junho 30, 2007

Terreiro do apetite


Se o leitor ou a leitora não gostam de comer por aí além, que não se aflijam. Pelo cardápio percebe-se que Vítor Sobral gosta.

É um dos 'chefs' que mais admiro. A lista tem, pelo menos, dez nomes. Mas Vítor Sobral está lá como uma das estrelas. Há quem prefira as do Michelin – eu prefiro as do Vítor Sobral. Dito isto, falemos de flores.

Ou seja: falemos da luz do Terreiro do Paço. Todas as grandes capitais deviam ter uma luz assim ao crepúsculo – e geralmente têm. De centro do velho império (que cheirava a pimenta, escravos e perfumes baratos) a parque de estacionamento (que preferia cheiro a gasolina e a pneus derreti­dos), o Terreiro do Paço, ou a entretanto republi­cana Praça do Comércio, já passou por várias fases e por vários estatutos. Viu de tudo, o pobre Terreiro: regicidas e autos-de-fé, carbonários e povoléu aos urros, ministros e construtores – mas foi sobretudo identificado com a sede do poder.

Com o Portugalinho de hoje, a praça está e conti­nuará abandonada, entregue aos carros de cilin­drada ministerial e aos passeios esburacados ou sempre em obras. Que se há-de fazer com este país em estaleiro, cheio de andaimes e pó de cimento, fumo de gasóleo e concertos de 'rock'? O costume – passar em frente e ter cuidado com os buracos.

Vítor Sobral tem as suas raízes alentejanas e rurais guardadas no código genético que transporta para os restaurantes que dirigiu, o que o salva do estrelato convencidinho e o mantém nível do nosso paladar e das nossas fantasias. Arroz, molhos, bacalhaus, cogumelos do campo (verdadeiramen­te), favinhas e espargos, carnes suculentas - com tudo isto se conjuga uma vontade de criar menus atentos e amáveis, aprazíveis, acolhedores e com uma marca pessoal que, com o tempo e o hábito, há-de tornar-se inconfundível. Lendo as suas receitas, percebe-se a intenção.

Há uns tempos, em visita ao Terreiro do Paço, o seu restaurante na vetusta praça, depois de um tártaro de bacalhau com caviar de salmão, prová­mos o peito de pato caramelizado com aquela nota deliciosa de gengibre e a bananinha assada, além de uma favada quase tradicional e alentejana, que perfumava a mesa inteira, e de uns file­tes de peixe-galo. A ementa é eufórica e mostra apetite: bacalhau de caldeirada com batata assa­da no forno, filetes de espada com arroz de ber­bigão, ervilhas com choco e ovo escalfado, arroz de cabidela (em dias certos da semana); um menu de entradas onde circulam, além do tárta­ro de bacalhau com caviar de salmão, raviolis de maçã e camarão, chamuças de camarão (que fri­tura!), carpaccio de bacalhau com pastelinhos de mandioca e bacon; lombinho de bacalhau com tomate em compota e feijão verde, bacalhau fresco panado com maçã e mousse de maçã com um nadinha de coentros, e ainda pintada, raia, cherne no forno, atum e polvo – um polvo gre­lhado e onde o azeite faz uma festa; depois, o bife com cogumelos assados e compota de ginja, as bochechas de porco preto (uma invasão letal nas cozinhas portuguesas, ultimamente), e as divinas costeletas de borrego com batatinha cre­mosa, farinhenta e gratinada.

Eu, se me permitem, gostaria de dizer o seguinte. Se o leitor ou a leitora não gostam de comer, por aí além, que não se aflijam. Que não se apoquen­tem. Que não se preocupem. Porque, pelo cardá­pio percebe-se que Vítor Sobral gosta de comer, não sofre das esquisitices contemporâneas ou das depressões dos 'chefs' – aliás, como já tive o pra­zer de almoçar com ele durante um almoço de cervejas, confirmo.

Ultimamente, tenho verifica­do que há cozinheiros excelentes que, postos diante de um prato, manifestam um cansaço evi­dente de comida. Tudo os fatiga, tudo ou quase tudo os enfastia. Sobral não acha que a cozinha possa ser uma arte pura. Ele reconhece e faz-nos saborear a deliciosa impureza das gastronomias do Sul, a deliciosa imperfeição dos gulosos, o sig­nificado da palavra suculento". Uma parte nada negligenciável dos 'chefs' contemporâneos apre­cia o "suculento" mas trata-nos como inimigos do estômago, o que é uma afronta. O crème brûlée de coco com gelado de ananás e os raviolis de ananás com queijo de cabra e salada de framboesas (api­mentados com um toque de ginja) são a epifania dessa aventura pela cozinha, um aviso terminal sobre o prazer de comer.

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 90
Vinhos brancos: 50
Aguardentes & Conhaques: 30
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 28

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: pouco acessível
Levar crianças: não
Área de não fumadores: sim
Reserva: imprescindível
Preço médio: 50 euros

RESTAURANTE TERREIRO DO PAÇO
Praça do Comércio - Welcome Center
1100-148 Lisboa
Tel: 21 0312850
Encerra aos domingos e aos almoços de sábado

in Revista Notícias Sábado – 30 Junho 2007

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junho 25, 2007

Todos podemos ser filmados?

Um jornalista do “Jornal de Notícias” foi visto a participar numa manifestação na Baixa do Porto. O facto não seria em si mesmo um “acontecimento”, se não se observassem dois pequenos pormenores na vida da cidade e no relacionamento entre a Câmara Municipal do Porto (CMP) e a imprensa. O primeiro deles tem a ver com o modelo de gestão do Rivoli e com a chamada “política cultural” que a CMP adoptou para a cidade; o segundo, com a ideia, mantida pela CMP, de que está a ser perseguida pela imprensa em geral e pelo JN em particular, numa espécie de conspiração aberta, mas cujos sinais devem, em seu entender, ser permanentemente descodificados.

