junho 27, 2006

O fazedor de histórias

Francisco José Viegas não é homem de se pôr em bicos de pés, nem mesmo agora que o seu romance Longe de Manaus ganhou o Grande Prémio da APE. «Não vou passar a fazer literatura», ironiza

A conversa havia de ser ao almoço, mais por gosto do que por falta de tempo. Desde que aceitou ser director da Casa Fer­nando Pessoa, os dias parecem-Ihe curtos mas existem sempre as madrugadas que descobriu serem boas para se sentar ao computador e escrever. Está adiantado o novo romance - na Pri­mavera leremos o que acontece ao seu de­tective de eleição, Jaime Ramos, na Terra de Fogo. E depois há ainda as crónicas no Jornal de Notícias, na Elle e na Volta ao Mundo, um programa sobre livros na An­tena 1, mais outro na RTP, comentários sobre o Mundial de Futebol na rádio...

É assim há quase cinco meses, foi quase sempre assim. Isto quando não lhe dá para as insónias, para olhar o tempo de frente, esperar pela manhã e ler um livro como sugeria James Joyce. Ou publicar mais um post no seu blogue “A Origem das Espécies”, um vício assumido.

Diz que o Grande Prémio de Romance e Novela da APE 2005, que vai receber no sábado, 24, por Longe de Manaus, tem, pelo menos, a virtude de garantir aos fi­lhos (Francisco, 13 anos, Manuel, 12, e Maria João, 7) não ter escrito mal este «romance policial com estados de alma».

A modéstia fica bem ao jornalista e escri­tor Francisco José Pereira de Almeida Vie­gas, 44 anos, aqui em discurso directo.

VISÃO: Há 20 anos imaginava que estaria hoje a receber um prémio da APE?
FRANCISCO JOSÉ VIEGAS: Nem me imagino daqui a dois anos! Quantas pessoas dizem: «Ah, pró ano hei-de...» Eu não tenho uma agenda, objectivos estratégicos.

E há 20 anos estava onde?
Era professor em Évora.

Como é que de repente...
Foi porque o António Mega Ferreira me convidou para chefe de redacção da Ler. Na altura trabalhava também no Jornal de Letras, achava que era bom ter dois empre­gos para poder mandar um dos patrões à merda. [risos] Entretanto, reunia materiais para a tese de mestrado, tudo certinho. Mas o Mega diz-me: vamos fazer uma re­vista de livros. E eu largo tudo.

Ia perguntar-lhe como vai para professor.
Vou para professor porque acabei o curso [de Estudos Portugueses]. Tinha estado na Universidade Nova, em Lisboa, e ge­ria um restaurante em Algés. Ainda te­nho um livro de linguística cujas marcas são notas de remessas de talho.

Era um bocadinho esquizofrénico.
Era repartido. Ia ao restaurante e depois a uma aula de literatura brasileira, saía do restaurante e estudava Chomsky. Entre­tanto, acabei o curso sem uma perspec­tiva clara daquilo que ia fazer. Podia ser o mestrado, tinha 18 de média... Mas vi um anúncio da Universidade de Évora, achei que era um lugar bonito e concorri. Ainda dei aulas de 1983 a 1987.

A ida para o restaurante também já acontecera por causa de um anúncio?
Não, aí havia uma relação de familiariedade com a pessoa que tinha o espaço. Chamava-se Gelfa, já não existe, mas ainda há quem se lembre de me ver a fazer bifes nas mesas ao jantar de sexta-feira.

Já disse que há 20 anos não se projectava no futuro. E há 40 anos? O que queria ser o menino Francisco, quando fosse grande?
Sei que durante o liceu queria ser jorna­lista. Mas foi uma infância tão feliz que não me lembro de nenhuma profissão que nessa altura, quisesse ter. Passeava pela serra, ia para o rio, andava de bicicleta, ti­nha amigos, uns avós e uns pais magnífi­cos. Correu bem, não tem história.

Mas como é que nasce em Foz Côa?
A minha mãe, que se chama Margarida, dava aulas numa escola primária ali perto, numa terra chamada Foz do Sabor. Nesse dia, ela atravessou o rio de barco e foi ter com os meus avós ao Pocinho. Ele era ope­rário metalúrgico da CP e ela doméstica. Levaram-na para o hospital de Vila Nova de Foz Côa e eu nasci normalmente.

