janeiro 29, 2007

O que quer a direita

Mais coisa menos coisa, Lobo Xavier disse ontem que era um erro pedir a demissão de Ribeiro e Castro como líder do CDS-PP. Um erro, ou seja, nas suas palavras, “uma irresponsabilidade”. A afirmação tem alguma razão de ser, mas pelas razões inversas das apontadas por Lobo Xavier; é que uma das últimas sondagens atribui, ao CDS, uma subida de dois pontos. Não se percebe porquê, a não ser pelo facto de o eleitorado premiar quem anda desaparecido (como dizia Vasco Pulido Valente).

Ora, as razões invocadas por Lobo Xavier resumem-se fundamentalmente numa: porque não há ninguém disponível para se candidatar ao lugar de Ribeiro e Castro. É ele próprio quem o afirma: “Se o partido estivesse cheio de candidatos credíveis e com ideias capazes, que quisessem participar numa disputa aberta pela presidência, seria o primeiro a reclamar que a direcção se demitisse e que se realizasse um congresso que permitisse uma escolha.”

Vamos e venhamos, Lobo Xavier tem razão; obrigar Ribeiro e Castro a demitir-se para criar um vazio significa tempo perdido. Nos últimos tempos, o CDS desapareceu. Bom; não totalmente: há uma soma de “gaffes” interessantes e de excitações na bancada parlamentar, a somar às revoadas de nevoeiro que se acumulam para que Paulo Portas regresse. No resto, nada.

Custa a acreditar que a direita portuguesa se resigne a aceitar o PSD como seu partido natural (o que prejudica o PSD, valha a verdade) e que se contente em viver em função dos ciclos eleitorais.
Fazer política traz prejuízos consideráveis? Decerto. Só assim se explica que ninguém, dos históricos candidatos a dirigentes do CDS, se disponibilize para abandonar a vida empresarial ou académica para fazer política – veja-se o exemplo de Lobo Xavier, naturalmente. É legítimo, portanto, que nos perguntemos: o que quer, afinal, a direita portuguesa para além de ocupar um lugar pobre no parlamento e de querer participar numa aliança triste com o PSD?

Fundamentalmente, a direita anda contente com o “espírito reformista” de José Sócrates, que “não estraga os negócios” e tem desafiado aquilo que os dois últimos governos (o de Durão e o de Santana) não ousaram afrontar: o lugar do Estado, as leis laborais e o corporativismo na educação, na justiça e na administração pública. A direita agradece. Mas fica, em matéria política, manietada (tal como parte do Bloco de Esquerda vai ficar depois da vitória do “sim” no referendo do aborto) e sem grandes bandeiras.

Ora, isto é uma pena. Em primeiro lugar porque ficamos sem saber o que quer e pensa a direita, verdadeiramente. Em segundo lugar porque esta desertificação do CDS é traduzida – para quem não vê o PSD como pau para toda a obra –, por outro interessante parágrafo das declarações de Lobo Xavier: “Se eu quiser dizer em dez segundos cinco grandes linhas do pensamento do CDS, como partido de oposição, certamente que hesito muito e isso não deveria acontecer.”

Na verdade, a direita é ou está preguiçosa. Limita-se a vegetar. A seguir os acontecimentos com um lamentável sentido de oportunidade. A acompanhar e a alimentar a luta dos seus baronatos. Preguiça e baronatos. Foi isso que matou a Di­reita antes, durante os seus gover­nos. É isso que ameaça liquidá-la agora, por alguns anos. Essa irrelevância vai custar caro ao país.

Há uns tempos escrevi que é importante saber se a Direita quer carregar consigo os seus “patrimónios genéticos” e os seus espartilhos – e falar para pessoas que já não existem – ou se admite abrir o seu cérebro para questões que a própria vida coloca hoje em dia.

Volto ao mesmo: há os que, à esquerda, têm medo de dizer alguma coisa de esquerda. E existe, à direita, o receio de dizer alguma coisa de direita. Dito isto, ficamos sem saber o que quer a direita.

in Jornal de Notícias - 29 Janeiro 2007

janeiro 27, 2007

O Quixote em Matosinhos


No reino do peixe e do marisco, existe um belo restaurante de carne, que propomos esta semana.

