol e, em especial, sobre o “apito dourado”. Os “incertos”, como se usa escrever nos autos, não quiseram entregar o seu documento à polícia, aos tribunais ou ao governo; confiavam mais no presidente do Benfica, que lhes oferecia mais garantias. Assim vai o mundo.

Seja como for, e munido de uma delegação à altura e devidamente empertigada, o cavalheiro entregou o dossier “anónimo” às autoridades, exigindo esclarecimentos, investigação, fuzilamentos, moral nas ruas, paz nos balneários, castigos, açoites, castidade no lar e denúncias públicas. As autoridades fizeram-lhe a vontade e o novo procurador-geral da República, que conhece bem a imprensa, mencionou a vontade de fazer justiça por todos os meios. Pôs a polícia a ler.

Ora, como se sabe, um dossier “anónimo” é um dossier que não tem assinatura: ou lhe falta assinatura, pura e simplesmente, ou a apagaram para que seja “anónimo”. Por exemplo: alguém pode elaborar um dossier “anónimo” e, para lhe dar credibilidade (imagine-se!), é necessário retirar-lhe a assinatura; imagino que, se a tivesse, ninguém ligaria. Sem assinatura (esse sinal infame que indica o nome do acusador, do denunciante, do queixoso, do mentiroso, da vítima ou do interessado), o documento ganha muito mais credibilidade.

Entretanto, apareceu um novo dossier “anónimo”, agora em papel timbrado da PJ; a sua origem pode, portanto, ser diferente do primeiro, mas nada o garante porque anonimato é anonimato. De qualquer modo, as autoridades, postas diante dessa evidência, têm de apreciá-lo, porque não é possível desprezar um dossier “anónimo” e apaparicar o outro. Há, como se sabe, uma ética do tratamento do dossiers “anónimos”; faz parte da originalidade portuguesa – se ligas a um, tens de ligar a outro; se lês um, tens de ler o outro, e assim por diante, até não haver espaço nos arquivos da Procuradoria ou lugar nas primeiras páginas dos jornais.

O que eu faria e o que o leitor faria é, provavelmente, diferente do que está a ser feito, mas há pormenores que nos ultrapassam. Evidentemente que na base do “anonimato voluntário” poisam mais facilmente a mentira, o interesse, o embuste, a pataratice, a impostura e até o medo. A assinatura não está lá; mas a marca do forjador permanece, o albardeiro deixou-a.

Simplesmente, procuradores, polícias, investigadores anónimos e diligentes funcionários dos departamentos criminais, em vez de chamarem o pessoal do CSI de Las Vegas, para encontrarem impressões digitais, manchas de uísque, pingos de sardinha e de caldeirada, ou cabelos sujos, sentam-se nos seus gabinetes (vá lá, é uma imagem literária), ajeitam os óculos, empilham uma série de blocos para apontamentos ao lado de uma dúzia de lápis afiados, e iniciam a leitura. Fazendo a vontade aos autores dos dossiers “anónimos”, ou a quem lhes retirou a assinatura, deixam na opinião pública a ideia de que a denúncia anónima, a falta de escrúpulos, a chantagem pessoal e a literatura de vingança mais abjecta são instrumentos da justiça ou da procura da verdade.

É evidente que este exemplo pode frutificar. Ele pode trazer benefícios evidentes quer à indústria de entretenimento, quer ao negócio do papel impresso. Centenas de autores de dossiers “anónimos” estão disponíveis para continuar este trabalho e para exigir leitores na polícia e nos gabinetes de investigação criminal. Romancistas falhados, burladores profissionais, delatores de vizinhos, mentirosos encartados ou patifes banais estão agora autorizados a escrever os seus textos. Vinte, trinta páginas bastam para aceder à glória. É uma alegria. O dossier “anónimo” está na moda. Convido-vos à escrita.

in Jornal de Notícias - 20 Agosto 2007

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agosto 18, 2007

Memórias da Foz


O Al Forno é um restaurante simpático e muito recomendável no Porto. A comida tem sabor.

A medida que abrem novos restaurantes cresce o meu pânico. E pergunto-me: e se, um dia, todos os restaurantes são assim? Assim, com quatro linhas de mau português para cada prato do cardápio, com as mesmas reduções de vinho do Porto e balsâmico, com as mesmas camas de palha de batata, as mes­mas terrinas de 'foie gras', a mesma menção às tru­fas e ao lombo laminado? E se os criados ficam todos com aquela mania de atenderem por cima do ombro, olhando de lado se uma pessoa pergunta como é preparada aquela tempura de brócolos picantes, ou meneando-se com trejeitos de varina modernaça se lhes apetece a eles. Nessas alturas, volto a restaurantes de salas antigas, onde cheira a comida suculenta, saborosa, antiga também, conservadora, trazendo a memória de lon­gos estufados, de prolongadas permanências no forno, de marinadas triunfais e vergonhosas.

Muitas vezes (desiluda-se, amigo leitor!), é por causa disso que escrevo – por causa de um aroma que pressenti, de uma memória que reapareceu, de uma imagem que nunca chegou a desaparecer. Outros escreverão porque um restaurante é notícia – e o seu dever é informar. Mas eu não gosto de novidades; não atri­buo vantagem alguma a uma coisa nova só porque é uma coisa nova. Sou como os meus restaurantes preferidos: têm qualquer coisa de passado. Como acontece, aliás, com as minhas preferências acerca da cidade do Porto – gosto dos bairros que têm qualquer coisa de passado, uma lembrança, um jogo de bola no meio da rua, uma história (dessas, deliciosas, que podiam ser contadas num livro de Germano Silva), uma calçada onde passei um dia, um beco (daqueles, de Massarelos), uma imagem do meu rio. Um dia destes lembrei-me do Al Forno por esse motivo. Minto, ao dizer que me lembrei do Al Forno, um pequeno restaurante ao lado da Igreja de S. João, na Rua do Adro, na Foz; do que eu me lembrei foi de um 'spaghetti nero' com mexilhões (ou seria o 'taglionini nero' com camarões?) e, logo de seguida, de um bife com pimenta que comi com 'tagliatelli', já lá vão anos. E, já lá indo anos, não daria tempo para recordar os 'carpaccios' iniciais (carne, bresaola, salmão, espadarte) que se provam com os pães e a 'bruschetta' da casa, juntamente com a beringela com queijo gratinado e tomate.

