novembro 24, 2005

A palavra

Durante esta semana, o primeiro-ministro jogou a sua credibilidade em três frentes. Ele julgará que isso não tem importância; no mundo da política, essas coisas acumulam-se umas sobre as outras e, com o tempo, com os títulos de primeira página e outras ninharias, costumam passar para segundo plano. Mas há uma credibilidade que Sócrates tem de perceber que é preciso manter; de contrário, arrisca-se a que o eleitorado (e, mais importante do que o eleitorado, os cidadãos) o olhe como um homem sem palavra. Por mais justificações, poeira, ninharias e primeiras páginas que entretanto passem.

Primeiro, o caso da Ota. É evidente para toda a gente que o Governo decidiu e não contou toda a verdade sobre os relatórios feitos e, sobretudo, sobre os relatórios por fazer. Mas isso se verá adiante, quando for tarde de mais.

Depois, em segundo lugar, repetindo um erro que é indesculpável em historiadores, homens cultos e gente sensata, o primeiro-ministro apareceu em Ponta Delgada a comunicar aos portugueses que Mário Soares esteve sempre "do lado certo da História". A afirmação é grave. A ideia de que há um lado certo da História é perigosa. Sócrates sabe. Haver um lado certo da História supõe a existência de um "lado errado" e, formulado assim, o "lado errado" não é apenas aquele onde se encontram os adversários; é o lado onde se encontram as pessoas que não pensam ou pensaram como ele. Uma delas foi Mário Soares. Estiveram muitas vezes em lados opostos da História recente. O nosso primeiro-ministro não é um presidente equidistante, é certo - mas não pode aparecer a ordenar o nosso mundo como lhe é mais conveniente. Ele ainda não está em nenhum lado da História. Não pode colocar mais de metade dos portugueses no lado errado do que lhe parece ser a História.

Depois, finalmente, como secretário-geral do Partido Socialista, Sócrates diz que Soares foi sempre o seu candidato à presidência. Parece que não foi. Manuel Alegre diz que não foi e que Sócrates falou com ele primeiro. As pessoas podem julgar, à primeira vista, que isso não tem importância e que se trata apenas de uma birra no meio de um partido onde já se falou, sucessivamente, de Guterres, de Vitorino e de Jaime Gama. Acontece que tem importância e que não é apenas uma birra de adolescentes para eleger o chefe de turma. Não pelo apoio do PS a Soares que, como se sabe, é parcial e conflituoso, embora oficial. Mas pela palavra dada por José Sócrates e pela forma como vai ser vigiado a partir de agora pelos portugueses que querem saber "como é que convive com esse desmentido", feito por Manuel Alegre. Como José Sócrates sabe, há sempre informações reservadas que circulam aqui e ali, e versões conflituosas sobre esse e outros assuntos. A questão não tem importância? Tem. Eu não faço um julgamento de carácter, e julgo que não é isso que está em causa - mas trata-se de um problema político. Os cidadãos (número mais importante que o dos seus eleitores) até lhe desculpam o aumento dos impostos e o desconhecimento prévio do défice porque reconhecem a necessidade de o Governo tomar estas decisões. Mas põem em causa futuras palavras dadas. E colocam-no sob uma vigilância apertada, pouco discreta e dramática as pessoas quererão saber como é que Sócrates vai conviver com um homem que já disse várias vezes que não se calará.

Há momentos em que estas coisas - o jogo da verdade entre Sócrates e Alegre - são cruciais. E que podem empurrar um político para o lado errado da História.

Jornal de Notícias - 24 Novembro 2005

novembro 17, 2005

Declaração de interesses

É muito provável - inteiramente provável, aliás - que tenhamos ideias diferentes sobre muitas opções da nossa vida. Da minha e da dele, Cavaco Silva, que são muito diferentes. São diferentes em muitas coisas no sentido que eu acho que a vida tem, na minha desorganização geral, nos gostos literários, no meu quase desinteresse por questões de economia e até no seu desinteresse por futebol, por exemplo. Provavelmente, eu gostaria de ir pescar com Manuel Alegre, de ir com ele às touradas (de que não percebo nada) ou de discutir com ele o mistério da poesia (o que já fizemos, aliás). Mas um presidente da República não se elege (ou se vota nele) porque é igual a nós, semelhante a mim, com os meus gostos, as minhas obsessões literárias. Escolhe-se um presidente para que ele garanta a liberdade das nossas opções, a estabilidade que permita que eu não tenha de pensar como ele para ser considerado cidadão de pleno direito. Acredito, além do mais, nos valores republicanos de seriedade, responsabilidade individual, estudo, lealdade às leis e à vontade dos eleitores, respeito pelas contas do Estado.

