março 27, 2006

Mulheres e homens com e sem quotas

Durante décadas, as mulheres lutaram pela sua libertação. Eu não devia escrever isto assim, mas os leitores entendem e sabem ao que me refiro: conquista de direitos políticos, acesso à educação e ao emprego, fim da discriminação com base no género, criminalização da violência doméstica, reconhecimento social. Séculos de discriminação são simbolicamente incendiados de cada vez que evocamos o momento em que Margaret Tatcher, Michele Bachelet, Condoleeza Rice, Angela Merkel ou Ellen Johnson-Sirleaf assumiram lugares de poder nos seus países, da Inglaterra à Libéria passando pelo Chile e pela Alemanha. Qualquer pessoa decente reconhece que, à luz dos valores dominantes no Ocidente, esses momentos são importantes; assinalam o fim de uma tradição machista e discriminatória assente em vários séculos de ensinamentos teológicos, morais, filosóficos e biológicos.

O governo português, na sequência de uma tendência legislativa que tomou conta da Europa, decidiu também impor um projecto de lei sobre a paridade (as famosas quotas) que determina que qualquer lista que se apresente a eleições tem de contar com, pelo menos, um terço de mulheres. Ou de homens.
Infelizmente, o próprio governo não segue esse princípio e a quantidade de homens presentes no gabinete de José Sócrates é muito superior aos quatro quintos, num país em que as mulheres são 55% da população.

A medida é-me quase indiferente. Se se tratasse de melhorar a qualidade das listas eleitorais, tínhamos dado um passo em frente. Em certos países, os candidatos têm de prestar prova de que são alfabetizados. Mas não é isso que interessa e sim o problema da paridade.
Frequentemente os governos de gente bem intencionada pretendem obrigar-nos a sermos felizes. Felizes, saudáveis, com bom aspecto, leitores de boa literatura, cidadãos interessados em causas humanitárias, amigos dos animais e respeitadores da paridade. Para isso, avançam com leis, como é o seu dever. Como disse o líder parlamentar socialista, mostrando do que se trata, “a aprovação da lei depende apenas do voto do PS, porque se trata de uma lei orgânica, de maioria simples”. Ou seja: legislar não custa nada. Custa muito mais compreender a realidade.

Não sei o que pensará uma mulher que entra no parlamento pela mão de uma fantástica mas discriminatória quota de 33,3% -- se isso lhe reconhece o seu mérito como deputada ou se acaba por sentir-se um mero instrumento orgânico nas mãos da oligarquia do seu partido. É assunto que me não diz respeito. Mas o país tem mudado substancialmente, para melhor, e a quota de 33,3% é ridícula. As mulheres têm as melhores notas nas universidades, estão à frente dos homens quando se trata de avaliar índices de leitura e de frequência escolar e a sua participação na vida empresarial e na administração pública é muito mais do que significativa – ou seja, na vida real, elas ocupam mais do que os 33,3% que o parlamento lhes reserva.

Querem as mulheres entrar no parlamento por via administrativa, como uma concessão dos mandarins? Ou querem, se lhes apetecer, se estiverem nessa disposição, e porque a lei geral lho permite, concorrer com esta gentinha que domina os partidos e as secretarias, e lutar em plano de igualdade sem terem de se mostrar agradecidas e sem terem de participar nas comissões e agrupamentos de mulheres dos partidos políticos, como uma associação de gente exótica que se reúne para dar beijinhos aos líderes? A mim, o assunto não me preocupa. Mas devia preocupar as mulheres que não se sentem representadas por uma quota de 33,3 por cento, uma ninharia machista.

Jornal de Notícias - 27 Março 2006

março 25, 2006

Cordial, cheio de pecado

O Ancoradouro, em Moledo, é uma referência fundamental para o nosso apetite. Simplicidade que comove, generosidade na mesa, simpatia absoluta. Uma grelha abençoada à beira do mar do Minho.

Não vale a pena elaborar uma tipologia de restaurantes só para chegarmos à conclusão de que há restaurantes de que gostamos e restaurantes de que não gostamos – e de que, entre os restaurantes de que não gostamos há alguns que são excepcionalmente bons mas aos quais, vá lá saber-se porquê, não aderimos totalmente. Ou seja: não sentimos por eles aquele entusiasmo que nos faz recordar um prato, um aroma, uma voz, uma luz, até um gesto de cordialidade.
Por exemlo: agora há casas que se assumem como «restaurantes-gourmet». Nunca vi coisa mais chinfrim e desnecessária, só possível na boca provinciana de uma gentinha que confunde o negócio dos restaurantes com a ditadura da sua arrogância. Haver um «restaurante-gourmet» é um abuso de autoridade, sobretudo se o chefe de mesas (como me aconteceu há pouco tempo, ali na região Centro) avança para mim, desdenhando dos meus jeans (ah, eu devia ir engravatado para exibir o meu Armani negro), avisando que não era possível degustar um charuto no final de uma refeição aliás razoável (e admito eu devesse saborear o meu charuto fora da sala de refeições, num barzinho ou numa varanda onde saboreasse um álcool final) porque se tratava de um «restaurante-gourmet»; como se o «gourmet» fosse a um restaurante «apenas» para comer. Erro crasso, redondo e definitivo. Uma pessoa de bem vai a um restaurante para comemorar uma parte da sua vida.

É o que eu faço quando vou ao Ancoradouro. Em primeiro lugar, porque é em Moledo, no Minho, e Moledo faz parte da geografia romântica portuguesa. Em segundo lugar, porque aquela família que abriu as portas do Ancoradouro é um modelo de generosidade (nota-se pela forma como as mesas respiram abundância genuína e colesterol em doses controladas, apesar de tudo) e de simpatia. Em terceiro lugar porque, quando saio do Ancoradouro, me apetece passear entre os pinhais que vão dar à praia – o que significa que estou a um passo da felicidade absoluta durante aquelas horas.

Tudo começa quando os meus companheiros de mesa olham para a lista e franzem o sobrolho – não de desagrado, mas de comoção espiritual e de ligeiro entupimento das artérias: sopa de legumes (aviso que é sempre excelente), presunto, chouriço e alheira na grelha (absolutamente genuínos ambos os enchidos) – para entrada. Os peixes frescos recebem também tratamento de grelha e são fundamentalmente três: linguado, rodovalho e robalo. Perfume de mar, em absoluto – só um grelhador experiente sabe conservá-lo até chegar ao prato. O bacalhau, depois de passar pelo fogo (grelha igualmente), em lombos que vão soltando gelatinas salgadas, irrompe em travessas, vigiado por batatas à murro, azeite, alho e legumes cozidos ou salteados. Se o leitor (e a leitora) suspira, eu suspiro muito mais. Sou um sentimental.