O modelo da “política cultural” municipal poderá ser discutido no conjunto do modelo mais geral que Rui Rio defende para a cidade e que foi escrutinado pelos eleitores, que lhe deram um segundo mandato. Mas o facto de estarmos diante de um segundo mandato não significa que os cidadãos discordantes devam calar as críticas – sujeitar a nossa opinião ou a opinião alheia aos resultados eleitorais, por muito expressivos que eles sejam, é uma perversão da própria natureza da democracia liberal.

Há uma questão do Rivoli – e da chamada “vida cultural da cidade”. Não é isso que está em discussão. Para a CMP (escrevo isto depois de dedicar algum tempo a apeciar o seu site na internet), existe um problema de legitimidade de opinião daqueles que a criticam – e, mais, a CMP acredita que existe uma conspiração contra a sua legitimidade em tomar decisões. Por isso, serve-se do seu site para tentar “desmontar” todos os indícios dessa conspiração.

Um dos meios de que a CMP se serve é um pequeno filme em que um jornalista do JN aparece numa manifestação realizada no dia da estreia de “Jesus Cristo Superstar”. Este método de argumentar é mais do que discutível. Seria interessante saber se o vídeo em questão foi obtido por algum membro do gabinete da CMP, de modo a ser usado desta forma. Pode a CMP (ou alguém por ela) tomar imagens de vídeo de manifestações, bares, restaurantes, jardins públicos, redacções de jornais, entradas de WC públicos, lojas de lingerie, com vista a alimentar o debate político?

O processo de intenções movido a David Pontes pela Câmara do Porto é absurdo e lamentável. Quero assegurar que, no meu país, David Pontes tem o direito de ir à manifestação contra a gestão de Rui Rio para o Rivoli. O direito absoluto. Seja ele ministro, funcionário da CMP, director-adjunto do JN, secretário de Estado, dirigente da DREN, polícia de giro ou vocalista de uma banda de rock – trata-se de manifestar a sua opinião como cidadão. Não é só David Pontes que tem esse direito. Todos temos. E sem a ameaça de sermos controlados por câmaras de vídeo que verifiquem qual o nosso clube de futebol, a nossa orientação sexual, a nossa vida como cidadãos.

Independentemente da questão do Rivoli, o que está em causa é a incapacidade de a CMP lidar com a opinião contrária. Ter sempre razão, como se sabe, é muito cansativo e demasiado perigoso; normalmente, os meios usados ultrapassam aquilo que é sensato. Filmar manifestantes, por exemplo, pode ser um precedente fatal e constituir um indício do que o poder faria se tivesse oportunidade para nos vigiar totalmente.

A CMP tem toda a legitimidade para tomar as decisões que entende serem as melhores para a cidade; mas deve assumir os riscos inerentes, tem de lidar com as críticas, as manifestações, a oposição da imprensa, a opinião dos jornalistas, o ruído das ruas, as opiniões absurdas. E pode contestá-las. Um mundo em que só os políticos pudessem ter opinião seria muito pobre e muito triste; não porque as suas opiniões sejam más, mas porque têm tendência a serem sempre maioritárias. Eis porque eu, que até acho que Rui Rio tem alguma razão, penso que a perde quase totalmente.

in Jornal de Notícias – 25 Junho 2007

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junho 23, 2007

Praia e arroz, coisas românticas


O Museu do Arroz é muito bonito, muito romântico e fica perto da praia. Tem dias de informalidade e outros de 'snob'.

Arroz de grão, feijão, espinafres e labaças; de cardos, carqueja e tomate, de pimentos, couve e grelos; de cenoura, ervilhas e abóbora; ou de vitela, pato, frango e peixes, mas também de mariscos, polvo, costelinhas de vinha d'alhos e cordeirinho; e até de lebre, chocos, lapas, bacalhau e sardinhas, manteiga, forno e açafrão – não vale a pena enumerar. Eu conto. O meu último recenseamento em matéria de arrozes nacionais vai pelas 362 variedades, receitas, dependências e subespécies. Trezentas e sessenta e duas variedades, repito ao leitor incrédulo – de Norte a Sul do país, distribuídas por colinas, ravinas, vales, planícies, praias, aldeias ribeirinhas, bairros típicos de cidades com mais de cem mil habitantes, povoados arredondados pelo frio no meio das serras e lugarejos remotos. E, para rematar, o golpe sobre a sua incredulidade: gosto de quase todas as receitas; tenho saudades repentinas de algumas delas, acordo – nas manhãs de final de semana – pensando num tachinho de arroz, no refogado que o suporta, na sacrossanta folha de louro, no caldinho de tomate da sua base, nas águas suculentas onde saltitam feijões previamente escaldados ou quase cozidos e, finalmente, nos grãos que fervem e vão adquirindo textura, gosto, sabor, aroma, personalidade, até huanidade. Sou um fanático do arroz, como a maioria dos portugueses de bem. Criei duas ou três receitas que são património da minha família, escrevo algumas para que não as perca ao longo da vida.

Além do arroz, gosto de praia. E sou um admirador confesso da praia da Comporta, às vezes não tanto pela praia mas pela paisagem, pela restinga dividida com o Sado, pela vaga sensação de memórias saudáveis e apetitosas.