Um leitor (J.D.G.) prega-me, por mail, um sermão brutal e, provavelmente, merecido: que não tenho dito mal de restaurantes, que me tenho desfeito em elogios e que isso é motivo para desconfiar. Esclarecimento gratuito ao leitor: eu próprio tenho desconfiado. Acontece que tenho ido a restaurantes que me têm agradado (a maior parte) ou a alguns que não me têm desiludido. Se o leitor quer sangue, tê-lo-á, apesar de terminar a sua carta com uma mensagem particularmente enternecedora: "Matosinhos, provavelmente onde se come melhor no País." Nisso, concordamos: entre Leça e Matosinhos estão alguns restaurantes que vale a pena visitar (o primeiro dos restaurantes desta secção, há cerca de um ano, foi em Leça, aliás).

Os restaurantes de Matosinhos lembram-me dias de Verão da minha infância, quando o meu pai me queria impressionar com experiências aqui e ali – e pude, pois, frequentar duas ou três casas que figuram entre os clássicos da zona. Volto amiúde para testar a memória e para recuperar um ou outro sabor – e quase nunca saio desiludido: há restauran­tes que confirmam a infância ou a adolescência, não têm de ser experiências avassaladoras.

Desta vez fui a Matosinhos por "indicação diplomá­tica" em busca do Sancho Panza — que encontrei fixado nas paredes da casa, em citações do 'Quijote'. É uma decoração sem pretensões, iluminação sim­ples, entrada discreta — e aroma a pecado. Ou seja, a carne — se bem que, entre as especialidades da casa se encontrem uma sopa rica do mar, o tradicio­nal lombo de bacalhau assado na brasa ou com espargos e molho de cerveja preta ou ainda "al Pil Pil" (é diante de um "bacalao al pil pil" que Vázquez Montalbán põe Pepe Carvalho para começar o seu romance 'As Termas', passado em ambiente de dietas assassinas), e ainda o tamboril nas modalidades de espetada com gambas ou servido com alho e tou­cinho, ou o polvo à lagareiro.

Seja, pois. Mas eu ia às carnes, que no Sancho Panza, de ressonâncias espanholas ou espanholizantes (com, repito, cervantinas citações nas suas paredes), estão distri­buídas por 'chuleton' de boi, 'entrecôte' duplo de boi, o tradicional 'cochinillo', o ainda mais tradicional mas nunca menosprezável 'chateau-briand', além de secretos de porco preto (uma invasão completamente irracional nos nossos restaurantes), da alheira de caça com ovo e grelos e do churrasco variado à Sancho Panza (composto por 'entrecôte', lombo, alheira e secretos e o que houver), onde há mão do 'jefe' Alejandro, um argentino, 'porteño', que comanda a cozinha.

Começámos por um 'albariño' espanhol para acom­panhar pequenas entradas (entre elas uma linguicinha espanhola e pimentos Padrón) e logo metemos caminho para um tinto notável (criado por um dos zeladores da tradição do Veja Sicília). O Sancho Panza tem na sua carta três brancos e quinze tintos de Espanha ('albariños', 'del Duero', Rioja, Toro e Costes del Segres), além de três "cavas" apropriadas. O tinto acompanhou um 'chuleton', recomendado pelo anfitrião, Carlos Andrade, que foi sendo grelhado na chapa, à mesa. Nada de espe­cial, na verdade, mas muito saboroso – corte exem­plar, tempero 'sencillo', gordura de boi para grelhar, excelentes, e hoje cada vez mais raras, batatas fritas de lei, algumas delas devidamente empoladas, a mostrar carácter, e legumes salteados, no ponto.

De sobremesa, derretemo-nos diante de um bom crepe preparado com manteiga (cujo uso se notava, para desagradar a dietistas), massa suave, maçã laminada e 'ron viejo', que foi servido com um Porto Ramos Pinto – outras propostas seriam as tartes de maracujá ou de maçã, a mousse de menta com chocolate, o bolo de brigadeiro ou o toucinho-do-céu. Ficam para a próxima.

