abril 30, 2006

Cálice de fogo

Ninguém diria que o conhaque, o "néctar dos deuses", como lhe chamava Victor Hugo, tem origem em vinhos que, por serem fracos, demasia­do fracos, foram destinados à destilação. Também é verdade que poucos dos que beberam ou citaram a bebida puderam conhecer a região onde ela nasceu - a norte de Bordéus, cruzada pelo rio Charente, assinalada pelas cidades de Cognac, justamente, de Angoulême, Jarnac ou Rochefort, já diante do mar. Foi nessa região vinícola, onde se produzia já conhaque desde o século XIII (o vinho fora intro­duzido pelos romanos), e se exportava, que se instalaram os estrangeiros que mudaram o destino das suas vinhas e dos seus alambiques: Jean Martell, vindo de Jersey; o irlandês (de Cork) Richard Hennessy; o também irlandês James Delamain, de Dublin; o inglês Thomas Hine, de Dorset; o descendente de escoceses Otard de Ia Grange. Tudo isto no século XVIII. Algumas das mais famosas marcas de conhaque levam, precisa­mente, os seus nomes: Otard, Martell ou Hennessy são unanimemente reconhecidos como sinónimos de conhaque, juntamente com Remy Martin, Courvoisier ou Frapin.

Se Victor Hugo, fascinado com a gastronomia de Poitou-Charente, berço do conhaque, lhe chamava "o verdadeiro néctar dos deuses", já Flaubert, o insuspeito Gustave Flaubert, misturava ironia e nostalgia quando escrevia que "um bom copo de conhaque nunca faz mal - tomado em jejum mata a bicha-solitária". Por toda a literatura se sucedem elogios ao conhaque. Reparem em Luis Sepúlveda, o criador chileno de "O Velho Que Lia Romances de Amor": "Nada melhor no Inverno que a companhia de um bom conhaque e das obras completas de Simenon." E Georges Simenon, pre­cisamente, colocou várias vezes o comissário Maigret exigindo o seu conhaque (se bem que Maigret, o burguesíssimo Maigret, o seu persona­gem de eleição, bebesse de tudo: genebra, calvados, cerveja, vinho, licores e, caramba, até uísque) - e o comissário, nos serões com Madame Maigret (no seu apartamento do Boulevard Richard-Lenoir), saboreava o seu conhaque na companhia do tabaco de cachimbo, de janelas abertas para a tepidez da Primavera parisiense.

Euforia, prazer, conforto doméstico, e também devassidão - e o conhaque dos sonhos mais comoventes, evocado por Carlos Drummond de Andrade num poema em que descreve como um anjo o mandou "ser 'gauche' na vida": "Eu, não devia te dizer/ mas essa lua/ mas esse conhaque/ botam a gente comovida como o diabo." O brasileiro Luís Fernando Veríssimo, por exemplo, é avaro com o seu conhaque; para explicar a dife­rença entre pouco, pouquinho ou apenas um pouco, o autor de 'O Analista de Bagé' ou de 'O Clube dos Anjos' não tem vergonha: "Pouquito, por exemplo, equivale a uma dose de bom conhaque, daquele que você serve pouco até para o melhor amigo." E, por falar em Brasil, João Guimarães Rosa, o autor de 'Grande Sertão Veredas', evoca a bebida ao explicar como lhe surgiu a ideia para 'O Recado do Morro': no estrangeiro, quando a saudade o obri­gava a escrever e o conhaque o acompanhava.

Provavelmente, ninguém resumiu o espírito do conhaque como Machado de Assis, o autor de 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', que em 1856 escreve um pequeno poema onde aparece esta preciosidade: "Conhaque inspirador de ledos sonhos,/ Excitante licor de amor ardente,/ Uma tua garrafa e o Dom Quixote/ É passatempo amável." O verso é irregular, mas rescende a conhaque e certa devassidão. Tal e qual como o nosso Cesário Verde, no poema ("Não te cases...") em que pro­mete amor à dama, mas nunca o casamento: "Eu posso dar-te tudo, tudo, / dar-te a vida, o calor, dar-te conhaque, / hinos de amor, vestidos de ve­ludo, / e botas de duraque."

E para bebê-lo correctamente? Em primeiro lugar, é preciso saber que os conhaques não melhoram as suas qualidades na garrafa - é, portanto, necessário bebê-lo. Simples, à temperatura ambiente, parece ser o melhor processo. Um pouco de água é aceitável e é uma opção justificada pela tradição: uma das histórias sobre o fabrico do conhaque (antes da chegada dos grandes destiladores à região de Conhaque) lembra que ele servia para dar algum gosto à água que os marinheiros levavam nos navios, e não a estranhassem. Recorramos, pois, e ainda, à literatura. No caso, a Eça, que sabia como beber o seu conhaque. Em 'Os Maias', João da Ega e Carlos da Maia são rece­bidos por Craft, "de robe de chambre, surpreendido com o tumulto", na sua quinta nos Olivais (depois do infeliz baile dos Cohen) - que lhes prepara, fleumaticamente, três grogues de conhaque e limão. Era um dos processos. Simples, aparece na ceia em que o Conselheiro Acácio comemora a sua nomeação para cavaleiro da Ordem de Santiago, depois de libações com champanhe de Epernay; e se aparece simples em 'O Crime do Padre Amaro' e 'Os Maias', num dos seus contos ('José Matias'), Eça fala de "conhaque correndo em jorros desespe­rados". Nada como a tranquilidade excitante de um "conhaque à inglesa", logo a abrir 'O Mandarim': "Bebendo conhaque e soda, debaixo de árvores, num terraço, à beira-d'água."

Que podemos querer mais do que esta sugestão luminosa?

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in Revista Notícias Sábado - 29 Abril 2006

abril 29, 2006

O senhor Coelho da Rocha

Quando entramos pela porta do Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, Lisboa, já sabemos ao que vamos: à reconciliação com a parte mais saudosa e estável do estômago.

Empanturramo-nos de cozinha de fusão - ou seja, debicamo-la. Os nossos estômagos são, perio­dicamente, coisas delicadas; a nossa alma é, de vez em quando, aventureira como gostávamos de ser na realidade. Extasiamo-nos diante de uma torta de aipim com "tempura" oriental, apreciamos a originalidade, o risco, a fronteira entre o comestível e o irrepreensível. Os 'gourmets' são outra categoria: apenas apreciam o excelente, o melhor entre o me­lhor. Eu sou humano. Não tenho nada de 'gourmet' - a cozinha fez de mim um vadio que gosta de provar, de repetir, de evitar, de desobedecer, de apreciar a obediência. Defendo a anarquia que sabe bem, enquanto sabe bem. Sou pela desordem.

Acho que cada livro de receitas é uma disposição, mais do que uma imposição, aprecio as receitas que variam, as distorções, as fugas, os sabores rebeldes que nunca se reuniram - e o conformismo também. Há tanto prazer na obediência à gramática e às suas regras como na desobediência e na desconstrução. Tanta beleza da irreverência como na repetição da norma. E há irreverência irritante, desqualifi­cada, muito menos interessante do que a repetição da norma. É por isso a cozinha é sempre chamada à ordem. Empanturramo-nos (debicamos, aliás) de "cozinha original", a que está na moda para além da moda, muita dela própria para 'épater le bourgeois’, feita apenas para impressionar, para chamar a atenção (como as crianças).

Mas depois queremos uma coisa sólida, reconciliadora, atenta, que nos reenvie à cozinha da nossa vida - à da nossa infância, à do nosso bairro, à do nosso sotaque. Queremos um daqueles restaurantes onde reconhecemos os cheiros (ah, até é pecado escrever "cheiros" - devíamos dizer "aromas"), onde reconhecemos um peixe inteiro, uma carne, um prato que antigamente se fazia em casa, um tabuleiro onde viaja um pargo saído do forno, uma batata solenemente arrancada à tortura da cozinha, mas identi­ficável pelo seu ar tostado e pelo tom farinhento.

Ou seja: somos exactamente isso - curiosos incor­rigíveis e conservadores por natureza. E, por isso, quando entramos pela porta do Coelho da Rocha, em Campo de Ourique (mesmo bairro e mesmís­sima rua onde viveu Fernando Pessoa, tinha de o escrever), já sabemos ao que vamos: à reconciliação com a parte mais saudosa e estável do estômago, aquela que parece que tem veludo, aconchegada, caseira, com saudades dos avós: salas com mesas perfeitas, cadeiras que se arrastam sem ruído, tons maduros, escurecidos pelos anos e pelo bom trato. Isto não vem só: este ambiente, com um serviço atento, tradicional, vem acompanhado de uma empada de caça (ah, perdiz) tostada, sedosa na sua capa; vem na companhia de um arroz de tomate (sedoso, verdadeiro) com gambas panadinhas ou com linguadinhos fritos (bem fritos, bem frescos), de peixe ao sal (com batatinhas, com grelos) ou de arroz de cabidela. Estes pratos podem não seduzir almas histriónicas, o que é bom - mas a verdade é que as almas histriónicas não comem e suspeito que os seus respectivos estômagos e paladares estejam danificados.

Mas se não ficam tentados pelos lombinhos de javali, há o (não podia ser mais tradicional) cozido à portuguesa das quintas-feiras, um cozido comple­to, que nos deixa rendidos e suspirantes. E há um magnífico e nunca por de mais distinguido cabrito no forno que qualquer descrição repete as fórmulas do costume e se reduzem a isto: é magnífico e faz a cama para a encharcada de ovos, para o toucinho-do-céu (uma generosa mostra de colesterol do bom, como de costume), uma tarde de chocolate cremosa e a carta de digestivos igualmente conser­vadores e saborosos.

Nestas noites que ainda não registam a suavidade requerida pela Primavera portuguesa, ao sair pela porta do Coelho da Rocha sente-se a necessidade de um agasalho - o tradicional "ventinho de Campo de Ourique" escapa-se por aquelas ruas desertas. Mas é só para o corpo; alma e estômago sentem-me reconfortados.


À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 110
Vinhhos Brancos: 60
Vinhos verdes: 12
Portos e Madeiras 14
Uísques: 20
Aguardentes e Conhaques 16

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Relativamente fácil à noite, difícil de dia
Levar crianças: Sim
Área não fumadores: Não
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 35 Euros

Restaurante Coelho da Rocha
Rua Coelho da Rocha, 104-A/B - 1350-079 Lisboa
Tel: 213 900 831
Fecha ao domingo

in Revista Notícias Sábado – 29 Abril 2006

abril 24, 2006

Salvador da Bahia: a cordialidade em segredo

Hoje, que já não mora em Salvador, o autor ainda sente a mesma emoção de sempre quando percorre os seus lugares de eleição.

Há duas maneiras de visitar uma cidade: uma é a de seguir pelas suas ruas identificando-a a par e passo, enumerando os seus lugares, as suas sombras, os seus pontos de luz. Outra, inteiramente diferente, é a de se perder nela como se fosse um labirinto, sem mapa, sem orientação, sem razão, apenas sabendo de que lado está o mar. Se menciono o mar é porque Salvador não existe sem ele. Porém, ao contrário de outras cidades, Salvador não o usa com aquela frequência carioca ou com a paciência de qualquer cidade com uma baía igual à sua: mas o mar de Salvador é a sua grande barreira, o seu grande recife contra o resto do mundo. E, a falar verdade, Salvador não existiria sem esse grande mar azul e brilhante que Ihe deu o nome original - o de Bahia de Todos os Santos, que infelizmente perdeu.