Eu não sou cavaquista. Limito-me a achar que Cavaco Silva será melhor presidente do que qualquer um dos seus opositores. Que o seu tipo de presidência permitirá que os governos governem e que os cidadãos sejam cidadãos de pleno direito - e que actuará com tranquilidade. E que Portugal precisa dessa margem de tranquilidade para se repensar e reorganizar sem lugares-comuns nem apêndices burlescos, pequenas lutas protocolares pelos holofotes da glória. E que, portanto, precisa de alguém compreensivo na Presidência - não de quem tenha todas as respostas. De alguém que esteja atento aos outros e que pergunte e saiba fazer as perguntas; e mais que permita que as perguntas se façam. Esse é o principal currículo que eu exijo a um presidente. Mas há mais.

O combate nestas eleições presidenciais é, por isso, entre diferentes modos de entender a vida de um país. Não entre modos de entender a minha vida ou a vida de cada um. O objectivo da política não é o de garantir a felicidade - mas o de possibilitar que cada um possa procurá-la como entender. Não acho, por isso, que tudo pertença à esfera da política ou, sequer, que um político profissional esteja em melhores condições para compreender a sociedade e o mundo actual. A pequena polémica criada em redor da designação de "político profissional" revela até que ponto essa perspectiva pode empobrecer a própria vida civil, limitando o "espaço político" a um exercício de linguagem (e de vigilância sobre ela), e ao inventário de propósitos sobre o que deve ser a vida dos outros - por mais largo e vasto que se imagine esse "arco de interesses" da própria política, construído à maneira de um catálogo de saberes ou de referências. Cada um de nós tem uma dignidade e uma vida que não se dissolvem na intervenção permanente na comunidade política. Para que isso seja possível, julgo que é necessário pensar na governabilidade do país e na sua estabilidade. Só isso pode garantir a nossa liberdade, que é um valor precioso e que deve estar a salvo de todos os ressentimentos e de todos os ressentidos. E de todos os malabarismos.

P.S. Escrevi este texto porque pensei ser necessária uma "declaração de interesses" a propósito das eleições presidenciais que aí estão. Votarei Cavaco Silva. Dito isto, encerro o assunto. Devia este texto aos leitores do "Jornal de Notícias" e à relação de absoluta honestidade que tenho mantido com eles ao longo destes anos de presença no jornal por onde aprendi a ler.

Jornal de Notícias - 17 Novembro 2005

novembro 10, 2005

Paris em Lisboa

Pela televisão, as coisas não têm cheiro. O som é filtrado, as imagens escolhidas, as palavras dos repórteres às vezes absurdas e inadequadas (cheias de banalidades sobre a "revolta dos excluídos" ou "o perfume da revolta"). Há aqueles retratos, naturalmente. Instantâneos repetidos chamas, bombeiros, corridas, ferros retorcidos, carros abandonados, vidros quebrados, lágrimas. E isso está lá, nas imagens da televisão.

Na verdade, essas imagens estavam lá antes disso. A França do "modelo social" importou imigrantes desde sempre. Importou imigrantes espanhóis, portugueses, magrebinos. Não porque isso fosse fundamental para o seu "modelo social", mas porque a imigração era indispensável para manter, nas classes médias, o seu modo de vida limpo e organizado. Esse modo de vida e esse modelo social integrou lentamente ou não integrou de todo a miséria dos "bidonvilles", a sordidez das cidades periféricas onde o Estado não chegava mas que eram boas e muito aceitáveis para imigrantes de primeira geração, habituados a más condições de vida nos seus países de origem (como Portugal). Os "políticos esclarecidos" falavam da França como país de acolhimento, mas substancial parte dos franceses achava apenas que os imigrantes eram úteis, desde que não beliscassem esse modo de vida superior e civilizado. O que então foi nascendo à volta das cidades não foi visto durante anos senão em momentos de crise das ruas territórios onde a República não entrava. A República: a lei, as obrigações para com o Estado, os deveres de assistência do Estado. Em vez disso, desenvolveu-se a má consciência do "estado social" francês: distribuição generosa de subsídios, dinheiro, apartamentos de má qualidade. Tomem dinheiro, mas não apareçam. Desde que o "modo de vida limpo e organizado" dos franceses não fosse beliscado. E, geralmente, fundos e meios administrados por uma rede de ONG financiadas pelo próprio Estado. Daí que uma das recentes medidas do primeiro-ministro Villepin, ao mesmo tempo que autorizava os estados de excepção em algumas cidades, fosse a distribuição de fundos. Grotesco remédio.

Não passou pela cabeça dos que se excitam com "o perfume da revolta" que a maior parte das vítimas dessa violência que destrói escolas e autocarros, lojas e edifícios públicos, sejam precisamente imigrantes e cidadãos que vivem na margem desse modo de vida francês, limpo e organizado.