As carnes são essencialmente as seguintes: strogonoff (para duas pessoas), lombo de vaca, bife de vitela ou de vaca, posta, costeleta ou costeletão – tudo vindo do Barroso. E vem, garanto eu. Da última vez que passei no Ancoradouro, dividimos um costeletão e uma posta barrosã. Éramos quatro. Não quero, como nosso amado Camilo escrevia, referir-me à refeição para que ela seja «reedificada com adjectivos pomposos e advérbios rutilantes». Basta o essencial: foi um momento de altíssima metafísica. Depois de a alheira passar junto das pituitárias e de ser recebida e devorada com aplauso e proveito, vieram então a posta e o costeletão. Eu sou adepto deste último, que vem até à mesa sem cambalear, golpeado para apenas mostrar de que frescura é feita aquela carne, rescendendo a alho, a azeite e a uma leve acidez que poderia ser de limão, mas não é. Em procissão, e ainda debaixo do pálio, vinha uma caçarola de barro com arroz de feijão e grelos e uma outra, mais baixa e redonda, repleta de grelos de couve ou, como se diz apropriadamente no Norte, de espigos. «Suavíssimo arranjo!», riu João da Ega, o de Os Maias, comentando o caso de Carlos da Maia e da senhora condessa de Gouvarinho. Pois a este conjunto à mesa do Ancoradouro apenas faltava o perfume de verbena da senhora condessa antes de ir em devoção ao Senhor dos Passos. O resto estava tudo lá: a tentação, a luxúria, todos os pecados – acumulando-se uns sobre os outros, chamando por mim das labaredas do Inferno.

Quando pedi uma cerveja (o vinho do Douro tinha já partido e eu ainda não tinha provado a selecção de verdes tintos) para repousar, antes da sobremesa, lembrei-me da enumeração: crepes de doce de morango caseiro, de banana, chocolate, mel e baunilha; depois, sorvete de limão, manga e framboesa; depois, ainda, leite creme queimado, claras em castelo com chocolate ou com doce de ovos, creme de castanha com natas ou bolo de chocolate. Fantástico. Desisti. Pedi o mesmo de sempre: queijo (formosíssimo) com doce de abóbora. Sim, depois bebi um whiskey e tomei dois cafés. E lá fui até à beira do mar, sentar-me e suspirar. Era o meu ancoradouro.

À lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 60
Vinhos brancos: 12
Vinhos verdes e alvarinhos: 5
Espumantes & champanhes: 4
Aguardentes portuguesas: 12
Portos e Madeiras: 3
Uísques: 15
Cervejas: 1

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: fácil
Levar crianças: sim
Área de não-fumadores: sim
Bengaleiro: sim
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 25 euros

Ancoradouro
Rua João Silva 522-r/c
4910-264 Moledo
Tel: 258 722 477
Encerra à segunda-feira de 1 de Julho a 31 de Setembro. Abre à sexta, sábado, domingos e feriados, de 1 Outubro a 30 Junho.

in Revista Notícias Sábado - 25 Março 2006

março 24, 2006

Uma explicação desnecessária mas que mesmo assim vale a pena

Uma série de comentários e de mails alertam-me para o carácter amoral, imoral e vergonhoso dos posts deste blog intitulados «O Cantinho do Hooligan». Eu sei. Sei que são amorais, sei que são imorais e que a maior parte deles, não sendo vergonhosa, me devia fazer corar de vergonha caso se tratasse de uma coisa séria. Mas não. É futebol. Não lhes retiro uma linha, uma vírgula ou um pigmento de desvergonha. Sou um hooligan. Interesso-me vagamente pelo 4x4x2 e não posso dizer que pelo 4x3x3 tenha uma paixão de vários anos; o 3x3x4, esse, deixa-me a pingar de comoção, mas só porque serve para contrariar.

Rio-me depois de escrever isto. Conheço os alas, o papel do trinco, a beleza do jogo tirado a régua e esquadro, mas nada me deixa mais comovido do que uma jogada bem feita, se for da minha equipa. Também ouvi um cavalheiro que passa por ser o Rui Santos perorar durante 35 exactos minutos sobre questões estratégicas e de «planificação política» acerca de um penalty mal assinalado, de uma coisa que chamam «património do clube» ou de um tornozelo especialmente preparado para levar traulitada. Há mails e posts de outros blogs que referem os meus «cantinho do hooligan» como produto de uma alma perturbada, se se der o caso de eu ter alma, ou de um cérebro desequilibrado, coisa de que eu abdico quando se trata de ver futebol como eu gosto de ver futebol, que é entre gente que dispensa sermões, moralidade a todas as horas do dia e declarações de concordância com Gabriel Alves. Quando eu menciono Gabriel Alves ou Rui Santos, esclareço que não ponho em causa a idoneidade profissional dos cavalheiros enquanto comentadores de futebol, coisa que não me interessa grandemente.

Eu sou um hooligan nessa matéria e já vi jogos de futebol entre os Super Dragões, tal como entre o pessoal da Torcida Verde e até à beira dos Diabos Vermelhos -- mas só conheço os hinos dos Super Dragões («ninguém cala a nossa voz» é o melhor, esclareço desde já). Tenho cachecol, cartão, irresponsabilidade reconhecida e várias camisetas do FC Porto. Não estou muito interessado em reconhecer que o João Moutinho é um bom jogador (em momentos de sobriedade absoluta até gosto de Polga, porque era gremista, ou de Liedson e de Carlos Martins e Miguel Garcia) porque isso não faz a minha felicidade -- coisa que já acontece quando um dos meus marca um golo, sejam eles McCarthy, Lucho, Quaresma, Adriano ou Raul Meireles. Mas se me pedirem muito sou capaz de enumerar uma lista de onze bons jogadores da Liga, só contando com o Sporting, o Braga, o Guimarães, o Nacional ou a União de Leiria.

Não me interesso pelos limites estritamente legais do jogo da bola. Prefiro que sejam tribunais comuns a julgar aquela gentinha que anda à volta do assunto. Acho que os ábritros não deviam obedecer à Liga nem à FPF. Acho que Scolari é um burro, futebolisticamente falando, mas gostava dele no Grêmio; tal como Mourinho era um chato tremendo antes de ter ido para a União de Leiria e para o FC Porto; o próprio Jardel era genial enquanto estava no FC Porto mas passou a ser um desgraçado de um cearense quando foi para a Turquia e depois se perdeu em Lisboa. Continuo a admirar Jorge Costa.

Não se enfureçam nem tentem evangelizar-me, chamar-me à razão, educar-me os modos, civilizar-me, lembrar-me «a beleza eterna do grande futebol» (sim, ela existe em algum lado). Agradeço as lições e os conselhos amigáveis para que recupere a minha sensatez e algum pudor além do sentido de justiça. Mas isto é só futebol. De cada vez que Petit cai rasteirado, de cada vez que Simão falha seja o que for, eu sinto-me mais próximo da felicidade. O mesmo acontece quando a França ou a Itália perdem um jogo.