Antes, muito antes, de as burguesias nacionais desmaiarem diante de massas negras, com tinta de choco, acompanhadas de salmão fumado para se envolver com um denso molho de natas, já o Al Forno, como eu disse, apresentava a sua ementa com uma excelente 'pasta nera', ou com mexilhões ou com camarões, sem falar de uma prova excelente de 'ravioli' com espinafres e 'ricotta' que, sendo outra das explosões gustativas das burguesias do gosto, não desmerece da arte, já que há massas frescas no restau­rante, e bastantes. Naquele tempo, a minha filha era ainda muito pequena e acabámos (os dois) por nos sentar diante do bife no forno com azeite, alho e louro em molho de carne e vinho. Estava supimpa; generoso e pingando sobre as batatas gratinadas e espinafres, que o acompanhavam. O facto de ter sido cozinhado no forno não o fez perder as qualidades essenciais, antes se aproximando de um rosbife em miniatura. Boa prova. Como as massas eram muito boas, caseiras, robustas e variadas, ainda provámos uns 'linguini alla putanesca', porque é nos exemplos populares que se comprova se a cozinha é, ou não, capaz de dar com o problema. Um amigo nosso, recusando o bife no forno, optou naquele dia por um cabrito no forno, que parecia feito à medida.

É evidente que, nesta lista, ainda não mencionei as 'pizzas' que o Al Forno sugere, fazendo jus ao nome – mas eu temia começar por aí. A 'pizza' é comida rápida em Itália e em qualquer parte do mundo, o que não significa que não se coma. Mas, como compreendem, às vezes é caso de parentes na lama. No Al Forno há forno sério e, portanto, há 'pizzas' que parecem sérias. Há gente que gosta, eu dou notícia disso, mas não me peçam mais. A seguir, e porque a lista de vinhos é boa, vem o tiramisú, que é bom, realmente bom, embora a mousse de chocolate deva receber aplausos. A carta de digestivos pareceu-me também de realce, mas fui dar um pequeno passeio em redor, para acalmar o estômago, que se julgava em casa. Melhor elogio não me parece.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 85
Vinhos brancos: 36
Espumantes & Champanhes: 6
Aguardentes portuguesas: 14
Colheitas tardias e moscatéis: 4
Portos & Madeiras: 10
Uísques: 16

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: fácil à noite
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 18 Euros

AL FORNO
Rua do Adro da Foz, 4
Foz do Douro - Porto
Telefone: 226 173549
Não encerra

in Revista Notícias Sábado – 25 Agosto 2007



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agosto 13, 2007

Madeleine

Há uma tendência geral, portuguesa ou não, para termos opiniões acerca de tudo – de economia a teologia, passando por arquitectura e literatura, discutimos tudo com grande paixão, pouco discernimento, quase nenhum estudo e muito empenhamento. Fazemo-lo com opiniões fortes. Mas, ao invés de as opiniões estarem assentes em estudo, em reflexão e em dados exactos e indiscutíveis, há um predomínio da “certeza absoluta” na opinião – e a certeza absoluta é, quase sempre, inimiga da verdade. Sobretudo quando a investigação não chega ao fim.

Se voltarmos a ler, a esta distância, todas as opiniões sobre o caso Casa Pia, certamente que sorriremos diante de tantas certezas absolutas. O episódio foi desmoralizador para o país; pelas suas revelações, pelas suspeitas com ou sem confirmação, pelo grau de ressentimento revelado e pelos subterrâneos que mostrou a céu aberto. Passado este tempo, o insuportável banho-maria em que se encontra o julgamento faz prever o pior. Haverá gente com a vida injustamente destruída (já há), e haverá culpabilidades nunca assumidas. A pulverização do caso pela imprensa – que, em parte, tomou “a verdade” como problema de fé – contribuiu para este desfecho. Outros casos são o de Joana, a criança cujo corpo nunca foi descoberto, e da sua mãe Leonor Cipriano – e o de Madeleine McCann.

É inteiramente justificado que a opinião pública estabeleça comparações entre os dois casos; no primeiro, o corpo da criança não apareceu mas um julgamento de 72 horas resolveu a questão da culpabilidade; no segundo, o corpo da criança não apareceu ao fim de 100 dias de investigação, e as autoridades acabam de anunciar que o trabalho está longe do fim, além de que a criança McCann estará morta.

Toda a gente de bom-senso sabe que, em matéria de investigação criminal, não se pode falar de segredo. Deve, antes, falar-se de sigilo policial. Está vários degraus acima.

Ora, também no caso McCann tivemos opiniões sobre tudo. Uma sumptuosa legião de especialistas em canídeos, de psiquiatras e pedopsiquiatras, de criminalistas, de advogados ou de comentadores de assuntos de média, aparece nas televisões a toda a hora. Justifica-se. Eles cumprem o seu ofício e eu estou mais tolerante com eles e com o assunto, sobretudo porque ao fim de cem dias não há sinais da criança inglesa.

Há gente que se indigna com o “circo mediático” criado em torno do caso McCann. Vejamos: há gente que se indigna com tudo, é a sua especialidade. Mas, convinha que lhes perguntássemos, lá, de onde contemplam a multidão de simples pessoas interessadas em saber o que ocorreu com a criança (justamente porque pode ocorrer com outras crianças), o que queriam que acontecesse ou que se fizesse. Que mantivéssemos a calma.

Nós mantemos. Mas são cem dias sem resultados visíveis. Claro que comparamos com o caso de Joana. Claro que toda a gente acha uma injustiça não ter havido a mesma onda de solidariedade com Joana (embora, que me perdoem os “especialistas em média”, sejam casos diferentes). Mas são cem dias. Não se pede à Polícia Judiciária que envie o seu director explicar tudo o que se passa – para pôr fim à onda de rumores, às teorias da conspiração e à maledicência habitual. Mas alguma coisa devia ser feita. Algumas contas deviam ser prestadas.