Não sei se estão a ver o retrato, mas pode simplificar-se territórios onde a República não entra, onde a lei não entra. Sabendo-se que a pior exclusão é a que permite a miséria - a nacionais ou a estrangeiros -, convinha relembrar que nos limites de Lisboa há territórios que em breve serão assim. E que um país que não respeita os estrangeiros e os imigrantes não pode pedir-lhes que o respeitem. É o dilema da República. E das fronteiras actuais.

2. O presidente Jorge Sampaio esteve em Belmonte, no museu judaico. E disse que temos de "defender aquilo que é a capacidade de integração, de conviver com o outro, de termos as minorias que se possam exprimir da forma que queiram." Há certamente um lapso do presidente, atribuível à emoção e à generosidade as minorias, ou mesmo as maiorias, não podem exprimir-se "da forma que queiram". É o dilema da República: se uma comunidade decidir instituir a excisão genital feminina, o sacrifício ritual de animais, a violência doméstica, a escravatura, o ataque indiscriminado contra o Estado e o país de acolhimento, o desrespeito pela lei geral que deve reger todos os cidadãos - independentemente da sua religião ou origem -, como deve o Estado reagir?

Jornal de Notícias - 10 Novembro 2005

novembro 03, 2005

O que nos ensina o tempo

Passaram 250 anos sobre o terramoto. Sobre o grande terramoto. O debate que, por toda a Europa, se seguiu à tragédia, devia ser reeditado e relançado. Temos sempre a impressão de que os debates de há dois séculos e meio não interessam para o nosso século laico e acometido de outros perigos. Mas os perigos de hoje são os mesmos - as tragédias com nome, as tragédias que ainda não têm nome, os desaires do género humano, as dúvidas, as incertezas, os grandes medos. Os vírus, as pandemias, as designações dessas ondas do mal.

O mal não é uma categoria divina nem uma categoria humana; depende dessa poeira a que chamamos incerteza, entre o céu e a terra (como a poesia de Blake), entre a luz e a sombra, entre o puro e o impuro. O padre Gabriel Malagrida atribuiu à devassidão, à tolerância e aos maus costumes, a tragédia de 1 de Novembro de 1755. O Cavaleiro de Oliveira - cujos textos deviam ser lidos - também atribui culpas, mas à "crendice católica". Dois séculos e meio depois, Deus regressa como uma sombra, uma mancha no panorama, uma dúvida metódica. O tsunami de 2004, tal como o furacão Katrina e outras tragédias recentes transportam a companhia de Deus. Pelo menos a invocação, como se sabe. O tsunami da Ásia castigou crentes (muçulmanos) e infiéis (os turistas do Ocidente), mas foi, segundo vários teólogos escutados na altura, um sinal para castigar a devassidão do Mundo. O furacão Katrina castigou a pátria de Bush e dos infiéis americanos. Esse debate, que já se realizou no Ocidente, continua noutras latitudes. Mas a designação de "latitudes" é enganadora. O próprio tsunami de 2004 constituiu um pretexto para que um responsável da própria igreja anglicana se questionar sobre "a existência de Deus".

O debate não é absurdo nem anacrónico. No final dos anos 60, quando Jean Marie Domenach antecipava o debate, num livro intitulado "O retorno do trágico", estavam aí as respostas para essa inquietação. A efeméride - os 250 anos do terramoto - permitiu reeditar parte dela. Vários romances (como os de Miguel Real, "A voz da Terra", ou de Pedro Almeida Vieira, "O profeta do divino castigo") e ensaios permitem entrever que vivemos as lições do tempo e a incerteza sobre as "lições da História". Rui Tavares publicou, justamente, um dos livros mais cativantes sobre o assunto, "O pequeno livro do grande terramoto" (edição Tinta da China) - um extraordinário guia, tão simples quanto útil e problematizador, sobre as preocupações em redor do "trágico". Justamente, o que Rui Tavares assinala, logo a abrir o livro, é a comparação entre o 11 de Setembro, o incêndio de Roma, o tsunami de 2004 e o terramoto de 1755; certamente que são acontecimentos incomparáveis - uns dependem de factores humanos (o 11 de Setembro), outros dessa incerteza a que chamamos catástrofe e cujo culpado não tem nome.

Um dos problemas que a discussão sobre a catástrofe arrasta consigo é a ideia de "homem providencial". O Marquês de Pombal, por um lado, o "mayor" Giuliani do outro - os "grandes estadistas" nascem das grandes catástrofes e dispõem do tempo para lá das leis e das próprias condições da sociedade. Estamos hoje a assistir, justamente, ao combate entre o "homem comum" e o "homem providencial". As lições do tempo têm um valor relativo, mas quanto mais "normal" for o retrato do nosso mundo, menos trágicas serão as soluções engendradas para explicar o nosso destino. Eis porque o terramoto de 1755 não deve esquecer-se.

Jornal de Notícias - 3 Novembro 2005