setembro 29, 2007

Coisas solarengas, fatais


No centro de Lisboa, recordações de um restaurante tradicional: a satisfação do cronista nota-se nestes parágrafos.

Mesmo não sendo um segredo, convém recordar o sítio: perto da Avenida da Liberdade, em Lisboa, há uma carta de vinhos com cerca de duas cente­nas de tintos e praticamente setenta portos. Se o dado não o impressiona, passemos à frente, mencionando a sua cabidela, a lampreia (que, quando vem o tempo, leva a peregrinações dedica­das), o bacalhau à Gomes de Sá (o prato tradicional dos restaurantes clássicos de Lisboa à segunda-feira, vale a pena dizer) e os pratos de sustância que desequilibram a balança a meu favor: a panela especial com feijão, uma longa epifania sobre tudo o que é comentário dietético, servida nas quintas-feiras, e, às quartas, o cozido à minhota, verdadeira sinfonia barroca de carnes, enchidos e legumes a que só por rapacidade de estilo poderíamos subtrair o elogio fatal: é de marcar na agenda.

Ora, acontece que o Solar dos Presuntos é um dos restaurantes que merecem estar na agenda – a sua clientela habitual dispensa-o, porque gostaria de mais intimidade, mas a verdade é que convém passar por lá. O que tem assim de tão grandioso o Solar dos Presuntos para ser considerado mais ou menos incontornável? Em primeiro lugar, a história da casa, fundada em 1974 – ano bendito para a abertura de restaurantes, como se sabe – por Evaristo e Graça Cardoso, onde se comeu sempre acima da média. Em segundo lugar, a garantia dada pela quantidade de gente que tem o número de telefone do Solar na sua agenda – de primeiros-ministros gulosos a jornalistas boémios, de administradores que escapam ao seu horário a famílias que festejam uma data, de músicos e actores com apetite a futebolistas que dão um ar das suas maneiras à mesa, de presidentes da República em escapadinha a dignitários estrangeiros que vão aprender qualquer coisa sobre a nossa gastrono­mia. Em terceiro lugar, pela cordialidade. Há quem não o ache um valor a ter em conta; eu tenho-o na mais elevada consideração, como se diz nas cartas comerciais: ser tratado com cordialidade é quase tão bom como ser cordial. No Solar dos Presuntos, somos tratados com cordialidade – e oxalá não lhes suba, nunca, a presunção aos modos.

Já vos falei da lampreia; já mencionei a feijoada e o cozido, bem como a cabidela e o bacalhau à Gomes de Sá. Esqueci, de propósito, o cabrito no forno por­que merece referência à parte com mais uma linha a acompanhar, para gabá-lo na sua travessa, com­posto com batatinhas, com verduras a pedido. Há uma tradição que manda enumerar, a propósito do Solar, a lista dos seus pratos essenciais de marisco (o arroz de gambas e lagosta, muito bom e que é um dever aconselhar, a paelha, a feijoada de marisco, a açorda de gambas ou a mariscada especial da casa, entre outros), mas tenho receio de que o espaço destas duas páginas não seja suficiente para falar dos pratos de peixe, que são bons (e já não estou para ir atrás cortar quatro ou cinco frases): desde o bacalhau à Narcisa, uma herança bracarense, aos filetes de peixe-galo com arroz de tomate, às pataniscas de bacalhau com arroz de feijão, à variedade de peixes na grelha, servidos com ar suculento, até ao bacalhau à lagareiro ou aos camarõezinhos panados com arroz de tomate. Um peixe cozido com todos, verdadeiro exemplo de frugalidade e de amor às cousas do mar, também não está excluído porque o "com todos" significa "com todos", quando se chega a acordo. E, para finalizar, o destempero das carnes, colossais e magnânimas: o cabrito no forno é um cartaz do Solar, e merece, quando chega bem tostado, rodeado do que deve acompanhá-lo; a perdiz (estufada) tem os seus adep­tos triunfais (quis o Criador afastar-me de grande parte dos pratos de caça, mas de vez em quando depenico); os medalhões do lombo com bacon; os mimos de porco preto com batata frita e legumes salteados; o caldo espesso e cremoso, saltitante, a pedir só uma gotinha de vinagre, que envolve o arroz de cabidela; ou a generosa costeleta de vitela no carvão, que convence os mais carnívoros.

Nisto, como em outras coisas, vale tudo pela com­panhia, pela circunstância, pelo serviço, pela convivialidade apetecida ao ver a carta de vinhos. E pelo ar ligeiramente febril de toda esta comida. Depois de ir ao Solar, fico um conservador empedernido. Fatal como o destino. Com isto tudo, esqueci-me dos presuntos.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 208
Vinhos brancos: 24
Espumantes & Champanhes: 4
Aguardentes portuguesas: 34
Colheitas tardias e moscatéis: 3
Portos & Madeiras: 64
Uísques: 26

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: parque de estacionamento perto
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 32 Euros

SOLAR DOS PRESUNTOS
Rua das Portas de Santo Antão, 150
1150-269 Lisboa
Tel: 21 3424253
Encerra aos domingos e feriados

in Revista Notícias Sábado – 29 Agosto 2007


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A semana do mau-carácter

1. A meio desta semana insul­tei os jogadores e o treinador do F. C. Porto no meu blogue "Origem das Espécies"; na altura chamei-lhes, passo a citar, "bando de avestruzes coxas", "uma equipa de bovinos esdrúxulos" ou "ban­do de repolhos". Acho que fiz bem. Milhares de adeptos portistas fizeram o mesmo e estão no seu pleno direito. O primeiro argumento contrário é o de que a Carlsberg Çup não tem importância nenhuma e, por­tanto, Jesualdo Ferreira teve mo­tivos para fazer alinhar aquele onze destinado à tragédia; se ga­nhasse, era uma pequena glória e, se perdesse, não era grave dado que o importante se pode reduzir ao campeonato e à Champions, competições para as quais haverá agora mais tem­po. Até admito, mas não concor­do. Perder com o C. D. Fátima não é irrelevante; a estratégia de "poupar a equipa". Jesualdo Fer­reira fala da vergonha que ele e o plantei sentiram: acho bem que a sintam, porque envergonharam os adeptos, sim. Não é coisa que se faça ao fim de 114 anos de his­tória, perder nos penáltis alinhando uma equipa desastrada. O próprio treinador assumiu: "Fo­mos incompetentes." Eles mere­cem o mau-carácter.

2. Dizem-me que insultar os jogado­res, chamando-lhes "bando de re­polhos" pode criar-lhes "um problema psicológico", porque eram joga­dores de estreia. Lamento muito, mas é irrelevante. Jesualdo Ferreira pode ser um bom mestre no tabu­leiro (de certeza que o é), mas tem de entusiasmar as hostes e fazer-lhes esquecer o que não tem remédio. Aliás, vem no contrato que as­sinou, de forma explícita e em letras garrafais: não se pode brincar em serviço. Ao fim de cinco jogos não é admis­sível nenhuma quebra psicológica. No ano passado, a célebre "para­gem de Inverno", uma idiotice cria­da para beneficiar o infractor, foi a principal quebra psicológica. Este ano, a rapaziada tem de com­preender que podem ser insulta­dos se cometerem actos de pura mariquice. Convenhamos: a derro­ta com o C. D. Fátima foi um acto de pura mariquice. Os adeptos desculpam, mas não esquecem tão cedo. A menos que esta sema­na entre tudo nos eixos.