Para mim, Pavão jogava futebol como ninguém. Tenho um poster de Cubillas envelhecido, mas guardado nos meus caixotes. Se insistirem falo de Rolando, de Celso, Eduardo Luís, Madjer, Juary, Gomes, Derlei, Deco e também de Domingos, Jaime Magalhães, Bené, Marco Aurélio, Duda, Teixeira e Teixeirinha, Gabriel, Oliveira, Rolando – a primeira equipa da minha memória, que contracena com outros nomes mágicos de outros tempos: Monteiro da Costa, Pinga, Virgílio, Pedroto, Barrigana, Hernâni, Seninho ou Siska. Mas não é isso que me interessa. O hooligan do «cantinho do hooligan» não se interessa nem por isso. Ele só ri. Mesmo quando perde um jogo, ele ri. E é a vida, assim.

in A origem das Espécies – 23.03.2006

março 20, 2006

O que está a matar a vida política

Os jornalistas, sobretudo, têm saudades "dos grandes congressos do PSD". Eram momentos interessantes e confortáveis, muitas vezes não programados e feitos à medida para que pensássemos que o PSD era um partido onde tudo podia acontecer. Na verdade, já quase tudo aconteceu ao PSD, inclusive a subida de Pedro Santana Lopes a primeiro-ministro. Foi um interessante momento na história da vida portuguesa que será recordado com aquele pudor a que o ridículo obriga.

Ouvi durante toda a sexta-feira lamentos consideráveis sobre o como e quanto os congressos do PSD já não eram os congressos de antigamente. Na rádio e na televisão, à medida que se aproximava o momento histórico da abertura das portas da salinha do pavilhão Atlântico (ao lada da sala onde decorreria a assembleia do Sporting), jornalistas e comentadores lamentavam-se. Todos sabiam que Santana não iria aparecer (atrasado, como se viesse de um jantar onde se comeu bem) para discursar até às três da manhã, que Luís Filipe Meneses dessa vez não ia estragar tudo com uma frase fatal, que não iam realizar-se reuniões nos hotéis perto da sala de congressos, que o telefone de Marques Mendes ia estar relativamente tranquilo, que não haveria tempo para aqueles militantes anónimos e indiscretos. Enfim, não íamos ter circo.

Este lamento tem razão de ser. Este e outros. Na verdade, os congressos dos partidos já não são como os grandes congressos de antigamente. A razão não tem a ver, como se poderia também pensar, com a "maturidade da democracia portuguesa", mas com "a natureza da política à portuguesa". Se bem que o congresso do PSD se revestisse de circunstâncias excepcionais (tratava-se de adiar para daqui a um ano o ataque a Marques Mendes, enquanto ele coze em lume brando até lá), a verdade é que a política à portuguesa está desinteressante nesse capítulo que nos interessa - o dos confrontos. Claro que nos interessam os confrontos; é pelos confrontos que se percebe se há, ou não, vida política. E, de facto, o cenário é triste.

Em primeiro lugar, todos os políticos andam bem educados de mais. Tirando aquele pobre sujeito da Madeira, os políticos comportam-se como católicos antes do crisma. E mais quando acontece alguém ameaçar ultrapassar os limites, aparece logo um coro de vozes muito morais e sensatas, dizendo que "fulano não pode dizer" o que, precisamente, esperávamos que ele dissesse. Esta fantasia de uma democracia politicamente correcta está a destruir aos poucos a vitalidade da nossa vida política. Em segundo lugar, os partidos não gostam deles próprios. Veja-se o que acontece com o CDS, com o PSD, com o PS ou com o BE. Há uns rumores, mas não há debates. Há sinais, mas não há ninguém a falar claramente. Até o BE assumiu que precisa de mudar (oh, novidade!). O PS (o partido) não gosta do seu secretário-geral nem do seu Governo - mas aprova ambos porque são ambos a garantia do poder, e são o produto mais apresentável que têm para o mercado. O PSD espera o momento de acertar contas e de nomear alguém para o lugar de Marques Mendes, alguém que "o povo" aceite melhor ou que os estudos de imagem achem mais aconselhável.

Quando se escutarem lamentos sobre a morte da vida política (ou sobre como estão mortiços os congressos do PSD - os do PS foram quase sempre lúgubres), pensem em como, verdadeiramente, já deixou de haver vida política.

Jornal de Notícias - 20 Março 2006

março 18, 2006

Vida perfumada

O Galito ameaça transformar-se num clássico. Depende das vezes que lá vamos e nos acostumamos ao seu cardápio tradicional. Se há boa cozinha alentejana em Lisboa, ela está dentro das suas paredes. Vinda da terra. Sem falsificações.

Vidas simples. Falo de "vida simples" nestas circunstâncias, sempre que me encontro diante deste prato – uma sopinha de tomate com ovo, por exemplo, rescendendo, numa terrina de onde se soltam nuvens de vapor perfumado. O caldo descerá sobre duas fatias de pão, até aí solitárias no prato, e será depois coroado com o ovinho escalfado, acobertada pelos filamentos de cebola, pelos músculos tenros do tomate, pelo abraço de duas tiras de pimento. Este é o começo; o resto geralmente nunca me interessou – na verdade, a história das minhas idas ao Galito, à entrada do histórico e quase alentejano bairro de Carnide, é uma história de esquecimentos. Escrevi sobre ele a primeira vez, era o Galito uma tasquinha com cinco ou seis mesas; à sua porta esperava-se uma eternidade por um lugar milagroso que nos livrasse da fome, do frio, da intempérie da alma, da solidão e, às vezes, da melancolia. Nessas circunstâncias, eu dava tudo por umas migas gatas de bacalhau, mesmo que a minha receita pessoal fosse diferente. E daria tudo por um ensopado de borrego manuseado com tempo, paciência e delicadeza pelas mãos solenes de Dona Gertrudes, onde se concentrava a memória daquela cozinha ("ancestral", dizem os dicionários) que vem da Serra d'Ossa e nos encontra a nós e ao nosso estômago, bárbaros, cheios de apetite, de falta de maneiras.

Por isso esqueço-me frequentemente do que acontece nas noites de um jantar no Galito, daqueles mais ou menos tardios, depois das nove e meia, dez, quando ao apetite se somam a falta de paciência e o enlevo das papilas. Empada de perdiz – aquela massa folhada pecaminosa que envolve os filamentos do bichinho? Sopa de bacalhau com tomate? Veado estufado, cortadinho em fatias numa travessa onde o suco, adocicado, se transforma em redução perfeita de um molho denso e guloso? Perdiz de escabeche? Costeletinhas de borrego servidas na companhia de um arroz de coentro, perfume dos perfumes? Esqueço-me. Esqueço os nomes dos pratos, se bem que eles sejam simples e não arrastem evocações literárias, arrogâncias de estilo e de composição, inventários de ingredientes, paranóias que recentemente invadiram todas as salas de restaurante. Esqueço. Limito-me a esquecer. A garrafeira é cuidada, os digestivos são escolhidos a dedo (uma aguardente vinda das profundezas da terra, um Porto vintage bem escolhido). O Henrique dedica aos vinhos uma atenção esmerada – muitas vezes, a nossa escolha é apenas perniciosa, uma coisa desnecessária, se bem que a minha opção quase permanente por vinhos do Douro e do Dão nos faça entrar em pequenos conflitos.