O Museu do Arroz, à entrada da aldeia (para quem vem da praia e daquilo que hoje são as ruínas de Tróia – aguardamos desenvolvimentos), é um restaurante emblemático da zona (que detém uma dependência, o Ilha de Arroz, mesmo no areal da praia, um restaurante a que se pegou a designação "bar & lounge", que hoje serve para tudo). Depois de obras, reabriu há tempos e visitei-o recentemente. Fui, em tempos, um romântico: recomecei ali a vida em tempos, durante um Verão bonito e saudoso. Com um amigo, escrevi uma mini-novela que se passava nas redondezas, coisas de outro Verão, entre plantações do Arroz Ceifeira e dunas que desciam dos pinhais, coisas que vagamente se coadunam com o arroz de bacalhau (várias vezes provado – e acima do razoável), do arroz de pato (provado desta vez e também a merecer nota positiva), arroz de lebre ou de lagosta.

A mesa era a redonda, de canto, grande, com crianças rodopiando, e foram apreciadas alguns dos petiscos, todos com nota positiva: pastéis de bacalhau, bolinhos de arroz, pimentos Padrón, casca de batata frita, ovos mexidos com farinheira e choco frito (muito crocante e salgadinho). Ficaram por provar as chanquetas, as amêijoas, a morcela assada os cogumelos e o camarão frito, bem como a sopa de cação. As saladas prometiam rúcola com parmesão e tomate com mozarella, coisas que ficam bem com o terraço-varanda que dá sobre os arrozais durante o crepúsculo. Avançámos: os pastéis de bacalhau estavam bons mas o arroz de tomate, inexplicavelmente, chumbou no exame; compensou-se com os filetes de polvo panados acompanhados de migas (havia também um bacalhau lascado com batatinhas) e na mesa também se passearam os secretos de porco com migas, um bife com pimenta rosa e costeletas de borrego com alecrim. Fiquei fã dos filetes de polvo, mas a dose era escassa. Enquanto caía a noite, veio a mousse de chocolate, aplaudida, juntamente com uma encharcada (boa, sim senhor), um bolo de chocolate humedecido, e um leite-creme queimado (há uma grande lista de gelados Häagen Dazs).

Desta vez não bebi o licor de poejo, preferindo o 'whiskey' da ordem (bebi várias 'Grolsch' durante o jantar, que vieram com copo gelado e mergulhadas em balde de gelo, muito correctamente).

Familiar e festivo (embora ligeiramente carote, a precisar de reforçar as doses para esfomeados), o Museu do Arroz é muito bonito, muito romântico e tem uma excelente localização, perto das praias. Tem dias de informalidade e outros de 'snob', como tudo. Como diz um amigo, serve para debandadas de praia, casamentos, aniversários, casais e 'bar mitzvah's'. Acabo por voltar.

À Lupa
Vinhos: ***
Digestivos: ***
Decoração: ****
Serviço: ***
Acolhimento: **
Mesa: ***
Ruído da sala: **
Ar condicionado: ***

Garrafeira
Vinhos tintos: 52
Vinhos brancos: 18
Aguardentes & Conhaques: 12
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 14

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 35 euros

Restaurante Museu do Arroz - Comporta
7580-612 Comporta
Tel: 265.497555
Encerra às segundas

In Revista Notícias Sábado – 23 Junho 2007

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junho 18, 2007

As fogueiras de Gaza

O Ocidente não aprende – o lado de lá também não. Ninguém está disponível para isso. Os acontecimentos de Gaza deviam ensinar-nos alguma coisa mas há gente que se compraz na contabilidade de perdas e ganhos a propósito de tudo e de nada. Por exemplo: o exercício contumaz que consiste em atribuir culpas a Israel a propósito de todo e qualquer acontecimento que prolongue a crise e a agonia do Médio Oriente. Israel, na verdade, tem algumas culpas nessa contabilidade. Mas é curioso verificar como a imprensa e a televisão estabeleceram os seus silêncios a propósito da recente investida libanesa sobre os extremistas ou como, a princípio, desvalorizaram o ambiente de guerra civil que se estendia da Faixa de Gaza à Cisjordânia. Por uma razão: Israel estava apenas longinquamente envolvido. Se não era possível colocar toda a pressão em Jerusalém e Telavive, a imprensa desinteressava-se – não sendo possível atribuir culpas a Israel, nenhuma “cobertura dramática” se justificava, nem os “jornalistas” do costume estavam interessados em manipular imagens, distorcer factos ou inventar personagens.

Eles que morram, portanto. Na verdade, os palestinianos nunca foram assim tão importantes. Manipulados e servidos como carne para canhão na indústria do islamismo radical e do pan-arabismo, os palestinianos foram um argumento para atacar Israel. Há alguns factos que vale a pena relembrar, mas sobretudo o essencial: quando a ONU determinou o estabelecimento de dois estados na região, um israelita e outro palestiniano, foram os estados vizinhos que o impediram – na verdade, a invasão de Israel pouco depois da declaração de independência, em 1948, resume bem o sentido desse conjunto de factos desordenados pela história. Pouco importavam os palestinianos e o seu Estado. Aniquilar Israel era o primeiro dos objectivos. Foi-o durante a Guerra dos Seis Dias e foi-o na do Yom Kippur, tentativas de cumprir esse objectivo e que apenas transformaram Israel numa potência militar regional, não conseguindo no entanto impedir que o país continue a ser uma democracia liberal – e, felizmente, cada vez mais laica no futuro.

Os acontecimentos que durante a semana passada transformaram Gaza (que Sharon desocupou, tal como tinha, antes, desocupado os territórios do Sinai, capturados na sequência da agressão egípcia na guerra do Yom Kippur) numa dependência do extremismo muçulmano, podem ser analisados do ponto do vista do equilíbrio de forças no Médio Oriente, como uma espécie de sinal emitido pelo Irão. Mas a ocupação e pilhagem da casa de Yasser Arafat e a comemoração do feito transmitida pelas televisões constituem uma imagem inesperada, patrocinada pelo Islão radical e anunciada várias vezes por Mahmoud Ahmadinejad. Condenando Arafat a inimigo póstumo, sitiando os territórios de Gaza e da Cisjordânia, o islamofascismo do Hamas visa mais longe, repetindo a história e impedindo qualquer forma de diálogo entre os palestinianos e Israel. Esse é o objectivo principal.