3. Duarte Gomes pediu desculpa pelo erro que cometeu. Não foi bem um erro; tratou-se de uma bênção que pôs Camacho a rir, no banco do Benfica. O país inteiro ri manhoso, divertido, consolado. É o destino.

4. José Mourinho chegou a Portu­gal e interrompeu Santana Lopes, que estava na televisão a defender o adiamento das eleições internas no PSD, um puro dislate. O ex-primeiro-ministro ficou chocado e acabou logo ali a entrevista. Fez bem. Foi um acto de coragem muito bem calculado. Mas entre José Mourinho e as opiniões políticas de Pedro Santana Lopes, prefiro Mourinho.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 29 Setembro 2007

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setembro 24, 2007

Kate

Nesta altura, o número de portugueses que não emitiu uma opinião definitiva sobre o caso Madeleine McCann é muito reduzido, mesmo que a “opinião definitiva” seja apenas passageira. É natural e inevitável: estão presentes, no caso Madeleine McCann, quase todos os ingredientes do drama – o rapto ou o homicídio, a criança que é raptada por um criminoso ou a Medeia que mata os próprios filhos, a campanha por Maddie e as suspeitas sobre os pais. Mais do que o drama, no entanto, o caso transformou-se numa trama policial que alimenta várias teorias da conspiração, todas elas capazes de abalar a nossa fé no género humano. Seja como for, a história está longe do epílogo.

Um dos epicentros desta tragédia aconteceu, no entanto, quando a polícia resolveu apreender – dando-lhe existência – o diário de Kate McCann. No extraordinário mundo do segredo de justiça português há sempre formas de os documentos chegarem à imprensa para proteger um dos lados do conflito – porque se trata de um conflito entre duas trincheiras armadas da sua fé. Quando a imprensa veste a pele de moralista, faz figuras ridículas; ao tentar um assassinato de carácter na figura de Kate McCann, o retrato foi absurdo. Não ocorreu apenas nos jornais portugueses. Os ingleses, espanhóis, franceses e brasileiros, davam largas à sua capacidade de indignação subtil ao afirmarem que, preto no branco, no segredo do seu diário, aquela mãe achava que as crianças eram histéricas, que Maddie era hiperactiva e que o marido não ajudava a tratar dos gémeos. Daí se inferia, na alma popular incitada pelos jornais, que estava tudo escrito e que a polícia ia deitar a mão (com base em quê?) àquela mãe cruel. Ora, todas as mães chamaram histéricos aos seus filhos e todas já acharam que eles eram hiperactivos. Todas já acharam que os maridos não as ajudavam. Todas elas, em algum momento, pensaram na sua vida sem filhos. Todas elas têm vida para além dos filhos e nenhuma delas está exclusivamente destinada, como se fosse carne para canhão, à carreira de reprodutora, puericultora ou educadora de infância. O que os jornais quiseram fazer com a “caracterização psicológica” de Kate McCann a partir de fragmentos escolhidos do seu diário é, francamente, uma filha da putice. O leitor conhece a expressão.

A multidão ulula, querendo justiça, sangue e castigo. O rosto de Kate McCann, aparentemente impassível, convida as multidões ululantes à gritaria; as “multidões do sul” sofrem ruidosamente com os seus coros de carpideiras e ficam indignadas quando o “instinto maternal” não se manifesta em lágrimas ou em expressões delicodoces. Kate McCann não chorou o suficiente – é crime. Segundo um outro jornal, ela “teria problemas de relacionamento e dificuldade em controlar os seus filhos”. Um outro informa-nos sobre os vícios de Kate: ela frequentava “esplanadas, charcutarias e lojas de roupa, decoração e produtos de beleza”, e não dispensava o seu cabeleireiro. Coisas terríveis que uma boa mãe não devia fazer.

A “hora e meia fatal” daquele dia 3 de Maio será estudada ao minuto. Fica claro que existe, por parte dos McCann, algum tipo de negligência e de comportamento duvidoso. Para a polícia, é evidente a necessidade de o fazer; até porque, se não se provar a culpabilidade de Kate no destino de Madeleine, prova-se pelo menos a sua negligência, o que os satisfaz bastante aos olhos do machismo ululante. O caso Madeleine transformou-se, assim, no caso Kate. Como dizia o blogger Bruno Sena Martins (“Avatares de desejo”), espero que eles estejam inocentes. De contrário, o seu sofrimento é incomensurável.

in Jornal de Notícias - 24 Setembro 2007

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setembro 22, 2007

Milagre de uma rosa só


Frente ao Douro, num lugar belíssimo do Porto, o Uma Rosa abre o apetite e leva a devaneios. O cronista cede a ambos.

Há aquele aroma, não sei se me entendem. Uma espécie de arranque para que as papilas comecem a fazer o seu trabalho de recensea­mento, a distender as suas válvulas (eu sei que não há válvulas naquele lugar, mas a imaginação é delirante e sempre empurrada pela necessidade), a iluminar o caminho (aí está outra imprecisão, porque as papilas não têm luz). Desculpem-me a entrada irónica, mas é preciso libertar a lin­guagem com que às vezes se escreve sobre cozinha – e dito isto voltemos atrás: há aquele aroma, não sei se me entendem.

Sempre o disse, cada restaurante tem o seu momento. E cada experiência pode ser fatal. A minha filha, a mais nova, viu três vezes "Ratatui", o filme; eu vi uma, e gostei muito. Recomendo – há ali passagens antológicas. Uma delas é a apresentação que Colette faz da cozinha e dos seus profissionais diante de um Linguini igno­rante e pateta, ao melhor nível de "Confidential Kitchen", de Anthony Bourdain; outra, é a ida do crítico (Ego) ao restaurante, sobretudo quando se processa a sua reconversão às memórias de infân­cia, aos aromas que vêm do fundo do passado, à substância que assalta - vinda do passado, igual­mente - o momento da prova. É nesse momento que o crítico se revolta finalmente, separando o alquimista do químico. O alquimista vive do eterno; a sua corporação deriva do poético, do per­manente, da repetição minuciosa de uma fórmula que permite a devolução do ouro na sua forma tentada; o alquimista vive do cânone, da experiên­cia metodologicamente secreta e presidida por uma natureza sagrada. O químico vive de cada gesto; vive em cada instante, renasce para cada ensaio, cruza os elementos por amor à experiência e não por dedicação ao produto final.

