agosto 26, 2004

O demónio da pátria

Quanto mais pobre é um país, mais nacionalistas se reivindicam os seus cidadãos e mais patrióticos são os discursos das suas instituições. O nacionalismo, de resto, é um alimento para pobres de espírito - cujo consumo é normalmente incentivado pela lengalenga sobre "as nossas coisas", a Super Bock, o bacalhau, a sardinhada, o SG Gigante e o vermelho e verde da bandeira, a trapalhada de oito séculos de história e as histórias de heroísmo mítico de alguns personagens, de Martim Moniz a Mouzinho. Acho o nacionalismo, nos dias de hoje, uma coisa alarmante e fora de qualquer contexto.

Muitos sociólogos explicaram recentemente, com o contributo da "psicologia de massas" e de alguma intuição sem muita transcendência, que as bandeiras portuguesas do Euro 2004 podiam ser um fenómeno negativo - ou positivo, conforme levassem os portugueses a ultrapassar-se e à mediania em que andavam. Essas explicações não me convenceram nem me comoveram.

A medalha de prata de Francis Obikwelu na corrida dos 100 metros surpreendeu muita gente; no fundo, Obikwelu nasceu em África, fala um Português deficiente e vive a maior parte da sua vida em Espanha, onde treina ferozmente. Em Portugal, segundo li na Imprensa (sobretudo na espanhola, que não deixa de notar os pormenores que lhe interessam), vivia com mais dois amigos num quartinho de 15 metros quadrados, em Belém, até que uma família portuguesa lhe prestou mais atenção, o tratou de mazelas, o cuidou durante as gripes e passou a ser tratada como família. Uma família é isso mesmo. Obikwelu trabalhava nas obras. No jornal madrileno "ABC", o seu agente conta que o viu correr pela primeira vez a conselho de Carla Sacramento e, sem aquecimento, Obikwelu fez 10,25 em 100 metros na pista de cinza do Restelo. Um colosso. Tentou fazer dele cidadão espanhol, mas sem sucesso por causa de burocracias locais. Obikwelu ficou português. Sorte nossa. Vieira da Silva ficou francesa.

Não sei fazer essas contas, mas era bom verificar se a aplicação integral da legislação portuguesa sobre cotas de emigrantes não teria impedido Obikwelu de ser, hoje, cidadão português.

Nós não somos verdadeiramente racistas nem xenófobos. Mas temos essa tentação. Não somos como os japoneses, que detestam ver estrangeiros a falar Japonês (porque querem manter a sua vida a salvo do olhar dos outros) e que só concedem naturalização a quem é filho de pai e mãe japoneses. Mas tivemos um seleccionador de futebol, não há muitos anos, que distinguia entre "portugueses legítimos" e "os outros", de segunda categoria.

Uma vitória essencialmente portuguesa não foi apenas ver Obikwelu a cortar a meta e ficar à frente de quase toda a gente; foi ver a alegria de muitos portugueses a festejar a sua vitória. Ah, se ele ficasse com a medalha de ouro, e o víssemos, pela televisão, a cantar o hino, então seria o golpe fatal no velho nacionalismo. Figo lá foi resmungando, sugerindo que Deco nunca cantaria o hino como deve ser. Obikwelu também não. Mas a sorte de Portugal é que, ao longo da sua história, teve vozes suficientes a quebrar esse "nacionalismo fundamentalista" - e quase todos eram portugueses, de Francisco de Holanda a Ribeiro Sanches, de Garcia de Orta a Verney. É certo que não tiveram grande destino.

Uma das grandes riquezas actuais do nosso início do século é esta: termos dentro de fronteiras gente que pode acrescentar mais qualquer coisa ao Portugalinho medíocre que se gerou depois dos anos 70. Brasileiros, eslavos, africanos, hispânicos -- temos para com eles um dever de hospitalidade tremendo. Não são apenas uma cota nem mão-de-obra barata para construir estádios, barragens e auto-estradas. Eles podem ajudar-nos a vencer o demónio da pátria.

Jornal de Notícias, 26 de Agosto de 2004

agosto 19, 2004

A Casa Pia nunca existiu

Se há coisa desinteressante para tratar hoje é a questão do segredo de Justiça. Se o caso Casa Pia já se transformara em matéria de convicção ("eu acredito que são culpados…" ou "são de certeza inocentes…") alimentada por fugas de informação e por investigações jornalísticas, a questão do "segredo de Justiça" segue pelo mesmo caminho e todos se esforçam por demonstrar quem violou mais ou quem desrespeitou menos o "segredo de Justiça". A Imprensa não está inocente nessa matéria, pois alimentou, em bloco, suspeitas sobre o assunto. Além do mais, alimentou o seu próprio desprestígio; a crer no que se publica hoje, a Imprensa não fez mais do que fomentar fugas ao segredo de Justiça, escutas ilegais, "convicções inabaláveis", simpatias e euforias. Mais: a acreditar nas acusações e queixumes que se lêem na Imprensa, em editoriais e em colunas de opinião, os jornais não fizeram mais do que aproveitar toda e qualquer fuga ao segredo de Justiça - a sua investigação, a acreditar no que se lê, limitou-se a isso.