Evidentemente que não faltam, já, os discursos “compreensivos” para com a barbárie institucionalizada pelo Hamas – à falta de culpas a atribuir a Israel (elas virão, elas virão), inventa-se um tom muito etnológico para condenar as execuções sumárias cometidas pelo islamofascismo e a tentativa de transformar Gaza numa plataforma incendiada pelo radicalismo.

O problema é que tudo isto estava há muito escrito e previsto. O pobre Ocidente vive aterrado pelas suas culpas e permanentemente desejoso de dormir com o inimigo. Agora, o inimigo está às suas portas, mas os seus pequenos cérebros estão ocupados com coisas superlativas. Quando Gaza for transformada num Afeganistão em miniatura, voltarão a atribuir culpas a Israel, o que os deixa sempre felizes e realizados.

in Jornal de Notícias – 18 Junho 2007

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junho 16, 2007

Receita fácil


A Marina de Cascais, tirando o Verão de Agosto, não é muito cativante. A Brasserie também não.

Eu não conhecia a Marina de Cascais e daqui peço humildemente ao dr. Capucho que meta aquilo na ordem, que deve e pode. Está uma tristeza. Se aquilo foi o chique de Cascais durante algum tempo, pois esperam-se melhoras – pinturas no descalabro, lixo nas ruas, bares (o que eu gosto desta mania de tudo ser “lounge”) com som que valha-nos deus, esplanadas vazias, turistas meio perdidos. Já sei que querem corrigir-me: era dia de semana e havia vento. Pois é nesses dias que devemos ir verificar como são as coisas, de facto. E, de facto, são tristes. Está bem que há a baía de Cascais, propriamente dita – mas essa já lá estava há muito, antes da Marina, e não precisava que a estragassem, juntamente com uma parte da vila.

Eu fui lá com um fito: jantar a horas tremendamente decentes. Um jantar tranquilo mas palrador, ameno, de conversa iluminada por uma bebida e, até, por uma comida à qual não fosse difícil aderir. Nem sempre é possível. O bife é o reenvio à infância e à adolescência, àquele género de refeições que não dão trabalho a pensar nem, na maior parte dos casos, a preparar (pelo menos se nos escusarmos a comentar o preço do bife).

O bife é o emblema da humanidade convertida ao fogo – e abandonando a condição vegetal. É o pânico dos vegetarianos. O horror dos que nos acham semelhantes a abóboras. Tenho o maior respeito por eles; mas peco frequentemente por um bom bife. Um bife que resuma a natureza da palavra “suculento”. Um bife que redima o apetite e a vontade de comer. Um bife, portanto, nada de mais.

Desta vez, em vez de procurar os lugares habituais onde posso encontrar um bife, entrei na Brasserie de l’Entrecôte da Marina de Cascais. Conheci, há alguns anos, a Brasserie da Rua do Alecrim, a dois passos do Chiado, e garanti-me – e ao meu estômago – uma receita fácil. Ali estaria um bife; não o tradicionalíssimo bife lusitano (e argentino nem pensar, e americano longe de nós), mas uma peça de carne. O “entrecôte”. A salada de alface do dia com nozes chegou então, com pãozinho quente, estaladiço, de duas qualidades, óptimo para barrar com manteiga ou – no meu caso – para apreciar a textura da alface. Que era óptima. Havia uma lista de vinhos relativamente simples, sem grandiloquência nem muitas peças de quadro de honra, mas, que diabo, era um bife – pois viesse a cerveja. Das indicadas na lista (várias), só havia uma, afinal. Foi essa que veio.

O “entrecôte” com molho de ervas e batatinhas fritas encaminhou-se para a nossa mesa ao fim de rigorosos vinte e cinco minutos, depositado numa travessa aquecida. Era carne. E era molho. Que dizer-vos mais acerca da carne? Que era carne, razoável, boa para cortar à faca, decente. Já do molho dir-vos-ei que não se conteve – daí a minutos era vê-lo soltar-se, mal ligado (ah, um molho mal conseguido já foi considerado motivo suficiente para suicídio do cozinheiro), separando a pasta com as ervinhas da gordura que o cozinhou, amarelada, na margem do prato. O retrato fica. Quanto às batatas fritas, que devia ser a bandeira a cumular um bom bife, simplesmente sabiam a óleo. A óleo de fritar, se me faço entender. Como havia ainda três quartos de bife depois de abandonadas as batatas ao seu túmulo, pedi novo cestinho de pão, daquele estaladiço de há pouco. Veio, mas frio e sem dar estalinhos.

Veio então a lista de sobremesas, com “cheesecake”, tarte de maçã, bolo de chocolate, sopa de morango com gelado de baunilha com canela em pó, mousse de chocolate com compota de ananás e pimenta verde, leite creme queimado, abacaxi, sorbet de limão, e gelados de laranja, maçã, ananás e chocolate. O “cheesecake” estava sereno, sossegadíssimo, e não o incomodámos muito. Veio então o café e um whiskey irlandês, que serviram de encosto enquanto verificámos a lista de vinhos a copo, onde havia, entre outros, Quinta de La Rosa (5,25€), Esteva (3,30€), Quinta da Bacalhôa (10,20€), Altas Quintas (10,20€), José de Sousa (6,30€), Quinta das Cerejeiras (7,55€), Marquês de Riscal Rioja (8,20€), Periquita (2,65€) e apenas um único branco, Planalto (2,65€). Que hei-de dizer-vos? Que é uma tristeza.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * *
Acolhimento: * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 42
Vinhos verdes: 3
Vinhos brancos: 12
Aguardentes & Conhaques: 12
Portos & Madeiras: 8
Uísques: 14