O momento ideal de um restaurante, bem como de cada visita, ocorre quando o alquimista e o químico se encon­tram e se sentam à mesma mesa, dispostos a tudo. Raramente se consegue, o que é uma pena. Para me sentar à mesa do Uma Rosa não precisei de tanto; bastou-me o apetite, coisa que me tem arruinado a dieta que prometi ao leitor. Por exem­plo, como actuar diante da carta de vinhos que aguça os apetites, triunfais ou delicados? Como resistir às tripas à moda do Porto, enfeitiçadas e pecaminosas, cremosas, com o seu grão esmaecido e pedindo que o dissolvamos entre língua e pala­to? Como resistir ao arroz de garoupa ("à moda da Ilha de Luanda"...), com o seu tom de pecado moreno, africano, marítimo, encostado à minha própria memória de Luanda e da suavidade da res­tinga? Desconheço.

Os amantes da carne que não se preocupem: é deles o monumento mais apreciado da casa, um verdadeiro achado que espero que a monotonia não estrague nem lhe diminua a intensidade e a novidade: o novilho arouquês, um autêntico elemento de combate para apetites carnais e a necessitar de proteína. Na grelha, o arouquês é – que me perdoem as carnes de outras origens, incluída a valente amostra maronesa ou a barrosã – quase imbatível. Falta-lhe apenas o pormenor que os cortadores gaúchos (uruguaios, argentinos, ligeiramente brasileiros também) man­têm para conferir perfeição à peça: aquela tirinha de gordura, a fibra de gordura que alimenta a alma e dissolve as impurezas. Fica a nota, bem no prato.

Agora, que se aproxima o Inverno – saltita o Outono entre temperaturas agradáveis e horas tépidas para refeição –, o Uma Rosa regressará em breve aos cozidos de carne e verduras, outra das tradições que não se podem perder na casa, aos pratos suculentos, às dedicatórias barrocas e a certas incursões de tempero alentejano.

Fica para o fim a nota de intensidade: o pudim de ovos. Trata-se, simplesmente (ah, confissão arrancada a ferros!), de bom pudim. Aquilo que o leitor encontra nos cardápios como "pudim francês". Enfim, pudim. Gemas de ovo, colesterol puro, fornecido em abundância. Pois aqui os ovos levam o contributo do vinho do Porto. Quem não aprecia ou teme o desafio, compreensivelmente, pode optar pelo bolo húmido de chocolate com cobertura de chocolate quente. E que vá aguar­dando pela digestão, pois o Douro, mesmo em frente, é propício ao devaneio. Assim se conserve, com uma rosa para nos comover.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 98
Vinhos brancos: 24
Aguardentes & Conhaques: 18
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 16

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: acessível
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável ao almoço
Preço médio: 20 Euros

UMA ROSA
Passeio das Virtudes, 33-35 – Porto
Tel: 223 403 915
Encerra aos domingos e feriados

in Revista Notícias Sábado – 22 Setembro 2007


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Crime e castigo

1. Saber se o castigo a Scolari foi leve ou pesado é um debate inútil. Quatro jogos não me parecem um exagero. Em relação a Ivica Dragutinovic, foi pesado, porque o sérvio de­via ter levado outros quatro; em rela­ção aos miúdos punidos recentemen­te pela FPF, foi levíssimo. O presidente da FPF diz que não se compara o cas­tigo aplicado a Scolari e aquele que impede um miúdo de jogar durante um ano na selecção – porque este ra­paz está "em formação". No caso de Scolari, portanto, há misteriosas ate­nuantes que convém recordar: primeiro, eleja não está "em formação" e permitem-se-lhe falsos murros nos sérvios; depois, parece que agiu em defesa das cores nacionais. Foi uma péssima defesa: nunca vi um sopapo tão ridículo. De resto, há aqui um erro de perspec­tiva: actuar em defesa das cores na­cionais são por a selecção a jogar bem e a ganhar. Ora, mesmo acreditando no apuramento para o Europeu, quero saber quem nos paga o Xanax.

2. Scolari, relembro, não faz nada de novo. Limita-se a reeditar a sua estra­tégia enquanto treinador do Grémio: cotovelaço, joelhaço, gritaria, comer a relva e ganhar por um, mesmo no limi­te. Ele nunca saiu de Passo Fundo.

3. A história do futebol faz-se, tam­bém, de frases que não se esquecem. Por isso, Mourinho tinha razão quan­do previu este quadro: o Chelsea des­pede-o, ele fica milionário e vai treinar outro clube. "That’s business." É ele o único que não chora, porque ó o único vencedor. Em três anos mudou o futebol inglês; trouxe o Chelsea para a cena mundial; melhorou substancial­mente as páginas de desporto dos jornais ingleses, que agora lhe fazem justiça; transformou o modo de ver o futebol em Inglaterra; pôs o primeiro-ministro inglês a comentar a sua saída. Abramovich merece uma classifica­ção miserável.

4. OF. C. Porto podia ter obtido uma vitória histórica sobre o Liverpool e fi­cou-se pelo empate. O Benfica podia ter sido goleado pelo Milão e ficou-se por uma derrota (uma grande oportu­nidade perdida). O Sporting podia ter empatado com o Manchester e per­deu. O Braga estava confiante por jogar com o Hammerby e, afinal, trouxe uma derrota. O Paços de Ferreira po­dia ter conseguido um empate e per­deu em casa. O União de Leiria não percebi. Mas o Belenenses podia ter sido cilindrado pelo Bayern de Munique e pô-los em sentido. Foi uma se­mana de desilusões; tirando o Belenenses, todas negativas.

5. Clóvis Rossi, na "Folha de São Pau­lo" de quarta-feira passada, chamava a atenção para um facto significativo: há 102 jogadores brasileiros na Liga dos Campeões europeia. Façam as contas: dá para nove equipas.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 22 Setembro 2007

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setembro 17, 2007

Computadores na escola

Uma das grandes apostas deste governo em matéria de educação é a entrega de computadores nas escolas. Uma série comovente de reportagens televisivas e fotográficas mostra o primeiro-ministro e a ministra da Educação entregando portáteis a escolas igualmente comovidas e agradecidas. A generalidade das pessoas acredita, piamente e cheia de boa-fé, que este é um passo decisivo para a melhoria do aproveitamento escolar e para que o país mostre níveis superiores de rendimento científico.

Longe de mim criticar a iniciativa. O conhecimento da rede (net), o seu manuseamento, o trabalho de pesquisa, o incentivo à partilha de informação cosntituem valores modernos e essenciais – e, certamente, um passo para a democratização do acesso à informação. Simplesmente, ao mesmo tempo que os computadores são entregues nas escolas, ao mesmo tempo que a sua vulgarização é apadrinhada pelo próprio ministério da Educação, é necessário criar alguns mecanismos de defesa. E uma série de aversativas não é prejudicial; convém estarmos avisados.

Suponho que qualquer um tem o direito de duvidar sobre o argumentário novitecnológico que está a ser usado. Por exemplo, aquele que dizia “às vezes os professores desenhavam um losango e não se percebia muito bem, porque não tinha jeito para o desenho; agora, com computador, está tudo resolvido”. Deixamos de usar a mão, de apreender “o processo”, de esperar pelo desenho – tudo aparece no computador; é uma gravíssima perda antropólogica. Como já deixámos de convencer os meninos a estudar a tabuada e a exercitar a memória. É hoje frequente ver alunos do 9.º ano de escolaridade incapazes de efectuar operações matemáticas simples sem o apoio de calculadoras – somar, multiplicar, dividir, subtrair.