O seu pai já estava em Angola?
O meu pai, que se chama Francisco, era professor primário mas estava a fazer o serviço militar em Viseu. Foi para Luanda pouco depois de eu nascer. Até 1965, vivi com a minha mãe em Cedovim.

Portanto, ao contrário do que rezam as notas biográficas, não viveu no Pocinho.
Vivi entre Cedovim e o Pocinho. E até aos meus 17 ou 18 anos, o Pocinho era o meu universo, cumpria as minhas exigên­cias de visão do mundo. Tinha o meu rio, o Douro, alguns amigos importantes, os meus avós. Eram grandes férias.

Porque os Viegas mudam-se para Chaves.
O meu pai regressa de África, ainda dá aulas em Cedovim, mas ele e a minha mãe queriam ir para uma cidade. Foi um choque. Eu tinha 6 anos e estava habitua­do a uma aldeia onde nevava e ficávamos incomunicáveis. Havia uma coisa lindís­sima nisso: ao fim de duas semanas, che­gava pelo correio um pacote enormíssimo com o Jornal de Notícias. Eram 15 edi­ções! Foi o jornal por onde aprendi a ler, aos 4 anos.

Tínhamos, portanto, um menino-prodígio?
Não! Os meus pais eram professores, as letras não me eram estranhas. O meu pai lia o JN todos os dias, eu gostava das ban­das desenhadas do Dr. Kildare e da Lola, via os desenhos e as letras. Um dia, co­mecei a ler os títulos do jornal.

Tem 4 anos quando acaba o seu reinado de filho único.
O meu pai vem de África e nasce a mi­nha irmã Eleonora. Não foi nenhum choque. Dei-me sempre muito bem com ela. Hoje, é juíza do Supremo Tribunal Admi­nistrativo, em Lisboa.

Entretanto, começa a ler alguma coisa além de cabeçalhos de jornal?
Em Cedovim, havia coisas como a Audácia [risos], que era a revista dos missionários combonianos, a Fagulha, da Mocidade Por­tuguesa, e os livros dos meus pais.

Os clássicos?
Com os clássicos comecei aos 10 ou 12 anos. Li o Júlio Diniz, de que gosto muito, o Eça, e dois livros marcantes para mim, do Camilo: o Maria Moisés, que se passava em Montalegre, muito chato, e O Retrato de Ricardina. E bastou o meu pai dizer para não ler O Crime do Padre Amaro...

Os seus pais eram conservadores?
Não. Deram-me uma educação liberal. Nunca houve indicações claras do tipo: o que tens de ler, o que tens de esco­lher, o que tens de fazer. Mas havia a noção da responsabilidade: o que tu estudas é contigo, depois estamos cá para te avaliar.

Como era Chaves no final dos anos 70?
Era uma cidade especial, com biblioteca, muitas livrarias. Ao sábado, ia com um amigo, o Manel Francisco, decorar a mon­tra da Ana Maria. E fazíamos sugestões sobre os livros a pedir, guiados pelo Bookcionário do Fernando Assis Pacheco, n'O Jornal. Aliás, a minha primeira crítica li­terária foi dele, em 1978. Tínhamos um grupo que fazia edições policopiadas, os Cadernos do Largo das Freiras...

Que nome delicioso.
O Largo das Freiras era o centro de Cha­ves, onde ficava o café-bar Aurora e o li­ceu. Fizemos três ou quatro publicações e uma delas era um livrinho chamado O Verão e Depois, que enviei ao Assis Pa­checo. Tornei-me uma celebridade na mi­nha mesa de café só porque ele citou um poema meu, Barcelona Sobre as Águas.

Até aí a poesia ia toda para a gaveta?
Mostrava aos amigos e, sobretudo, às ami­gas. [risos] Até que, em 1977, a Escola Se­cundária Ferreira de Castro, em Oliveira de Azeméis, organizou um prémio nacio­nal de literatura para estudantes. Con­corri e ganhei o 1.° Prémio Ferreira de Castro, mas nunca me preocupei em pu­blicar a não ser no ano seguinte. E tive logo a sorte de aparecer no Bookcionário, que foi culpado por duas semanas de vaidade absoluta. É preciso ver como era Chaves, na altura. Ao sábado, chegavam O Jornal, o Diário de Lisboa de quinta-feira que trazia uma página literária e o Diário de Notícias também de quinta-feira com o suplemento do Gaspar Simões.