Para um soteropolitano (o habitante de Salvador, o natural de Salvador), o mar está sempre à porta: nas canções, na musica diabólica dos novos baianos, na sua cozinha de perdição, nas imagens que transportam o tom mais turístico da cidade. E o mar é aquele ponto urbano entre o Senhor do Bonfim e Itapoa, seu limite, passando pela Barra, por Ondina, por Rio Vermelho, Amaralina, pelos Jardins de Allah. Das «lavagens do Bonfim» ao Carnaval e às festas de Iemanjá, Salvador precisa do mar para ilustração — um mar de cartolina empurrado pelo vento, um mar ondulado e caloroso. Ao fim de um ano e meio de Salvador (o tempo em que lá vivi), aprendi a reconhecê-lo e a sentir a sua falta mal me afasto. Mesmo quando o passeio se alonga para Iá dos limites da cidade, na direcção da Costa dos Coqueiros, até Arembepe, Itacimirim, Guarajuba, até Imbassahy, até Mangue Seco, no cruzamento ou prolongamento com o Sergipe. Sobretudo quando o passeio nos leva até ao outro lado da baia, a Itaparica, a ilha do feitiço do pavão.

Hoje, que já não sou soteropolitano, sinto a mesma emoção de sempre quando percorro os lugares de eleição de Salvador, a começar pela zona do Pelourinho, evidentemente, porque traduz a grande alma da cidade, uma alma à solta, misturando religiões, credos, sensibilidades políticas, correntes culturais, musicais, experiências danadas. De certa maneira, Salvador e o Pelourinho são os dois nomes para a capital da fusão - entre aquilo que é naturalmente indígena, aquilo que é português e aquilo que é africano. Esse triângulo produz coisas fascinantes: uma arquitectura religiosa e monumental claramente portuguesa, entre o barroco e o rococó, as vezes romântica; a alucinante pluralidade de manifestações religiosas que vão dos resíduos de catolicismo lusitano à sua ligação com as religiões animistas africanas que resultam no poder extraordinário dos terreiros de candomblé (com os seus orixás, as suas danças, as suas musicas e o seu modo de vida) — são cerca de 500 terreiros de candomblé instalados na cidade; uma cultura negra fundamental; a disponibilidade para adaptar e devorar as outras culturas que se apresentam diante da Bahia de Todos os Santos - da italiana à libanesa, da portuguesa à eslava; uma gastronomia plural, exótica, feita de cruzamentos luso-africanos, procurando estabelecer uma relação triunfante com os perfumes da terra mas dando espaço para a pura invenção e para o atrevimento; um modo especial de se relacionar com o corpo, o sol, o mar, a ideia de trabalho. Isto faz da Bahia um território especial onde, apesar de as portas estarem abertas, não se entra sem cerimónia. Há rituais a observar, memórias a aprender, ritmos a incorporar. E um passado.

A começar pelas suas evocações: a memória da escravatura, das carreiras de África, do açúcar e do café, do candomblé, da capoeira, dos cheiros que vieram de África atravessando o mar e arrancando tradições de Angola e do Benim. E, depois disso, a Salvador dos religiosos, a Salvador das mil igrejas, da talha dourada, dos frades, dos clérigos, dos padres cultos, dos poetas rebeldes (como esse misterioso Gregório de Mattos, «o Boca do Inferno», tal a forma como falava da cidade que o mandou para exílio), dos poetas românticos, da sensualidade morena e tropical. Mas a minha cidade pessoal, o meu mapa da cidade é o que transcreve o traçado das ruas que saem do Pelourinho e passam pelas velhas lojas e armazéns do povo na Baixa dos Sapateiros. Esta é uma parte de Salvador, que não vem nos roteiros, o início da Salvador humilde e mesmo pobre, a cidade onde o sotaque muda até abismos impensáveis: lojas de ocasião, botecos sujos, amáveis, negócios escuros, discos baratos, amostra de desgraça. Essas ruas, se não me levam até ao Pelourinho, subindo, arrastam-me sem destino, meio perdido, entre o Carmo e o Bonfim, onde os miúdos mergulham no mar mesmo diante da igreja, entre Piatã e a Ribeira. Passo pelo beco dos Barbeiros e pelo dos Calafates, subo ou desço pela ladeira do Boqueirão ou pela da Preguiça, descanso no Largo 2 de Julho, vejo se ainda chego à praça Dodô e Osmar para homenagear a memória dos «trios eléctricos», sinto o mar perto da Rua Gamboa no passeio largo onde chegam os ruídos do fim da tarde.

Os turistas procuram o Mercado Modelo (qualquer viajante deve fazê-lo, evidentemente) pela manhã, discutindo preços e avaliando um artesanato que às vezes não se compreende - mas eu aconselho que se visite o Mercado Modelo (o das canções de Caymmi, de onde se vê melhor o Elevador Lacerda, verdadeiro símbolo da cidade) também ao fim da tarde, depois de abandonado por hordas de compradores de bijutarias e de lembranças: e que nos sentemos na esplanada, aproveitando os raios de luz do fim do dia, aproveitando o movimento dos ónibus, aproveitando o ultimo acarajé acabado de fritar, estaladiço (com o seu feijão fradinho catado, o azeite de dende de que não se gosta à primeira tentativa e que necessita de aviso ao estômago), o abará embrulhado em folhas verdes, a pititinga minúscula e salgadinha (e crocante, vinda do mar), o quibe dourado. Aproveitando. Que é um dos segredos de Salvador. Aproveitar tudo.

Dai, sobe-se a ladeira do Pelourinho, que é íngreme e pobre, de empedrado secular, até dar ao Terreiro de Jesus com aquela agitação gentil mesmo diante do Cravinho (a outra opção fica do outro lado da rua, na Igreja de São Francisco), um dos bares de minha eleição. Entro aí a qualquer hora, a partir das 5 da tarde, para provar as aguardentes, as misturas de cachaças e ervas, os fritos saborosos - e até à meia-noite, hora a que fecha as portas. O roteiro, a partir daqui, é anárquico e vai ao gosto do passeante, que ou descobre os seus restaurantes ou se engana na porta. Esclareço: cozido baiano, bolinhos de camarão, arrumadinhos (carne de sol, Iinguiça, farofa, feijão frade, pimentão...), quibes, xinxim de galinha, moquecas de peixe (e de camarão, e de siri, e do que quisermos), ensopados de mariscos, de peixe, de carnes, frango à passarinho com arroz de coentros, aipim frito, arroz de haucã, farofa simples ou com ovo, galinha caipira e vatapá, a lambreta (amêijoa pequenina) cheia de aromas, os sucos multicolores, o caruru, o pirão e a sinfonia de pimentas pecaminosas. Tudo isto na companhia, às terças-feiras, do ensaio geral do Olodum e da sua imensa bateria de atabaques, ou da marchinha do Swing do Pelô, afrodisíaco dançante que interrompe o jantar.

Há uma visão de Salvador que assenta muito no seu folclore - e há uma outra cidade que se esconde dos roteiros turísticos. É a cidade das lojas de novo design, a cidade do rock da cantora Pitty (sim, não há apenas axê e batuque), a cidade que desperta em redor dos pássaros do jardim do Campo Grande, a cidade de Amaralina (com lojas sofisticadas e cafés a não perder), a da tecnologia de vanguarda, a da invenção cultural que vai, escapando, aos poucos, dos lugares-comuns e da «desgraça baiana».

De cada vez que chego a Salvador, o que faço bastante, para minha felicidade, apetece andar à volta do seu rumor: partir para o interior do Recôncavo baiano, à procura da arqueologia industrial de Cachoeira (que já foi capital do Estado) ou de São Felix, das suas fazendas, dos seus perfumes e das suas estradas que levam sempre a surpresas inexplicáveis. Depois desses passeios, reencontro sempre aquela doce cordialidade de Salvador. O seu entardecer. Às vezes, confesso, apenas o seu amanhecer. Ando a pé aqui e ali, e observo, como um estranho invejoso, aquela disponibilidade preguiçosa da cidade onde fui feliz.


Onde comer

AL CARMO
R. do Carmo, 66
Tel. (71) 3242-0283
Fica na zona de Santo António, ou seja, por cima da Barra. Um dos expoentes da cozinha italiana em Salvador. Não proteste por se falar de cozinha italiana, uma vez que se trata de uma das grandes gastronomias do Brasil. Muito familiar, tem um petit gateau fascinante

GALPÃO
Av. Contorno, 660. Zona da Baixa, no Comercio.
Tel. (71) 3266-5544
Cozinha muito inventiva, contemporânea com traços baianos de vez em quando. E, neste momento, um must de Salvador. Além do mais, a vista é espantosa, sobre a toda baía; se o jantar é bom, acrescente-se que o mar, visto dali, e inigualável

IEMANJÁ
Av. Otávio Mangabeira, 4655, Jardim Armação
Tel. 3461-9008
É o melhor restaurante de comida baiana. Pratos principais: mariscada, moquecas, ensopados. Os quindins são superlatives.

MAMA BAHIA
R. Alfredo de Brito, 21, Pelourinho
Há mesas na sala e na rua. À noite passa o desfile do Swing do Pelô, uma bateria fantástica que espalha a sua música diariamente pelas ruas da zona. À terça, com o ensaio do Olodum, ainda mais.

in Revista Visão, nº 679 – 9 Março 2006

abril 23, 2006

FC Porto - Campeão Nacional 2005-2006

1 – A quem deve ser atribuído o grande mérito deste título?

O grande mérito cabe a uma serie de jogadores que se revelaram peças essenciais durante o campeonato - e alguns foram mesmo surpresas (dou a mão à palmatória em alguns casos). Da linha actual do FC Porto só um ou outro são dispensáveis. Há muito tempo que, tirando "o caso Jorge Costa" (que eu ainda lamento), o balneário do FC Porto não estava tão tranquilo, mesmo quando os resultados eram decepcionantes. Isso deve-se a uma boa cultura de equipa. É verdade que Co Adriaanse tem mérito, mesmo que muita gente continue a não confiar plenamente no seu estilo - teoricamente perfeito e significa futebol de ataque, como eu gosto; é teimoso, como convém, e um pouco obstinado. Mas falta-nos (isto pode ser só obsessão minha) um finalizador em pleno, um goleador - e um bom rematador de bolas paradas. São também saudades do Jardel, claro. Mas é a vida. Também tenho saudades do Cubillas e não é por isso que não somos campeões.

2 – Qual o momento-chave desta temporada?

Não faço a mínima ideia. Gostaria de responder, para arrumar a questão, que foi o Penafiel-FC Porto. Mas a generalidade das pessoas vai achar que o momento-chave foi o Sporting-FC Porto. Na verdade, foi a partir de Alvalade que o FC Porto garantiu o título, só que o momento-chave nunca é a altura a partir da qual se garante uma coisa e sim o momento em que alguém acreditou que era possível. E esse momento, lamento desiludir os especialistas, aconteceu na primeira jornada.

3 – Apesar do título, Co Adriaanse deve continuar?

Simpatizo com ele e acho-o um tipo corajoso. Se Co Adriaanse julgar que tem condições para ficar, deve ficar. Como já disse, agrada-me o modelo de jogo do treinador, embora me tenha irritado bastante a meio da época e nos jogos europeus. Acho que Adriaanse começou a construir uma equipa à sua imagem ou à imagem desse modelo de jogo e mudar agora significaria ter de refazer tudo, reencontrar afinidades, espírito de equipa, tudo isso. Penso que Adriaanse terá de fazer um esforço no sentido de conseguir ainda mais ligação ao balneário, certamente. Mas seria ridículo ele sair, agora que ganhou um campeonato. Isto é o FC Porto, não é o Benfica.