Há uma excessiva preocupação com “o aspecto que as coisas têm” e a facilidade com que se estuda. Pode haver erros de percurso sérios se não mostramos que “o aspecto que as coisas têm” é resultado de um longo processo de maturação e de experiência, de tentativas e de erros; da mesma forma, estudar não é fácil – implica participar nesse processo de tentativas, erros, sacrifícios (não ir ao cinema para ficar a praticar equações), coisas absurdas (decorar fórmulas essenciais, como a tabuada, os elementos químicos, as declinações – ou seja, as ferramentas). Ou seja, pode haver recompensas. Recompensas imediatas, por que não? Mas a recompensa pode ultrapassar a dimensão de prazer puro – pode significar que se ultrapassou um ritual de iniciação (ao conhecimento dos números, da métrica ou das dinastias).

Grande parte destas guerras estão perdidas (por exemplo, a utilização de calculadoras no Básico, onde fazer cópias, ditados e decorar a tabuada é crime). Por isso, a fase seguinte, a utilização de computadores portáteis para os trabalhos escolares deve, simplesmente, ser acautelada. 1) A net fornece o melhor e o pior, o erro e o verdadeiro, o complexo e o lugar-comum; ver multidões de alunos a plagiar a Wikipédia e dados incorrectos dos blogues não me parece um avanço. 2) A pesquisa na net substitui, para todos eles, a frequência dos livros e das bibliotecas, bem como a leitura dos textos originais; 3) A proximidade entre a “pesquisa” na net e o mundo lúdico e desviante da internet pode constituir um perigo fatal: é como procurar dados sobre “estudo do meio” e, ao mesmo tempo, entrar no MSN. 4) A promiscuidade entre aquilo que é trabalho e aquilo que é jogo e divertimento acaba por prejudicar, naturalmente, o que é trabalho. 5) É fácil plagiar na internet; a maior parte dos trabalhos escolares que eu vi não passa de um conjunto de cópias descaradas de patetices, e os professores vão perder muito do seu tempo a detectar esses plágios (eu sei que basta o Google...).

Seria interessante ouvir os professores. Eles sabem mais do que os “técnicos de educação”.

in Jornal de Notícias - 17 Setembro 2007

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setembro 15, 2007

A ordem natural das coisas


O cronista, com saudades do Outono e do princípio do Inverno, foi ao Rogério do Redondo, no Porto, para confirmar que a vida tem sentido. E tem.

Tenho saudades da chuva. Desculpai-me, leito­ras e leitores, mas tenho saudades da chuva; não tanto da chuva, mas da chuva do Porto, daquele molinhar irmão da 'morriña' galega, coisa de gente do Norte, como se vê pela pronúncia. Chego a esta altura do ano e olho melancolicamente para a roupa de Inverno, para a gabardina escondida atrás da porta de um armário, para o céu nublado - cheio de esperança. Prometem-me um Verão tardio e extemporâneo e eu penso em queixar-me ao senhor Provedor: não é justo que as autoridades prolonguem o Verão. Um pouco de frio, agora. Um nadinha de (ah, como eu gosto desta linguagem!) neblinas matinais a norte do cabo Carvoeiro, com acentuado arrefecimento nocturno e ondas de dois a três metros na costa atlântica, sem falar na forma­ção de geada e de chuva que pode ser neve nas terras altas do interior.

Mas não pensem que sou um fanático do Inverno; por mim, o mundo poderia ter o clima e as tempe­raturas da Costa Rica ou, digamos para efeitos urbanos, do Rio de Janeiro (naquele pontinho minúsculo da Gávea, exactamente). Faço-me entender, julgo eu. Simplesmente, nesta colina diante do Atlântico, distante do Mar dos Sargaços e da Guanabara, então prefiro que venham as temperaturas e chuvas da época. Para quê? Pois, simplesmente, para regressar aos restaurantes que não mentem e que se recusam, por razões eviden­temente sérias, conquanto discutíveis, a "mudar a lista por causa da estação do ano". O Rogério do Redondo, bem no centro do Porto (fundado por Rogério Vieira de Sá e Manuel do Redondo).

Trata-se de uma casa que engana raramente: isto é isto, sável de escabeche é sável de escabeche, tripas à moda do Porto são mesmo tripas à moda do Porto e, para que conste, filetes de pescada com arroz de feijão malandro não é a mesma coisa que filetes de peixe-galo com açorda de mílharas.

Chegado aqui, o leitor (e a leitora, a quem digna­mente pisco um olho, o direito) já sabe ao que me refiro: à honradez da mesa, ao brilho pecaminoso do hóspede que toma assento à sua mesa e não espera alterações na ordem das coisas, porque – enfim – sentado à mesa e rodeado de aromas fortes e substantivos, a ordem das coisas está bem assim mesmo. Explico como, para que não julguem que me fico pela teoria: cabrito assado à sexta-feira e tripas à quinta; cabidela (galo de cabidela, precavei-vos, sentimentais!) e costela mendinha em havendo; Inverno com sopas de nabos e de penca, ou com uma sublime sopa de favas de outros tem­pos; rabanadas no seu tempo, triunfais e douradas, dulcíssimas, escorrendo. Os filetes de peixe-galo, com açorda de mílharas (tremei, leitores do Sul!, trata-se de ovas), são sempre bons, suculentos até, mesmo tratando-se de peixe; as postas de pescada frita muito suaves, tingidas de limão, brancas com a alvura da espuma do mar de Vigo, mas envolvidas num polme tranquilizador como uma gabardina que se usa contra a 'morriña'; o bacalhau à facho (uma tentação do barroco portuense de primeira água, com forno em dois tempos, cebolada e arroz) é para lhe seguirmos o rasto; o rancho (outra forma de sucumbir ao barroco dos artesãos, com o seu grão amaciado, o macarronete, a couvinha, a bata­ta rareando, as carnes a borbulhar num caldo ameno e alaranjado) para matar saudades e pecar contra os elementos naturais; a mãozinha de vitela com feijão vermelho, uma das primícias da cozinha familiar e doméstica da cidade; e, depois, comida de que temos saudade de vez em quando - petingas fritinhas com arroz de tomate, pataniscas com arroz de feijão (o leitor já sabe como eu sou arrozeiro), e a monumental morcela com grelos (atenção, que no Rogério do Redondo seguem o bom preceito e servem-na como deve ser: cozida, natural, para que se perceba como é feita - e não é uma morcela envergonhada, sem carnes, não).

Continuando a piscar o olho à leitora (agora o esquerdo, por causa do astigmatismo, que me exige o colírio nestas circunstâncias), menciono os Matateus, uns folhadinhos de abóbora (gila, ou chila) e, se for senhora séria, pois acrescento o pudim do abade de Priscos, coitado, tão comido.