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: sim
Reserva: aconselhável
Preço médio: 25 euros

Restaurante Brasserie de l’Entrecôte
Marina de Cascais, Loja 43
2750 - 001 Cascais
Tel: 21 481 81 96
Não encerra

in Revista Notícias Sábado - 16 Junho 2007

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junho 11, 2007

O mundo perfeito

Vivemos num tempo de incerteza. Aparentemente, as coisas vão bem, o défice está ser combatido, há razoáveis novidades na economia, o Estado mostra uma face arrumadinha - mas vivemos um tempo de incerteza. Há coisas que inquietam, para lá da boa saúde do Estado, e uma delas tem a ver com o contraste entre a boa saúde do Estado e o estado periclitante dos cidadãos.

O trocadilho justifica-se porque, frequentemente, Estado e cidadãos estão em lados diferentes do "campo da batalha". Veja-se o caso da taxa de natalidade, que tem preocupado as figuras do Estado ao ponto de o presidente da República ter referido o problema recentemente. Parece que os portugueses se reproduzem menos. O problema não está, apenas, na descoberta do planeamento familiar, da pílula e do chamado "hedonismo dos tempos modernos" - mas também no desinteresse dos portugueses médios (essa categoria flutuante) pela vida em família e pela dedicação ao futuro. Os economistas e fiscalistas são os mais preocupados, uma vez que menos natalidade significa, a curto prazo, menos contribuições para a segurança social, menos arrecadação de impostos e menos portugeses.

A solução seria convencer os portugueses a reproduzirem-se em níveis aceitáveis, não só para que a Pátria não desapareça mas, também, para que os cofres do estado não percam a esperança. Já há tempos um secretário de Estado visionário defendeu uma discriminação negativa dos celibatários e das famílias com poucos filhos, através de medidas de incentivo fiscal aos melhores reprodutores da espécie. Felizmente que houve bom-senso na altura e a ideia caiu. Mas o problema não é apenas de demografia, de economia e de fiscalidade. A verdade é que os portugueses se reproduzem menos porque a vida está mais difícil. Porque vivemos um tempo de incerteza. Os portugueses pensam e fazem contas à sua vida, mais do que às contas do Estado. E, se o Estado está de boa saúde, os cidadãos temem pelo seu bem-estar individual.

O bem-estar individual é uma descoberta recente, que se sobrepõe frequentemente ao bem-estar colectivo e às escolhas gerais que são ou podem ser boas para o Estado - mas não são boas para as pessoas. Fazer coincidir as duas razões é um trabalho difícil e supõe um clima de confiança. Ora, há dúvidas muito pertinentes a assustar os cidadãos.

Um sistema de ensino sem qualidade real é uma das razões. Basta ver o clima de quase indigência científica que toma conta do sistema de avaliação escolar periodicamente. As notícias sobre as reformas da segurança social também não são boas. As desconfianças sobre a boa-fé da política aumentam. O baixo nível da discussão sobre as novas grandes obras do regime (a Ota, o TGV) não inspira grande confiança nos cidadãos. O clima de certa intimidação não é despiciendo.

Os demógrafos, os sociólogos e os economistas estão preocupados com a baixa taxa da natalidade. O presidente da República também. A questão, porém, não tem a ver com o libido dos portugueses, mas com a confiança que vai baixando em relação ao Estado e ao seu poder para criar confiança.

Há também uma questão puramente egoísta: ter filhos é cada vez mais caro, cada vez mais difícil o acesso rápido à saúde; e cada vez é mais difícil convencer os portugueses de que a sua felicidade é uma questão de futuro. Os especialistas em sociologia e moral ficaram chocados, recentemente, com um estudo que mostrava que a vida familiar não era uma prioridade para os portugueses. Perguntem-lhes porquê.

Os portugueses podem ter, como toda a gente, baixos instintos. Mas não são parvos. Podem estar mais egoístas, mais ciosos da sua liberdade - mas, felizmente, estão menos parvos.

in Jornal de Notícias - 11 Junho 2007

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junho 09, 2007

Delicadeza saborosa


O Bull & Bear, no Porto, tem agora um espaço para petiscos e pequenos pratos. E merece o nome e a fama.

Sabe o leitor o que são aquelas tardes de entre Maio e Junho, com uma ventania a descer ou a subir pela Avenida da Boavista? Eu sei. Recomendo-a para temperamentos românticos e para quem gosta de restaurantes protectores, agradáveis, conservadores, amenos, de boa comida. O apetite é uma incógnita, indeterminado como a vida humana, flutuante, sujeito a contrariedades e à maldição da alma. Claro que há pessoas mais positivas e optimistas para quem tudo se reduz a moléculas e substâncias, alquimias e matérias-primas. Oxalá eu fosse assim. Não sou. Um restaurante não é apenas um laboratório – é um também atrevimento, bem-estar, vozes ao fundo que evitam a sensação de se estar sozinho (quantas vezes, ó deuses), rumor de passarada nas varandas, ruídos de tachos, tilintar de copos. Tudo nos predispõe – e tudo nos indispõe. Basta querermos ou deixarmos.