Mas o que eu aprecio é a simplicidade. Esclareço que nem sempre isso acontece – há restaurantes onde o "excesso de estilo" compensa faltas evidentes na cozinha. Com as mãos de Dona Gertrudes isso não acontecerá. Há, naquela cozinha, um património imaterial que chega a comover: a hora a que se começa a cozinhar, bem cedo, em estufados lentos, cozidos tranquilos. Só assim se explica a naturalidade do seu cozido de quinta-feira, ou da sua sopa de grão com vagens, com as carninhas ao lado e a indispensável folhinha de hortelã, ou das suas burras com feijão, ou dos seus miraculosos pezinhos de coentrada. Só assim se explica que a galinha com tomate chegue à mesa com as carnes atravessadas de gelatinas naturais, elementares, sem excessos de temperos, sem arremedos de "alentejanices", aquela mistura de ervas que mascara o sabor dos ingredientes mal cozinhados, e que faz as delícias dos "restaurantes alentejanos". Na verdade, a generalidade de "restaurantes alentejanos" limita-se a introduzir – em pratos banais – uma inacreditável quantidade de aromas e temperos para lhes conferir "identidade regional". Mas o essencial perde-se; e o essencial é aquilo que ainda não se perdeu no Galito: ingredientes saborosos, simplicidade, ausência de barroco (que é bem-vindo noutras circunstâncias e noutros restaurantes), delicadeza do azeite e de outras gorduras nos pratos que vêm de entrada: as favinhas frescas com rodelas de morcela e um empréstimo de coentros, o coelhinho frito, a morcela frita ou com ovos, os ovos com tomate ou com espargos. Até da sopinha eu gosto: o pão acre, o caldo do alho, azeite e coentros frescos, o ovo desfazendo-se, soltando-se em gemidos.

Depois da siricaia, do fidalgo, do morgado, do pão de rala; depois do café e daquele álcool de retempero, há ainda uma boa selecção de charutos, muito bem indicada. E quando voltamos ao mundo, a sensação de peso esvai-se. É essa a qualidade da boa comida.

À lupa
Vinhos * * *
Digestivos * * *
Acesso * * *
Decoração * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 130
Vinhos brancos: 60
Vinhos rosés: 2
Espumantes & champanhes: 6
Aguardentes portuguesas: 16
Portos e Madeiras: 12
Uísques: 20
Cervejas: 6

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil, nas traseiras
Levar crianças: não
Bengaleiro: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 28 euros

O Galito
Rua da Fonte, 18A - Carnide
(Junto ao Largo da Luz), Lisboa
Tel: 21 711 1088
Encerra aos domingos e feriados

in Revista Notícias Sábado - 18 Março 2006

março 13, 2006

Nós, ignorantes e licenciosos

O senhor Ministro dos Estrangeiros acha-nos ignorantes. Não a todos os portugueses, para já – apenas os que não concordam com ele. Como princípio parece-me errado, mas a arrogância e o ressentimento não são pecados capitais, apenas problemas de carácter, e isso não entra nesta conversa. Há, evidentemente, uma guerra entre o CDS e o seu antigo militante; também isso não entra nesta conversa.

O que está em questão é a necessidade, sentida pelo senhor Ministro dos Estrangeiros, de nos explicar melhor (a nós, ignorantes, como insistiu) o sentido das suas palavras. Ora, esse sentido está claro desde o princípio: Diogo Freitas do Amaral acha que as célebres caricaturas constituem uma “enorme ofensa” aos povos muçulmanos e incitam a uma guerra de religiões. Não viria mal ao mundo se se tratasse apenas do sentido destas pobres vulgaridades. Porém, a questão é mais complexa: o senhor Ministro dos Estrangeiros permitiu-se, de seguida, dar lições aos seus concidadãos acerca do uso da “liberdade de expressão” (que, de dedinho espetado, trocou por “licenciosidade”), baralhou-se em matéria teológica e andou no fio da navalha quando considerou “compreensível” que as multidões incendiassem embaixadas e praticassem outros actos que passaram nas televisões. Como hoje se sabe pela imprensa, essa reacção foi cuidadosamente preparada durante uma conferência islâmica em Dezembro passado. O senhor Ministro, que podia ter emitido uma declaração basicamente inócua e diplomática, como se esperava, alimentou as esperanças de solidariedade do embaixador iraniano em Lisboa, com as consequências que se conhecem. Uma trapalhada escusada.

Para os que acham que este assunto está enterrado e devia ser esquecido a bem de todos (o senhor Ministro dos Estrangeiros não deixou), eu explico por que razão o tema é importante e não deve ser ignorado. Em primeiro lugar, pela natureza do ressentimento; não podemos permitir que afirmações tão graves sobre a liberdade de expressão e sobre o nosso lugar no mundo e na história das civilizações (“nós, os agressores”, assim se podem resumir malevolamente as palavras de Freitas do Amaral sobre a história do Ocidente) possam ser tão banalizadas e pacíficas.

Em segundo lugar, pelo facto de nenhum membro do governo do meu país estar autorizado a duvidar da boa fé dos seus concidadãos. Quando um cidadão diz “liberdade”, um ministro (nem que fosse Ministro dos Costumes ou da Moral) não pode traduzir por “licenciosidade”. Isso sim, é má fé e desonestidade intelectual.

Em terceiro lugar porque as suas declarações estão inquinadas por um preconceito ideológico e instrumental (a sua aversão à política externa americana a par de uma inesperada conversão às teses dos estudos pós-coloniais) que, sendo “compreensível”, não pode ser transformada em doutrina do Estado.

Em quarto e último lugar porque nós, os licenciosos, os que duvidam, os que riem, os que acreditam na liberdade, não somos ignorantes. Simplesmente, nós estaríamos do lado de Salman Rushdie ou de Taslima Nasreen quando foram condenados à morte pelos ayatolahs, acusados do crime de “blasfémia”. O senhor Ministro, já sabemos, estaria do outro lado. Por isso não fala em nosso nome.

Jornal de Notícias - 13 Março 2006

março 11, 2006

Felicidade na Boavista

O Bull & Bear mudou de casa e, na verdade, até melhorou. Cozinha cheia de tentações suculentas e apetitosas, repleta de pecado e de sugestões que ficam na memória. Falar disso é falar da felicidade, como se sabe.