Hoje não se acredita.
Para mim a grande revolução foi vir para a faculdade, em Lisboa, e à quinta-feira ler o Gaspar Simões e o suplemento de literatura do DL. Em Chaves tinha um ficheiro enorme de filmes, recortava as críticas publicadas na Opção, do Artur Portela, n'O Jornal, no Expresso, mas não vira nem um quarto deles. Quando che­guei cá e percebi que podia ver o Woody Allen no próprio mês...

E por que é que Lisboa ganha ao Porto?
Era em Lisboa que ia começar o curso que queria. E havia mais meios para os meus pais me mandarem para cá. Vim para uma residência universitária na Madre Deus, onde ficavam os filhos dos professores.

Lisboa eram 23 paragens até à faculdade...
Vínhamos da província aterrorizados, jul­gávamos que Lisboa nos ia devorar porque era tudo muito difícil. Passei o primeiro ano a estudar, só fui três ou quatro vezes ao cinema. Não queríamos ser ultrapas­sados, tínhamos sotaque... Esse primeiro ano era também um ano de correcção do sotaque.

Como é que se corrige um sotaque?
Eu não corrigi, comecei a falar assim, na­turalmente. Chaves ficava a 12 horas de Lisboa. Era outro continente. De maneira que, quando tinha saudades, coisa que me acontecia muitas vezes, ia até à Praça da Alegria ver as pessoas que eu conhecia a chegarem no autocarro de Chaves.

Mas falava com elas?
Sabia que estavam ali e bastava-me.

E quando é que ultrapassa essa existência monacal e descobre Lisboa?
Quando vou viver com uma namorada, por acaso minha professora. Comecei, então, a ter uma vida normal de faculdade, ia aos concertos da Gulbenkian...

Era um dia-a-dia de tertúlias, em cafés?
Vivia sobretudo a faculdade. E depois vinha o Verão, o inter-rail, os passeios em Portu­gal. Tanto fazíamos o litoral alentejano a pé como íamos à ópera no Coliseu ou acampá­vamos no Geres. E passávamos temporadas no Douro, na casa da minha namorada da altura, onde havia uma biblioteca espan­tosa com tudo o que era marcante no An­tigo Regime.

E como é hoje a sua biblioteca?
Sempre foi muito anár­quica, no sentido de in­teresses disparatados. Sou do género compulsivo e obsessivo. [risos] Se tenho um período em que digo: Camilo - é Camilo e pronto. Não está or­ganizada. Mas tenho uma estante com li­vros queridos, onde estão sempre o Borges, o Virgílio Ferreira, o John Le Carré...

Recuando aos seus tempos de Évora, é verdade que recusou dar aulas no Palácio da Inquisição?
Disse-lhes: ou mudam o nome ou mu­dam-me para outro lado. Fazia-me aflição aquele nome porque tinha lido o Borges Coelho e ficado impressionado. Não podia levar as pessoas a ler Ruy Belo, Camões, Cesário e filosofia da linguagem sem lhes dizer: aqui morreram pessoas, entraram mulheres que engravidaram, foram quei­madas e os filhos também.

É ai que se interessa pelo judaísmo?
Há uma fase de procura e de estudo que data dessa altura, embora sem muita con­vicção. Lia o George Steiner, achava que havia ali qualquer coisa, lia alguns por­tugueses, interessava-me. Mas hoje acho que não tem sentido a conversão porque os convertidos são sempre os piores.

Não se converteu?
O processo não ficou concluído.

Estava à procura de si próprio? Teve a ver com o facto de fazer 40 anos?
Provavelmente. Foi um momento impor­tante da minha vida, de enriquecimento. Fiquei com uma frase fabulosa de um ra­bino que me orienta muito: «Nunca per­guntes o caminho a quem o conhece pois de contrário não te poderás perder.» O ju­daísmo, enquanto cultura e referência, é muito importante para mim. Nasci em Foz Côa, terra de judeus, a minha avó fazia pão ázimo, era tradição. Mais do que tor­nar-me ortodoxo, definitivo, quis estudar. Tem a ver com procurar uma identidade e pôr-me ao seu lado por achar que faz sen­tido do ponto de vista histórico.

A sua geografia sentimental, muito inscrita nos seus livros, leva-o sempre a Trás-os-Montes e ao Douro.
Vivi aquela região sem preocupações, não vivi lá para escrever um livro. E por isso absorvi o respeito pelas florestas, a mania dos rios.