Não é coisa nova. Cada jornal, ou cada jornalista, cria, no sistema judicial e nas corporações policiais, uma rede de fontes, escutas, influências, simpatias e cumplicidades - a sua investigação depende disso. Mas é uma investigação truncada e limitada à revelação, a conta-gotas, de pormenores abjectos, pequenas notícias escandalosas, primeiras páginas que fazem a glória de uma semana de trabalho, revelações que satisfazem a opinião pública. Em síntese, grande parte da investigação jornalística (eu tenho resistido, por um resto de cumplicidade corporativa, a colocar a expressão entre aspas irónicas) limita-se a usar essas fontes e essas influências. Se a violação do segredo de Justiça foi protagonizada por Adelino Salvado, por João Pedroso ou por outros cavalheiros citados entretanto, não é menos verdade que "soprar para os jornais" é um hábito das democracias. À medida que os "sopros" se vão tornando mais insuportáveis, estamos diante de um vendaval de informações desencontradas e com origem incerta e despropositada, cujo único objectivo é o de salvar o "bloco central dos interesses". Isso já foi conseguido. O processo da Casa Pia é um pudim impressionante em que a opinião pública (e o celebrado "interesse público") está esmagada por todo o género, não só de informações contraditórias, mas também de convicções contraditórias. Neste momento, a principal dúvida reside em saber se a Casa Pia existe mesmo.

A história das cassetes é, provavelmente, o golpe final. Bem podem os defensores do "interesse público" pedir a divulgação, na íntegra, do conteúdo das gravações; não o conseguirão. Os diálogos serão revelados a conta-gotas, parcialmente, omitindo personagens e fragmentos substanciais. O próprio boato que menciona a multiplicação das cópias é perfeitamente compreensível e essa estratégia (e a sua assinatura) é conhecida por qualquer leitor de romances policiais. Desde o início estava escrita a salvação desse "bloco central de interesses" - basta ler os resumos da Imprensa, desde Março do ano passado.

Em síntese: a questão, agora, é a do segredo de Justiça. O país inteiro, cheio de especialistas em processo penal, já esqueceu a Casa Pia.

Jornal de Notícias - 19 de Agosto de 2004

agosto 12, 2004

O acordo do regime

Parece que o país fervilha de indignação, o que tem sido um dos dois estados anímicos mais vulgares no seu comportamento dúplice - o outro é a depressão quase profunda. Na verdade, bem lá no fundo, o país não está propriamente indignado - mas fervilha de alguma maneira. Quem se indigna são os colunistas, alguns comentadores e parece que a Oposição; o país, não; o país está em Agosto, o que significa que não está cá. De resto, o país já está habituado a esta história mal contada do processo Casa Pia: habituou-se às gravações ilegais ou conformes aos códigos, habituou-se às demissões de titulares de cargos públicos, às exigências de transparência, às meias-verdades, às primeiras páginas, à linguagem dos juristas na televisão, aos murmúrios sobre listas de suspeitos fabricados conforme as circunstâncias, habituou-se - finalmente - a desconfiar. Se há coisa que pode identificar o país, é essa palavra pouco nobre, pouco solene, triste e desgraçada: desconfiança. Enquanto alguns se indignam, o país desconfia; é esse o seu estado de alma. Tem todas as razões para isso, aliás. Os maus exemplos vêm de cima, como quase sempre acontece (os bons exemplos não fazem audiência): processos mal contados, intriga, frases arrastadas para as primeiras páginas com a subtileza de um elefante, mediocridade, vulgaridade, manobras à porta do tribunal. Portugal transformou-se num país "judicializado", cheio de especialistas em processo penal, dominado pelo discurso dos juristas e transtornado pela desconfiança.

O caso das "gravações da Casa Pia é o mais recente capítulo desse transtorno. Ao que se sabe, as gravações existem; além do mais, foram roubadas (o que não é propriamente um "pormenor"); depois, circulam - o que significa que uma certa percentagem de gente as ouviu, que uma outra percentagem não ouviu mas diz que ouviu.

O facto de o ex-director da Polícia Judiciária ter sido "queimado" por essas fitas é, apenas, um pormenor no meio da barafunda e do vasto conjunto de armadilhas que transformaram o processo Casa Pia numa monumental teoria da conspiração sobre os políticos, os tribunais, os magistrados, os advogados, os arguidos, os suspeitos e as vítimas. Parece que o que está em causa é o famoso "segredo de justiça". Não é apenas o segredo, mas também a forma pouco nobre e absolutamente abjecta como a ideia de justiça desapareceu do processo, juntamente com as cassetes, a memória das testemunhas ou as suspeitas infundadas. O processo está desacreditado e o país tem toda a razão em desconfiar dele.