Nas mesas em redor, um grupo de futebolistas onde divisei um Anderson de muletas, um Lucho González em vésperas de um bom golo e um Lucas Mareque ainda por estrear, respirava-se apetite. É quanto, às vezes, me basta.

O Sancho que mante­nha as suas portas abertas, que lá me terá mais vezes.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 47
Vinhos brancos: 24
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 22
Champanhes: 8
Aguardentes & Conhaques: 8

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Parque nas proximidades
Levar crianças: Sim
Área de não-fumadores: Não
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 35 euros

SANCHO PANZA
Rua do Godinho, 287
4450-149 Matosinhos
Tel: 22 937 90 96
Encerra às segundas-feiras

in Revista Notícias Sábado – 27 Janeiro 2007

Coisas gerais e insuportáveis

1. Coisas gerais: o F. C. Porto empatou o seu último jogo com o Tourizense. Coisas insuportáveis e risíveis: ontem mereceu perder com o Leiria, mesmo com erros do árbi­tro e anti-jogo manhoso do Leiria. Falta à equipa o que faltava há me­ses: um marcador corajoso. Agora eu compreendo como se empatou com o Tourizense – foi um resultado e tanto. Dito isto, segurem-se. E bem.

2.Vi um "Grenal" – um Grémio-lnternacional. E, portanto, vi Rentería jogar. Na verdade, Rentería era um dos melhores "colorados" de Porto Alegre, e custa-me a acreditar na facilidade com que Abel Braga o deixa sair sem armar um dos seus protestos. O colombiano tem uma vantagem sobre outros: aparece, remata e festeja. O F.C. Porto precisa de um marcador corajoso.

3. Mas, se gosto de Rentería lá na frente, tenho medo que Quaresma desapareça – ele tem sido um dos pilares da equipa. Nesse caso, re­comendo que o F. C. Porto não saia de Porto Alegre e traga Lucas Leiva. Tem a vantagem de ser gremista, mas obrigava a desmontar o apare­lho estratégico de Jesualdo. Ou a inventar um novo extremo. As hipó­teses agradam-me.

4. A imprensa inglesa festeja e an­gustia-se com a hipótese da saída de Mourinho do Chelsea. Depois de uma semana a ler as páginas de desporto britânicas, fico novamen­te adepto do português. Sem revanchismo nacionalista; pouco me importa, neste caso, que ele seja português. Simplesmente, Mourinho baralhou o esquema de com­portamento daquele estrelato de barões e burocratas. Cá ou lá, Mou­rinho faz a diferença, e isso é insu­portável. Deixa-os sem respirar, ou seja, mostra-lhes como são peque­nos e como se pode ser bom, ousa­do, talentoso e irónico. Também isso é insuportável.

5. Mourinho é insuportável para essa gente que anda pelas secreta­rias. Tal como Cristiano Ronaldo é insuportável para Scolari e os seus rapazes da imprensa e dos comen­tários de jogo. O talento desconcerta, como se sabe. Esta semana, a imprensa recordou que Cristiano Ronaldo é o melhor de Inglaterra – mas, evidentemente, nunca irá à missa com Scolari, que já o tinha anunciado como um "flop".

6. Paredes foi para o Sporting mas não conseguiu repetir a sua época de ouro portuguesa; não é, no en­tanto, uma desilusão. Nos relvados, raramente se consegue uma "repri­se" luminosa. O Benfica tenta agora Derlei, mas o brasileiro, ao contrário do paraguaio, tem ainda um cami­nho para percorrer e não é um pré-reformado.O"Ninja" vale o seu peso. Depois de ter sofrido uma lesão em Alverca, antes de Genselkirchen, seria torpedeado por Tonito na pré-época seguinte. Derlei nunca mais foi o mesmo. Desse jogo recordo as palavras de Jaime Pacheco, treina­dor do Boavista (onde jogava Toni­to): "É assim que eu gosto."