4 – Dentro de dias, Pinto da Costa será o presidente de um clube português há mais tempo no activo. O FC Porto precisa dele para o futuro?

Pinto da Costa foi o grande presidente do FC Porto e é presidente do FC Porto. Incontornável. Não há memória de um percurso semelhante na presidência de um clube. Eu lembro-me de ser portista em Lisboa e de como isso era difícil - e de como isso mudou também graças ao FCP de Pinto da Costa. Mas ele deve estar farto de elogios e o meu iria somar-se a esses. O que eu penso é que o seu conhecimento do FC Porto e do futebol português são essenciais, sem prejuízo da necessidade de preparar o futuro com a sua colaboração e o seu empenho. De resto, como a direcção do FC Porto não é escolhida pela banca, nem pelos sócios ou adeptos dos outros clubes, nem pela imprensa, e qualquer pessoa se pode candidatar ao cargo (e não me parece haver limite de mandatos), acho que a sua rendição é uma hipótese como qualquer outra.

Francisco José Viegas, in Jornal "Público" - 23 Abril 2006

O sabor amargo do Verão

Os Lusitanos já bebiam muita cerveja, mas os portugueses têm hoje vários tipos à escolha. Provámos 16 cervejas e elegemos as melhores de cada género.

A vida não é simples - e até para beber cerveja é necessário algum esforço, precisamente porque não há prazer verdadeiro sem o prazer de compreendê-lo. Poderíamos, para isso, recuar até à sua historia milenar: a herança dos sumérios e dos incas, dos egípcios e dos belgas, dos escandinavos e dos germânicos, e assinalar a presença da cerveja na literatura desde a epopeia de Gilgamesh (onde Enkidu se torna humano e civilizado pelo facto de saber apreciar a sua cerveja) até às narrativas dos Andes. E poderíamos, está claro, registar as suas evocações estivais e certamente refrescantes. Mas a verdade é esta: a cerveja não tem boa fama entre nós, apesar de ser bastante consumida - o que não significa "bem consumida". Muitos argumentam que a tradição vinícola portuguesa, nobre e importante, desclassifica automaticamente a cerve­ja nas nossas tradições e, claro na nossa economia.

Pode ser. Mas os lusitanos, palavra de Estrabão, eram grandes bebedores e produtores de cerveja embora conhecessem o vinho - que reservavam para as grandes ocasiões. Essa cerveja dos lusitanos, bem como a de toda a antiguidade, era muito diferente da que hoje se pode apreciar; ela era, de certa maneira, o "pão líquido", apreciada pelas suas qualidades nutricionais quase tanto como pelo "espírito leve e festivo" que a sua ingestão proporcionava. Conrad Seidl, considerado quase unanimemente o "papa da cerveja", autor de vários estudos e trabalhos de divulgação sobre o assunto, assinala que "só se conhecem duas culturas, a dos esquimós e a dos aborígenes da Austrália, que jamais se ocuparam com a fabricação da cerveja" - precisamente porque não tinham agricultura.

A verdade é que em Portugal não temos actualmente uma tradição na cultura da cerveja, ou construída em redor da cerveja, da sua memória e da sua qualidade. Tomada como refresco ligeiramente alcoólico (o que é uma pena), despromovida a categoria de "bebida pouco nobre" diante dos vinhos cada vez mais notáveis que se produzem entre nós, a cerveja é, no entanto, pela Europa fora, na América e na Austrália, objecto de mais atenção e de mais cuidado. As tradições são diferentes, evidentemente - e não se substituem umas às outras, nem se excluem com horror. A cerveja tem uma história feita de glórias e de pesquisas intensas, está ligada a uma cultura (de que conhecemos sobretudo a da Europa central) e a um conjunto de hábitos civilizacionais. Para falar das qualidades de uma cerveja seria também necessário falar do mundo que ele evoca. Razão pela qual, ao contrário do que dizem os seus detractores, 'a cerveja não é só cerveja'. Ou seja: 'é a cerveja, o seu tipo e a sua circunstância'.

Beber é um acto convivial, de sociedade, amigável, literário até. Repetimos, ao elevar os nossos copos, gestos de uma tradição: a do riso, da conversa, da troca de frases, da comunhão. Não tem grande metafísica. Não tem grande dificuldade. Mas, por detrás de cada cerveja há uma história e um trabalho notável, um conhecimento do paladar - qualquer visita a uma 'brasserie' perto das abadias belgas que ainda produzem cerveja artesanal (são actualmente cinco as "cervejas de abadia" oficialmente reconhecidas como tal), a uma cervejaria na Alemanha ou na Republica Checa, a um velho 'pub' inglês, mostra que há razoes para desconfiar dos que dizem que uma cerveja é só uma cerveja.

Em primeiro lugar, cada uma delas corresponde a um tipo e a uma circunstância. Temperaturas mais baixas exigem cervejas menos claras, mais densas, geralmente mais escuras, até com teor alcoólico mais elevado; o Verão quente do sul ou os trópicos favorecem a escolha de cervejas leves, refrescantes, abertas, ligeiramente amargas. De igual modo, é natural que um português (que consome essencialmente as 'lagers' dominantes) tenha dificuldade em apreciar a complexidade de uma 'doppelbock' alemã adocicada, de alto teor alcoólico, uma 'ale' escocesa, encorpada, ou até uma cerveja de trigo, turva e amarga. Da mesma forma, alguém que tenha sido criado na crença de que só as cervejas belgas trapistas tem qualidade, por exemplo, terá dificuldade em acreditar que as lager americanas ou australianas merecem o nome de cerveja. Mas a verdade é que nenhuma dessas cervejas é de má qualidade - são apenas diferentes, e obedecem a um determinado tipo de construção e de tradição. Regra numero um: o bebedor de cerveja deve estar disponível para as diferenças entre elas.

Dizer que a cerveja brasileira, por exemplo, é leve e clara, incorre num erro de perspectiva: não há "uma cerveja brasileira", mas um tipo dominante de 'lager' brasileira ('lager' é o tipo dominante de cerve­ja no mundo - como as nossas Sagres e Super Bock), e que é completamente distinta de outras cervejas do Brasil, como a Schmitt, a Eisenbahn ou a Baden Baden, mais artesanais, complexas e de tradição europeia. Da mesma forma, não há "uma cerveja americana" (como a Bud, clara e fácil de beber, bem elaborada) - nem uma cerveja portuguesa.

Essas diferenças fazem a sua grandiosidade e emprestam ao acto de beber um tom mais cuidadoso e tranquilo. Apreciar a sua cor (do tom claro até ao negro opaco, passando pelo dourado, pelo rubi, pelo alaranjado, pelo castanho escuro), o seu sabor (amargo, de lúpulo; afrutado, ou licoroso e com reflexos de caramelo nas mais escuras, com maltes mais tostados), o seu aroma (intenso, leve, floral, achocolatado), é trabalho para especialistas extremamente bem preparados - mas não custa começar a prestar atenção aos pormenores. Uma cerveja é também feita deles, como se acentua nas notas de prova que se seguem. Existem, em Portugal, cervejas de razoável qualidade - elas são, também, produto do rejuvenescimento e maior exigência do mercado, para além do facto de hoje não podermos esconder, nos nossos supermercados, a abertura de fronteiras que nos permite saborear cervejas importadas de tipos diferentes. O aparecimento de novas cervejas tem a ver com essa procura da qualidade. Vamos a elas.


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in Revista Notícias Sábado - 22 Abril 2006

abril 22, 2006

Evocação da adolescência

Fomos abalar o estômago no restaurante A Fronteira, perto do Guincho.Petiscos, saladinhas, produtos que "vem da terra", cerveja a copo, tudo o que vem a rede da Primavera.

É natural que a Primavera nos afaste momentaneamente das grandes gastronomias - eu recordo coisas simples, como essa. O gosto do primeiro golo de cerveja - o da primeira aventura como adolescentes. Julgávamos que era Verão mas, na verdade, estávamos a meio da Primavera e ainda havia aulas. Tínhamos quinze anos. Dezasseis. Havia um brilho imbecil nas tardes de Verão (julgávamos que era Verão), e um reflexo alaranjado no entardecer; nada que não venha na literatura. Romances de aventuras, policiais, séries de televisão, primeiros romances a sério, choupos à beira do rio, passeios de bicicleta, creme Nívea na praia, areal a perder de vista, pinhais, dunas. Posso mencionar o primeiro beijo? Posso. Essas coisas têm mais probabilidade de terem acontecido durante o Verão. Tal como a primeira cerveja, a primeira comida saboreada entre amigos, fora de casa.

Na cidade da minha adolescência era na Primavera que começávamos a frequentar tasquinhas, a apreciar a "comida de boteco", a distinguir a comida domestica (geralmente fabulosa, apetecível passados estes anos) dos pratinhos de petiscos servidos para satisfação do nosso paladar imbecil, adolescente, sem gosto. O nosso apetite era descontrolado, a nossa noção do gosto era discutível (ainda hoje o é). Mas vínhamos da praia, vínhamos do rio, vínhamos do jardim e gostávamos daquela experiência. Era a primeira partilha. Um dia provaríamos a primeira ostra, o primeiro mexiIhão verdadeiramente fresco. Só mais tarde aprenderíamos que o melhor mexilhão podia não ser aquele, carnudo, mas que a concentração de sabor e de intensidade viria nos exemplares mais pequenos; e saberíamos que a melhor amêijoa não era a que vem nas fotografias - mas aquela, clara e olorosa, que se encontra à beira dos viveiros, rodeada de mar, de água salgada por perto. Também descobríamos que havia mais coisas para além dos sabores essenciais, dos hambúrgueres (são uma coisa tardia na minha vida, sim, mas existem, não vale a pena ignorá-los), das texturas infantis. E também descobríamos a salada de polvo, o prazer de saborear caracóis para iluminar com cerveja de má qualidade, os petiscos saídos da grelha, as saladinhas de Verão (mas estávamos na Primavera, eu sei), as lulas de coentrada, a salada de búzios.

Um dia destes parámos ao acaso, vindos do Guincho, no A Fronteira, outrora um restaurante especializado em grelhados (nada negligenciável, aliás) - e deparámos com uma enorme quantidade de mesas à disposição daquele apetite de quem vem dos areais diante do mar. O apetite, menciono-o porque é uma das razões essenciais do nosso destino. Os miúdos queriam mariscos frescos, e havia - com melhor companhia do que eu, deglutiram amêijoas frescas, mexilhões que ainda respiravam a maresia. E o resto da mesa comoveu-se com a lista muito serra & mar onde havia alheiras de Montalegre e presuntos de Chaves, salpicão ou pernil das encostas daquele grande vale transmontano (até salada de orelha fumada havia), salada de polvo sem vinagrete excessivo, pãozinho quente e, precisamente, caracóis. Eu bebi cerveja - o meu estômago precisava de descansar de erudição. As amêijoas, essas, eram fresquíssimas e distintas (eu tinha saudades das conquilhas do Eduardinho, na Parede), quase melhores do que a avalanche de mariscos oferecidos, entre sapateiras desfeitas com molhos onde se detecta a presença de mostarda picante, queijinhos, vinagretes, ovinhos, carnes inocentes.