Querem ver que está a chover na rua? É por isso que o Rogério do Redondo é um dos meus restaurantes de Outono. Chove mesmo.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 65
Vinhos brancos: 21
Espumantes & Champanhes: 2
Aguardentes portuguesas: 14
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 16

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: condicionado
Levar crianças: sim, absolutamente
Área de não fumadores: sim
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 18 Euros

ROGÉRIO DO REDONDO
Rua Joaquim António de Aguiar, 19
4000-311 Porto
Tel: 225 379 533
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 15 Setembro 2007

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Um homem de sorte

1. No meio do ruído que se gerou à volta do pequeno sopapo que Scolari queria dar a Dragutinovic e que foi uma espécie de “toca-e-foge”, há um silêncio estranho em torno do mais importante: o jogo contra a Sérvia. Foi um mau jogo, com arbitragem de Merk e futebol de merda (quase rima, como se vê). Scolari teria razões de queixa. Contra o fora-de-jogo que resultou no golo sérvio; contra Ricardo; contra Nuno Gomes; e, sobretudo, contra ele próprio, que repetiu quase todas as asneiras do jogo contra a Polónia, juntando ainda o facto de o jogo com a Sérvia ser quase decisivo. Ele é um homem de sorte.

2. Dragutinovic, que ia tirar satisfações de Quaresma, levou porque a vida correu mal a Scolari; infelizmente, quando a nossa vida corre mal ninguém nos fornece sérvios para lhes administrarmos sopapos. Scolari tem essa sorte. Já antes lhe tinham servido jogadores e jornalistas, que esmurrou com determinação. Às pessoas normais ninguém jogadores ou jornalistas para espancar. Ele é um homem de sorte.

4. Mas eu repito: o que me interessa é que a selecção jogou um futebol profundamente asno. E, nisso, Scolari está com azar. Porque o culpado é ele. Se ficar na selecção, espero que mude. Já mudou antes: depois de perder com a Grécia no Dragão, com aquele futebol de garagem, teve de mudar. Mas o futebol de garagem voltou entretanto e ninguém deu um sopapo a Scolari. É um homem de sorte.

4. Levantou-se uma onda de indignação contra Scolari e, nos fóruns das rádios, o povo – que o aclamara como herói – desatou a pedir a sua demissão urgente, “por causa dos símbolos nacionais”, do “espírito desportivo”, das “cores da bandeira” e do “fair play”. Já na semana passada, nesta coluna, eu previra que uma vasta multidão de ex-namoradinhos de Scolari iria aparecer a pedir-lhe a cabeça, o cargo e o resto de juízo. Lá apareceram. Aviso desde já: sou contra. Que queiram puni-lo por defender um futebol asno, já vêm atrasados. Mas que queiram castigá-lo por motivos destes, entregando-o a Javier Clemente (outro asno), à UEFA e aos patetas da ordem, não contem comigo; um seleccionador nacional existe para o podermos criticar permanentemente e para lhe encontrarmos defeitos e vícios insuportáveis; é nosso e faz-nos jeito. Entregá-lo por causa das “cores nacionais” e do “desgraçadinho do sérvio”? Não. Queremo-lo cá para lhe aplicarmos sarrafadas. Mas só nós. Seremos brandos, ficaremos por uns carolos no cocuruto. É um homem de sorte.

5. Scolari tem falhado jogo sobre jogo e a culpa é dele. Não acompanha os jogos dos clubes e a culpa é dele. É teimoso como um burro e a culpa é dele. Se querem despedi-lo por causa disto, falemos sobre o assunto.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 15 Setembro 2007

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setembro 11, 2007

Elogio do fim do mundo

Há fins do mundo para todo o gosto, afastados dos lugares registados nos nossos sonhos. Não têm spas nem restau­rantes que se possam recomendar pela sua criatividade, não têm hotéis «tudo incluí­do» e, alguns desses lugares, nem sequer têm hotéis. Não ficam em «ilhas paradi­síacas». Não têm acesso facilitado – al­guns, inclusive, não vêm nos mapas. São o fim do mundo. E, no entanto, às vezes gostaríamos de ter viajado para lá, nem que seja através das páginas de um livro, nos momentos nostálgicos de um filme ou apenas naquela devassidão sonhadora que toma conta do «viajante ideal», que é aquele que está sempre em viagem, mesmo que não saia do seu quarto.

Rubem Fonseca é um dos mais notá­veis escritores de língua portuguesa, autor de A Grande Arte. Nele fala de uma via­gem até um fim do mundo particular, Co­rumbá, que passa por ser uma espécie de «capital do Pantanal» brasileiro. É uma viagem de comboio, entre São Paulo e Bauru passando por Campo Grande — do estado mais cosmopolita do Brasil até um dos mais desconhecidos, a grande barrei­ra do Mato Grosso com a Bolívia, ou se­ja, a fronteira Corumbá-Quijarro.

Estive naquele fim do mundo mas nunca encontrei a frase maravilhosa que encerra um dos capítulos de A Grande Arte: «Não vou te ensinar a chegar ao Céu saindo de Mato Grosso.» A descri­ção daqueles dias da sua personagem favorita (Mandrake, um advogado criminalista carioca), perdido entre Co­rumbá, Puerto Suárez e Quijarro, na li­nha de fronteira, daria um outro roman­ce. É aí, no deserto do fim-do-mundo, entre o Pantanal exuberante e a frontei­ra da Bolívia, que Rubem Fonseca colo­ca um restaurante português onde se be­be «Terras Altas», «Granleve» e «Porca de Murça». O dono tinha chegado a Corumbá (o fim do mundo, repito) atrás de «uma mulher, uma deusa, uma santa» que conhecera dois mil quilómetros a norte, em Belém do Pará e que vai en­contrar já casada na cidade do Mato Grosso. No meio da sua desilusão de amor estarrecedora e romântica, o por­tuguês (chamado Alberto, natural de Elvas) atirou-se ao rio para ser devorado pelas piranhas. Mas a história termina bem, como quase sempre acontece nos lugares que vêm do fim do mundo (o lei­tor terá de folhear o livro, pelo menos, porque é um monumento).

Lembro-me de chegar a Corumbá («Corumbá, eu quero ter/ Sob o teu seu céu tão brilhante/ Feliz viver», é o refrão da marchinha da cidade) de boleia num camião que atravessava o Mato Grosso pela fronteira, na direcção de Porto Velho e, depois, para a encosta oeste das serras do Paraná. Como em A Grande Arte, «o céu estava azul, com nuvens brancas imóveis e opacas como blocos de gesso», e a cidade estava ainda cheia de adolescentes ou pós-adolescentes que iam a Quijarro apanhar o Tren de Ia Muerte, o lendário comboio andino que percorre as montanhas até tocar as nu­vens e a claridade rarefeita dos seus pi­cos onde por vezes cai a neve.

Naquela desolação perfeita, naquele silêncio de­vorador da tarde — tórrida e poeirenta – esses bandos de viajantes sem hotel, sem malas, sem comodidades de nenhuma espécie, eram a única lembrança de uma vida qualquer noutro lugar do mundo.