Os restaurantes vão e vêm, cruzam a nossa memória com designações, perfumes, texturas, fragmentos de um nome, gestos, atenções. Há restaurantes que eu recordo sem ciência absolutamente nenhuma. Confesso que raramente entrariam nesta lista – são restaurantes de ocasião, acolhedores, francamente clandestinos, cheios de absurdos e às vezes de erros lamentáveis. E eu gosto deles, desses lugares de mesas disputadas, no fundo da província ou num bairro suburbano. O leitor também, e eu sei do que falo. Mas raramente entrariam nesta lista – não mencionam a grande arte gastronómica, não se perfilam com grandes resultados, grandes soluções, inovações, provas de criatividade ou, até, de rigor. Mas eu gosto deles. Demoramo-nos às suas mesas o tempo que quisermos, arrastamos a conversa, vamos sujando cinzeiros e estabelecendo regras de proximidade e de promiscuidade com o lugar, com o dono, com os empregados, com a mesa. Um prato de forno que evoca um peixe adorável; uma gelatina soltando-se sem, no entanto, se libertar de um lombo perfeito de bacalhau; um estufado cremoso onde se sacrificaram temperos, ingredientes que se encaminharam para o fogo numa ordem perfeita – nada mais simples, nada mais conservador.

E há outros lugares onde temos de fazer um ligeiro esforço, uma ligeira concessão, um risco na agenda e no paladar. E entrariam em toda e qualquer lista – como o Bull & Bear, um dos restaurantes que é preciso visitar antes de desistir de viver. Não porque toda a gente o mencione ou porque é um emblema do Porto. Mas também porque Miguel Castro Silva (o seu criador e chef) é um artista e transporta, para o seu cardápio, uma memória, uma arte e aquilo que é definitivo em qualquer restaurante – a generosidade. Os bons restaurantes sofrem desse mal – da generosidade. Como se soubessem que cada comensal, cada visitante, vem ali em busca de uma prova de afecto que não encontrou noutro lugar, noutra vida, noutra relação afectuosa ou afectiva. Eis porque considerar a cozinha um laboratório pode resultar em literatura mas é de uma leviandade muito sacana e indigente. Se uma pessoa se senta e deglute e se exibe e se encaminha para a digestão, é uma coisa. Se uma pessoa se deixa embalar, é outra: creme de grão com bacalhau lascado, borrego salteado com ervas, pescada em crosta com azeitonas, rosbife de veado com molho de mirtilos ou amêijoas com feijão manteiga são, por exemplo, estrofes de um poema épico monumental e tem arremedos líricos nas sobremesas, pelas quais, aliás começo, só para que não me falte o espaço para depois mencionar o parfait de amêndoa com mousse de mascarpone e molho de moscatel ou o gratinado de maçã com crene de baunilha e gelado (embora já tenha sucumbido, uma vez, a um creme de queijo Serra curado com pêra confitada em vinho do Porto).

Mas se há apetite (e certamente que há) eu recomendo que se prepare o estômago com uma polenta de legumes com salada (só Deus sabe como eu gosto de polenta) ou uma ligeiríssima terrina de foie-gras (mousse fantástica) além de um experiência tentadora que aconselho pelo menos uma vez na vida – vieiras (grelhadas) com endívias e ovas Avruga. Eu comovo-me por tudo e por nada, eu sei. Depois, conforme os companheiros de mesa, a escolha passa pelo magret de pato com risoto de cepes (cogumelos com textura, temperatura e cor magníficas) e pela tão ilustre pintada acompanhada de couve penca (em dias bons parece mesmo a de Chaves, lancinante e adocicada pela geada) e grão-de-bico. Também me perco pela pescada com migas de grelos e batata, porque, evidentemente, não tenho carácter nenhum – e choro pelo risoto de limão (um dos meus preferidos) com ovas de truta, pelo risoto de sapateira com camarão grelhado e até pelo bacalhau com migas de poejo e hortelã, sugestões do sul, onde também encontro a inspiração para o ensopadinho de borrego onde se escolhe sobretudo o seu pernil.
O Bull & Bear, além do mais, tem uma carta de vinhos cuidada – não numerosa e avantajada, mas cuidada, e suponho que é o restaurante do Porto com melhor escolha e sugestão de portos, o que vai sendo uma raridade nos restaurantes da cidade que empresta o seu nome ao santo vinho. Saio ligeiramente comovido, se a refeição cai bem, se fica um resto de sabor, um grão de sal a desfazer-se na boca, um rasto de palavras que se escaparam ao longo da noite e perduraram. Onde está a felicidade?, perguntava Camilo.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 140
Vinhos brancos: 60
Vinhos rosés: 2
Espumantes & champanhes: 10
Aguardentes portuguesas: 8
Portos e Madeiras: 30
Uísques: 20
Cervejas: 5

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil
Adequado levar crianças: não
Bengaleiro: sim
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 40 euros

Bull & Bear
Avenida da Boavista, 3431 - Porto
Tel: 22.6107669
Encerra aos sábados ao almoço e aos domingos

in Revista Notícias Sábado - 11 Março 2006

março 09, 2006

Um mundo perfeito

Em Espanha existe uma comissão nacional para a racionalização dos horários que tem como função, entre outras coisas, mudar o país. O objectivo é simples e maduro em dois pontos essenciais acaba-se com a "siesta" e impede-se os espanhóis de jantar a horas tardias, harmonizando os horários do simpático país peninsular com o "resto da Europa" e reafirmando que o desenvolvimento e o enriquecimento profissionais não sejam sinónimos de renúncia à vida pessoal e familiar dos funcionários e empregados do sector público, nomeadamente.

Qualquer pessoa munida de bom-senso estará de acordo com o princípio. Em Espanha, que eu saiba, estão todos de acordo a burocracia governamental, os defensores da globalização, a igreja, as associações de defesa da família e da mulher, bem como os teóricos e exegetas da produtividade. Se é assim tão fácil, por que razão até agora não se fez essa mudança? Porque a sociedade é preguiçosa, dolente, avessa às mudanças, amiga de beber até tarde, de jantar em horas a que os suecos estão a dormir, e está cheia de colesterol, fumo, gorduras excedentárias, bares e discussões tardias sobre futebol. Esta sociedade frívola, desregrada e maculada pelo desrespeito aos ritmos de trabalho normais em Frankfurt ou em Oslo, produziu coisas memoráveis mas está doente. É preciso reformá-la e transformar a vida dos seus membros, geralmente irresponsáveis e a necessitar de disciplina, dieta e horários primaveris.

Pelo contrário, o Governo espanhol está cheio de pessoas felizes. A comissão de horários também. São pessoas que acordam a horas, que trabalham em ambientes ecologicamente correctos e onde se instituiu a paridade de género. Almoçam iogurtes dietéticos e não tripas à madrilena ou pratos condenados pelos cardiologistas, fazem ginástica, chegam a casa a horas decentes (digamos ao fim da tarde) e deitam-se cedo no leito conjugal, quando bandos de energúmenos ainda circulam pelos cafés, fumando e contando anedotas, enchendo os seus vasos sanguíneos de substâncias nocivas à saúde, dedicando-se ao adultério e a literaturas que não são nada saudáveis.