Há uma certa magia a desprender-se dos restaurantes de que gostamos; somos quase sempre parciais nas nossas escolhas: basta um pormenor no bacalhau, uma gota de limão, uma fatia de queijo, e logo vêm à memória noutes gloriosas, perdições, conversas, repetições de sobremesa, coisas doces e amáveis. Um restaurante é isso. Também é isso, independentemente das estrelas no nosso Michelin pessoal (já vos disse como acho cretino o Michelin?), das preferências do mercado, da moda mais recente, da inovação tecnológica (ah, sim, as baixas temperaturas, os crudíveros, as essências florais), da decadência das papilas. E do desejo de saúde, essa pequena ignomínia que afecta já uns poucos de lugares, de Lisboa a Coimbra. Paremos por aqui. Tomemos um amigo, daqueles sérios amigos tão raros, e vamos jantar com ele, ao Bull & Bear, onde o Miguel Castro e Silva continua a ser uma referência para o estômago e para a mesa onde o apetite se senta connosco à mesa.

Desta vez, porém, não no restaurante propriamente dito, mas ao pequeno bar que funciona como entreposto de petiscos e pratinhos de prova. Hoje não estávamos para o robalo marinado com ervas frescas, nem para o magnífico bacalhau (cozinhado, sim, a baixa temperatura, sem ultrapassar os 80ºC) ou o magret de pato com risotto de cogumelos. Queríamos menos – mas que fosse bom. E foi. Começámos com um queijo de cabra cortado em cubos, com alcaparras e azeitonas, saboroso; passámos depois, lendo a ementa, pelo bacalhau à Braz, pela alheira grelhada com espinafres, pelos gnocchi com cogumelos, pelo peito de frango laminado em caril, pelo arroz de polvo, pela carne de porco confitada com migas de tomate, pela açorda de camarão e pela vitelinha com molho vilão servida com batatas salteadas – e fomos pelos ovos mexidos com alheira e espinafres, muito bons, seguindo-se o camarão com feijão branco, uma experiência para anotar, terminando com uma francesinha com lombinho de porco preto, marinado durante oito horas, absolutamente recomendável. Tudo vem em pequenas travessas e é servido por nós em pratinhos brancos; e vem tudo em condições, à temperatura ideal, acabado de cozinhar. Raro em petiscarias portuguesas. Havia ainda uma salada de atum com fejão frade e maçã, bacalhau com grão, queijo fresco com tomate e rúcola, salada de frango e empanada à espanhola.

Com isto, bebemos vinho a copo. Optámos por um Castello d’Alba, duriense, claro, que ficou pelos 2€, e que valeu o seu preço. Pode, claro, pedir-se a lista de vinhos, mas o cardápio de copos não é despiciendo. Vejamos. Nos brancos, um verde Quinta do Cais (2€), um Douro da Quinta da Covella (4,20€), Duque de Viseu (2,40€), Quinta do Cardo de 2005 e Vale de Calada (ambos a 4€), havendo um rosé (Herdade Grande, do Alentejo), e sendo estes os tintos: Castello d’Alba Unoaked (o nosso), Quinta de Cabriz 2004 (2,10€), Quinta do Valdoeiro 2001 (2,80€), Vale da Calada 2003 (2,80€). A flute de Veuve Clicquot Brut (9€) e o espumante Vértice Reserva Bruto (5,40€) também entram na lista.

Nas sobremesas (embora tivéssemos optado pelo pudim à Abade de Priscos), destaque para o sorvete de limão, para o creme de maçã e para o toucinho do céu ou o “bávaro” de framboesa. Bebemos, com a sobremesa, e antes do café, um Porto Vintage, embora houvesse dois moscatéis apreciáveis e, infelizmente, nenhum “late harvest” que estava a pedi-las. Depois: voltámos para a ventania, muito mais felizes. Excelente refeição.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 140
Vinhos rosés: 2
Vinhos brancos: 60
Espumantes & Champanhes: 10
Aguardentes portuguesas: 8
Portos & Madeiras: 30
Uísques: 20
Cervejas: 5

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: não
Bengaleiro: sim
Área de não fumadores: sim
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 22 euros

BULL & BEAR - Bar & Petiscos
Av. Da Boavista, 3431
4149-017 Porto
Tel: 22.6107669
Encerra aos sábados ao almoço e aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 9 Junho 2007

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junho 04, 2007

Omenagem à hortografia

A senhora menistra da Educação açegurou ao presidente da República que, em futuras provas de aferissão do 4.º e do 6.º anos de iscolaridade, os critérios vão ser difrentes dos que estão em vigor atualmente. Ou seja: os erros hortográficos já vão contar para a avaliassão que esses testes pretendem efetuar. Vale a pena eisplicar o suçedido, depois de o responçável pelo gabinete de avaliassões do menistério da Educação ter cido tão mal comprendido e, em alguns cazos, injustissado. Quando se trata de dar opiniões sobre educassão, todos estamos com vontade de meter o bedelho. Pelo menos.

Como se sabe, as chamadas provas de aferissão não são izames propriamente ditos: limitão-se a aferir, a avaliar – sem o rigôr de uma prova onde a nota conta para paçar ou para xumbar ao final desses ciclos de aprendizagem. Servem para que o menistério da Educação recolha dados sobre a qualidade do encino e das iscólas, sobre o trabalho dos profeçores e sobre as competênssias e deficiênçias dos alunos.

Quando se soube que, na primeira parte da prova de Português, não eram levados em conta os erros hortográficos dados pelos alunos, logo houve algumas vozes excandalisadas que julgaram estar em curso mais uma das expriências de mudernização do encino, em que o menistério tem cido tão prodigo. Não era o caso porque tudo isto vem desde 2001.

Como foi eisplicado, havia patamares: no primeiro deles, intereçava ver se os alunos comprendiam e interpetavam corretamente um teisto que lhes era fornessido. Portantos, na correção dessa parte da prova, não eram tidos em conta os erros hortográficos, os sinais gráficos e quaisqueres outros erros de português excrito. Valorisando a competenssia interpetativa na primeira parte, entendiasse que uma ipotetica competenssia hortográfica seria depois avaliada, quando fosse pedido ao aluno que escrevê-se uma compozição. Aí sim, os erros hortográficos seriam, digamos, contabilisados – embora, como se sabe, os alunos não sejam penalisados: á horas pra tudo, quer o menistério dizer; nos primeiros cinco minutos, trata-se de interpetar; nos quinze minutos finais, trata-se da hortografia.