E não se cansa de falar nos negrilhos...
É como chamamos aos olmos.

O Francisco é um transmontano que vai para o Alentejo, para Aviz...
…e se sente bem. Como me sinto bem no Estoril [onde mora] ou em Salvador da Bahia [de onde regressou há um ano].

Aos 40 anos, publicou uma antologia de poesia, Metade da Vida, foi um balanço?
Senti essa necessi­dade. Estava a escrever de maneira diferente e, na ver­dade, já era metade da minha vida. Che­gara o momento de arrumar os poemas.

Porque diz que Longe de Manaus é um «policial com estados de alma»?
Porque é a aventura de um personagem. Não me parece possível escrever ficção como gosto sem ter um personagem por quem me apaixonar.

O Jaime Ramos é um alter-ego?
Ele é um bocadinho como eu gostava de me ver, mas não é uma pessoa que viva por mim outras coisas. Vive a sua vida, só que não consigo libertar-me dele. É uma vida que gosto de observar. E há uma me­diania que me agrada. É um pequeno-burguês, gosta do Futebol Clube do Porto, de ir à pesca, de cozinhar, lê mais se o In­verno for comprido...

O Crime na Exposição foi o livro que lhe deu mais gozo escrever?
Foi aquele em que me diverti mais porque meto-me com o António Costa, o Marcelo, o Pacheco Pereira... Como o livro foi pu­blicado em folhetins, no DN, há essas pis­cadelas de olho à realidade. Um dia, pedi ao João Paulo Velez [porta-voz da Expo'98] para me mostrar onde ia ser o pavilhão da Quirguízia. Quirguízia? Sim, quero matar alguém perto desse pavilhão porque é um país com azar. Tinha uma amiga tadjique que estava sempre a dizer mal dos quirguizes e pensei: vou fazer alguma coisa para salvar a honra deles!

E volta à carga, no Crime Capital...
Aí também me diverti imenso. Como se passa durante a Porto 2001, ponho a Teresa Lago a entrar no ga­binete do Jaime Ra­mos quando ele está com um lápis a segu­rar uma calcinha e o Isaltino [ajudante do detective] a di­zer: 'Isso é modelo asa delta Dolce & Gabbana, chefe'.

Ninguém se zangou?
Não, mas uma vez encontrei a Teresa Patrí­cio Gouveia e disse-lhe: prá semana a Teresa vai aparecer. Não resisti a pôr o Jaime Ramos a ter uma paixoneta por ela. Ele é um melancólico com as senhoras...

Ele ou o Francisco José Viegas?
O Jaime Ramos nunca tem palavras de amor para a namorada ou acessos de ro­mantismo. Uma parte de mim também é assim, céptico em relação às palavras.

Tem uma memória de elefante ou tira notas sobre as personagens?
A princípio tinha fichas no computa­dor mas agora uso cadernos. É engra­çado, até já estou a escrever o novo livro à mão, com uma Artpen [da Rotring]. E tenho tudo apontado sobre o Jaime Ra­mos: quanto ganha, que roupa veste, em que carro anda, os livros que lê (que não são os meus)...

E tem músicas para as personagens.
Tenho uma banda sonora para cada uma. O Jaime Ramos é sempre a mesma: Van Morrison. Independentemente de ele gos­tar de boleros e de canções mexicanas.

A Daniela de Longe de Manaus existe mesmo, não existe?
Existe uma aproximação, sim.

Foi uma paixão?
Apaixonei-me realmente pela Daniela. Não sexualmente, não tinha nada a ver com o assunto. Além de ter aprendido com a Daniela propriamente dita [a mulher verdadeira], queria um olhar que alguma literatura heterossexual mais cavernícola não consegue ter. Queria apanhar o seu lado mais delicado, mas também o apetite sexual e aquilo que as mulheres acabam por pensar dos homens. Como quando ela diz: «homem fica meio babaca numa relação.»

Só quem gosta muito de mulheres é que inventa uma Daniela destas.
[risos] Bom, provavelmente... A certa al­tura tive dúvidas: será que ela pensaria isto? Vamos arriscar porque parece-me que sim, se eu fosse mulher teria esta sensação. Ela tem muito a ver com a delicadeza daquele linguajar. Escrevi directa­mente em português do Brasil. Pareceu-me mais apetitoso, aquela coisa de ela dizer: «Lembra do Bixiga, tem lá restaurante com chopinho cremoso...»