O debate sobre os horários em Espanha ameaça, evidentemente, espalhar-se por outros países do sul da Europa, desejosos de imitar os seus concidadãos de Dusseldorf, de Helsínquia ou da renovada Espanha, construída à maneira do retrato sorridente, acrílico, saudável e ligeiramente bem vestido do líder Zapatero. Não por agora, porque somos pessoas desprezíveis e dadas a festejar prazeres grotescos (como conversar até tarde, comer razoavelmente e jogar cartas), mas Portugal há- -de entrar na liça. Nessa altura, empresários e autoridades morais, inimigos da licenciosidade, mães de Bragança, comissões de vigilância familiar, cardiologistas e especialistas em dietética e ciências do emagrecimento, ficarão também mais felizes - o Sul da Europa deixará de ser esse fragmento bárbaro no mapa do continente, onde as pessoas se dedicam à produtividade, ao escrupuloso cumprimento de horários, à saúde e à vida em família. A taxa de divórcios diminuirá, certamente, as doenças coronárias recuarão e mesmo os escritores serão regulados por uma comissão que os impedirá de escrever acerca de ambientes soturnos ou sobre temas depressivos ou sexualmente discriminatórios. O Sul da Europa viverá como uma espécie de retrato do paraíso na Terra, as lojas fecharão todas ao domingo, as pessoas irão à missa e participarão em associações de vizinhos, terão gémeos sorridentes e férias no campo.

Este retrato existiu no passado. As grandes utopias, de Campanella a Thomas More, de Calvino a Lenine, de Hitler a Pol Pot, tiveram desejos semelhantes. Na república de Calvino puniam quem faltasse às orações e noutras matavam quem atalhasse pela licenciosidade. É um mundo ideal e perfeito. Pessoalmente, não quero viver nele.

Jornal de Notícias - 9 Março 2006

março 04, 2006

No coração das Avenidas

O Policia faz-nos pensar nos restaurantes de antigamente. Em como havia uma perfeição que evocava a profunda natureza do apetite. Não é para feitios, digamos, modernos.

Como eram os restaurantes onde iam os Portugueses de antanho? Não sei. A falar verdade, podemos saber como eram os museus, como eram as lojas, como eram as casas, como eram os teatros - e até podemos ter uma ideia sobre como poderiam ser os restaurantes. Mas falta-nos isto: os aro­mas, triunfantes, saindo da cozinha, passando em travessas, rescendendo, flutuando, atravessando os ares, impregnando a memória verdadeira - a dos olfactos, a da vista e a daquele tacto que não tacteia mas experimenta com o garfo, com a colher e até com a ponta dos dedos. Conservamos deles as mesas, as fotografias, os velhos empregados de mesa, as cozinheiras desconfiadas mas sorridentes, os trejeitos, os feitios; e também a maneira como o peixe vem à mesa, a natureza dos acompanhamentos, o jeito de servir o vinho e de recomendar a aguardente; e imaginamos sereníssimas vozes rodeando as mesas, cinzeiros trazidos com cerimonia, indicações segredadas na hora de escolher um prato; e cobiçamos aquele momento em que um sorriso de tristeza passa pelo rosto do cavalheiro que anota o nosso pedido quando, em vez da mãozinha de vitela à jardineira, alguém escolhe um bife bem passado, ou fica indiferente diante da perninha de borrego ou das ervilhas com ovos. Ah, esses restaurantes onde as sopas são cremosas e conhecem a felicidade da concordância em vez do combate entre ingredientes que se detestam. Ah, aqueles restaurantes que ainda servem pescadinhas de rabo na boca e suculentos pargos subtraídos ao forno, pecaminosos.

Eu estou a falar de O Polícia e ainda não tinha dito. Mas parece-me que é um dos restaurantes de antanho - e não apenas pelo facto de ter sido fundado em 1900. Mas pelo jeito. Até pelas mudanças de há uns anos, quando teve direito a um bar à entrada (ou à saída, pela Av. Conde de Valbom - já que a entrada clássica continua a ser a da Marquês Sá da Bandeira, diante das sebes e arvoredos da Gulbenkian), a fardas novas e à cozinha remodelada - e à separação firme entre sala de fumadores e de não fumadores. Estejam todos à vontade.

Na verdade, O Polícia é, hoje, um clássico das Avenidas - é um reduto para a cozinha portugue­sa de antanho, como eu disse. Um dia destes, levei lá uma senhora a jantar. Coisa moderna, educada, confesso. Tive de explicar-lhe o que eram as mãozinhas de vitela, porque é que a pele das ovas de pescada (que são uma das minhas referencias n'O Polícia) não podia ser ferida grosseiramente, o que era a sopa de cozido (era uma quinta-feira) e o que fazia lá aquela folhinha de hortelã, o que eram os filetes de peixe-galo, como deviam ser os jaquinzinhos (quando os há), como se prendiam as pescadinhas de rabo na boca, o que era a pesca­da de anzol, porque é que o pato corado com arroz tinha aquele ar tostadinho, como se limpava e temperava um cabrito antes de entrar no forno, ou a natureza verdadeira de um esparregado de espinafres. Já não tive de explicar a razão de ser daqueles peixes que passavam, completos ou em tranche, cozidos ou grelhados, em travessas decoradas por batatinhas redondas e legumes salteados ou cozidos: eles são realmente apetitosos, n'O Polícia. E, à medida que a sala se enchia de famílias com ar saudável (e de olhar brilhante enquanto liam os cardápios) ou de cavalheiros da indústria ou da política ou do jornalismo, que repousavam de um dia de indecência e de labor, eu recitava, romanticamente: gambas na sertã com alhinho, amêijoas à Bulhão Pato (deliciosas), pargo de Sesimbra no forno à antiga, cherne grelhado, papinhos de cherne (designação libidinosa, claro), cabeça de pargo com ovas, robalinho, salmonetes, linguado de traineira, garoupa do alto (formosíssima, devo dizer), cabrito no forno com batatinhas e creme de espinafres, vitela com cogumelos e cebolinhas, concluindo - como estância final - com iscas a portuguesa, rim de vitela com cogumelos salteados, ou ainda a memória do cozido à portuguesa com enchidos de Lamego, do coelho na frigideira ou das favinhas e dos rojões à transmontana. A minha lição terminou com um pao-de-ló com doce de ovos e um leite-creme (que, infelizmente, não foi queimado na hora), o que pretextou um último copo de vinho do Douro - que tinha começado por acompanhar um cabrito formidável. Nem o frio de Fevereiro me demoveu.

À lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 60
Vinhos brancos: 20
Vinhos verdes: 7
Espumantes e Champanhes: 7
Aguardentes portuguesas: 12
Portos e Madeiras: 6
Uísques: 20
Cervejas: 6

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Há parques subterrâneos perto
Levar crianças: Não
Área de fumadores: Sim
Bengaleiro: Sim
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 27 Euros

O POLÍCIA
Rua Marques Sá da Bandeira. 112 A
1050-150 Lisboa
Tel: 217 963 505
Encerra sábado ao jantar, domingos e feriados

in Revista Notícias Sábado - 4 Março 2006

março 03, 2006

Absoluta beleza

Nós somos desajeitados. Enquanto comemos sujamos a toalha, os dedos e a roupa. Já não sabemos mastigar devagar. Desconhecemos a beleza absoluta de um peixe cru.

Também não é assim tão verdade: a cozinha japonesa tornou-se moda entre nós. As pessoas, simplesmente adoram comer sushi. Ou detestam comer sushi. Tem aquele cheiro de gengibre fresco, de wasabi, de vinho de arroz, de atum acabado de cortar (poucos de nós comeram o o-toro, o atum do atum, o sashimi perfeito). As pessoas ado­ram comer sushi. Pronunciam súchi ou suchí, dizem adooooro, reviram os olhos. Mas desconhecemos todos aquela delicadeza extrema.

Nós somos desajeitados. Enquanto come­mos sujamos a toalha, os dedos e a roupa. Já não sabemos mastigar de­vagar. Temos artrite, enfartes e gri­pes. Desconhecemos a beleza abso­luta de um peixe cru, de um sushi tentador. Anthony Bourdain conta nos seus livros que conheceu, no Japão, um cozinheiro, o senhorTogawa, Togawa-San, que durante três anos se dedicou apenas ao trabalho com o arroz. «Nos seus primeiros três anos de cozinha foi tudo o que lhe foi permitido tocar: arroz.» Arroz marinado, preparado, cozido, perfumado, manuseado. Bourdain conta, emocionado, como os dedos de Togawa executam, disciplinados, uma dança extraordinária até compor uma dose de sushi perfeito: exactamente com o mesmo número de grãos de arroz cada rolinho embrulhado em algas. O mesmo número de grãos de arroz que nunca foram contados - apenas manuseados, «num ballet completo para dez dedos», suspeitos, intuídos. Um dia, num restaurante japonês de Frankfurt que apenas servia grelhados, o cozinheiro preparava vários pratos para mim e para um amigo; estávamos ambos cheios de fome e fartos de bratwurst. Não sei se já viram aquelas facas fantásticas, o bisturi de um cirurgião plástico, a espátula de um artista mini­mal, separando grãos de arroz, cortando lombos de sardinha retirados da chapa, filetes afiados de pargo ou de polvo frescos. Se não viram, perderam um espectáculo alucinante; nós estávamos a vê-lo, dividindo as doses completas em dois pratinhos que eu e o meu amigo fomos devorando depois de termos passado por uma taça de pickles, shiitake, ovas de ouriço-do-mar, saque morno, espetadas de frango grelhado, soja frita debruada com pasta de gergelim e sésamo. O lombo de novilho caiu em laminas gelatinosas sobre os nossos pequenos pratos, os legumes divididos com justiça salomónica, tudo – até que sobrou uma ervilha, uma erviIha-de-cortar, simples, apenas passada pelo vapor e ligeiramente tostada de um dos lados. O cozi­nheiro cortou-a ao meio; metade dela de cada um. Mas, surpresa desagradável!, um grão de ervilha, um botãozinho verde de ervilha caiu, abandonado, sobre a tábua de madeira onde a faca, enorme, decidida, brutal, dividira toda a nossa comida. Olhamos uns para os outros, os três. O que fazer com aquele grão de ervilha, sedosa, solitária? De repente, um zzzzzf!, a faca sobe meio metro no ar e desce à velocidade necessária para separar um atum pela espinha central - mas neste caso destinada a cortar o grão de ervilha ao meio, dividindo-o de seguida pelos nossos dois pratos.

Nós somos desajeitados. En­quanto comemos, devoramos tudo o que é neutro e nos envergonha. É o nosso destino, a nossa tentação. Os japoneses que comeram fogu, o peixe mortal, de fígado venenoso, letal, também conheceram esse destino sem virtude, cortante, decidido. Uma toxina que despedaça. Comer uma fatia transparente do fígado de fogu pode matar em poucos minutos. Mas não morrem de enfarte, a menos que sejam lutadores de sumo. Nós somos desajeitados com a comida.

Por isso, desta vez a receita é apenas o convite ao ballet: segurar os dois pauzinhos e devorar sashimi. A minha avó, há muitos anos, preparava-me lombos crus de sardinha, que eu comia com apetite e tentação: sem espinhas, sem cozedura alguma, sem calor, sem ser tocado pelo fogo que transformou o homem num ser cultural, aqueles lombos crus de sardinha da minha infância só regressaram muitos anos depois, num restaurante japonês, rodeado de sabores finos, frios, inacreditavelmente macios e mergulhados em aromas triunfais, agridoces. Eu não sabia que era sashimi, o que tinha comido na infância, e que me transformara num louco pela cozi­nha e pelos sabores. Não sabia e ainda hoje tento esquecer. A verdade é que nós somos seres desajeitados. Enquanto comemos sujamos a toa­lha, os dedos e a roupa. Desconhe­cemos a beleza absoluta do risco, o fio da navalha, a flor que decora o prato triunfal servido num fim de tarde de Primavera. O nosso metabolismo mudou. Às vezes precisamos daquela tranquilidade de mármore de um samurai de Kurosawa, convidando-nos ao silêncio.

in Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Março 2006

Nunca se pode voltar atrás, felizmente

V., entre dois sorrisos, prometeu arranjar-me um segundo visto — mais prolongado - para entrar na Indonésia. Ele não sabia, mas eu nunca mais esqueceria o seu país, nem as colinas de nevoeiro a arrastarem-se sobre as florestas, nem o mar, nem as lagoas no al­to das montanhas, nem a viagem para Bali. Um visto é só um visto, mas aquela pequena representação consular, perdida numa ilha do Pacífico, era a ultima oportunidade para obter a autorização de demorar-me mais alguns dias «no maior pais muçulmano do mundo». Ele perguntou-me porquê. Eu não sabia. Estar do outro lado do mundo tem destas coisas, uma imprecisão, uma dúvida, uma coisa sem exactidão nem resposta: às vezes o desejo de andar perdido por uns dias, passear entre os barcos do porto que descarregam contentores, dormir em hotéis escondidos nos «bairros residenciais» e ocupados por clientes habituais que não precisam de registar-se, que só vão a Jacarta em negócios bre­ves, que fazem as suas orações depois de se descalçarem na varanda, que regressam tarde depois de percorrerem a via sacra dos bares e clubes nocturnos da cidade mais surpreendente daquele lado do hemisfério.