Por muito que as autoridades julguem que o país é idiota, as pessoas já sabem o que são “fugas de informação”, como se organizam, com que objectivos se programam, e quem as promove. E, portanto, como surgem as ondas que estabelecem probabilidaes de culpa aqui ou ali, consoante as necessidades. A polícia deve fazer o seu trabalho com a tranquilidade possível. Mas não me parece que uma eventual pressão da opinião pública seja criticável ou, sequer, injusta. É naturalíssima e compreensível.

in Jornal de Notícias – 13 Agosto 2007

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agosto 11, 2007

Aviz de sempre


O Aviz regressou em 2005. Mas só agora está em pleno, com boas promessas e um chefe tranquilo.

A história de Lisboa no século XX, pelo menos a his­tória romântica à maneira de 'Os Maias', não podia fazer-se sem uma referência ao Aviz, ao Aviz do Chiado, ao Aviz da mesa do Sr. Calouste Gulbenkian, ao Aviz onde Eva Péron passeou as suas pérolas, onde Maria Callas entrou, luminosa, onde Sinatra pernoi­tou, à vasta mesa onde Mário Soares conspirou, ao Aviz, enfim, onde Marcello Mastroianni deve ter sorrido se tivesse visto Ava Gardner, ao longe, a entrar pela sua porta discreta. Seja como for, eu não conheço esse Aviz que a história há-de relembrar; mas conheci o velho restaurante Aviz e, pela segun­da vez, fui ao novo, no rés-do-chão do Hotel Aviz, a dois passos, ou menos, do Marquês de Pombal.

Esta segunda vez foi melhor, depois da reabertura em 2005. Da primeira vez que visitei o novo Aviz entrei num filme mudo que reabilitava a história da casa (curiosamente, encontrei vários desses persona­gens nas suas mesas); agora, com Agosto deixando Lisboa transformada num agradável deserto, com menos automobilistas, menos ruído, menos lixo e menos gente, o Aviz tinha também alterado o seu cardápio – e para melhor.

Carlos Martins, o chefe, manteve o essencial (as lascas de bacalhau, o bacalhau à Gomes de Sá, os tournedós Rossini, o pato) e, no meio das mudanças, soube ser um clássico, o que não é fácil. Este chefe, com formação básica luxemburguesa e francesa, que passou pelo Hotel da Lapa, pela Penha Longa, pela Lawrence (em Sintra, que ele próprio reabriu), pela Quinta da Marinha e por alguns estágios em Milão e em estrelas Michelin de Inglaterra (os preferidos de Anthony Bourdain, vale a pena dizer), propôs-nos, para abrir, um exercício de geometria descritiva: uma chamussa de morcela e farinheira (massa leve, crocante, finíssima) com desidratação de rosas, a que os meus companheiros de mesa responderam com uns espargos e um 'carpaccio' de polvo (com vinagrete de pimentos assados, muito bom, e folhinhas de coentro); eu, como sou conservador, preferi o velho misto de salmão com espadarte, que não vinha na lista mas evocava o velho Aviz. Foi uma homenagem, embora pudes­se ter optado pelo salmão fumado com ovo de codorniz e pesto de ervas frescas ou pelo jovial leque de espadarte fumado e cavala sobre chicória em vinagrete de alcaparras.

Da lista de entradas faziam ainda parte cogumelos recheados com 'escargots', a muito clássica e sempre requisitada santola recheada sobre gelo, um 'foie-gras' glaceado com redução de Porto LBV e uns figos pingo-de-mel, além do queijo de cabra gratinado. Foi o que foi, e foi bem – porque bebemos, neste capítulo um dos meus vinhos deste ano e deste Verão, um simpático Stanley, 'chardonnay' muito perfumado, obra da marca de vinhos de, imagine-se, Stanley Ho. Guardado para a segunda parte do desafio, como se diz em linguagem futebo­lística, estaria um tinto de Colares, ramisco, que se bebeu em duas temperaturas – primeiro, à tempera­tura ambiente; depois, refrescado e ganhando dimensão, textura e aroma.

Aos pratos fortes, portanto: na lista, lugar aos clássi­cos, como o bacalhau à Gomes de Sá (famosíssimo), as lascas de bacalhau com pimentos grelhados, os célebres filetes de linguado com cogumelos e laranja, o pato estufado ou o carré de cordeiro, além do bife raspado "à Monjardino", uma home­nagem a Miguel Monjardino, imagem de marca do Aviz e da Fundação Oriente.

Pessoalmente, hei-de voltar para provar o 'risotto' ao champanhe com 'foie-gras' e azeite de trufa, mas desta vez detive-me num clássico (eu sei, sou conservador): os tornedós Rossini, de que se apresentou uma solução muito suculenta, com o tornedó (excelente) assente na sua torradinha, encimado com uma fatia de 'foie-gras' (a juntar ao molho, também da mesma natureza) de primeira ordem e duas lâminas de trufa. Muito bom. Os meus companheiros honraram a casa com o 'carré' de cordeiro, que estava perfumado com alho e vinho tinto, mas conservando a doçura do seu interior, e com uma espetada de lulas, frescas e apetitosas (um dos pratos do dia, que me levará à quinta-feira para provar o 'risotto' de bacalhau com coentros e lascas de Grana Padano).

Sobremesas? Eram excelentes mas não tenho mais espaço. Nem no estômago - nem na página, que há-de ir sugestiva, espero eu.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 103
Vinhos brancos: 36
Espumantes & Champanhes: 12
Aguardentes portuguesas: 16
Colheitas tardias e moscatéis: 7
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 18

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: parque nas proximidades
Levar crianças: não
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 40 Euros
Ao Jantar: traje formal

AVIZ
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in Revista Notícias Sábado – 11 de Agosto 2007

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agosto 08, 2007

Crimes de Verão


«HÁ BARCOS QUE TÊM O DESTINO TRAÇADO», disse o homem mais alto – o de óculos escuros – para o outro, que seguia atrás, com o charuto pendente dos dedos. Ima­ginara-o mais atarracado e mais magro, mas quando ele apareceu, nessa manhã, surpreendeu-o também que ele falasse tão pouco e tivesse aquele ar cansado de quem atravessou o país, ou pelo menos o Alentejo, para lhe dizer que estávamos em Agosto e que isso era uma grande contrarieda­de. Não foi bem assim. Mas na altura pareceu-lhe.