7. O Leiria entregou ou vai entregar um DVD com gravações de arbitra­gens de Lucílio Baptista. Faz bem. Sempre achei que é um árbitro que gosta de deixar marca. Daquelas subtis, de derradeiro minuto, ou ainda mais subtis, no risco da área. Dizem-me que se trata de "arbitra­gem inteligente". Deve ser. Vejam as imagens.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 27 Janeiro 2007

janeiro 26, 2007

Amapá. S. José de Macapá.


A primeira impressão é a de uma cidade que adormeceu há muito. O avião chega por volta da uma da madrugada e há pouca gente no aeroporto — uma pequena parte das ruas não está asfaltada, mas é por aí que o taxista escolhe o caminho mais curto para o hotel. O hotel não tem telefone no quarto. A rede de televisão AmazonSat transmite sem cessar as imagens das festas de Parintins. Acabaram-se os cigarros — e na roulotte, junto de um jardim em cujo centro também adormeceu há muito um lago sem peixes vermelhos, só vende cerveja. A primeira impressão de Macapá não é famosa, rodeada de pequenas e de grandes florestas, de rios e sombras. E de povoações que relembram colonizações anteriores, como é o caso de Nova Mazagão, para onde foram residir os ocupantes de Mazagão, depois de abandonada a praça portuguesa do Norte de África.

São lugares retirados ao ruído das cidades e ao rumor da sua história. Os portugueses, que mandaram as suas tropas conquistar o território que hoje é o Amapá, recordaram aos seus generais que aqui não devia ficar memória dos ocupantes anteriores. Assim foi feito. Destruiram-se fortalezas e povoações, e ergueram-se outras, anexadas então ao Grão-Pará. Por estes caminhos passou Pedro Teixeira (um personagem fantástico), delimitando a Grande Amazónia do seu e nosso tempo. Por estes campos e por estes rios passaram os primeiros colonos (açorianos, por exemplo) que vieram para cultivar a terra guardada por fortes e praças militares.

Dois dias depois, quando começo a conhecer os restaurantes de Macapá, a saborear a marginal junto da fortaleza de S. José (uma construção imponente — da mesma série da do forte do Príncipe da Beira, só que maior e menos conhecida) e das suas esplanadas, a estrada de pó leva-nos até ao norte, à fronteira com a Guiana e à proximidade do Suriname. São cerca de quinze a dezoito horas, consoante a meteorologia («o rigor da meteorologia...»), mas valeu a pena ter chegado à hora de almoço, depois de muitas paragens para descansar, fotografar e só para parar, apenas em Nova Canaã, uma aldeia suspensa entre um rio e o limite da floresta, de onde uma estrada nos levaria ao parque que confina com o mar — e que é um dos lugares mais raros que se podem visitar.

E há essa curiosidade: em Macapá, ao sul da cidade, está essa linha imaginária do equador, traçada de verdade sobre o meio-campo de um estádio de futebol, o Zerão — de um lado, joga-se no hemisfério sul; do outro, no hemisfério norte. Por isso, com essa omnipresença do equador, não admira que as noites de Macapá tenham a marca de um fogo permanente, de um ferro em brasa que queima só de leve. Ou seja: por um lado, parece o cenário para um western de John Ford, luminoso, tenso, incandescente, com três quartos de céu; por outro, evoca a ausência absoluta de cenário, de seja o que for que tenha a ver com a história, de ruído.