Havia também a tentação do costume: alugar um carro, comprar um mapa de estradas, preencher as páginas de meio Moleskine com as receitas daqueles restaurantes solitários onde se comia em mesas cobertas de toalhas de plástico e onde as cervejas vinham em baldes de gelo que se desfazia depressa de mais. O sabor do arroz. O camarão picante. O toque de caril nos legumes cozinhados em vapor. Dor­mir tarde, dormir cedo.
Não expliquei nada disto a V., que se limitou a aceitar os vinte dólares
adicionais e a devolver-me o passaporte dai a umas horas, já com o autocolante do visto. Eu poderia obter o visto à chegada, evidentemente, mas ainda não sabia em que voo eu tinha lugar: no de Jacarta ou no de Bali. Assim, eu estaria preparado e não tinha de responder às perguntas que na altura eram habituais nos aeroportos, sobretudo dirigidas a viajantes solitários com passaporte português.

Nunca cheguei a agradecer a V. esse favor extremo que me poupou a incómodos e filas no aeroporto. «Os portugueses são bem-vindos.» Não era totalmente verdade, na altura. Duas ou três semanas antes eu conhecera o último militar indonésio a abandonar Dili num barco que levava o derradeiro contingente de soldados, os despojos arrancados à pressa, guardados com ódio ou apenas com ressentimento, os últimos carimbos da autoridade Indonésia. Lembro-me dele; foi ele que me levou ao aeroporto, numa van que fazia de taxi colectivo; anos antes fora ele que, antes de saltar para bordo do navio (de metralhadora a tiracolo, chapéu preso por um fio ao pescoço), teve ainda tempo de pontapear um bidão abandonado - o último gesto de um ressentido, a mensagem derradeira de um derrotado. De­pois disso, pulou para dentro do navio militar; as imagens da televisão mostram-no ainda, debruçado sobre a água do porto de Dili, num riso escarninho que não escondia as lágrimas. Também não contei isto a V, nem poderia contar. Éramos estrangeiros numa terra distante, verde, nebulosa, húmida, silenciosa. Bebíamos cerveja num dos três bares do porto. Eu tinha conhecido, ali, uma das mulheres mais bonitas do mundo, mas a história não tem história senão a recordação dessa circunstância que terminava a viagem que me levara de Amesterdão a Singapura e de lá até à proximidade do Grande Recife.

Se eu voltasse atrás, se pudesse voltar atras, contaria a V. que um dos momentos mais felizes da minha vida aconteceu na véspera de regressar à Europa num da­queles voos que chegam de madrugada a Amesterdão (de novo) e de um outro que me depositou a meio da manhã em Lisboa (fui logo trabalhar, só entrei em casa muito tarde - vantagens de percorrer os fusos horários de oriente para ocidente). Se eu pudesse voltar atrás, na verdade, voltaria também àquele lugar onde tive um dos momentos mais fe­lizes da minha vida, sentado no chão de uma varanda, a ouvir música que também se ouvia em todo o lado (chill out, muito chill out), a beber o ultimo whis­ky, suspeitando o mar nocturno, a humidade da ilha. Mas nunca se pode vol­tar atrás, felizmente.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Março 2006

março 02, 2006

Regulação de quê?

Não sei se têm reparado mas há coincidências a mais. Primeiro, foi o ministro dos Negócios Estrangeiros que atribuiu à liberdade de Imprensa a tentação canalha de se desviar para os caminhos da licenciosidade. Depois, um deputado socialista comparou cartoonistas a assaltantes de embaixadas. O primeiro-ministro não se eximiu a comentar o assunto (como devia) e falou de irresponsabilidade e de excessos de liberdade. A Polícia entrou pela redacção do jornal "24 Horas" e confiscou computadores - e um juiz acaba de decidir que é legítimo vasculhar nesses computadores em busca do que entenderem ser pertinente na ocasião. A proposta de reforma do Código Penal, em curso, introduz a ideia de "crime de perigo" e será mais duro para com os jornalistas. Uma nova Entidade Reguladora para a Comunicação Social, nascida de um entendimento tácito entre os dois grandes partidos do regime (o PS e o PSD) vai permitir-se vigiar o comportamento da Imprensa, podendo "proceder a averiguações e exames" (além de "aceder às instalações, equipamentos e serviços das entidades sujeitas à supervisão e regulação da Entidade") nas redacções dos jornais sem mandato judicial e investidas como "agentes da autoridade".

Se nos recordarmos do "caso Marcelo" (que o governo de Santana Lopes pretendia afastar - e afastou - da TVI), podemos aprofundar a história de uma arqueologia recente da tentação de controlar a Imprensa. Não se trata, aqui, de defender a "corporação jornalística". Trata-se de defender a liberdade de expressão e de evitar o controlo da Imprensa, da opinião publicada e das nossas opções como leitores e cidadãos.

Na verdade, mesmo que não seja essa a intenção dos autores que deixaram a sua assinatura em cada um dos acontecimentos, trata-se de uma escalada grave contra a liberdade. E, nessa matéria, abdicando-se uma vez, abdica-se para sempre.

A esta tentação socialista de "controlar a rapaziada", de meter os jornais e a televisão na ordem, acrescenta-se ainda a vontade de, através da ERC, fazer deontologia por conta própria e emitir pareceres quando lhe apetecer, gastando para isso um milhão de euros anuais (é o orçamento, não discriminado, da ERC) para ter opinião sobre tudo. Para isso, a ERC vai poder fiscalizar o que entender; a breve prazo meter os blogs na ordem, definir que não há espaços de "comunicação" que não possam estar livres da sua alçada; dar aulas (não solicitadas) sobre jornalismo (a quem não lhas pediu). Para quê? Para proteger a sociedade (que lho não pediu) da licenciosidade das opiniões.

Acontece que um dos valores da nossa sociedade é precisamente o que nos manda proteger dessas patrulhas de caçadores da licenciosidade e dos sensatos polícias da Imprensa e da opinião. Argumentar-se-á que, dado o perfil dos membros da ERC, não é previsível que essas novas autoridades entrem pelas redacções dos jornais ou nos computadores dos blogs pedindo explicações, vasculhando, punindo, erguendo o dedinho. Pode ser. Mas a verdade é que está escrito que o pode fazer. Ou seja, mesmo que isso não venha a verificar-se porque a sociedade mantém um nível de bom senso aceitável, o espírito é esse mais vigilância, mais controlo e mais poder.

Curiosamente, um dos responsáveis por esse espírito sinistro transformado em lei é o mesmo que alertava os portugueses para o facto de a eleição de Cavaco Silva ser um golpe de Estado anticonstitucional. Afinal, Augusto Santos Silva antecipou-se e torna-se, por desejo ou por omissão, um dos responsáveis por esse golpe contra a liberdade. Podemos confiar em gente desta?

Jornal de Notícias - 2 Março 2006