Não faço ideia do que cada um pro­curava no Tren de Ia Muerte, nas suas carruagens velhas, naquele percurso de dias seguidos pelas montanhas. Mas soube nesse instante que seria uma das minhas viagens — justamente para fugir ao fim do mundo de Corumbá e para ir pro­curar outro, mais a norte ou mais a sul, mais escondido ainda, perto das alturas de Machu Picchu, onde não chegasse a voz de nenhum romance – ou só che­gasse um romance e nada mais.

Ainda ouço o ruído daquele com­boio, afastando-se como se fosse para ou­tro hemisfério.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo - Setembro 2007

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setembro 10, 2007

A noite chique não está sozinha

O ministro da Administração Interna foi ao Parlamento dizer que a GNR deu o corpo às balas em Viana do Castelo, para responder às acusações de laxismo e de aumento do “clima de insegurança”, vindas do PSD. Periodicamente, diante de uma vaga de assaltos e de homicídios, o país parlamentar desaba sob o insuportável peso do ridículo. Não que o assunto não seja importante, mas quando se trata de “insegurança”, o melhor é exagerar e chamar pelo pior que há em nós; no caso dos políticos, esse pior chama-se demagogia.

Ora, de vez em quando a euforia regressa e o país é comparado a um faroeste; simplesmente, há um cruzamento de dados que convém estabelecer. Essa relação tem a ver com “a noite”. Quando se fala na “noite” há toda uma indústria que se evoca, incandescente e explosiva: bares, discotecas, consumo de drogas e de álcool, carros em alta velocidade, adolescentes iniciando uma carreira promissora na matéria, espancamentos tiroteios, negócios obscuros e ilegais, ruas povoadas de enrgúmenos, invasões dos subúrbios.

Há aqui uma mudança: as cidades, que até aos anos setenta viviam com relativa tranquilidade e protecção policial, deixaram “a noite” para uma fauna interclassista e poderosa, violenta e organizada. Evidentemente que o fascínio das burguesias urbanas pela “noite” (essa promessa de aventura, de sexo e de evasão) não contava, como sempre, com a democratização acelerada do seu espaço de diversão. A “noite”, que tinha o seu “glamour” e os seus nomes gravados a ouro e pérola, passou a ser perigosa; o pessoal dos subúrbios e dos bairros pobres ou remediados também tem direito a esse “glamour”, vivido à sua maneira, mesmo que lhe estrague o arranjinho e lhe retire o brilho. Claro que a noite é violenta; claro que é o reino da transgressão; claro que alberga o crime muito mais facilmente; claro que contribui para “dissolução moral” e para que os adolescentes “ganhem experiência”. É a vida e não é só de agora.

Nós (eu, sim), os burgueses desenganados, na nossa placidez e desejo de conforto, ficamos em casa, vemos televisão, lemos livros e compramos DVDs, jantamos com amigos, jogamos dominó e levantamo-nos relativamente cedo. Se saímos à noite, protegemo-nos em lugares tranquilos. Somos pacatos. É (para o discurso “jovem” das televisões e do cinema) um ideal de vida medíocre e desprezível. Aceito. Simplesmente, o género humano quer tudo ao mesmo tempo, e a “burguesia moderna”, então, exagera: quer recusar esse modelo de vida “medíocre e desprezível” e, ao mesmo tempo, exige segurança nas ruas para se proteger dos arruaceiros; quer policiamento à porta dos bares mas, muito avançada, acha que os polícias são inoportunos; escandaliza-se com os bairros vizinhos minados pelas drogas mas snifa a sua coca de luxo; quer melhor aproveitamento escolar nos liceus e, ao mesmo tempo, discotecas abertas até meio da manhã.

Ora, não se pode querer tudo ao mesmo tempo. Quando ocorreu a primeira grande vaga de crimes pelas províncias fora (de que o caso Meia Culpa, de Amarante, foi um exemplo mortal), descobriu-se que Portugal não era uma paisagem cheia de melros nas oliveiras e de gente pacata que trabalhava das nove às cinco e economizava para o futuro. Para grande parte desse país nocturno e adequado para o cinema, a vida começa quando quase tudo é permitido e a vigilância real abranda.

A histeria é escusada: os chamados “níveis de insegurança” são relativamente pacatos. O chamado “bas-fond” existe como existe a “noite”, onde não só todos os gatos são pardos como toda a tentação é fatal. Não se pode querer apenas o “chique da noite” e tratar a polícia como se fosse uma entidade pária e incómoda. Infelizmente, é mesmo isso: todos os gatos são pardos.

in Jornal de Notícias – 10 Setembro 2007

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setembro 08, 2007

Tradição na Horta


Na Horta dos Brunos, em Lisboa, respira-se um ambiente saudável cheio de estufados, comida de forno e grelhados.

Num destes domingos olhei bem para a barriga; é uma coisa que normalmente só podemos fazer ao espelho. Poderia dizer "olhei para o estômago", mas não era – tratava-se, mesmo, e fraternalmente, da barriga. Promontório abdominal, extensão da cintu­ra, excrescência pneumática, o que quiserem que seja. Mas eu olhei foi para a barriga e disse: amanhã começo uma dieta, comerei cereais ao pequeno-almoço, daqueles que prometem milagres.

Eu expli­co: o pequeno-almoço é a minha refeição essencial, o meu primeiro sinal de vida útil, o reconhecimen­to de que o mundo existe. Pão de centeio barrado com manteiga magra e café, seria assim no máximo. Comerei grelhados ao almoço e apenas uma salada para acompanhar. Jantaria fruta e qualquer legume cozido. Hei-de caminhar uma boa hora entre as nove e as dez da noite e fecharei a cozinha à chave depois de jantar. A minha vida mudará, serei con­fundido com Sean Connery daqui a alguns anos, mas com mais cabelo, muito mais.

Assim foi. Empadas de galinha ao pequeno-almoço juntamente com um ovinho mal frito e uma torra­da suculenta – adeus. Chá verde na hora. Com ado­çante de zero calorias.

Ao almoço combinei encontro com um dos meus filhos: duas magras fatias de rosbife e uma salada; resisti ao pão (ao longe!) e a uma patanisca, não comi sobremesa (ainda me tentei por uma manga, mas já tinha a minha conta), enquanto ele devora­va medalhões com molho à café. Ao jantar, fui fru­gal. O suficiente. Tive fome de noite; roubei um iogurte ao cantinho que a minha filha reserva no fri­gorífico. Tinha bifidus activo, que me pareceu uma cousa supimpa.