in A Origem das Espécies

janeiro 22, 2007

"das Artes e das Letras" entrevista FJV


Este nacionalista em matéria vinícola ("nacionalis­ta do Douro", sublinha) é bem conhecido do grande público. Escritor e jornalista, hoje também director da Casa Fernando Pessoa, nasceu em Vila Nova de Foz Côa em 1962 e viveu na aldeia do Pocinho ("o centro do mundo") até ir para Lisboa, onde se licenciou em Estudos Portugueses. De­pois, foi professor de Linguística. Depois, foi (é) jornalista, poeta, romancista, portista, bloguista, etc. e tal. No seu livro de poemas «As Imagens» (1987), lê-se: "escrevo para não morrer roxo de frio dentro / do coração, de frente para a luz do ouro, barulho / de passos na interminável agonia da luz". Vinte anos depois, não sabe bem para que serve a poesia, mas gosta dela. De poesia e de gastrono­mia, de viagens e de romances. Francisco José Viegas, que em tempos viveu entre Portugal e o Bra­sil, está hoje mais longe de Manaus e mais perto de nós. No passado dia 10, encontrámo-lo num palco da Casa das Artes de Famalicão («Noites de Escritura Pública»). Pedimos-lhe que falasse con­nosco. Falou e ousou. Pedimos-lhe uma sugestão de leitura. Deixou-nos «A Grande Arte», de Rubem Fonseca ("É o romance mais perfeito dos últimos 20 anos"). Mas foi com uma passagem de um li­vro seu, «Longe de Manaus», que quis começar a sessão. Com esta frase: "Talvez as pessoas quei­ram, Isaltino, um pouco de ordem na vida".

Prefere perguntar ou responder?
Depende... Mas hoje vou aproveitar! [Risos] Acho que pergun­tar é uma actividade difícil. Quando estou a fazer entrevistas, po­nho-me sempre no papel de quem está em casa, tal como quando faço um programa de rádio, penso em quem está a ouvir. Imagi­no alguém que vai ao volante do carro, de noite. O que é que eu gostava de ouvir? Está a ser interessante a conversa? O tom é agra­dável? Ajuda-me a conduzir? Ajuda-me a passar o tempo? Eu de­testo as entrevistas tipo combate de boxe, aquelas em que o entrevistador tem que fazer valer o seu ponto, como se o entrevistador tivesse uni ponto de vista necessariamente para contrapor ao do entrevistado. Quando as pessoas vêem um programa, querem é saber o que o entrevistado quer dizer! Devemos procurar valori­zar o entrevistado. É evidente que todos nós temos truques e se, ao fim de dez minutos, antipatizarmos com ele, sabemos armadilhar a conversa toda, e sabemos mostrar o pior... Temos que ser honestos. Se convidamos uma pessoa, então é porque ela tem alguma coisa a dizer. Essa entrevista vive do confronto, mas não necessariamente da valorização do entrevistador. Ë como se o jor­nalista fosse a estrela. A estrela é o convidado.

Costuma estar do lado de cá, do lado do entrevistador. Hoje, está desse lado... O que é que mais lhe interessa saber sobre as pessoas?
Se estiver a entrevistar a Meg Ryan, quero saber se ela quer jantar comigo! [Risos] Se estou a entrevistar um autor, quero sa­ber qual é o processo de criação, o que é que ele realmente quis com aquele livro, se está contente com o livro, e obviamente que procuro desvendar alguns segredos para os leitores. Mas sem me tornar demasiado cúmplice. Lembro-me de ter feito entrevistas perfeitamente desonestas a pessoas que eu adorava que tinham escrito livros magníficos. Eu estava realmente do lado do autor. Às vezes acontece: o entusiasmo toma conta de nós. Interessam-me muitas coisas nas pessoas: a maneira como vivem, a maneira como trabalham, a maneira como escrevem, no caso. Interessa-me saber o que é que elas têm a dizer. Porque toda a gente tem qualquer coisa a dizer. Pode não ser novo, mas alguma coisa é, seguramente.