«Agosto é o mês mais fodido.»
Ele olhou-o então, de frente e de baixo para cima (porque estava sentado e o outro de pé) e não pôde deixar escapar um sorriso.
«E Abril é o mês mais cruel», disse Alexandre Monteiro, como se fosse a segunda parte de um diálogo, esperando resposta. Mas o outro não respondeu ao sorriso. Não respondeu a nada, aliás, limitando-se a acender o pequeno charuto com um fósforo que re­tirou de uma caixa. Só então o olhou para recitar, como se estivesse numa esquadra:
«Homicídio qualificado, profanação e ocultação de cadáver, des­truição de bens, ataque em alto mar, roubo, utilização de drogas.»
«Não foi em alto mar», disse, mas o outro não ligou.
«O alto mar é onde os barcos andam.»
«Não é isso. Eles podiam tê-lo morto mais perto da terra e levá-lo depois para o alto mar.»
«Eu sei. Mas, para mim, foi já longe de terra. É onde já não tenho pé.»
«Não gosta do mar?», Alexandre Monteiro olhando-o de novo, retomando aquela espécie de conversa.
«Não», disse ele ao levantar-se. «Nem de algas, nem de rochas escuras, nem de Agosto. Nem de naufrágios. Muito menos de náu­fragos. Já há malucos suficientes em terra.»
«Estranho, muito estranho. Nunca gostou do mar?», voltou Ale­xandre Monteiro.
«Já», murmurou o outro. «Mas foi há muito tempo.»
«Então, que o interessa neste caso? Só o crime? Saber quem ma­tou e porque matou?»
«Interesso-me pela vida dos outros. É a coisa que mais interes­sa um polícia. Os polícias interessam-se cada vez mais por sexo, informática, filosofia, direito, vidas obscuras, hábitos conjugais, esoterismo.»
«Uma espécie de enciclopedistas.»
«Uma espécie. Qualquer dia vamos para a ilha da Páscoa estudar
rongorongo. Quando posso ver o barco?»
«Amanhã, se quiser. Está selado à ordem do tribunal, e não vai encontrar nada. Tudo o que havia para descobrir está já descrito nos relatórios e no processo. Análises de DNA, inventário, mapas, tudo. Até a quantidade de provisões.»
«Isso interessa-me, as provisões.»
«Davam para um banquete.»
«Hoje em dia, com a cozinha de fusão, tudo se faz», ouviu-o ainda comentar. Já lhe tinham falado de Jaime Ramos, mas supunha que era outra pessoa.
«Havia três comboios depois dessa hora. Apanharam o que che­gou a Olhão um pouco depois do meio-dia. Exactamente aqui, em Vila Real de Santo António.»
«De onde vieram antes?», perguntou Jaime Ramos.
«De Espanha. Só se pode vir de Espanha, a menos que gostassem das vistas e tivessem ido fazer turismo. Nunca se sabe. Hoje em dia há surpresas em todo o lado.»
Alexandre Monteiro não gostava do fumo do charuto, nem apre­ciava o desleixo do outro. Qualquer investigador seria melhor do que este homem vestido de jeans, T-shirt, e um blusão azul cheio de vincos. Mas ele não era bem um investigador.
«Deixaram o carro aqui», murmurou. Continuava sempre a mur­murar, como tinha murmurado durante a viagem entre Faro e Vila Real de Sto. António, de vez em quando olhando à direita, como se estivesse à espera que o mar subisse terra dentro para engolir torres, aldeamentos, campos de golfe, sapatarias, bares de alterne e camiões carregados de materiais de construção. Quando chegaram a Vila Real saiu do carro e perguntou a que distância ficava Cádis.
«Cádis? Duas horas, mais ou menos.»
«E o carro, como apareceu aqui?»
«Foi descoberto a 4 de Setembro, três semanas depois. É normal aparecerem carros abandonados deste lado da fronteira. Até hou­ve espanhóis que vinham cá deixar os carros velhos, os destroços que já não queriam.»
«E barcos?»
«Barcos nunca deixaram aqui.»:
«Mas pode vir a acontecer. Têm-me dito que no Algarve tem acontecido um pouco de tudo.»

JAIME RAMOS ENCOSTOU-SE À JANELA DO HOTEL para ver melhor como o dia ia nascendo. Uma luz ténue, azulada, luzes de carros, garga­lhadas na rua, um zumbido. Desagradava-lhe aquele caso e todos os materiais que coleccionara. Ele chamava materiais de colecção às pastas meticulosas que Isaltino de Jesus lhe deixava na secretá­ria, debaixo de um dos cinzeiros que não tinha sido atingido pêlos seus charutos.
«Está aqui tudo, chefe.»
Estava, quase sempre. Fotocópias de jornais, fotografias, papéis minuciosamente procurados nos arquivos e, às vezes, ilegalmente retirados de processos que estavam a milhares de quilómetros. Como este, de Cádis. Puerto Sherry. Playa de Ia Puntilla. Uma fotografia de um barco, um trimarã esperando que a praia-mar o devolvesse à ondulação.
«Como consegues tu isto, Isaltino?»
«Com sorte, chefe, com sorte.»
Mas Jaime Ramos sabia que não se tratava apenas de sorte. Havia um incêndio no olhar de Isaltino ao aproximar-se do gabinete: pri­meiro olhava para o rosto de Teofilo Cubillas, pendurado na parede – um velho poster quase descolorido do Norte Desportivo que Jaime Ramos arrastava consigo de gabinete em gabinete, em mudanças que lhe desorganizavam a secretária e a paciência; depois, olhava com ar de censura para a secretária desarrumada; finalmente, falava.
«Chefe. Ontem andei a abrir-lhe o caminho», ajeitando a camisa de manga curta, puxando ligeiramente a perna das calças antes de se sentar. Jaime Ramos não lhe invejava nem a disciplina nem a ar­rumação – considerava ambas resultado de um talento providen­cial que tocara a nova pequena-burguesia dos subúrbios, gente que tinha subido a pulso em carreiras insignificantes e que não largava os velhos hábitos dos pais. Isaltino era parte do antigo-Porto.
«Chamam-no ao Algarve, chefe, é melhor levar isto.»
«É a nossa internacionalização, Isaltino. Já vamos ao Algarve.»
«Algarve é Portugal, chefe.»
«Talvez, Isaltino, talvez. Para lá do mercado de Espinho e da ria de Aveiro é tudo uma grande incógnita.»

