junho 05, 2006

A leitura e a virtude cívica

Uma das notícias da semana passada foi, sem dúvida, a apresentação das ideias gerais que hão-de presidir ao Plano Nacional de Leitura. O país interessou-se vagamente pelo assunto, porque chegou à conclusão de que se atingiu - nas escolas e na vida familiar - uma espécie de ponto de não-retorno, cujo diagnóstico é certamente pessimista. As opiniões de Vasco Pulido Valente e de José Saramago, manifestadas de forma corajosa (bem como, por exemplo, Abel Barros Baptista) vieram trazer alguma polémica, sempre bem vinda a um universo onde são todos bonzinhos e se acha que a leitura tem a ver com a cidadania, numa espécie de aliança de virtudes cívicas.

Essa ideia é, além de irritante ("bons cidadãos, bons leitores"), perversa e ruim para a própria leitura. A leitura é fonte de inquietação, de ruína, de descalabro - e também de felicidade e de preguiça. Nenhuma destas coisas faz bons cidadãos. Certamente que "ler muito" é bom - mas "ler bem" é muito melhor. É claro que ninguém, no seu perfeito juízo, está em condições de definir o que é "ler bem", embora se perceba que se trata de ler bons autores, de conhecer a grandeza dos clássicos da nossa língua e das outras línguas, da nossa cultura e das outras culturas. Ninguém é melhor cidadão por ter lido Fernando Pessoa ou João de Barros. Mas a capacidade de entender o mundo melhora consideravelmente.

Ler bem é, também, aproveitar a felicidade de ler, se se é feliz ao ler um livro que se amou. Mas não se trata de uma virtude cívica. Por isso, mais do que um plano nacional de leitura apresentado como uma prioridade nacional e cívica, com a sua inevitável pompa cheia de valores politicamente correctos, é necessário que a escola mude alguma coisa nos seus hábitos. A escola e as famílias. Mas a escola cumpre um papel essencial, razão porque há a esperar alguma coisa desta iniciativa, uma vez que na sua base está também o trabalho de uma das pessoas que mais fez pela qualidade das bibliotecas escolares, Teresa Calçada, além de uma autora que pôs muitos adolescentes no caminho da leitura, Isabel Alçada.

Precisamente, alguns ideólogos estapafúrdios do ensino do Português (aqueles que dizem que a matéria curricular trata do "ensino do português" e não do "ensino da literatura") garantem que interessa acabar com a iliteracia e que a literatura não tem nada a ver com o assunto. Provavelmente, nesse sentido, não haverá "vantagem cívica" em ter estudantes que saiam da escola a saber quem é Cesário Verde, a conhecer alguns trechos da "Peregrinação" ou de Fernão Lopes, a ter decorado dois ou três versos de Sá de Miranda ou de Tomás António Gonzaga. Por isso, os manuais do ensino e os livrinhos dos professores estão cheios de banalidades, de algaraviadas e de português deficiente.

Distingo, aí, algumas vozes a chamarem-me reaccionário. É um argumento e tanto, mas advirto não vale nada. Penso que o conhecimento dos clássicos é um dos melhores caminhos para conhecer a nossa história, a nossa língua e a nossa cultura. E que a leitura de um clássico é melhor do que a leitura de um regulamento do Big Brother, um artigo de jornal ou cartaz publicitário. Mas estes anos de insistência nas "virtudes cívicas do ensino do português" em vez do ensino da literatura, "produz técnicos de ensino" do português mas não forma professores disponíveis para cativar estudantes do secundário para os desafios da leitura. Um dos argumentos é triste e vergonhoso: o de que os estudantes do secundário, por exemplo, "não compreendem" o texto de um clássico, "não entendem" a linguagem dos autores do cânone da nossa literatura. Por isso, tratam de "facilitar o caminho" e de modelar a cabeça das criancinhas (infantilizadas e maltratadas por anos de erros ortográficos). Se o Plano Nacional de Leitura não devolver os clássicos da nossa língua à escola, não terá sucesso.

Jornal de Notícias - 5 de Junho 2006