DO POCINHO AO BRASIL

É verdade que viveu na última paragem ferroviária do Douro?
Agora é a última paragem: o Pocinho. O Pocinho ainda é hoje, para mim, o centro do mundo. Era onde viviam os meus avós, a minha família, e à medida que foram morrendo voltou a ser o centro do mundo - uma espécie de raiz. O Pocinho é um bocadi­nho a metáfora daquela parte do interior de Portugal que foi sen­do abandonada, abandono contra o qual não se pode fazer grande coisa. As pessoas vão saindo, vão procurando melhores condi­ções de vida noutros lados, mas lembro-me de o Pocinho ser uma espécie de oásis no meio daquilo. É preciso dizer que o Pocinho não é uma aldeia qualquer. O Pocinho é a aldeia que produz o Barca Velha! [Risos do público] É a aldeia que produz o Esteva, o Vale Meão, o Meandro - são os melhores vinhos do Douro, que estão aqui. Eu não venho de um lugar qualquer! [Risos] Aos 15 anos, quando descobri que o meu avô, aos fins-de-semana, ia tra­balhar na Quinta do Vale Meão, deixei de dizer que o meu avô trabalhava na Quinta do Vale Meão. Dizia: o meu avô trabalha na Quinta onde fazem o Barca Velha! Houve logo um upgrade. Ain­da por cima, o melhor Barca Velha que eu conheço é o do meu ano! Em matéria vinícola, sou nacionalista. Nacionalista do Dou­ro! Já não acho graça aos vinhos que passam do Sado para o Sul.


O Douro é, portanto, central.
Sim. Não sei se conhecem o Pocinho... É que um lado da al­deia pertence ao distrito de Bragança e o outro pertence ao distri­to da Guarda. E as pessoas perguntam: mas tu és do distrito da Guarda ou do distrito de Bragança? Eu sou do Douro, que passa ao meio. És da Beira ou de Trás-os-Montes? Sou da Região De­marcada do Douro. Este seria o melhor processo de fazer a Regionalização em Portugal: Região Demarcada do Dão, do Douro, dos Vinhos Verdes, etc. Era ali que começava a linha de Sabor, que era uma linha lindíssima que tinha dois tipos de composição: o comboio normal e a auto-motora. Quando chegava a determi­nada estação, o Sr. Rodrigues, que era um dos condutores da auto­motora, parava para comer cerejas. Passava-se o mesmo na cidade onde eu vivi, Chaves. Quando chegava a Carrazede, nós saía­mos e íamos a pé cerca de um km e voltávamos a apanhar o com­boio mais à frente. A minha vida esteve sempre ligada aos com­boios – um dos livros que escrevi era, aliás, sobre comboios. O meu avô era ferroviário (era operário metalúrgico da CP) e nunca disse coisas como "o comboio para o Porto". O meu avô dizia: "o 6013" ("Apanhas o 6013, que chega às 18h45, na linha 42")- Che­guei a fazer colecção de horários de comboios. Às vezes, aos 16 ou 17 anos, pegava num horário e começava a viajar... Tenho um gran­de fascínio por comboios, porque se encostarmos um dedo a um carril na Estação de Campanhã, caso não saibam, do outro lado está Vladivostok.

Estamos ligados.
Sim. Para mim era espantoso pensar que estávamos ligados.

Foi isso que influenciou também o viajante? É daí que lhe vem a ânsia de viajar?
Sim: os comboios que partiam, os comboios que chegavam... Foi assim que comecei por viajar, e tenho um recorde de 22 noi­tes seguidas passadas num comboio. Fiz seis anos seguidos de InterRail – um vício. Atravessei a Europa a dormir nos comboios.

Do comboio para o avião... Julgo tê-lo ouvido dizer um dia que vivia meio ano em Portugal e meio ano no Brasil.
Vivi assim cerca de dois anos e meio: três meses de Brasil e três semanas de Portugal. Foram os anos que levaram à escrita de «Longe de Manaus» – por isso é que ele é escrito metade em português de Portugal e metade em português do Brasil, e também é produto de uma relação apaixonada pelo Brasil. As pessoas dizi­am coisas absurdas. Como vivia no Brasil, achavam que era por­que trabalhava no Consulado, ou na Embaixada. Não. Mas então o que é que estás lá a fazer?, perguntavam. Estou a trabalhar, por mim. Tem muito a ver com a pequenez do funcionalismo cultu­ral português pensar que não se pode arriscar. Eu arrisquei. Quis escrever, mantive o meu trabalho conforme pude, e foram dois anos óptimos.