Somos selvagens, sim. O pecado espreita-nos a cada esquina, devorando-nos o paladar, alertando-nos para o facto de muitas vezes precisarmos de pisar essa fronteira entre o paladar e o gozo descomprometido. Desta vez foi assim.


À lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 12
Vinhos brancos: 10
Vinhos verdes: 2
Portos e Madeiras: 1
Uísques: 10
Aguardentes portuguesas: 8

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Fácil
Levar crianças: Sim
Área de fumadores: Não
Reserva: Não
Preço médio: 15 Euros

Restaurante A FRONTEIRA
R. N.ª S.ª da Assunção,
Malveira da Serra - Cascais
Tel: 21 487 0638
Fecha à segunda-feira
Aberto das I6h00 às 02h00

In Revista Notícias Sábado – 22 Abril 2006

abril 17, 2006

Respeitinho pelos políticos

O agora líder parlamentar da bancada socialista deslocou-se à final europeia futebolística de Sevilha, em 2003, com o argumento de que se tratava de "trabalho político". Não só ele mais quarenta deputados faltaram nesse dia ao Parlamento, incluindo José Sócrates. As justificações foram apresentadas e parece que ninguém (eleitores, responsáveis políticos, comentadores) ficou convencido - mas nenhum deles foi penalizado. Eu acho bem. Os deputados deviam poder ter ido à final de Sevilha ou à de Genselkirchen sem apresentarem desculpas esfarrapadas como essa, a do "trabalho político" entre as claques dos Super Dragões e dos Celtic Fans. Mas deviam ser penalizados se apresentassem desculpas esfarrapadas em que ninguém acredita, e ser-lhes-ia descontada no salário essa farra a quem tinham direito como qualquer outro cidadão. Eu compreenderia. «Fomos à bola, pedimos autorização ao patrão, tirámos um dia a compensar.» Já me parecia bem.

Chegámos a esta situação, de discutir coisas banais e ridículas como a ida de um deputado a um jogo de futebol a uma quarta-feira, por causa dos próprios deputados e dos abusos cometidos por muitos deles. O caso das viagens dos deputados, sensivelmente na mesma altura, foi outro acontecimento. Periodicamente, o presidente Sampaio, generoso e melodramático, aparecia a pedir respeito pelos políticos - o que aconteceu também um mês depois da final de Sevilha e durante os casos Isaltino e Fátima Felgueiras, aliás acompanhado do primeiro escândalo de convocação de políticos no processo Casa Pia. Foi falta de pontaria. A verdade é que não se tratava de falta de respeito pelos políticos, mas de evidências gritantes que Jorge Sampaio não podia esconder da opinião pública. Toda a gente que se manifestava contra a "perseguição aos políticos" esquecia-se de mencionar que, se havia políticos a serem investigados pelos tribunais ou pelos magistrados, não era por serem políticos - era por serem cidadãos sob a alçada da lei.

Regressa-se ao tema porque parece que, na semana passada, houve 120 deputados faltosos. Digamos que é uma quantia substancial de cérebros e de votos em falta no Parlamento. Os cérebros não faziam muita falta, mas os votos eram decisivos. Infelizmente, cérebros e votos costumam andar juntos no parlamento, o que, sendo estranho, é irremediável. Apareceram então abundantes descrições de como muitos deputados "picam o ponto" (imagem deplorável e assassina) e vão "tratar da vidinha" (mais deplorável ainda), ou de como são arrebanhados para votações de acordo com as conveniências dos seus grupos parlamentares. Nada disto constitui surpresa, mas é uma imagem francamente divertida para associar a quem aprova leis sobre absentismo e desorganização da produtividade.

Não parece que a falta desses 120 cérebros no Parlamento, durante essa tarde, tenha prejudicado grandemente o país que se preparava para as miniférias e a tolerância de ponto. Mas o país reparou neles, encolhidos, escondidos - e fora do Parlamento. Desactivados.

E, se não há penalização que lhes valha (recordo que Jaime Gama se opôs, na altura, a que Mota Amaral punisse os deputados que foram efectuar "trabalho político" para Sevilha), a verdade é que nada nos impede de, como cidadãos, olhar para esses 120 lugares vazios e sorrir. Estão justificadas as nossas "pontes", os nossos "feriadões", as nossas faltas, o nosso absentismo malandro, a nossa manha preparada para obter mais uns dias de férias ou uma tolerância de ponto a mais. A menos, claro, que se confirme que os políticos passem, de acordo como as propostas que andam por aí, a ter um tribunal próprio que os abrigue destas indignidades. Indignidade por indignidade prefiro-as bem feitas.

Jornal de Notícias - 17 Abril 2006

abril 16, 2006

Grão Mestre

Eça de Queiroz não estava para menos ao relembrar, em 'A Ilustre Casa de Ramires', o momento em que - à meia-noite - Gonçalo obrigou Gago a avivar o lume e a preparar "um café muito forte, um café terrível, Gago amigo! Um café capaz de produzir talento no senhor comendador Barros". A imagem é anedótica. Queirosiana. Nenhum café iluminaria o cérebro do senhor comendador Barros, apesar de a literatura médica europeia do século XVIII Ihe atribuir vários benefícios para o cérebro. A falar verdade, também o tabaco, por exemplo, era visto com entusiasmo como medicamento para doenças do foro respiratório, do aparelho circulatório ou do sistema nervoso. E hoje é o que se sabe.

A historia do café, no entanto, tem outras raízes. Não tão profundas nem tão antigas como as da cerveja, por exemplo, mas o suficiente para alguém suspeitar de que era café a bebida que Helena teria levado de Esparta para Tróia, e que poderia ter sido café a bebida que um xeque Omar (durante a nossa idade média) teria descoberto ao ferver grãos de café, ou que seriam certamente grãos de café o que teriam comido as cabras de certo pastor árabe (na Etiópia, naturalemente, a terra dos primeiros bebedores de café), o que
as teria espevitado anormalmente.

As várias mitologias encontram raízes onde querem encontrá-las e há quem detecte na Bíblia sinais de um cafezinho torra­do pelo rei David. Seja como for, é dado adquirido que o cultivo e produção do café teriam começado na Etiópia e no actual Iemen - e teria sido a partir desse território do Grande Islão (de Meca a Medina, passando pelo Cairo e depois por Constantinopla) que a cultura do café se difundiu. Não apenas como bebida, mas como elemento de sociabilidade. Os cafés americanos, mesmo os bem torrados da Starbucks, não teriam sorte nesse mundo onde nasceram os primeiros estabelecimentos destinados a tomar-se a "infusão magica": Constantinopla, como se disse, Damasco, um pouco por todo o Médio Oriente, até que a fama da bebida chegou a Veneza (o mais antigo dos cafés é o Florian, de 1720, parte essencial da mitologia literária e turística da cidade) e que Sir Walter Raleigh criou e divulgou o habito de tomar café e fumar cachimbo. Daí até chegar à América - a Boston, Filadélfia e Nova Iorque - foi um instante. O café deixava as pessoas nervosas. Excitadas.

Cada um de nós tem uma historia pessoal do "seu café": ou melhor, "daquele café", aquele que fica na memória, treinada para recordar os melhores sabores e as suas consequências em pedaços da nossa vida. Muitas vezes, mais do que o café, a bebida magica que nos reenvia para a Etiópia, para as montanhas da Colômbia, para a humidade de Java ou o calor inconstante do Quénia ou da Tanzânia, o que tem peso na memória é a circunstância em que se toma o café. Como tudo. O apreciador exigente sabe reconhecer as variedades essenciais, arábica e robusta, bem como algumas sub-variedades. Saberá que o arábica ('coffea arabica') é mais delicado, mais oloroso, mesmo nas suas variantes mais desconhecidas, sobretudo chegado da Etiópia, do Iemen ou da América Central - e que o robusta (C. 'canephora') é mais denso, de grão mais pequeno, essencialmente vindo de África e do Brasil. E distinguirá pela cor, uma torrefacção mais clara e ligeira, em tom de canela; uma outra mais escura, em tons de caramelo, vienense; e de gradação em gradação chegara a café torrado, negro, amargo. Além disso, a bebida dependerá também da moagem feita na hora, único processo que pode garantir (já que não é possível proceder à torrefacção caseira, hoje em dia) um sabor completo e intenso do café.

Em meu entender, o melhor processo de obter um café quase perfeito é o que depende de uma cafeteira simples e de água de boa qualidade; era assim que a minha avó o preparava, e não encontrei melhor processo - no fundo da cafeteira depositar umas colheres de café acabado de moer; em seguida, acrescentar água quase em ponto de ebulição, mexer cuidadosamente, deixar descansar até que a poeira assente; servir usando um filtro de pano ou de papel. A minha avó tinha esse costume de logo a seguir a mexer o café juntar uma brasa incandescente ao líquido - que isso servia para absorver as borras de café. Em outros locais (no Brasil, na Guatemala, na Colômbia) vi depositar um pouco de casca de ovo. O da minha avó ficava mais saboroso. Beber um café destes, pese embora a natureza excitante da bebida, é meio caminho para uma digestão tranquila. E apetecível.

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in Revista Notícias Sábado - 15 Abril 2006

abril 15, 2006

Uma casa familiar

O Paparico, na histórica Rua de Costa Cabral, tem um cardápio reduzido e as suas salas dão um ar familiar às refeições. Mas os cinco ou seis pratos de eleição mostram a qualidade de ingredientes históricos: boa carne, bom bacalhau.

A vida dos restaurantes pode ser uma aventura e nós não darmos por isso. Somos gente de fora. Entramos e sentamo-nos. Temos as nossas exigências, os nossos apetites. Muitas vezes, as nossas manias, os nossos tiques, hábitos de anos – gostamos da mesa desta ou daquela maneira, apreciamos um sabor, enternecemo-nos, julgamos que há uma barreira entre nós e a barbárie. Nos seus livros, Anthony Bourdain contribuiu em muito para que víssemos um pouco do lado de lá: o fogo na grelha, os dedos queimados, o chef que se levanta às seis da manhã e só voltará à cama depois da meia-noite, a neurose dos fornecimentos que não chegam, o risco de um cozinheiro que não vem nesse dia, o ingrediente estragado. É o outro lado. Claro que não temos muito a ver com “o outro lado” – pagamos aquele preço por estarmos do outro lado do muro, do outro lado da barbárie, do outro lado do fogo na grelha. Mas, mesmo assim, admito que é uma aventura – e as aventuras tanto podem conduzir ao paraíso como ao inferno. Felizmente, lembramo-nos mais do paraíso.

Veja-se o caso de Yuko e de António Cardoso; ela, japonesa, ele, português de Resende – são ambos a alma e o corpo do Paparico, um restaurante que apenas abre para jantares, das oito da noite em diante: lista pequena, diminuta, sujeita a hábitos da casa e a uma opção clara sobre o que o nosso estômago deve receber com ou sem aplauso. Um dia destes fomos lá em peregrinação – mesas (largas, convenientemente largas) cobertas por toalhas brancas, paredes de pedra, o tom “rústico” que sobreviveu nas cidades e é uma memória de outras memórias rurais ali estabelecidas há 16 anos, sensivelmente.
Para abrir, além de um polvo com molho verde cozido no ponto (e temperado sem aquele vinagrete que esconde o sabor e a textura do polvo, propriamente dito), havia um pratinho de salpicão e uma salada de bacalhau. Começo por aplaudir esta última: pedaços de bacalhau (não lascas: refiro-me a pedaços), cru e bem demolhado, abrilhantados por um azeite de boa qualidade – e quase nada mais, porque nada mais era necessário. Com um bacalhau assim, qualquer um de nós era feliz. Enquanto não chegavam os pratos quentes, propriamente ditos, vieram umas pataniscas de bacalhau, igualmente saborosas, quase enformadas, redondinhas, com o sal no ponto.