Na génese desse romance houve uma notícia, não foi?
Um dia, li no jornal que um homem ti­nha sido encontrado morto num apartamento, na temível rotunda de Santo Ovídio, no Porto. O homem ainda não fora identificado e achei espantoso ha­ver uma pessoa sem identidade, num lu­gar sem identidade.

Os seus romances têm sempre a ver com os lugares. Chega a um sítio e diz: isto dá uma história.
Agora [o próximo livro] é mais a Argentina e a Terra do Fogo. Mas começa com um incêndio em Portugal, alguém passa e chama àquilo Terra de Fogo. Mas não posso contar mais...

Anda entusiasmado com o livro?
Claro. Agora, o Jaime Ramos está em Bue­nos Aires, no Café Britânico, na esquina das calles Defensa e Brasil... Era o café dos espiões da Segunda Guerra, e o Osvaldo Soriano escreveu lá um romance.

Sente uma maior responsabilidade por causa do prémio?
Nem sequer penso nisso. A primeira coisa que disse às pessoas que estavam comigo quando recebi a notícia foi: o País está louco. Deram-me o prémio a mim... O País está mesmo virado do avesso! Depois fiquei contente, claro. Ser premiado é bestial porque pelo menos os meus fi­lhos vão pensar que não escrevo mal. E é uma certa confirmação.

Ainda tem dúvidas?
[risos] Não tenho dúvidas mas sou cép­tico. O prémio garante que aquele livro não estava mal esgalhado. Agradeço o pré­mio, sim senhora, mas a responsabilidade é a mesma. Não vou passar a fazer litera­tura. É isto que eu faço: histórias.

Escreve para ser lido, por prazer, por ter «comichão nos dedos»?
Dá-me gozo inventar histórias, brincar com personagens, pensar: que história é que isto poderia dar? Os jornalistas, os escritores, todos temos essa coisa: isto dava uma história. Se dava uma histó­ria, vou fazê-la.

Escreve quando calha ou faz por ter tempo para escrever?
Vou escrevendo quando posso e depois há uma fase em que digo: isto agora tem de ser acabado, e aí levanto-me às 4 da ma­nhã e trabalho até às 10.

Daí os posts A noite o que é?, no seu blogue? Não é por culpa de insónias?
Também tenho insónias grandes. Mas no caso do Longe de Manaus, que foi o livro escrito em condições mais assustadoras, trabalhava até às seis da manhã, deitava-me, acordava ao meio-dia e continuava a escrever. Isto durante uns três meses.

No blogue há alguma exposição, embora não da vida privada. Fala duas ou três vezes dos filhos, de mulheres nunca...
Em termos privados, defendo-me muito. Quando damos o nosso rosto ele gasta-se. Quando abrimos a porta uma vez, as pes­soas instalam-se. Portanto, não se abre.

Este mês farta-se de publicar posts sobre futebol...
Nem estou a ver muitos jogos do Mun­dial mas torço pelo Brasil, Portugal, Equa­dor, Espanha. Não gosto de torcer pelas equipas grandes da Europa, não me ins­piram. Na pequena equipa, há a virtude de sabermos que precisamos de educar o carácter na adversidade. Temos de sa­ber reagir e o futebol pode dar uma li­ção, que é estarmos sujeitos à piada dos outros. Publicam uma coisa sobre mim e as pessoas perguntam-me: «Eh pá, não reages?» Não.

E porquê?
Isto é mesmo assim. Agora, na blogosfera, houve comentários simpáticos mas tam­bém escreveram: ele ganhou o prémio porque é cavaquista. Eu que nem sou cavaquista! Mas essa desconfiança existe, o género humano não é perfeito, somos todos filhos da puta. Se não ficamos tran­quilos em relação a isso, estamos sempre com úlceras.

Hoje, com esta bela vitelinha grelhada, não há perigo de úlceras...
[risos] Ah, não tenho úlceras de nenhum género. E como muitas vezes coisas sim­ples. Ser gourmet é massacrante porque exige um elevado grau de abstracção em relação às coisas reais, ao bife, ao arroz de tomate... O gourmet é chato, só pode ser foie gras bla blá e uva não sei o quê. A cozinha da minha avó era mais apetitosa do que ir ao... Eleven. Tem a ver com ape­tites, memórias, sabores.

Entrevista feita por Rosa Ruela, in Revista VISÃO – 22 Junho 2006