Jaime Ramos chegara nessa manhã e percorrera a costa do Algarve ouvindo o relato daquele homem diligente que o recebera e lhe pas­sara as informações do processo. Alexandre Monteiro usava gravata e um fato que mostrava como a polícia, agora, se incomodava com a imagem que deixava nas fotografias dos jornais, à mistura com aque­la linguagem dos novos bacharéis de Direito processual. Na viagem entre Campanhã e Faro lera todos os materiais de colecção reunidos por Isaltino de Jesus. À medida que se aproximava do Algarve sentia como era inexplicável aquela simplicidade de um crime cometido por gente inábil que tinha entrado num barco e matara o tripulante depois de o deixar amarrado e à deriva no mar. E, mentalmente, re­constituíra todo o guião preparado para explicar um crime simples e banal – um homem e uma mulher de um lado, um belga solitário do outro. Mas a solidão deste solitário não era a solidão dos simples, Jaime Ramos pressentia. Até que viu o sublinhado providencial de Isaltino, traçado sobre aquele nome: Cádis.
E o que Cádis lhe lembrava não vinha em nenhum dos processos e ainda não fora mencionado nos jornais. Muros fenícios, ruínas de Cartago, gregos e árabes, e o ruído do mar. Ele lembrava-se do ruído do mar porque Rosa gostava de camarões grelhados como se comiam em Puerto de Santa Maria, e um dia quiseram conhecer o Mediterrâneo.
«O mar é aquela quantidade de água azul», ela, Rosa, mostran­do-lhe o Mediterrâneo. Teria sido há dois, três anos, pela Páscoa. Mas o seu Mediterrâneo não era o daquele trimarã que parecia abandonado na Playa de Ia Puntilla, e que depois entrou em Puerto Sherry. Eles não sabiam isso. Ele sabia. Isaltino tinha descoberto sem entrar nesses delírios, conversa sobre naufrágios e sobre as aventuras no mar. Ele sabia que a história não se poderia reduzir a uma mulher e um homem entrando num barco para matar o dono, deixando-o amarrado e entregue à tempestade que havia de transformá-lo num náufrago. Era isso que o interessava: a onda que se elevava mais alto que as outras. Esse resumo podia facilitar as coisas. Mas a vida não é fácil.

TRÊS MULHERES ESTIVERAM NO BARCO NAQUELA NOITE. Jaime Ramos está sentado num muro diante da penumbra da ilha da Armona e ouve o ruído de um pequeno barco que se afasta do cais, naquela noite de Agosto, levando dois passageiros e caixas de provisões. Um banquete. Ouve vozes e risos. Ouve a água batendo no casco do trimarã, fundeado ao largo, entre as sombras de Agosto. Brisas que volteiam nos pequenos golfos, baías, enseadas, entre ondula­ções. A meia-idade no Verão, pensa ele reparando nas fotografias daquele homem de sessenta anos que dois dias depois é retirado das águas, amarrado como num cerimonial erótico. Três mulhe­res, talvez dois homens apenas. Um velho funcionário público belga, retirado com as suas economias, fascinado pelo azul do Me­diterrâneo, inútil longe de casa, do seu trabalho insignificante.
Cerimonial erótico, expressão que não quer dizer nada. Um atrevimento súbito no Mediterrâneo, em plena madrugada, em plena tontura da embriaguez. Os fantasmas do Mediterrâneo le­vantam-se das águas, naquela tepidez de Agosto.

«Não gosta do mar?», Alexandre Montei­ro perguntara-lhe.
«Não.» Mas não era realmente verdade, tratava-se apenas de uma defesa contra o perigo da melancolia.
Duas mulheres e um homem tinham atravessado aquele canal no dia seguinte, devolvidos a um aldeamento com açoteias prefabricadas e varrido pelo vento. O único rasto era o daquele casal que fora depois recolhido no alto mar. E Cádis.

A NOTA, DEIXADA POR ISALTINO de Jesus, era uma notícia do Diário de Cadiz, de 12 de Agosto, que assinalava uma «rotura de Ia cadena del ancla que Io tenía fondeado frente a Ia playa de El Aculadero, en Ias proximidades de Puerto Sherry. Su único tripulante, un varón francês de mediana edad que hace un recorrido turístico por Ia costa española, dio aviso de socorro al no poder controlar Ia embarcación que minutos después embarrancaba en ple­na arena de La Puntilla». Há barcos que têm o destino traçado. Nada se teria pas­sado no mar que não fosse uma repetição de um encontro anterior em Cádis. Um marinheiro enviou a mensagem: que «el timos y Ia elice no tienen buena pinta» e teria de ser reparado em Puerto Sherry, onde aquele homem que se recusava a ser velho conheceu o casal.
«Não tem provas disso», comentou Ale­xandre Monteiro, que aproveitou a dúvida para ajeitar o alfinete dourado da gravata.
«Não tenho provas de nada. O mar não é bom para a cabeça das pessoas.» A vida que acaba de qualquer modo, sorriu Jaime Ramos, finalmente. Tudo o que diria um juiz, diante daquele relatório policial que menciona sevícias e tortura e um corpo amarrado. O velho era mau marinheiro e despedia-se da vida.
«O senhor imagina isso só por eles se­rem franceses. Eles mataram-no porque queriam o dinheiro dele. Não se iluda, eles sabiam o que queriam. Não vá em orgias. Quem quer dar uma foda tem bons hotéis em terra.»
Alexandre Monteiro não tinha a imagina­ção prodigiosa daqueles que temem o mar. Mas a vida ronda essa tepidez que tanto se sente em Cádis como em Olhão, como nas sombras da ilha da Armona.
Jaime Ramos concordou, acenando com a cabeça. O mundo estava cheio de maus marinheiros.