Refiro o “sal no ponto” porque a comida no Paparico deve ter sido vigiada pela Fundação Portuguesa de Cardiologia nessa matéria, a do sal. Nem um grão a mais. Não provei o cabrito assado no forno (cuja matéria prima vem de Armamar, no Douro), nem o arroz de entrecosto no forno – ambos devem ser encomendados com antecedência e o cabrito, então, tem de ser pedido de uma semana para a outra ou com o fim-de-semana pelo meio. Mas comi o bacalhau assado na brasa com batata à murro, bem cozinhado, realçando-lhe as qualidades, na companhia de um azeite generoso. E estava bom: uma posta enorme que serve à vontade para duas pessoas (como sugere, aliás, a própria casa). Ficaram-me no olho o arroz de bacalhau e o polvo grelhado, que hão-de sucumbir em próxima visita.

Continuando o passeio pelo cardápio, mais quatro propostas, agora de carne: as costelinhas à Paparico, a espetada grelhada, a vitela grelhada com batata à murro e a posta arouquesa. Optámos por esta última: um naco surpreendente, ideal para quem aprecia realmente carne, suculento no interior, rosado, humedecido – e ligeiramente tostado na sua base – acompanhado por legumes salteados, batatinhas e o suco da própria carne. Quando se cortou a carne em fatias, houve, digamos, um novo aplauso. Tudo isto antecedeu um excelente leite-creme queimadinho, muito perfumado, com nota francamente positiva.

De certa maneira, o frequentador fica surpreendido com a pacatez do cardápio e das duas salas (mais um barzinho que mais tarde, assim seja posta em prática a lei sobre o consumo de tabaco, servirá para área de fumadores); o cardápio reduzido dá a ideia de que se trata de uma casa (a de António e de Yuko) a que se acrescentou um restaurante onde se pode jantar em regime familiar. O que é uma surpresa a que nos devemos habituar, com o tempo e com a qualidade dos ingredientes que entram e dos pratos que saem da cozinha.


À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 30
Vinhos brancos: 11
Vinhos verdes: 8
Portos e Madeiras: 12
Uísques: 25
Aguardentes portuguesas: 20

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: relativamente fácil à noite
Levar crianças: não
Área não-fumadores: sim
Reserva: aconselhável
Preço médio: 35 euros

Restaurante O Paparico
Rua Costa Cabral, 2343
4200-232 Porto
Tel: 91 9991121
Fecha domingos e segundas. Aberto apenas aos jantares.

in Revista Notícias Sábado - 15 Abril 2006

abril 14, 2006

Um avião sobre o deserto

No deserto acontecem algumas das mais decisivas experiências gastronómicas: do nada, nasce tudo; do silêncio, nasce a música; da falta, nasce a abundância de imaginação.

Por cinco dólares, a Ameri­can Airlines oferece-lhe um pequeno-almoço com sanduíche de peru, queijo cheddar, ovo cozido e manteiga de ervas - e que inclui um sumo à escolha, além de uma bebida quente. Pode optar também por um catzone ou mini-pizza com peru, pi­mento vermelho, creme de espinafres, alface, milho e maionese. E o «bistro bag». Por menos do que isso, já na casa dos três dólares, pode conseguir uma caixinha com snacks empacotados. A informação pode ser deprimente se se esperam grandes voos gastronómicos a bordo de um avião. Não há. A comida de avião parece-me sempre um voo sobre o deserto - nunca a recusei, nunca a elogiei. Ela é o que é (uma soma de contentores aquecidos), mas a moralidade manda que recordemos esse mundo extraordinário das viagens de avião - que outrora era romântico, cheio de escalas, serviços a bordo, luxos fantásticos ou apenas palavras simpáticas à entrada do avião, e que está hoje democratizado e massificado.

A comida é um desses luxos dispensados em voos de duzentos passageiros Os críticos da comida de avião pertencem, portanto, aos dois mundos: não abdicam da gastronomia nem da massificação. Coisas impossíveis.
Porque falo do deserto? Porque no deserto acontecem algumas das mais decisivas experiências gastronómicas: do nada, nasce tudo; do si­lencio, nasce a musica; da falta, nas­ce a abundância de imaginação.

Deixo-lhe dois dos pratos que mais me comoveram depois de uma travessia do Neguev. Eu sei que não é um grande passeio, mas quando a noite cai, rápida e deslumbrante, so­bre as colinas de areia e os declives de rocha, deitamo-nos no chão, os olhos abertos para o céu - e os aviões que passam são riscos incómodos junto de estrelas, planetas invisíveis, insectos predadores. De­pois de uma dessas travessias cheguei a Ber-Sheva e entrei num pequeno bar de estrada, à hora do crepúsculo, onde me serviram bolinhas de arroz e falafel. Aqui ficam essas recordações, exactamente como as desenho em casa.

Comece por preparar um refogado com cebola muito fina (muito), dois dentes de alho muito picados e azeite. Mal a cebola comece a ficar com a doce transparência que se requer, junte o arroz cozido e mexa com suavidade de modo a aquecer por todo, o que deve demorar uns três a quatro minutos. Retire o tacho do fogão e junte-lhe, digamos, consoante a quantidade (esse pecado com que não sei lidar - é a olho), ovos batidos com um nadinha de salsa muito picada e umas tirinhas de pimento vermelho também picadas. Muna-se agora de duas colheres para preparar bolinhas de arroz, simpáticos croquetes que se comem como prato principal na companhia de salada. Aqueça o óleo para fritar. Passe as bolinhas por farinha (de­pois, em próxima oportunidade, po­de tentar o pão ralado) e deposite-as na frigideira ou fritadeira, em boa temperatura. Nessa altura, o apetite aceita a experiência dos seus primeiros fritinhos de arroz.

Se o tempo Ihe sobra, prepare falafel com esta simplicidade que tem de nascer um dia antes de cozinhá-los: deixe de molho cerca de 200 gramas de grão-de-bico. No liquidificador, no dia seguinte, junte ao grão-de-bico cru, depois de lavado e escorrido, um molhinho de salsa, uma cebola roxa picada, oito dentes de alho, 3 colheres de chá de cominhos, 2 colheres de chá de sal, 2 colheres de paprika de picante médio - mas não reduza totalmente a puré. Forme uma bola com esses ingredientes, junte cerca de 10 colheres de sopa de farinha de trigo, duas colheres de chá de fermento em pó e amasse bem de modo a obter um conjunto homogéneo e sedoso. Guarde no frigorifico durante três a quatro horas. Com essa massa forme bolinhas do tamanho de uma noz, que devem fritar em óleo bem quente - no caso de a bola se desfazer no óleo, junte mais um nadinha de farinha e amasse de novo para rectificar.

Coma as bolinhas de arroz e o fa­iafel num terraço, ao escurecer, olhando os riscos dos aviões em pleno céu. Comece a viajar pelo deserto.

Ingredientes
(para as bolinhas de arroz)
+ Arroz cozinhado de véspera (de legumes ou de carne)
+ 1 pimento vermelho, salsa, ovos, alho, cebola, azeite
+ Óleo para fritar
+ Farinha

(para o Falafel)
+ 200g da grão-de-bico
+ 1 pequeno molho de salsa
+ 1 cebola roxa grande
+ 8 dentes de alho
+ 2 colheres de chá de paprika picante
+ sal
+ 2 colheres de chá de cominhos secos
+ 2 colheres de chá de fermento
+ Óleo de fritar

In Atlas de Cozinha – Revista Volta ao Mundo – Abril 2006

abril 13, 2006

Nenhuma viagem sem coração

As coisas que recordo das via­gens aparecem-me muito tem­po depois: frases soltas, palavras ligadas a outras por fios sem nexo, labirintos, imagens que perco aqui e ali, que reencontro por acaso num livro ou em alguém que fala de outro lugar, sempre de outro lugar. Pessoas que falam com paixão. É isso que eu quero dizer: pessoas que falam com paixão. Pessoas como o N., com quem troco e-mails, mensagens de telefone para telefone, recados deixados entre viagens ou no meio de viagens.

Viajar, bem vistas as coisas, é sempre andar noutro lugar, estar sempre adiante da nossa vida. N., de resto, é um companheiro de viagem com quem nunca viajei. Eu estou a sair de um lugar e recebo um e-mail: «estou a chegar a tal lugar.» Da Irlanda a Indonésia, de Bue­nos Aires a Barcelona (onde vive uma parte do tempo, dividindo a sua vida com o Porto), N. deixa um rasto de via­gens, de atenções, de fotografias, de relatos. Depois, fala desse rasto com paixão, com interesse, sem agonia, sem saudade. «Nesse tempo eu namorava uma argentina.» Coisas que se resolvem. Nesse tempo a vida corria de outra maneira e os mapas eram coisas distantes.

Eu aprecio os relatos de N., como aprecio os relatos de viajantes, de gente que arrasta essa bagagem de areia, como acabam por ser as memórias dos lugares e da passagem. Não há, por is­so, duas memórias iguais em matéria de viagem. Há um fragmento que pensamos ter visualizado, arrancado à paisagem; um sabor que pode estar identificado; uma palavra que pode estar mais inclinada na nossa direcção. Mas, na verdade, nem que a fotografia seja a mesma (uma esquina da Boca, o bairro genovês de Buenos Aires; um bar de Kuta, o litoral de Denpasar; um restaurante de Maputo, a cidade onde eles mais nascem; uma rua deserta de Oaxaca, onde há aquela luz fatal), ninguém viveu exactamente aquela impressão. E, de qualquer modo, conversámos durante horas sobre o assunto porque a ideia é multiplicar as palavras para designar sempre a mesma coisa (a estranheza, a nostalgia, a euforia) que se traz das viagens: bilhetes de autocarro e de museu, contas de restaurante e de hotel, caixas de fósforos, jornais em línguas desconhecidas, postais ilustrados, publicidade distribuída na rua, pequenos cadernos preenchidos com garatujas, rebuçados roubados das lojas, pacotes de açúcar dos cafés de Buenos Aires, coisas sem importância aparente, talões de embarque para voos banais, o cheiro dos vulcões (como aquele cheiro que N. me contou que nunca esquecera, quando esteve na ilha de Flores). Tudo tem uma importância fatal na vi­da do viajante, e esses restos são sempre o melhor diário de viagem, a melhor antologia de memórias desse tempo de sonambulismo.

E a viagem é isso mesmo: poeira, o coração sempre no fim da tarde, insectos, colibris, o sabor da cerveja, não ter endereço certo, desobedecer aos guias e aos mapas e às intempéries. Refugiar-se sob os beirais de edifícios em cidades desertas, no meio de trovoadas. O coração no fim da tarde é uma imagem que transporto todos os dias. A poeira também. E alguns nomes novos: «vagalume», sonambulis­mo, domingo de praia, nadar a meio da noite, livros, café.

Somos nómadas, os que amamos a viagem (mesmo que raramente possamos sair de casa): eles, os nómadas, estão sempre noutro lugar, falam das coisas da noite e das coisas da manhã, das coisas do fim da tarde, quando o dia se retira. Coisas fantásticas presas por um fio, recordadas todos os dias para que a vida tenha uma historia para acontecer.