Á, naturalmente, um prublema, que é o de comprender um teisto através de uma leitura com erros hortográficos. Nós julgáva-mos, na nossa inoçência, que escrever mal era pensar mal, interpetar mal, eisplicar mal. Abreviando e simplificando, a avaliassão entende que um aluno pode dar erros hortográficos desde que tenha perssebido o essencial do teisto que comenta (mesmo que o teisto fornessido não com tenha erros hortográficos). Numa fase posterior, pedesse-lhe: “Então, criançinha, agora escreve aí um teisto sem erros hortográficos.” E, emendando a mão, como já pedesse-lhe para não dar erros, a criancinha não dá erros.

A questão é saber se as pessoas (os cidadões, os eleitores, os profeçores, “a comonidade educativa”) querem que os alunos saião da iscóla a produzir abundãnssia de erros hortográficos, ou seja, se os erros hortográficos não téêm importânssia nenhuma – ou se tem. Não entendo como os alunos podem amostrar “que comprenderam” um teisto, eisplicando-o sem interesar a cantidade de erros hortográficos. Em primeiro lugar porque um erro hortográfico é um erro hortográfico, e não deve de haver desculpas. Em segundo lugar, porque obrigar um profeçor a deixar passar em branco os erros hortográficos é uma injustiça e um pressedente grave, além de uma desautorizassão do trabalho que fizeram nas aulas. Depois, porque se o gabinete de avaliassão do menistério quer saber como vão os alunos em matéria de competenssias, que trate de as avaliar com os instromentos que tem há mão sem desautorisar ou humilhar os profeçores.

Peçoalmente, comprendo a intensão. Sei que as provas de aferissão não contam para nota e hádem, mais tarde, ser modificadas. Paço a paço, a hortografia háde melhorar.

in Jornal de Notícias – 4 Junho 2007

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junho 03, 2007

Beleza e felicidade

De vez em quando, a escolha dos lugares sobrepõe-se à alegria de via­jar, propriamente dita, àquela sensação de perdição que marca as grandes viagens. Durante muitos anos — os da ado­lescência — imaginei como seria a Islân­dia; li o que havia para ler. Restavam, além dos «países possíveis» (ou seja, paí­ses que era possível visitar, como a Irlan­da e o México), dois pequenos territórios como o Suriname e o Belize. Estive na fronteira do Suriname, vindo do Brasil, atravessando o Equador no sentido do Norte; e passei a minha temporada de Belize, as antigas Honduras Britânicas.

Nenhum livro me levou até lá, mes­mo sabendo que Graham Greene e Aldous Huxley tinham escrito sobre o Belize. Para Huxley, o Belize era um terri­tório para lá de especial: ninguém iria ao Belize senão para ir ao Belize. Ou seja: é um país que não fica a caminho de ne­nhum outro, sitiado entre as Honduras, a Guatemala e o México. Ao contrário de todos os países da América Central, o Belize não sofreu as desventuras das guerras civis, nem as das ditaduras políticas - e fala-se inglês. Mais: às quatro da tarde, o país relaxa e toma o seu chá (ou, bem entendido, a sua garrafa de Belikin, a saborosa cerveja recriada por Wolfram Köehler, um mestre cervejeiro que tive a alegria e o conforto de conhecer) para escutar, pela rádio, as notícias da BBC a partir de Londres.

Eu, que tinha lido Somerset Maugham e imaginara as suas personagens de olhar perdido e de vida sem rumo, ao balcão de um bar na Tailândia, ou num café na índia, acabei por encontrá-las no Belize, tomando bebidas no Bellevue Hotel (que entretanto fechou as portas) ou procurando repetir os passos de River Phoenix, visitando o Lily Rose Café & Pátio (restaurante onde o actor tinha mesa permanente), ou vagueando nas ruas em redor do pequeno canal que atravessa Belize City, a primeira capital (a actual é Belmopan, uma espécie de pequena Brasília desenhada a esquadro). Cidade de estrangeiros perdidos ou fora­gidos, Belize City, com as suas constru­ções de madeira colorida, os seus automóveis dos anos cinquenta e sessenta, é também o chamado destino de sonho. Por um acaso da natureza (que provi­dencia furacões, tempestades tropicais e tufões com a regularidade das estações do ano), a sua geografia foi, durante muito tempo, poupada aos grandes ho­téis ou aos resorts luxuosos; nas keys (as ilhas do golfo, rente ao recife de coral - o segundo maior do mundo), há ainda pequenos hotéis rodeados de palmeiras, caminhos de areia e terra, e restaurantes de uma simplicidade comovente, que são a única interrupção diante do mar azul e esverdeado. Acho, por mim, que é o mesmo Mar dos Sargaços da escritora Jean Rhys, mas é só imaginação.

Cometi a imprudência de viajar ab­solutamente sozinho no Belize. Não é território para solitários, a menos que se queira pertencer à galeria de perdidos de Maugham ou Graham Greene. Há uma nostalgia perigosa (um dos símbolos do país é a orquídea negra) que nos assalta nos lugares mais belos. Queremos estar junto das pessoas que nos fazem falta – para ver, em companhia, as colinas do Citrus District, admirar as baías do Sul ou adormecer numa sesta junto de Altun Ha, as ruínas maias. Esse é o perigo da viagem em geral: o contacto com a beleza e o seu mistério. Durante algum tempo alimentei o projecto de escrever um romance passado em Belize City. Chamar-se-ia Bellevue Hotel, o livro, e preparei cuidadosamente uma galeria de personagens que me serviria para contar uma história sobre a felicidade. Mas, fi­nalmente, soube que me faltava a histó­ria. A beleza do Belize é o seu afasta­mento, a sua distância, o seu silêncio, a sua ausência de história.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo - Junho 2007

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junho 02, 2007

Diante do Tejo à espreita


O Bica do Sapato, em Lisboa, é um luxo português que ainda não saiu da moda.