O que é que nasceu primeiro: a paixão pelas letras do Brasil, pela cultura do lugar, ou pelo país, pelo lugar geográfico?
Eu já conhecia o Brasil, já tinha feito uma série de televisão sobre o Brasil. Quando fui para lá viver, já só me faltava conhecer um Estado brasileiro. Foi uma experiência fantástica. O Brasil é um país irritante. Tem todos os defeitos, mas tem todas as quali­dades – que nos envergonham de pensar mal do Brasil. E eu não acredito em paraísos, ou em vidas fáceis...

Também é um apaixonado pela literatura brasileira.
Muito. Aliás, costumo dizer que a literatura brasileira é infini­tamente superior à portuguesa. A frase não é minha, é do poeta angolano Mário António, que foi meu professor de Literatura Brasileira. Há um diálogo interrompido entre a literatura portu­guesa e a brasileira, por um lado pela arrogância de muitos escri­tores portugueses, e por outro lado pela arrogância do sentimen­to político brasileiro em relação a Portugal. O facto é que o ro­mance brasileiro tem hoje uma criatividade, uma intensidade de tal forma, que se me perguntassem quais são os autores de língua portuguesa que eu mais gosto de ler, em dez, haveria sete brasileiros. Sem qualquer preconceito anti-português. Tem uma vantagem sobre grande parte da ficção portuguesa: é que não é pirosa.

A ficção portuguesa é pirosa?
Grande parte é. É muito fácil, muito dada a sentimentos, a estados de alma. É pouco dada a trabalho de investigação sério, que tem que haver na ficção, apesar de tudo. Há um filão da literatura brasileira – que é o que vai de Machado de Assis até Ru­bem Fonseca, onde há muito trabalho; e há um outro lado (que é o do Jorge Amado, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa) que é muito mais nacionalista. Nós tivemos um predomínio muito grande da literatura brasileira de feição nordestina, folclórica (so­bretudo de Jorge Amado) e com isso perdemos a oportunidade de conhecer outros autores brasileiros.

DO VIAJANTE AO ROMANCISTA

Em 2002, publicou o romance «Lourenço Marques» e, em 2005, «Longe de Manaus» (que recebeu o Grande Prémio Ro­mance da APE). As suas viagens (reais ou literárias) são tam­bém viagens na língua portuguesa? Isto porque os lugares a que alude nestes romances são também lugares da língua portuguesa...
Eu costumo dizer que não sou patriota, no sentido em que não acho que uma coisa é boa só por ser portuguesa. Mas fasci­nam-me muito os portugueses, sobretudo os portugueses que estão fora, e fascina-me muito o passado colonial de Portugal. A sensação da perda do Império foi o que me fascinou no «Lourenço Marques» e no «Longe de Manaus», que cruza Angola, a Guiné, o Brasil e Portugal. O que me fascinou foi essa sensação de perda. Para fazer o «Lourenço Marques», entrevistei cerca de 200 pessoas que tinham vivido em África. Eu nunca vivi em Áfri­ca, mas tenho um amigo que nasceu em Lou­renço Marques e que me pediu, da primeira vez que fui a Moçambique, que fotografasse umas ruas, urnas pastelarias, umas igrejas... Eu fui fotografar, mas tinha contratado um motorista para me levar a conhecer a cidade. Disse-lhe: Eu que­ria ir a estes lugares. E ele perguntou: O Sr. quer conhecer Maputo? Sim, quero conhecer Maputo. Ele olhou para a lista de lugares e disse: Não, o Sr. Viegas não quer conhecer Maputo... o Sr. Viegas quer conhecer Lourenço Marques.