In Outro hemisfério - Revista Volta ao Mundo - Abril 2006

abril 10, 2006

O público e o privado

A TV Cabo, zelando pelos seus interesses, substituiu o GNT pela TV Record. Para quem está distraído, eu explico o canal GNT, produzido pela Globo, não é o GNT brasileiro propriamente dito (que é um magnífico canal de televisão) - é o GNT português, um canal que a Globo preparou, estudou e pôs no ar tendo em conta que o seu público era português e tinha interesses específicos. Alguma da programação que o GNT português emitiu foi produção própria para Portugal. A TV Record é um dos piores canais de televisão do Brasil, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e aos seus negócios e especulações, onde é possível o telespectador passar cinco ou seis agradáveis horas diárias a ouvir sermões nocturnos dos seus "pastores" sobre como obter bons resultados na vida de cada um através do pagamento de dízimo e participação nas cerimónias da IURD. Eu não tenho nada contra a IURD, excepto que devia ser investigada em função dos seus negócios e da elevada circulação de dinheiro que toda a gente conhece. Adiante. Além das sessões alegadamente religiosas, a TV Record emite aquela que é, reconhecidamente, a pior informação jornalística do Brasil (desportiva inclusive), uns interessantes blocos diários sobre violência urbana, durante os quais uns energúmenos se exaltam alarvemente, além de umas telenovelas de qualidade deprimente. Adiante. Ao que nos interessa.

E o que nos interessa é isto quem escolheu a TV Cabo, ou seja, a PT, para figurar no seu pacote de canais em "representação" do Brasil? Está bom de ver e é muito fácil adivinhar - basta, aliás, olhar para a PT: escolheu a TV Record, naturalmente. A mim, e tendo em conta a qualidade dos serviços prestados pela PT e pela TV Cabo, não me surpreende esta escolha, não acho escandaloso.

Surpreende-me como cidadão interessado em coisas brasileiras - na cultura brasileira, na música brasileira, no futebol brasileiro, na política brasileira. Desse ponto de vista, acho escandaloso que o GNT seja substituído pela TV Record. Também me surpreende como telespectador interessado em televisão. Desse ponto de vista, sinceramente, o que o GNT fez, o que o GNT produz, o que o GNT podia produzir, é inegavelmente superior ao que se possa imaginar que um dia a TV Record possa emitir (para não falar da televisão portuguesa).Com o fim do GNT no pacote de canais monopolista da TV Cabo, deixamos de ter acesso aos melhores programas da televisão brasileira - desde o "Manhattan Connection", que devia obrigar alguns dos nossos comentadores políticos a pensar, até ao "Altas horas", do "Jô Soares" ao "Saia justa", além dos melhores blocos informativos brasileiros, emitidos a partir da Globo e do Globo News.

Parece que a questão é dinheiro. Nesse capítulo não me atrevo a discutir os superiores interesses da PT e da TV Cabo estão em jogo e nada a fazer nesse capítulo (tal como quando acabou com o Arte). Se são os interesses privados da PT e da TV Cabo que estão em jogo, aceito o jogo. Mas exijo que a ERC, por exemplo (essa entidade reguladora da comunicação social que a "fome de controlo da sociedade" tornou necessária), comente o assunto - e já. E, nesse caso, salvaguardado o interesse privado e o amor apaixonado que a TV Cabo agora devota à estação da IURD, o interesse público pede o fim imediato do controlo quase monopolista da PT sobre o cabo, a fim de alguém nos poder oferecer um canal brasileiro decente, ou bem feito, como o GNT. Se o pessoal da TV Cabo não tem gosto nem pode resistir às pressões do dinheiro da TV Record, eu até compreendo. Mas quem nos compreende a nós, telespectadores, entregues a essa gente?

Jornal de Notícias - 10 Abril 2006

abril 08, 2006

Brisa primaveril

O Cafeína, na Foz portuense, é um dos restaurantes mais agradáveis da cidade. Informal e chique. Óptimo para as primeiras brisas da Primavera, sem desmentir a sua cozinha.

Gosto da Foz, o que não é novidade. E gosto da Foz a todas as horas, mesmo quando o leitor, ou a leitora, já está a dormir. Altas horas. Aquelas em que o mar se ouve e em que aquela simpática poeira de humidade poisa sobre as arvores da Praça de Liège, sobre os caminhos do Passeio Alegre, sobre os frequentadores do mais tradicional dos bares da região (o Bonaparte), sobre os telhados do Hotel BoaVista, nas ruas e becos que reenviam as mais antigas fotografias da Velha Foz, no fantástico molhe crepuscular. E seria capaz de prolongar o assunto durante mais parágrafos, nem que fosse por falta de assunto, coisa que não acontece nestas crónicas de restaurantes - o apetite ainda é o que é.

Uma das ruas que gosto de subir, a partir do mar, é a simpática Rua do Padrão, que muitas vezes me leva ao Cafeína. Ora, o Cafeína faz parte da minha história pessoal da Foz; os historiadores discordam, mas a vida não pára. Durante anos, creio mesmo que era um lugar que visitei abundantemente, ora para jantar tarde, ora para tomar uma bebida entre o digestivo e o para lá de noctívago. A frequência é, como se diz agora na moderna sociologia de algibeira, "transversal", mas o tom é mesmo esse - o da Foz. Não Ihe fica mal.

A decoração sempre me satisfez, de luz suave e música que vai bem com um espírito em estado flutuante (sobretudo na sala apresentada como cafetaria), daqueles que tanto aceitam uma sopa de mexilhões com açafrão e 'croutons' de alho, como os saborosos ovos com salmão fumado e caviar ou o sempre bem conseguido 'carpaccio' da casa. Estas são as minhas entradas preferidas para o jantar tardio, embora o cardápio ofereça ainda espargos verdes salteados com cogumelos selvagens, salmão fumado com molho de aneto, 'foie gras' com geleia de vinho ou um crepe de 'soufflé' de agrião e queijo 'roquefort'. De certa maneira, a carta de saladas é uma extensão da das entradas, com uma bem conseguida salada de queijo de cabra e uma de pato fumado com ovos de codorniz (a acrescentar a tradicional Caesar, com salmão fumado, ou a simples de tomate, 'mozzarella' e rúcula). Por aqui não nos podemos queixar; a proposta é atraente e faz bem à vista, em pratos muito bem decorados, de cores atraentes. É meio caminho andado, acredite o leitor.

Se passarmos pelas propostas de bifes (grelhado, mostarda, cogumelos, pimenta, tártaro...), muito dispensáveis, encontraremos já materiais de substância vindos do mar - o salmão escalfado ao vapor com caviar e creme de espinafres é um emblema que já gabei bastante, muito 'light' e elegante. Quanto as outras propostas (pescada com camarões, tamboril com 'tagliatelli' verde, robalo com algas e molho holandês), o meu bacalhau com broa distinguiu-se pelo azeite de boa qualidade e pelo facto de, ao contrário do que vai sendo estranhamente usual, o bacalhau ser verdadeiro em matéria de salga - nada daquele baca­lhau congelado fresco e demolhado desde tenra idade. Muito aceitável.

Não tenho dúvidas de que a melhor parte do cardápio salgado é a das carnes, muito simples - como o 'chateaubriand' com 'bearnaise' ou o 'filet mignon' com molho tártaro. Há um certo encanto no 'chateaubriand', de crosta ligeiramente tostada, muito suculento, nas costeletinhas de borrego folhadas com legumes e no 'magret' de pato, que aprovei com um "muito bom" de caras, salpicando-o de vinagrete morno de hortelã. Como geralmente não me atrevo às sobremesas, queria distinguir três sugestões do Cafeína: o bolo de chocolate amanteigado é bom, o 'parfait glace' com framboesas está à altura - e a 'tarte tatin' servida quente com natas batidas é um dos meus motivos de felicidade à mesa.

Depois de um jantar tranquilo, que compensou um dia de grilhetas, fumou-se um charuto, aceso para dar as boas-vindas à regularização da cafeína e a um álcool sem transcendências. Agradável, bonito, tardio - como convém à Foz.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 84
Vinhos Brancos: 33
Vinhos Verdes: 10
Espumantes e Champagnes: 5
Vinhos de sobremesa: 16
Uísques: 15
Conhaques: 5

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: relativamente fácil à noite
Levar crianças: Não
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 35 Euros

Restaurante Cafeína
Rua do Padrao, 100 - 4150-557 Porto
Tel: 226108059 / 226189953
Aberto todos os dias
Jantares até à 1h30

in Revista Notícias Sábado - 8 Abril 2006

abril 06, 2006

A bebida do pecado

Com a Primavera, a leveza do ar e a primeira onda de calor pedem uma bebida que evoca todos os mitos românticos, devassos e festivos da nossa vida de pecado: o Champagne. Dez sugestões para a temporada.

Lembram-se? "Veio o champanhe. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anéis da cabeleira e pelas pontas do bigode, começou, todo recostado e dando um puxão aos punhos: - Por uma dourada tarde de Outono..." A tarde não era dourada e o champanhe que o depois infeliz Pedro da Maia e o então jovem poeta Alencar bebiam não seria um grande champanhe. João da Ega e Raquel Cohen, sim, beberiam depois um: champanhe excelente, lá mais para o meio de 'Os Maias', seguramente o segundo romance português com mais referências ao champanhe; o primeiro e, seguramente, 'A Cidade e as Serras', onde José Fernandes e Jacinto nos abrem as portas do palacete dos Campos Elíseos onde garrafas de champanhe, geladas e disponíveis, perfumam as paginas da grande literatura, rodeadas de personagens admiráveis, grotescos, saborosos, melancólicos, abandonados, frívolos. Mas tanto em 'Os Maias' como em 'A Cidade e as Serras', o champanhe e o símbolo desse luxo noctívago de Lisboa, bebido no Tavares e nos serões mais festivos, ou - sobretudo - da luxúria que passa, como um véu de santa imoralidade, a tingir as relações entre Carlos da Maia e a trágica Maria Eduarda ou a senhora condessa de Gouvarinho, perfumada de verbena e com os cabelos ruivos em desalinho.

Literatura, enfim. O champanhe é outra coisa. A bebida da luxúria, sem dúvida: sensual, nervosa, reservada para as grandes ocasiões, para as grandes companhias, para as circunstâncias em que nenhuma outra bebida pode festejar ou borbulhar. Dom Perignon, o astuto e divertido monge beneditino a quem se atribui a criação do champanhe em meados do século XVII, não é responsável pela fama de luxuria e pelo rasto de pecado e prazer que a bebi­da arrasta pelas páginas da literatura ou pelo celulóide - nos romances e nos filmes, o champan­he evoca um mundo de brilho, de festa, de euforia; mas, felizmente para todos nós, também de pequena devassidão e, naturalmente, do que quisermos que seja a devassidão, pública ou privada, tensa ou tranquila, feliz ou apenas própria para nunca ser dita. O que fez do champanhe tudo isto? A tradição, o luxo e os mitos que a historia engendrou em redor de uma bebida fantástica.

A verdade é que a região onde nasceu o champan­he (hoje circunscrita legalmente ao Marne, L'Aub, L'Aisne, Haut-Marne e Seine-Marne) foi ocupada e devastada por Atila, marcada pelas invasões militares e pelas batalhas mais sanguinárias da história de Franca, fustigada dramaticamente pela I Guerra, palco da Guerra dos Cem Anos ou da Fronda. Mas também foi aí que os romanos plantaram vinhas e era em Reims que os reis franceses eram coroados e festejados. E o vinho oficial da corte ficou esse, depois de derrotado o Borgonha nas preferências reais: o vinho de champanhe. Não o champanhe como o conhecemos hoje, depois da intervenção dos beneditinos da Abadia de Hautvilliers e dessa personagem que entra no mito da historia da bebida, Dom Perignon.

