março 03, 2005

A cultura à esquerda

Há, por aí, um mistério que me surpreende a ideia de que o país é todo de Esquerda e que isso se deve à cultura. Paulo Portas, que é tudo menos burro, expôs as coisas desta maneira no seu discurso de derrota: a ascensão da Esquerda deve-se ao seu domínio sobre a cultura. Esta queixinha parece-me insensata e despropositada, mas é significativo que tenha sido Paulo Portas a fazê-la, porque se trata, também, de uma acusação. A Direita dos partidos políticos (PSD e PP), essa constelação de interesses e baronatos reunida pela vontade de exercer o poder, sempre achou que a cultura era uma coisa de Esquerda - a culpa é deles, portanto. Actores, cineastas, escritores variados, os raros filósofos e alguns raros literatos, sem falar do estrelato das chamadas ciências sociais, eram de Esquerda. No fundo, tratava-se de herdar toda a mitologia de "um século de intelectuais". Cavaco comungou desta ideia, durante o seu primeiríssimo consulado: desde que a Esquerda ficasse relativamente bem alimentada de subsídios para o cinema, com as companhias de "teatro independente" apetrechadas de apoios financeiros, os escritores nem hostilizados nem muito ignorados, e houvesse uns brilhos ocasionais de espectáculos comemorativos - então as "coisas sérias" podiam correr por conta do Centro-Direita. A economia, as finanças, a política fiscal, as minudências da diplomacia ou das listas de espera nos hospitais eram matérias de seriedade - o gueto da cultura que se divertisse e apreciasse a RTP2.

É verdade que o candidato mais orgânico e mais detestável da Direita, Freitas do Amaral, perdeu a sua eleição por causa da cultura. A canção de Rui Veloso na campanha de Soares, as opiniões dos intelectuais, os tempos de antena de António Pedro Vasconcelos, Vasco Pulido Valente ou António Barreto deram a vitória a Soares, que devia estar-lhes eternamente grato - e o país também, aliás, por se ter livrado ocasionalmente do personagem (Freitas).

Havia, é certo, um mundo próximo ao da cultura - o da educação. Ali, havia uma certa continuidade entre o papel conferido aos técnicos (era preciso pôr na ordem um ministério cheio de vícios) e o lugar dos intelectuais. O resultado foi, por exemplo, Roberto Carneiro - o ministro que era tão bem intencionado que acabou a tratar os estudantes como "aprendentes". As ciências da educação ficavam como um compromisso entre o esoterismo e a burocracia. Também se arrumavam bem - os problemas vieram mais tarde.

Cavaco desprezava tanto esse universo de gente arrogante, libidinosa e incompreensível, que lhes reservou Santana Lopes como interlocutor e permitiu que uma abécula novecentista do seu governo hostilizasse Saramago. Só no final do seu mandato se fez rodear de intelectuais que acabaram (alguns, curiosamente, de Esquerda), rendidos e seduzidos pelo "lado humano e prático" do homem das finanças públicas, do crescimento económico e da humilde Boliqueime. Já Jorge Sampaio, noutra lógica, sujeitou umas centenas de intelectuais a um inacreditável beija-mão no Palácio da Ajuda. Eles compareceram em massa - apreciam bastante o género.

A verdade é que a indústria cultural portuguesa depende do Estado. Não propriamente de um emprego do Estado - mas da sua simpatia, da sua generosidade e das oportunidades de negócio que o Estado propicia. E ao Estado faz falta gente contente com o espectáculo.

Paulo Portas terminou esse discurso de derrota atribuindo à Esquerda o domínio sobre as coisas da cultura. Se esse discurso ficasse na história, seria um parágrafo assassino, vingativo e injusto. Era preferível que a Direita aprendesse e se deixasse de conspirações. E que não escolhesse tão mal as companhias.

Jornal de Notícias, 3 de Março de 2005