in Crimes de Verão – Revista Visão – 2 Agosto 2007

agosto 06, 2007

Desconfiar dos cidadãos

A ideia foi lançada pelo anterior presidente da República, Jorge Sampaio, e dizia respeito a "medidas de natureza fiscal e de natureza penal que devem ser introduzidas no combate à corrupção". O discurso, assim redondo e com rimas irregulares, é reconhecível à distância. Basicamente, queria dizer o seguinte o Estado pode inverter o ónus da prova para combater a corrupção. A introdução da "inversão do ónus da prova" para crimes económicos servia para que "a justiça e a moralidade fossem repostas" no país. É da imprensa da época, de Outubro de 2005.

Eu tenho algum receio sobre o conjunto a justiça e a moralidade, quando invocadas a par, trazem-me sempre à memória fragmentos da nossa história, recente ou mais antiga, em que a caça às bruxas se sucedeu ao pedido, desesperado, de moralidade e justiça.
É evidente que o então presidente não defendia a caça às bruxas nem a onda de denuncismo que os habituais profetas da desgraça (em cujo número me incluo) previam poder aparecer. Mas o demónio aparece onde menos se espera e o melhor é não lhe abrir o caminho.

Num outro discurso da época, Jorge Sampaio mencionou os cidadãos que "enriquecem sem se ver donde lhe vem tanta riqueza". Ora, isso representa um problema em que as autoridades fiscais não precisam de se esforçar muito para deslindar o caso - mas a suspeita sobre o enriquecimento não pode transformar todo o enriquecimento em ilícito. Esta demagogia popular seria grave ao mencionar que "fulano terá de passar a fazer prova da proveniência lícita dos seus bens". Em que circunstâncias? Quando a administração fiscal for, de bairro em bairro, inventariar piscinas, automóveis, jardins, antenas parabólicas, garagens? Quando receber denúncias de "cidadãos honestos"? Quando os funcionários do SEF passassem a ter de perguntar aos passageiros dos voos vindos da América do Sul se já tinham pago as férias na República Dominicana? Seja como for, a teoria ficou enunciada, com honestos adeptos e gente de boa-vontade a aplaudir. Tenho medo da gente de boa-vontade.

Seja como for, o actual presidente da República enviou para o Tribunal Constitucional o decreto que alterou a Lei Tributária; essa alteração permite que a administração fiscal passe a ter acesso às contas bancárias de um contribuinte que reclame ou tente impugnar uma decisão das Finanças; além disso, o fisco passaria a ter possibilidade de aceder às mesmas contas bancárias (sem necessidade de aviso ou autorização), no caso de haver um atraso na declaração de rendimentos. Voltando à inversão do ónus da prova, o fisco poderia também denunciar ao Ministério Público um contribuinte cujos "sinais exteriores de riqueza" não sejam "compatíveis" com a sua declaração de rendimentos.

Longe de mim discutir questões de natureza fiscal e tributária; limito-me a aceitar o juízo do meu contabilista e dos funcionários das Finanças, que até têm sido atenciosos. Mas o princípio incomoda. E em matéria de leis, devemos estar atentos aos princípios que as permitem e as autorizam. Porque, usando este princípio - mesmo que para fins geralmente positivos ou para benefício do Estado democrático - podemos criar leis injustas e perniciosas, que colocam em perigo os direitos dos cidadãos, a sua liberdade, o direito à privacidade e à vida pessoal.

Acho, portanto, que o Presidente agiu bem ao manifestar dúvidas sobre o decreto. Pode acontecer que o Tribunal Constitucional esteja de acordo com o parecer da Comissão dos Assuntos Constitucionais do parlamento, que deu o assunto por pacífico. Mas isso não implica que seja uma lei justa ou correcta e que não deixe de atentar contra os direitos dos cidadãos. Sonegar impostos é uma atitude que deve ser punida. Mas o princípio de que se deve suspeitar dos cidadãos é muito perigoso.

in Jornal de Notícias - 6 Agosto 2007

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agosto 04, 2007

O PSD tem más digestões e até disfunção eréctil

É talvez o homem que vive mais perto de Fernando Pessoa. Francisco José Viegas, 45 anos, toma-lhe conta da casa, em Lisboa. E aos livros e pertences do poeta vai adicionando vida, conversas, amigos. Num intervalo desse turbilhão, o escritor e jornalista respondeu, por e-mail, às perguntas que considerou "divertidas".

Já recuperou o computador que lhe roubaram no aeroporto de Maiquetía, Venezuela?

Comprei outro e, agora que não é preciso, faço back-ups todas as semanas.

O seu desassossego com a tentação autoritária da Venezuela de Chavéz é ético e que mais?

Gastronómico. Tenho medo que ele queira uma alimentação socialista. Na Venezuela, come-se maravilhosamente em restaurantes antichavistas.

Levou a sério Saramago na fatalidade de termos que nos integrar em Espanha?

Não. A realidade ultrapassa-o. De resto, hoje, um dos desportos favoritos dos portugueses chama-se "tiro no Saramago". Já foi tempo. Agora não dá gozo.

Diz que o PSD de hoje está reduzido a uma sala de espera. De que especialidade médica?

Devia ser apenas ortopedia mas, infelizmente, trata-se de um complexo problema de clínica geral desde más-digestões a disfunção eréctil.

Pacheco Pereira respondeu-lhe quando disse, a propósito da crise do PSD, que ele escrevia em rongorongo?

Há mais incertezas sobre a Terra do que Pacheco Pereira e eu próprio alguma vez poderemos imaginar. A diferença é que ele foi maoísta e tem mais anos disto.

Está completamente esclarecido no caso da DREN ou espera pela passagem da 'silly season'?