O santíssimo monge merece os nossos louvores quando se permitiu ver estrelas a partir de vinhos onde deixara resíduos de açúcar. Ele não sabia que o seu vinho tinha bolhas e imitava o ribombar da luxúria porque era guardado em garrafas antes da fermentação estar completa, e ignorava o equilíbrio de açucares exigido por essa segunda fermentação em garrafa - mas a história dos acasos e da pequena ciência vinícola encarregou-se de encontrar explicações e de inventariar os métodos que levam ao champanhe de hoje, a ligação entre as suas castas dominantes (Chardonnay, de uvas brancas, Pinot Noir e Pinot Meunier, de uvas pretas) e a razão pela qual desde os desvarios do duque de Orleães (século XVIII) até à deliciosa madame Clicquot o champanhe foi tão apreciado, estudado e melhorado.

É na Primavera, fundamentalmente, que decorre a segunda fermentação do champanhe, em garrafas. Até se proceder a 'remuage' (aquela meticulosa volta de 1/4 da garrafa, nas galerias e na escuridão das suas caves), a alquimia prossegue; e prosseguirá depois, ainda, até as garrafas estarem preparadas (três anos
para os champanhes 'vintage') para chegar às nossas mãos e para completarem o mito. Havendo já bons vinhos espumantes Portugueses (distribuídos sobretudo pelo Douro, Beiras, Bairrada e Estremadura, e aos quais dedicaremos em breve uma pequena viagem - para provar a excelência do trabalho de algumas casas vinícolas), o que fazemos nestas páginas é 'visitar o mito', o champanhe francês, denominação exclusiva dos vinhos espumantes produzidos naquela região. O leitor - e a leitora, muito mais atenta, acho eu - não quer explicações técnicas sobre prensagem, separação de uvas e de castas, armazenagem e fermentação. Para isso há vasta bibliografia documental; prefiro relembrar Oscar Wilde, que insistia em que "só as pessoas sem imaginação não conseguem encontrar um motivo para beber champanhe". E citar Churchill, o venerando (que dizia que o champanhe "tornava sua inteligência mais ágil"), ao anunciar a entrada das tropas britânicas em Franca, durante a I Guerra: "Lembrem-se, 'gentlemen': não é só pela França que vamos lutar, é pelo champanhe também." Para os cinéfilos, estas recordações são mais do que inúteis. Eles enumeram todas as cenas em que um balde de gelo esconde uma garrafa de champanhe - e o rosto de Joan Fontaine, a preto e branco, quase murmurando: "O champanhe é muito melhor depois da meia-noite, não achas?" Nisso, não estou de acordo - do pequeno-almoco até à ceia tardia, nunca encontrei uma oportunidade para não o bebê-lo.

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in Revista Notícias Sábado – 1 Abril 2006

abril 05, 2006

Patagónia - Toda a luz do céu

Há uma terra onde a tranquilidade da paisagem se associa a uma história humana fantástica. Rondando os Andes, povoada de lagos e de picos negros num céu deslumbrante e limpo, atravessada por caminhos que tanto lembram a solidão das montanhas como a música das florestas, a Patagónia é uma experiência para todos os sentidos.

Se o leitor gosta de ski e de desportos de Inverno, avance até às paginas do guia que conclui esta reportagem — lá encontrara o bastante. Mas se gosta de ser um viajante, lembro-lhe que Bariloche conta, entre os seus bens imperecíveis, uma das mais míticas estações ferroviárias do mundo - a velha e desactivada estação que anunciava a entrada na «verdadeira Patagónia». Não sei se Bruce Chatwin a descreveu como merecia, mas creio que não. A travessia das paisagens, desde Buenos Aires a Bariloche devia ser fantástica e, antes de entrar nas montanhas, esta estação cumpria um papel fundamental. Era um lugar de repouso. Continua a ser: sob o seu tecto mítico e relembrando viajantes e aventureiros, esta agora ocupada por um dos mais belos restaurantes da região, o Hasta que Llegue el Tren, onde se podem provar cerca de 300 vinhos locais e uma boa quantidade de cervejas artesanais. Para não falar da comida, numa região onde a grande especialidade é o cordero andino ou patagónico. Mas, para isso visite o Rincon Patagónico (nos arredores da cidade), por exemplo, um outro restaurante exemplar, temático e cheio de referencias vinícolas.

Mas antes de acabar o princípio da noite no Hasta que Llegue el Tren, vejamos a cidade pela manhã: ao longo do lago, primeiro, alongando-se entre pequenos hotéis familiares; depois o centro, de ruas limpas e civilizadas, com lojas apetecíveis, cafés e chocolaterias, árvores e jardins, e a delicadeza argentina acrescentada de um ar ligeiramente europeu, suíço, alemão, nórdico, educado, honrado. As chocolaterias não me prendem muito, mas há um poliedro, no centro, entre as ruas Bartolome Mitre e Quaglia, onde me detenho várias vezes: é ai que ficam a Mamuschka, a Fenoglio, a Benroth, a Tante Frida e a Rapa Nui - no outro vértice, a histórica Abuela Goye, uma verdadeira instituição local. Apetece entrar em cada uma delas e escolher, escolher, escolher. Na Rapa Nui, inclusive, além dos chocolates encontrei uma selecção imperdível e comovente de cervejas artesanais de El Bolson. Perdi-me.
Bariloche é também a cidade dos pequenos bares, sempre delicados mas com ruído apetecível. O meu preferido, bem no centro, é o Wilkenny: cerveja de tradição irlandesa acima de toda a suspeita, noites de conversa ao balcão, rock& pop, jornais sobre a mesa.

Numa das noites de Bariloche, o meu fantástico guia, Leo Tiberi, anunciou-me a existência do Berlina. No meio do frio, altíssimo frio austral, concluí que a Argentina tem maravilhosas cervejas artesanais. A arte de produzir cerveja cresceu nas terras austrais com uma qualidade insuspeitável. Tenho de Ihes render homenagem: são três irmãos de antepassados italianos, Bruno, Guido e Franco Ferrari - Bruno é o mestre cervejeiro com três anos de estudos em Berlim e muito rock 'n roll no currículo -, que abriram uma cervejaria artesanal nos arredores de Bariloche: o Família Berlina. Os dois irmãos Franco e Guido enviaram Bruno para a Alemanha e sustentaram-no com o imperativo categórico simples: fazes favor de aprender como se produz uma cerveja de grande qualidade, porque a vida não é só gozo e noitadas; durante esses três anos dedicou-se a cerveja e o resto da família não deu o seu dinheiro por mal empregue. De regresso a Bariloche, os três irmãos encarregaram-se de inventar quatro excelentes cervejas, uma altbier, uma rauchbier, uma wheat ale e uma stout. As duas primeiras são superlativas, especialmente a rauchbier, fumada, onde se detecta um trabalho de composição muito barroco na escolha de seis maltes diferentes, com uma boa percentagem de cereais torrados para alem do nível - a altbier, por seu lado, leva um tom de caramelo fantástico que a faz ser muito fresca. Eu recomendo-a como cura para quem ainda não provou cervejas a sério e tem pudor em faze-lo na Europa. Uma Berlina Rauchbier ou uma Berlina Altbier são momentos altíssimos, fabricadas de acordo com a lei. Bariloche estava a resultar.

Mas a vida não é só noitadas. Tem também madrugadas esplêndidas. Perto da colina onde fica o Llao Llao (e diante de dois outros, muito aconselháveis, o Amancay e o Tunquelen), partem os barcos em peregrinação pelo Nahuel Huapi, o lago majestoso, profundo e limpo que rodeia Bariloche e nos leva quase ate ao corarão dos Andes e a fronteira com o Chile. O caminho é belíssimo, encostado ao Brazo Blest, até passar junto do Cerro Lopez, dos seus majestosos 2000 metros de altitude, e dos dois outros pontos inesquecíveis da fronteira andina: Cerro Capilla e Cerro Millaqueo. À chegada a baía Blest, de onde se parte de autocarro para o Chile, é mais do que fantástica: parece uma tinturaria que forneceu todas as cores de uma paisagem de Turner - verdes diluídos, amarelos outonais tingidos de violeta, azuis brilhantes. E o ruído magnifico daquele silêncio que lembra filmes, aventuras, viagens pelo in­terior da terra, entre pássaros desconhecidos. O ferry, gigantesco, que nos traz desde Puerto Alegre abre sulcos pelo lago Frias, devolvendo-nos a luz entre canyons que descem do céu. Aprendi ali o significado da palavra «cordilheiras»; eu, que já as tinha atravessado, nunca as vira desde o fundo, desde a água, desde o silêncio absoluto.

Daí a duas horas apanhámos boleia de um barco que nos deposita em Puerto Cantaros. E a minha vida mudou bastante desde essa altura, ou pelo menos desde que subi até à Laguna de Los Cántaros e vi os seus picos cobertos de neve, depois de uma subida íngreme e solitária de mais de mil metros, entre cascatas de água, vegetação única, o esplendor da selva e, confesso, uma certa dor nas costas. Mas isso era o menos. A Laguna de Los Cántaros, em meu entender, divide os visitantes do lago Nahuel Huapi em dois grupos: aqueles que subiram até lá e puderam ficar em silêncio durante uma hora ou duas, desaprendendo todas as palavras que podiam descrever o lugar; e aqueles que não o fizeram. Vendo os vulcões ao longe (o Tronador fantástico, o Osorno, o Cabulco, o Pontiagudo ou apenas o Cerro Catedral), acabei por regressar a Bariloche com essa sensação de perdição e de esquecimento, de prazer e de nostalgia. Eu tinha enfrentado a grande beleza das cordilheiras e da sua lagoa nas alturas, e tinha regressado vivo.

Essa nostalgia não desapareceu quando cheguei a La Angostura, uma cidade a cerca de quarenta minutos de viagem de Bariloche, uma espécie de Suiça lacustre, arrumada e perfeita de arquitectura, fundada em 1932. Na verdade, eu queria ir a El Bolson, visitar os velhos hippies que se tinham retirado da vida de hippy e agora se dedicavam à produção de cervejas artesanais e de produtos de agricultura biológica, num vale lindíssimo e perfumado, depois de atravessar os três lagos da região (Gutierrez, Mascardi e Guillelmo). Aí estaria na celebre marca andina do Paralelo 42 e das disputas territoriais entre a Ar­gentina e o Chile. E também não queria perder a beleza de San Martin de los Andes, do lago Lacar e das suas escarpas. Mas acabei por ir até ao fim da península de Quetrihué e ver a mais profunda luz do final de tarde. Nessa altura, eu ainda não sabia — tinha partido, de barco, até ao bosque de Los Arrayanes (o arrayán é uma arvore da Patagónia, alta, com cerca de 15 metros e o seu tronco cor de canela) e subido uns metros pelo arvoredo onde se diz que Walt Disney se inspirou para os seus «desenhos animados». Sobre Walt Disney não me manifesto, mas a luz do final de tarde venceu-me. E a imagem que fica é esta: parados na estrada, Constantino e eu, vendo o dia desaparecer nas águas do lago gigantesco, o lago que devora Bariloche, que devora as cordilheiras, que devora os seus arvoredos fantásticos, cheios de espíritos que não perdoam o esquecimento.