O senhor primeiro-ministro ofereceu-se, anteontem, para um acordo de regime sobre justiça. Talvez a iniciativa seja meritória, mas eu - como o país - desconfio e acho que é uma inutilidade. Parece que o que está em causa, ou subjacente à oferta de pacto de regime, são questões do código penal e do código de processo penal - e não a justiça propriamente dita.

Sobre os códigos, o Parlamento que trate do assunto, e rapidamente, páre com as queixinhas. Sobre a justiça (ou a Justiça), espera-se que a lei seja respeitada e que os «seus agentes» trabalhem de acordo com as regras. Isso é que era um grande acordo de regime.

Tudo isso será certamente impossibilitado pela forma como a investigação policial é analisada em directo, como os processos vão parar às mesas das redacções, como os telefonemas privados são tornados públicos, como a promiscuidade e as regras de favor são protegidas. Nada de escândalo; é assim há anos. Por isso, o verdadeiro acordo de regime era esse: obrigar a cumprir a lei e haver gente decente a cumpri-la.

Jornal de Notícias - 12 de Agosto de 2004

agosto 05, 2004

Mal habituados

A má notícia da semana veio pela mão do Gabinete de Informação e Avaliação do Sistema Educativo do Ministério da Educação. Segundo o GIASE, mais de metade dos alunos matriculados no 12º ano durante o ano lectivo de 2000/2001 não conseguiram concluí-lo. Nos chamados cursos gerais, a taxa de aprovação ficou pelos 48,4%; nos tecnológicos, só 42% chegaram ao fim. Há várias maneiras de reagir a estes dados. A primeira, culpando os sucessivos governos por não terem feito nada para evitar resultados tão decepcionantes, nem terem investido como deviam na escola; a segunda, culpando o sistema educativo em si mesmo, que não prepara convenientemente os estudantes para uma coisa tão decisiva como o 12º ano de escolaridade, digamos que um vestibular para o ensino superior; a terceira, culpando os autores das provas nacionais que também entram na média global (creio que em 30%), que eram inadequadas e talvez exigentes demais; a quarta, culpando o sistema de avaliação, que funciona como uma fábrica de reprovações.

Há mais hipóteses. Todas elas já foram tentadas - e começam todas por atribuir as culpas dos resultados a entidades diferentes. Mas pouca gente se lembra de, publicamente, atribuir as culpas aos estudantes que reprovaram. Aos 16, 17 anos, digamos que 18, os estudantes não são totalmente irresponsáveis. Uma parte da culpa cabe-lhes inteiramente.

Acontece que nenhuma das quatro "atribuições de culpa", uma ocupação favorita de todos nós, portugueses, serve para explicar resultados tão negativos (no meio disto, ainda há uma outra particularidade: os rapazes portaram-se pior do que as raparigas - 51,6% das raparigas terminaram o ano com sucesso a todas as disciplinas, contra 44% dos rapazes). Primeiro, mais investimento dos governos não significa melhores resultados no aproveitamento escolar; esta ideia, defendida pelo ex-ministro David Justino (um dos melhores ministros dos últimos anos), está mais do que comprovada. Segundo, o sistema educativo não tem culpa da falta de esforço, dedicação e trabalho dos estudantes do 12º ano; olhá-los como vítimas "do sistema" é um erro que dificilmente poderá ser reparado e que criará mais alunos com deficiências de responsabilidade e de exigência, eternamente infantis, por mais tempo sujeitos a serem tratados como crianças e não como adolescentes capazes de enfrentar os desafios da sua idade. Terceiro, as provas nacionais, além de não terem sido "exigentes demais", são necessárias, indispensáveis e uma das formas de aferir o conhecimento e o grau de empenhamento dos alunos; a ideia de "baixar o nível" das provas para que se obtenham melhores resultados, é digna de um populismo mentecapto que também já fez escola entre nós mas foi denunciado a tempo. Quarto, o sistema de avaliação tem de ser o mais simples possível e não devia ser mudado durante duas décadas, pelo menos. Já basta de experiências.

O ex-ministro Augusto Santos Silva falou de "problemas estruturais" a propósito destes dados arrasadores. Eu também acho. E melhores resultados não se conseguem com mais reformas deixadas a meio, mas com insistência e rigor. É uma linguagem pouco popular, certamente, mas o Português e a Matemática, pelos vistos, também não andam no topo da popularidade e não deixam de ser essenciais.

Uma onda de psicologia baratíssima anda pelas páginas dos nossos jornais, inventando traumatizados dessa guerra virtual que se vive na escola. Daqui a um mês, falaremos do trauma das crianças que regressam às aulas; daqui a oito ou nove meses, falaremos dos traumas gerados pelos exames e pelas noitadas de estudo. Pelo meio, falaremos do trauma dos miúdos que não sabem a tabuada ou usam a cedilha incorrectamente. A verdade é que a vida é assim mesmo. Estamos a criar gente mal habituada. Mal educada.

Jornal de Notícias - 5 de Agosto de 2004