Tudo gente ressentida, que é o maior problema português. A dra. Margarida Moreira é só um peão, não tem muita importância. E o prof. Charrua não é um herói da liberdade de expressão. Heróis são aqueles que levantaram a voz por causa do assunto.

O que faz quando está sozinho na Casa Fernando Pessoa e tem por ali por perto os objectos do poeta?

Não faço nada, passo ao largo por causa do alarme. Mas gostava de baralhá-los ou de trocar as legendas das vitrinas.

"Longe de Manaus" é o seu "Livro do desassossego"?

É o meu livro mais recente, aquele que mais custou a escrever, aquele que me deu mais prazer pessoal.

O dinheiro ganho com prémios de livros, como o da APE, deve ser gasto de que forma especial?

Estourá-lo. Gastá-lo. Esmifrá-lo. Não dar troco. Vingar-se dos impostos pagos. Viajar. Comprar discos. Comprar champanhe. Guardar um nadinha para qualquer coisa.

Ter bebido "99 cervejas + 1" levou-o a descobrir o quê?

Que é difícil fazer uma cerveja má (mas consegue-se). Que há sempre uma cerveja desconhecida à nossa espera. Que ainda há coisas maravilhosas para beber.

Segundo os seus apontamentos, há cada vez mais mulheres portuguesas a beber cerveja. Como vê o prolongamento dessa libertação?

Vejo muito bem. Um grão na asa é sempre bem-vindo em qualquer circunstância. Em loiras, ruivas ou morenas.

No paraíso há livros?

Há muitos livros. E espreguiçadeiras, máquinas de imperial, vinho branco, praias, horas de sesta, ostras, champanhe gelado, clones de Luana Piovani e de Monica Belucci, charutos (Ramon Allones, Churchill), sessões non-stop de CSI Las Vegas, filmes de Fellini e de Howard Hawks, e cigarrilhas para dividir com o Manuel António Pina.

O paraíso de um escritor é o mesmo que de um jornalista?

Não. O paraíso de um escritor é não ter que escrever. O pesadelo de um jornalista é proibirem-no de escrever.

É no seu blog [http//origemdasespecies.blogspot.com/] que continua a fazer jornalismo: compilatório, vigilante, denunciador. Nasce-se assim ou são os outros que nos fazem ser desse modo?

Às vezes, é embirração mesmo. O problema é que uma pessoa gosta do seu país, quer que ele seja melhor, e tem aquele fantástico defeito de todos os portugueses - opiniões sobre tudo.

Entrevista de Helena Teixeira da Silva a Francisco José Viegas
in Jornal de Notícias - 4 Agosto 2007

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Saldada a dívida


Um casarão com quinhentos anos e boa comida deste tempo: é isto a Casa da Dízima, em Paço de Arcos.

Espere o leitor mais um pouco porque, depois de uma paragem - na próxima semana - em Lisboa, seguiremos viagem para o Porto e para o Minho. Será um regresso. E depois do Minho seguiremos para Trás-os-Montes, e de Trás-os-Montes voltaremos a Setúbal. O calendário de intenções fica, portanto, dis­ponível depois de na semana passada termos chega­do ao termo de Cascais, com o pernil – salvo seja – de O Pereira. Regressamos agora, pela Marginal, ao cre­púsculo mais belo da zona de Lisboa; não cansa; não esgota os tons de azul; não afasta anti-românticos como eu, com lamechices - é puro crepúsculo, suave e apetitoso, a quem teremos de pagar o dízimo. Onde? Na Casa da Dízima, e lá voltamos a Paço de Arcos para sossegar estômago e papilas, matar a sede com uma carta de vinhos superlativa, tranquilizar o espírito com um ambiente que parece feito de tons pastel - mas não é. Trata-se apenas de um casarão criado no século XV, aumentado no século XVIII, e cuja traça, espinal-medula e cores originais foram há cerca de quatro anos recuperadas pela família que teve a sorte de o chamar seu. A inveja é uma coisa boa, como se percebe.

Quando a gente se aproxima do cardápio de um res­taurante tem a tentação, genuína e ingénua, de dizer que "isto" ficava melhor "desta outra forma" e que haveria correcções a fazer. Eu abstenho-me. Acho que as coisas são como são. Se o chefe decidiu que iria ser "assim", é "assim" que eu olho para o prato. Se me apetecer de outra maneira, ou vou a outro lado, ou venho para casa cozinhar e, às tantas, abrir um res­taurante. Por exemplo: as amêijoas à Bulhão Pato, estarão elas de acordo com a regra? Ligeiramente ao lado. São suculentas, são nobres, são carnudas; não têm o molho irrequieto e cheio de manigâncias daquela tasquinha onde costumo revirar os olhos ao levar o pãozinho à travessa, recolhendo-o húmido, cheio de alho e coentros; mas uma coisa é o que nós queremos que elas sejam, e outra, inteiramente dife­rente, é o que as coisas são. Portanto, nota positiva para as amêijoas da Casa da Dízima, tal como para a saladinha de camarão e alho francês com molho vilão – numa lista de entradas que se completa com um creme de abóbora com segurelha e cantarelos; um aveludado de camarão; 'vol-au-vent' recheado de presunto e cogumelos com redução de vinho do Porto, presunto e vinagre balsâmico; 'carpaccio' de polvo com vinagrete de pimentos; salada de lagosta; trouxa de queijo de cabra; 'foi-gras' em brioche; viei­ras salteadas com azeite de trufas sobre 'foie-gras'; sala­da de lentilhas e peito de pato fumado; faltou-me exi­gir para a mesa uma pêra rocha recheada com queijo da serra, que não vi mas de que me falaram em tem­pos. Seja como for, e depois de salvar diante do risoto de camarão com abóbora ou do risoto de coco e caril com tempura de caranguejo, saltámos para a hipóte­se de uma concha de mariscos com puré de batata e recheio de mariscos, para um folhado de bacalhau com camarão e legumes salteados, cherne salteado sobre feijoada de choco e gambas, lula recheada com tamboril e açorda de camarão com espargos, para, no fim, ficar com os filetes de peixe-galo com risoto de lima, piscando o olho a outros peixes na categoria de grelhados (robalo, dourada, pregado, tamboril). O peixe-galo é sedutor, e este estava perfeito; não perce­bo, havendo peixe-galo, a razão por que se dá tanto espaço ao horror dos mares, o tamboril. Adiante. Adiante, que vêm as carnes - lombo de novilho com lagosta e batata frita, peito de frango do campo com recheio de enchidos, lombinho de porco com amêijo­as, de legumes e esparregado (recheios do Alentejo), medalhão de vitela com molho de trufas, um 'magret' de pato com 'chutney', batata gratinada e molho agri­doce, um lombo de novilho com queijo serra da Estrela (não entendo, não entendo, não consigo entender - mas sou eu), esparregado e legumes. Fiquei-me pelo 'magret'; também aqui, quase perfei­ção, filamentos dourados, ligeiramente retidos pêlos açúcares da preparação, excelente.