Muito bem. Depois, tive de trabalhar e entrei na Horta dos Brunos convencido de que a designação "Horta" iria enganar a minha consciência, mas ela lembrava-se de momentos passados: da mesa de entradas, por exemplo, onde somos assistidos por saladinhas de pimentos, de ovas, de polvo, de favas com chouriço, de feijão-frade com atum ou de coe­lho de vinagrete, além de rodelinhas de farinheira frita. Pequei, confesso que pequei; aquele mundo de um total de dezoito entradas comoveu-me e fez-me descer ao purgatório. À minha volta havia gente com apetite, respirava-se um ambiente saudável cheio de estufados, comida de forno e grelhados de pingue. Ao almoço, gente dos escritórios, dos con­sultórios (havia uns médicos, na mesa ao lado, que propunham trocar Lorenin por pequenas pílulas de açúcar, com a promessa de obterem os mesmos efei­tos), gente das administrações que ainda não foi convertida à cozinha de fusão, gente que ainda não foi acometida de acidentes gástricos e que sorri, com subtileza, ao ver passar pratos cheios de promessas devassas. Por exemplo, o arroz de tamboril, que era prato do dia, e que me fez reparar num dos pratos do meu passado – as lulas da Horta dos Brunos. Mas era dia de cabrito no forno, em dose generosa, com batatinhas farinhentas e tiras de pimento, excelente, suculento, saboroso. Havia costeletas de borrego, de cordeiro e de vitela, saídas da grelha; lombo e naco de vitela, posta mirandesa, os exóticos safarros de cordeiro, para não falar – mas falemos! - do bacalhau à lagareiro, da cabeça de garoupa cozida ou grelhada, das douradas (honestamente etiquetadas como "de aquicultura" ou "selvagem," com uma diferença de dez euros no preço do quilo), das massadas de peixe (tamboril sobretudo) e de bacalhau, e de uma secção destinada ao porco preto, composta por entrecosto, plumas, secretos e presas, à qual falto sempre, em protesto (falarei do assunto na próxima semana). É comida tradicionalíssima.

As lulas são altamente recomendáveis; o cabrito no forno é muito, muito bom. O morgado, doce fantás­tico; a mousse de chocolate tem matéria romanesca e é semigelada. Que vá. O almoço terminou (durante ele bebeu-se vinho a copo, um 'Passadouro' que me relembra os socalcos do Pinhão) com café e uma pequena prova de whiskies. Primeiro, um 'Lagavulin' daqueles brutais, de 1990, com dupla maturação (44% álcool, aceitável), para nos ensinar o que é a turfa e a importância dos cascos de carvalho Pedro Ximénez; depois, um ‘The Arran', de 10 anos (46% de álcool, sempre a subir), puro malte, suavíssimo; final­mente, um soberbo 'A'Bunadh', mais malte irrepreen­sível (59,9% de álcool, meus amigos), capaz de dar o alarme em todas as delegações da ASAE. A conta é puxada, e tem prévia negociação com o Sr. Pedro Filipe, um descarado. Assim vai a minha dieta.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 90
Vinhos brancos: 46
Portos & Madeiras: 12
Aguardentes & Conhaques: 20
Uísques: 28

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 35 Euros


RESTAURANTE HORTA
Rua da Ilha do Pico, 27
1000-169 Lisboa (Estefânia)
Tel: 213 153421
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 8 Setembro 2007

setembro 03, 2007

O mau estado dos cidadãos

O Presidente da República vetou a lei de responsabilidade civil extra-contratual do Estado. O assunto passa ao lado das preocupações da maioria dos cidadãos ou entre os outros dois vetos que ocuparam mais espaço nos jornais – o do estatuto dos jornalistas e o da lei orgânica da GNR. Acontece que as dúvidas levantadas pela chamada lei de responsabilidade extra-contratual do Estado estendem-se muito para lá da natureza da própria lei, cujo princípio parece – ao Presidente – essencialmente correcto. Mas, se tanto no caso do estatuto dos jornalistas (um nó górdio que o governo há-de ter dificuldade em desatar) como no da lei orgânica da GNR, o parecer presidencial é rigorosamente fundamentado e demonstradas as lacunas, os perigos e os atropelos dos diplomas (cujos textos tinham sido aprovados no parlamento apenas com o voto favorável dos socialistas), já no caso da responsabilidade civil extracontratual do Estado (que no Parlamento obteve a unanimidade das bancadas) o problema da lei está, digamos, nas consequências. O Presidente tem medo do que possa acontecer ao Estado.

Essencialmente, esta lei tem como função proteger o cidadão dos arbítrios cometidos pelo Estado, responsabilizando este pelos seus contratos, decisões, processos, danos causados, atrasos, erros e outros pecados administrativos que todos conhecemos. A lei que está em vigor coloca o Estado no centro da vida da sociedade e corresponde a um modelo autoritário e a uma visão desajustada da vida actual; a lei que o Presidente vetou pretendia responsabilizar o Estado e proteger os cidadãos nas suas relações contratuais com o Estado. Uma das consequências desta lei, caso entrasse em vigor, seria o aumento das reclamações e da legitimidade dos cidadãos para pedir indemnizações ao Estado ou entidades públicas. O argumento do Presidente insiste no perigo das consequências financeiras para o Estado e na sobrecarga dos tribunais com eventuais processos.

Há, evidentemente, uma justificação para o veto presidencial: o diploma foi elaborado sem serem apreciadas as suas consequências para o bem-estar do Estado “e a estabilidade das finanças públicas”. Como é habitual nas hostes parlamentares, legislar é barato e fácil – e legislar de forma “politicamente correcta” é ainda mais fácil e mais irresponsável. Mas, ao vetar o diploma da forma que o fez, o Presidente não só abriu a caixa de Pandora onde se esconde o periclitante mecanismo que regula as relações entre o Estado e os cidadãos, como reconheceu que o Estado ficaria em maus lençóis se houvesse justiça. Vamos e venhamos, há aqui uma contradição: o Presidente concorda com o princípio mas teme o resultado, preferindo salvar o Estado e a sua máquina (mesmo que ela proceda mal, mesmo que aja com má-fé, preguiça, má-vontade, desleixo e irresponsabilidade) do que colocar-se ao lado dos cidadãos que não têm defesa contra os arbítrios da Administração. O sinal dado é péssimo: em caso de dúvida, o Estado e a sua máquina saem beneficiados porque uma indemnização, mesmo que justa, não pode colocar em perigo a “estabilidade orçamental”.

Sabemos, também, que o Parlamento devia ter ponderado melhor. Para quem vive exclusivamente à conta do Estado, o único remédio para financiar as contas traduz-se no aumento dos impostos. Nisso, o Presidente tem razão. Mas, nesse caso, não lhe custava nada insistir no carácter absolutamente justo dos direitos dos cidadãos diante da máquina e da geringonça do Estado, e na necessidade de o Estado melhorar os seus serviços e o seu tom de voz. É uma maneira de dizer, claro. Mas ficava dita uma coisa semelhante. O Presidente não pode é associar-se aos que tratam os cidadãos e os seus direitos individuais como um empecilho para as contas e para a felicidade do Estado.

in Jornal de Notícias – 3 Setembro 2007

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setembro 01, 2007

O Douro na moda


Na vetusta Régua, ou Peso da Régua para fazermos cerimónia, o Douro In merece uma visita.

O rio é um vício. Na semana passada desci do Pinhão para a Régua e fiquei na Folgosa – uma parte de mim pertence àquele mundo feito de água, escarpas, vinhedos, ciprestes erguidos a meio das colinas, miradouros e pequenos santuários isolados no meio das montanhas, histórias de naufrágios e de heróis, ou simplesmente, terra iluminada pelo rio.