A história do luxo não é a história da moda, e há luxos que nunca estarão na moda – tal como há modas desprovidas de luxo. O Bica do Sapato está entre as duas coisas: um misto de 'glamour' empres­tado pela fama e de luxo cedido pela magnífica comida. É essa a razão por que uma crónica de res­taurante nunca será uma crítica da cozinha nem uma crítica de cozinha poderá ser um apêndice sobre arte culinária. As coisas estão ligadas, mas a sua ligação é puramente conveniente, circunstancial; tem a ver com noites de beleza, por exemplo, com um apetite providencial, com um encontro, com uma nota mais refinada na corda do violoncelo. Falo da "corda do violoncelo" por falar – é o instrumen­to da pura harmonia, volátil e etérea, que deve invo­car-se nestes casos.

Alfredo Saramago publicou agora um livro sobre vinhos e nele interroga-se sobre "a natureza da apre­ciação". É uma reflexão para que todos estamos convidados. Podemos definir um vinho apenas pelas suas qualidades? É definitivo que um vinho seja a reunião dos seus aromas e o resultado dos bons pro­cedimentos que o produziram? Há coisas que, em determinadas circunstâncias, valem mais ou, pelo menos, valem mais intensamente. Já foi tempo em que o creme de três cebolas com pêra escalfada em vinho branco e telha de queijo fazia as delícias nas entradas, bem como o queijo de cabra gratinado com mel de alfazema sobre estaladiço de tomate confitado ou a saladinha de bacalhau com tomate e poejo, gelatina de suco de tomate e crocante de pimenta verde, tal como as ostras frescas com pão de centeio, vinagre de vinho tinto e chalotas picadas, ou a salada de lavagante, batata e espar­gos verdes em cesto estaladiço com molho rosa e azeite de semente de abóbora tostada. Diante destas propostas, o que dizer? Acrescentar-lhes o 'carpaccio' de ganso com flor de sal, o caranguejo panado com sementes ou a canja de marisco com camarões grelhados. Esqueçamos o estilo (um 'rondó' galante onde se enumeram todos os instrumentos necessá­rios para executar a partitura) e concentremo-nos numa das características essenciais da Bica: a varie­dade.

Já comi uns polvinhos magníficos, grelhados (com rúcola e vinagre balsâmico) e já desafiei em tempos um lombo de bacalhau fresco escalfado em azeite virgem com 'risotto' de bacalhau (com uma colherzinha lateral de compota de tomate e cebola) que veio depois de uma sopa de lentilhas com migas de chouriço e tomilho, enquanto Paul Auster elogiava uma coxa de faisão com legumes. Os filetes de peixe-galo são um recurso tradicional da casa, quer na sua variante "simples", assado, quer – de outra ocasião – panado em sementes sobre puré de batata doce e aipo, funcho caramelizado e fricassé de espargos ver­des ou servido sobre ostras e espinafres com tomate fresco assado ou ainda acompanhado de 'risotto' de espargos. Nas incursões de denominações tradicio­nais, visitemos a lista: crocante de leitão à Bairrada, 'magret' de pato, 'entrecôte' de bisonte, vieiras salte­adas com 'risotto' de baunilha, ou lombo de porco preto com guisado de lentilhas e cacholeira alentejana (de outros tempos), raviolis de caranguejo, pá de cabrito com crosta de azeitonas ou carré de cabrito com puré de feijão branco, entre outras hipóteses saltitantes de acordo com a época, a inspiração, o calendário, a exigência e a memória (a minha).

Sobremesas, exultantes: há gelados Häagen Dazs, bolo de iogurte e azeite, 'parfait' de queijo de cabra com praliné, salada de citrinos, tarte de maçã com gelado de baunilha ou 'coulant' de chocolate amar­go. E há uma lista de vinhos muito bem elaborada, além de um bom serviço de vinhos a copo (com os de sobremesa, muito tradicionais, entre moscatéis, Madeiras e Portos), e esta vista de crepúsculo prima­veril que recomendo acima de toda e qualquer coisa.

Não me refiro, desta vez, à "secção japonesa" do Bica do Sapato, com o seu 'sushi bar', senão para mencio­nar excelentes 'tempuras', a que voltaremos um dia. Mas para recordar o restaurante é sempre preciso voltar um dia mais. A ementa muda, a inclinação do crepúsculo também. A nossa disposição, então -altera-se frequentemente. De umas vezes gosto da decoração, de outras acho-a a precisar de revisão. Mas isso sou eu. As pessoas gostam. O Bica do Sapato não deixa de ser um luxo português que ainda não saiu da moda, nem sairá tão cedo.

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 90
Vinhos brancos: 50
Aguardentes & Conhaques: 14
Portos & Madeiras: 14
Uísques: 22

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: fácil
Levar crianças: não
Área de não fumadores: não
Reserva: indispensável
Preço médio: 50 euros

BICA DO SAPATO
Av. Infante D. Henrique Armazém B,
Cais da Pedra Santa Apolónia
1100 Lisboa
Tel: 21.8810 3ZO
Encerra aos jantares de domingo

in Revista Notícias Sábado – 2 Junho 2007

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junho 01, 2007

Novidades! Novidades!

No próximo dia 7 de Junho, grátis com a Revista Sábado.


Acabadinho de imprimir. Brevemente nas bancas.
Aqui uma pequena amostra.

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