Retenho da lista de sobremesas aquilo que sempre me faz pensar que a simplicidade merece prémio: um requeijão com doce de abóbora e amêndoa (sob pro­posta da casa, servido com um Porto 'tawny'), embo­ra colherando aqui e ali numa boa lista. Vinhos, muito bons (prove os 'ice wine'). Lista de vinhos a copo muito boa. Paguei a dízima. Voltarei.

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 126
Vinhos brancos: 46
Espumantes & Champanhes: 16
Aguardentes portuguesas: 14
Colheitas tardias e moscatéis: 7
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 24

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente fácil à noite
Levar crianças: não
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 40 Euros

CASA DA DÍZIMA
Rua Costa Pinto, n.º17
Paço de Arcos
Tel: 214 462 965
Não encerra

in Revista Notícias Sábado – 4 de Agosto 2007

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agosto 02, 2007

Elogio do Sud Express

Tudo isso aconteceu há muito tempo, quando eu viajava pela Europa de comboio. Tenho saudades dessas viagens, mas sei que não voltam. Eram outro tem­po, há muito tempo. Partíamos sem saber o destino final, havia um inter-rail no pa­pel e outro no coração. Não havia ro­mances de Verão, não havia namoros, não havia depressões, não havia interes­ses que se arrumassem ao canto - havia apenas viagens de Verão, o ronronar do comboio atravessando as paisagens noc­turnas de Espanha antes da madrugada no País Basco, quando atravessávamos a primeira luz de Vitória, antes de nos apro­ximarmos de Hendaye. Velho Sud Ex­press. Não há melancolia nenhuma nes­ta frase. Velho Sud Express sujo, chiando em todas as curvas, falando em luso-francês, atravessando as pontes, inclinado so­bre os rios, despertando memórias. E ve­lho Sud Express ainda onde se fumava nos corredores, se partilhava a comida com desconhecidos, se falava em línguas estranhas (com tantos erros de sintaxe quanto o entusiasmo em conhecer os companheiros de viagem), se liam romances que ficavam esquecidos ou se pas­savam ao passageiro mais próximo.

Tudo isso aconteceu há muito tempo, no tempo em que não conhecíamos ho­téis, nem restaurantes de «comida de fu­são» – igual em todo o lado –, nem lojas de roupa, nem sjx«, nem discotecas onde as bebidas são iguais - tudo igual em todo o lado -, nem ruídos de aeroporto ou viagens law-cost. Só havia esse ruído, o «tan-tan-tan» do Sud Express entre Santa Apolónia ou São Bento e Austerlitz, com mudança em Irún/Hendaye, sob a vigi­lância petulante dos gendarmes franceses, vistos do lado de cá da fronteira por carabineros de tricórnio e farda verde oliva.

Velho Sud Express (1877), museu vi­vo das viagens de adolescentes, quando não havia telemóveis e um telefonema para a família custava uma refeição a me­nos nos vinte e seis dias de viagem—a va­lidade do inter-rail. Entroncamento, Pampilhosa, Mangualde, Vila Franca das Naves, Vilar Formoso, Fuentes d'Oñoro, Salamaca, Medina dei Campo, Vitória, San Sebastian e Irún - e depois Dax, Biarritz, Bordéus, Paris Austerlitz. Dizem-me que a viagem, hoje, é cómoda a partir de Irún, com o TGV francês que che­ga a Paris Montparnasse. Não, não era cómoda a viagem, em carruagens quase históricas, gastas por anos de uso de emi­grações, exílios e viagens de Verão.

Aliás, vínhamos e íamos com os emi­grantes, íamos sozinhos, em grupo ou sem sentido, íamos com mapas, com indica­ções, com guias comprados com antece­dência de meses (estudados ao porme­nor), e também com algum receio de rapazes e raparigas do Sul da Europa que chegavam a Paris para ver o mundo. Eu preferia sair de Austerlitz e seguir logo pa­ra a Gare du Nord, de onde se saía para a Escandinávia, a Alemanha ou a Holan­da. Paris no regresso, só, para cumprir ro­teiro. Mas, no regresso, aquelas carrua­gens do Sud Express eram a nossa pequena pátria. Trazíamos livros, postais, uma T-shirt comprada em Copenhaga, um poster comprado num museu de Amesterdão, e também necessidade de banho, de uma refeição (tínhamos passa­do vários dias a comer bolachas, iogurtes, conservas, queijo e pães de ocasião).

Nós, os do inter-rail desses anos (setenta, oi­tenta), fomos cosmopolitas por acaso, ciosos do passaporte e dos guichets de ex-change money onde desconfiavam das nossas notas de mil ou cinco mil escudos, trocadas com solenidade e pavor, receo­sos das contas em florins, coroas, libras, francos ou marcos. O mundo, na verda­de — feitas bem as contas -, era mais difí­cil. Ligeiramente mais difícil com essas formalidades de fronteira, de câmbio de moeda e de controlo policial. Mas era o mundo. O mundo lá de fora, o mundo que fazia de nós cosmopolitas mal atra­vessávamos Fuentes de Oñoro a bordo do Sud Express. Velho e sujo Sud Express.

in Outro Hemisfério - Revista Volta ao Mundo – Agosto 2007

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