Deixemo-nos de metafísicas. Nesta matéria, não há muito a acrescentar que não tenha sido escrito pelos mestres. O resto é invenção pura. Há uns tempos – regresso, estou sempre a regressar –, com aquela doçura de clima que obriga a Régua a debruçar-se sobre o rio para refrescar-se e ouvir o silêncio, entrei no Douro In. Levaram-me, aliás. Depois choveu, depois veio uma brisa afastar as nuvens, depois veio a digestão, saborosa.

Sou de um tempo em que os restaurantes do Douro eram quase todos modestos, pobres, ou banais e sem interesse. A gastronomia do Alto Douro (se bem que um dia hei-de falar dessa "ilha" que é o Douro Superior, a pátria dos melhores vinhos), tirando umas páginas dispersas, não teve a sua monografia de glória – passa por ser um entremez, diluído em referências aos peixes do rio, à aplica­ção de ervas, às cozinhas influentes das suas mar­gens (de um lado, os monumentos fatais de Trás-os-Montes; do outro, a invasão da Beira).

Teremos sempre essa dificuldade em aceder à gramática pro­funda da sua cozinha. Há quem pense que no Douro só se bebe; que o Criador os ilumine. Seja como for, o Douro In foi, nesses tempos, já lá vão dois anos, um dos primeiros momentos de excepção – era, como o nome indicia, um lugar 'in', seja lá o que isso for. O Douro precisa dos seus lugares 'in', antes reduzido ao isolamento das suas quintas. E embora eu torça o nariz a quase todos os restaurantes – das brancas estradas do Algarve às escuras colinas do Nordeste – que sugerem vieiras gratinadas como entrada (juntamente com o "porco preto", trata-se de urna invasão cansativa e de um fenómeno a estudar pelos sociólogos e pelos psicanalistas), soube resistir: havia um folhado de queijo 'brie' com compota de pêssego que veio para a mesa, protegendo-me da intempérie que, lá fora, lavava as ruas da Régua (infelizmente não as limpava de excrescências arquitectónicas). Com ele compareceu um pratinho de míscaros salteados, enquanto fazíamos a revisão da carta de vinhos, opulenta e dando mais do que preferência, como seria legítimo esperar, aos lagares da região. Cobiçados foram também os cannelloni recheados com alheira e agridoce quente de maçã, além da salada de cuscuz com pimentos e enchidos – a minha avó materna, em pleno Nordeste, cozinha­va cuscuz superlativos.

Depois disto, havia as plu­mas de porco preto (eu não dizia?) marinado em vinho tinto do Douro, um joelho de porco, um polvo assado no forno e um outro servido com vinho, com migas de feijão, um risoto de cogume­los, um bife do lombo com queijo da Serra e molho de vinho do Porto, costelas grelhadas de borrego com batatas assadas a murro, umas bochechas de bísaro com tagliatelli de legumes, um bacalhau com broa. Tentei-me: fui ao bacalhau, de posta ele­gante, formatada, branca e alta, de cobertura crocante, muito bom. De seguida, um cabritinho no forno com batatinhas – que costumam ser o coro­lário dessa presença no calor, douradas e farinhentas. Não se queixaram, nenhum deles, até porque os vinhos eram bons.

A decoração do Douro In é bonita à noite; de dia nunca a vi, mas basta-me imaginá-la, evocando adegas, recantos íntimos, xistos, com mesas volta­das para o Douro ou refugiadas num cantinho para conversa. Pensava nisso quando apareceram as sobremesas: uma tarte de maçã com sorvete de baunilha e um bolo de laranja com frutos verme­lhos onde pontilhava também uma espuma de morango. Com o café – e uma velha aguardente do Douro, que competiu com um 'tawny' servido a boa temperatura (o que é raro hoje em dia) – deci­di que um lugar daqueles fazia falta à Régua, mas também ao viajante e aos geógrafos amadores que passam pelo lugar. Há ali uma tentativa séria de fazer um bom restaurante. E, já agora, um bar bem divertido.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 100
Vinhos brancos: 32
Espumantes & Champanhes: 8
Aguardentes portuguesas: 10
Colheitas tardias e moscatéis: 8
Portos & Madeiras: 26
Uísques: 20

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil à noite
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 35 Euros

RESTAURANTE DOURO IN
Av. João Franco
5050-226 Régua
Tel. 963 928 050 / 916 946 870
Encerra às segundas e almoço de terças

in Revista Notícias Sábado – 1 Setembro 2007

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Patriotas, cerrai fileiras

1. Trata-se, de novo, da his­tória do patriotismo lusitano. Acho bem que o tema ressurja e se discuta; e, para que não haja dúvidas, desta vez penso que Scolari tem razão. O treinador da nossa selecção de futebol evocou os casos de Nelson Évo­ra, ou de Obikwelu (mas poderia falar desse nome lusitaníssimo: José Bosingwa) como exemplos de cidadãos portugueses que representam o país em competi­ções desportivas – e ganham medalhas –, justamente quando se ouvem críticas sobre a con­vocação (aliás falhada, por le­são) de Pepe, um brasileiro na­turalizado português. Foi o mes­mo com Deco; a sua convoca­ção, na altura, foi seguida de um coro de patetices (sobretudo inexplicáveis as de Figo, sobre "cantar o hino" e outras suposi­ções patrióticas). O que está em causa, neste discussão, não tem a ver com futebol. Tema ver com o pior lado do patriotismo, que é o do preconceito. Por exemplo: eu, quando brinco com Scolari, não é por ele ser brasileiro. É, em segundo lugar, por ser de Passo Fundo, na serra gaúcha (a terra da bela mode­lo Letícia Birkheuer, vale a pena dizer), onde se come um "galeto" formidável; mas, em primeiro lu­gar, é por ser treinador da selec­ção. Sei lá se é brasileiro. Está ali, é para levar.

2. Por exemplo, no último F. C. Porto-Sporting, eu propus que os jogadores portistas que tives­sem passado pela selecção fos­sem obrigados (como os astro­nautas) a uma rápida quarentena para desinfestação e reparação. Não sei se repararam mas, de­pois de terem defrontado esse colosso do futebol chamado Ar­ménia e de terem conseguido um milagroso empate, os rapazes estavam frouxos. Pensem duas vezes antes de os deixarem ir.

3. A semana não está para polémicas, lamento. Depois do sorteio da Liga dos Cam­peões, as equipas portuguesas tiveram um choque de realidade. Até aqui, todos eram putativos campeões, mas nomes como Manchester, Liverpool, AS Ro­ma, Inter ou Celtic puseram em sentido as euforias provincianas. É, certamente, outro campeona­to – mas serve sobretudo para esfriar as pequenas arrogâncias de quem se julga "o melhor do mundo" e essas coisas, ou está habituado a gemer de vaidade sempre que se aproxima um jogo caseirinho. Agora é outra músi­ca.

4. A frase mais corajosa da se­mana é a do presidente do Belenenses, confrontado com o sor­teio que lhe forneceu o Bayern de Munique para a Taça UEFA: "Vamos jogar agora com o Bayern e vamos ver quem nos calha a seguir." Queriam o quê? É assim mesmo. Patriotas, cerrai fileiras.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 1 Setembro 2007

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