Ao chegar a Bariloche eu precisava de sentir o fim das coisas. É uma sensação que vem da literatura e eu percebi-a quando entrei no Hasta que Llegue el Tren, esse restaurante instalado na velha e desactivada estação ferroviária que, nos seus tem­pos áureos, tinha recebido milhares de viajantes e de aventureiros que procuravam o fim das coisas. O fim das coisas estava na Patagónia, de facto, que emprestava aquela sensação de vertigem, entre a cordilheira andina e os lagos, entre os picos cober­tos de neve e os bosques perfeitos das colinas, sob a luz de um céu limpo como eu suponho que só encontrei na América Latina. Bebi uma cerveja artesanal ao balcão do restaurante. Li as notas que escrevi durante esses dias de Bariloche. Uns dias mais tarde verifiquei que tinha perdido o caderno. Ficava-me apenas a memória. A memória e toda aquela luz do céu.

in Revista Volta ao Mundo – Março 2006

abril 04, 2006

Et maintenant en français

Les Deux eaux de la mer

"Nostalgie désabusée, atmosphère mystérieuse et angoissante, érotisme subtil : avec Francisco José Viegas, le roman policier portugais a trouvé son Vázquez Montalbán et révélé deux flics atypiques, les inspecteurs Ramos et Castanheira, dont on n'a pas fini de parler. 1er août 1991. Deux morts quasi simultanées, à des milliers de kilomètres de distance, intriguent les services de police : celles d'une jeune étudiante en technologie, retrouvée noyée sur une plage des Açores, et d'un avocat fortuné à la réputation sulfureuse, abattu de trois coups de feu sur la plage de Finisterra en Galice. A priori étrangères, ces disparitions vont se révéler secrètement liées au fil d'une enquête à deux voix qui nous plonge dans les labyrinthes de la passion et du secret. Construite avec la précision rigoureuse des meilleurs orfèvres du genre, l'intrigue séduit le lecteur tel un fado aux multiples résonances, révélant l'extraordinaire palette d'un grand écrivain."

Um dos destaques da Revista Francesa Lire deste mês.

abril 03, 2006

É simplex

A semana terminou com as últimas glosas ao Simplex, e a verdade é que o caso merece-o. Simplex não é coisa que se chame a um programa governamental - mesmo para significar um plano de simplificação da nossa vida de cidadãos. Poderíamos chamar Simplex a um programa de acesso à internet, a um detergente para a louça ou a uma marca de utensílios de cozinha. Simplex não tem nada a ver com governo; tem, antes, a ver com publicidade. A verdade, também, é que fica no ouvido e vai permanecer no nosso anedotário - portugueses apreciam anedotas simples, efeitos fáceis. Imagino o Camilo de Oliveira a dizer "é simplex" e a piscar o olho. António Silva também podia dizer "é simplex" para Beatriz Costa, explicando-lhe como facilitar ou dificultar a vida a Vasco Santana.

Noutras circunstâncias, o Simplex seria glosado até ao excesso, haveria piadas, gritaria indignada, colunas de opinião, rimas escusadas (tudo de efeito fácil igualmente). Mas andamos mansos, mais conformados, a tratar da vida.

Isso não é um mal tremendo. Sócrates tem sorte, anda com sorte, tem a sorte do seu lado. Os mais cépticos continuam cépticos e mantêm adversativas, mas aos portugueses pouco lhes interessa se Simplex é ou não um nome adequado ou se vai bem com a gramática, o Português ou a dignidade de um programa governamental. Simplex funciona - apesar de alguma gente se interrogar sobre se é publicidade pura ou se se trata de trabalho de casa bem feito.

Vamos ser práticos. Simplex funciona porque o país estava uma bandalheira e porque José Sócrates teve a coragem de começar a arrumar a casa e de levar o governo a fazer os trabalhos escolares mais básicos. Na educação, na saúde, na administração pública, em vários sectores, o governo corrigiu aquilo que anteriores governos socialistas fizeram e o que alegados governos de direita não fizeram. Os analistas enganam-se redondamente quando dizem que este governo está a retirar espaço político à direita, esmagando e retirando argumentos à sua frágil oposição. É que a esquerda também fica sem argumentos. E essa habilidade foi conseguida por um primeiro-ministro socialista escolhido com a maioria absoluta dos votos que um ano depois elegeram um presidente à direita.

Para os anos futuros, este governo, não vai reivindicar heranças de outros governos de esquerda - limitar-se-á a mencionar que começou quase do zero. Essa herança foi diluída e, na maior parte dos casos, enterrada. Sócrates pode ter herdado várias coisas de Guterres; mas a determinação, a frieza, a capacidade de gerir, o planeamento - são coisas suas. E, até descobrir, o povo está a gostar. Mesmo que seja só publicidade (e não é), é publicidade da boa. Nem Guterres, nem Durão e muito menos Santana conseguiram dirigir-se ao comum das pessoas, e fazer qualquer coisa de útil da publicidade.

2. O senhor Ministro dos Estrangeiros, quando não é a propósito de Maomé, é sobre outras coisas. Depois de, retomando o seu ar de antigo regime, tentar humilhar os seus concidadãos, ensinando-lhes qual a diferença entre "liberdade" e "licenciosidade", partiu para o Canadá disposto a ensinar a um dos países mais generosos do mundo em matéria de emigração o que fazer com os nossos emigrantes. O Canadá não ligou a Sua Excelência e humilhou-o ligeiramente. Fez bem. Portugal gosta que tratem bem os seus emigrantes pelo mundo fora, mas trata geralmente mal os imigrantes que trabalham aqui. Dá-lhes 22 dias para se irem embora, mesmo que eles estejam a trabalhar. Não os legaliza, como devia; esconde-os nos subúrbios e persegue-os com ameaças e racismo. Sua Excelência também devia pregar aqui dentro.

Jornal de Notícias - 3 Abril 2006

abril 01, 2006

Para fazer inveja ao leitor

A Galeria Gemelli é um restaurante imprescindível no roteiro lisboeta. 0 chefe deste santuário frente ao Parlamento merece todos os elogios do mundo.

É só para vos fazer inveja, leitores amigos - mas a nossa vida é assim: uma coisa é ainda melhor se causar inveja em alguém. Pobre género humano, pobres de nós. Dois dias antes tinha ido almoçar ao restaurante de Augusto Gemelli, um italiano (da Lombardia) que está em Portugal desde Agosto de 1996, tempo suficiente para Ihe ser atribuído o passaporte, quanto mais não seja pelos fantásticos serviços entretanto prestados aos nossos estômagos - mas o Galeria Gemelli só tem as portas abertas desde Dezembro de 1999.

Volto ao almoço, que, para ser suave, começou por uma entrada simples e perfumada de novilho, marinado durante dois a três dias em ervas com louro e cravinho e numa salmoura de sal grosso - cortado em fatias, na companhia de tirinhas de aipo e de lâminas de um queijo também suave, um 'grana padano', além de um fio de azeite com trufa branca. Faço a descrição assim, porque o objectivo é, naturalmente, o de causar inveja. Por isso, depois de o estômago (e, muito mais do que ele, as papilas, a boca em geral e os olhos) estar em processo de afinação, passamos a uns 'orechietti' acompanhados de grelos picantes salteados (de sabor fantástico, surpreendente) e de camarões, e terminamos com uns rolinhos de novilho com queijo 'peccorino' (ovelha) e uma tira de toucinho. Aplauso geral, enquanto vinha a sobremesa.

Desta vez ao jantar a opção foi diferente. Mas o objectivo manteve-se: causar inveja. O método usado é simples: pedir ao excelente chefe de mesa que Augusto Gemelli, recolhido na cozinha, trate de nós e faça as honras da casa em vez de nos perdermos em escolhas, ou seja, optámos pelo menu do chefe. Para complementar, em matéria de vinhos escolheu-se a opção a copo, o que permitia que cada prato fosse acompanhado por um vinho diferente, além do branco seco que se pediu para aperitivo. A 'fogaccia' da Galeria, que vem no cestinho com mais dois pãezinhos simples, é para mim indispensável: tem azeite, tem ervas, tem sal (grãozinhos soltos a brilhar na sua crosta suave, inclusive) e pode molhar-se em três azeites diferentes, um deles decorado com algumas gotas de vinagre balsâmico. Isso é um convite, apenas, para terminar o nosso copo de vinho branco com um pequeno mimo de Augusto, um mexilhão gratinado. Para primeira entrada vieram então uma empadinha de queijo gorgonzola e pêras, cercada por uma redução de Porto 'tawny' (que foi recebida por um copo de 'Vina del Vero', branco, um 'Gewurtztraminer' de 2001, chileno) e um 'sofflato' recheado de cebola e 'ricota', rodeado de brócolos picantes (na companhia de um outro branco, o 'Arinto de 2004', de Jose Augusto Nevado). A procissão tinha começado. A segunda entrada foi então o pretexto para aparecer um 'rose', suave e de cor brilhante, um 'Carm de 2004': tratava-se de um creme, aveludadíssimo, de grão-de-bico que descia sobre camarões secos cozinhados com sal aromático e alho-francês. Logo depois, 'tortelloni de foie gras' e pêras, com molho de trufa preta e cogumelos bravos, com um copo de um fantástico 'late harvest', que nos reenviou ao Chile: um 'Concha y Toro Sauvignon Blanc', de 2002. Aplauso nada comedido, diga-se.

O mundo recompusera-se no final de uma longa semana de trabalho, e o prato seguinte iria ajudar. Durante o processo de negociação, logo no início do jantar, tinha mencionado a vontade de provar um 'Le Serre Nuove', de 2001, 'Tenuta dell'Ornellaia', tinto da Toscana. Fizeram-me a vontade com o vinho, e fui também servido de um lombinho de borrego recheado com uma massinha de azeitona preta e tomates secos, envolto em beringela e, depois, em couve-lombarda praticamente cozinhada em vapor. Nesta altura, como se compreende, senti-me um personagem de 'O Padrinho', balbuciando coisas sem nexo acerca do sentido que a vida faz. Até aí adivinhou Augusto Gemelli: enviou para a mesa, enlaçado (e de que maneira!) um cálice perfeito de moscatel siciliano, um 'Riflessi', um 'cannolo de ricota' com 'zabaione' fresco (que se obtém, no seu modo básico, com gemas de ovo, açúcar e marsala), o que me recordou aquela passagem do filme de Coppola: "Leave the gun, take the cannoli." Com os cafés pedimos uma 'grappa' (vieram duas amostras, uma 'Nonino' e uma 'Alexander', com 40% e com 60% de álcool, respectivamente) e pensei no trabalho de Augusto Gemelli, esse viajante que percorreu a Índia, a Tailândia, o Laos, a Argentina, o Chile - e que gosta de um dos meus lugares de eleição, Ushuaia. Um homem que gosta de Ushuaia, lá a beira da Antárctida, no fim do mundo, tem de cozinhar assim.

À lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 110
Vinhos Brancos: 57
Espumantes & Champagnes: 20
Grappas: 18
Vinhos de sobremesa: 16
Portos e Madeiras: 16
Uísques: 12
Águas: 12

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil, mas há parque perto
Levar Crianças: Não
Área de Fumadores: Sim
Bengaleiro: Fundamental
Preço médio: 40 Euros

GALERIA GEMELLI
Rua de Sao Benlo, 334
12OO-822 Lisboa
Tel: 21 3952552 Encerra ao domingo e segunda-feira

in Revista Notícias Sábado - 1 Abril 2006