Esses lugares já não existiam, ou não existi­am com esses nomes.
Exactamente. É preciso dizer que eu tenho uma grande admiração pelos retornados. O Fer­nando Dacosta, na altura, muito contra a corrente e muito contra o tom politicamente mais na moda, publicou uma reportagem em que dizia: "Os retornados estão a mudar Portugal". E é ver­dade. Um dos aspectos mais comoventes à dis­tância, independentemente daquilo que houve de desgraça e de infelicidade e de amargura e de ressentimento, foi a capacidade que Portugal teve de, mal ou bem, absorver cerca de 750 mil pes­soas em três meses. Recebeu-as mal, obviamen­te, mas essas pessoas transformaram a maneira de ser de Portugal. O meu pai também tinha vivido em África, e tinha muitas histórias de Lu­anda, e eu fiquei sempre muito desperto para esse mundo. Quando cheguei a Lourenço Mar­ques, disse: Eu tenho que fazer uma história aqui. Interessam-me esses portugueses que es­tão fora. Um dia, encontrei em Timor um grupo de portugueses que se juntavam para falar mal de Portugal. Eu dizia-lhes: "Mas então vocês es­tão 324 horas do país... Quando voltarem, como é que vai ser?" Eles respondiam: "Nós não voltamos". É uma paixão desmedida por um país que não podia ser de outra maneira.

O Francisco José Viegas também é apaixona­do por Portugal?
Gosto muito do Minho, dos vinhos, do mar, do Pocinho... Eu sou português. Gosto moderadamente de Portugal, como qualquer portugu­ês. Não há nenhum português que ame desesperadamente Portugal. Há sempre a frase: isto só podia acontecer em Portugal!

Voltemos à Literatura, porque ainda temos que chegar à poesia. O Francisco José Vie­gas também é cultor de um género pouco divulgado em Portugal: o romance policial. Como é que surge um romance policial? Pesquisa, investigação, curiosidade?
Surge-me por dois motivos: em primeiro lu­gar, porque sou preguiçoso, no sentido lato - ou seja, existe um modelo, que podemos seguir. Qual é o modelo? Crime, cadáver, investigação, maus e bons. Se está aqui o modelo, para que é que havemos de procurar outro? Não é por ser mais fácil. É porque toda a nossa vida cabe nes­se modelo. Toda a nossa vida. Quando dizemos homicídio, podemos dizer desaparecimento, medo, mistério, desconhecimento... Não é por eu matar quatro ou cinco pessoas em cada livro que vou ser preso. O crime, nos romances poli­ciais, vale como elemento de distúrbio, numa sociedade normalizada. Infelizmente, é cada vez menos literário e cada vez mais real... Eu costu­mo dizer: comprem os meus livros, que por ape­nas 14 euros não têm um nem dois nem três, mas quatro cadáveres [Risos]. Ou seja, sai mais ou menos a dois euros por cadáver, o que é bara­to, hoje em dia. Qualquer coisa em nós nos puxa para situações limite. Por outro lado, toda a literatura é, em certa medida, devedora do roman­ce policial. Ou seja, nas maiores crises da litera­tura a partir do séc. XIX (o romance é uma for­ma burguesa do séc. XIX), quando o romance deixava de ter história, foi o romance policial que disse: Não. O romance tem que ter princípio, meio e fim. Embora possa não se começar pelo princípio. A ordem é arbitrária, mas tem que existir uma ordem na história para que exista, provavelmente, uma ordem no mundo. O ro­mance policial, como forma literária burguesa, ordena o mundo. As pessoas querem uma or­dem na vida, querem uma explicação. Não há maus e bons. O meu detective é óptimo para defender os criminosos...

O seu detective, o Jaime Ramos, que já atra­vessou tantos dos seus livros, é de alguma forma um alter-ego seu?
[Risos] Não. É uma pessoa que eu conheço. Gosto dele porque tem uma biografia própria. Isto é um pouco anedótico, mas eu tenho extrac­tos de conta bancária do Jaime Ramos. Imagino como é o guarda-roupa dele. Tenho fotografias da casa dele, que passam de livro para livro. São personagens com uma certa vida, e por isso ten­to criar no livro uma vida com uma certa coerência, que provavelmente não existe noutro lado. Acho que toda a literatura (o José Cardoso Pires, aliás, dizia isso) é em certa medida polici­al, porque toda a literatura trata da morte, do mistério, do desaparecimento e da busca.

DA POESIA À CASA FERNANDO PESSOA

Já falámos do entrevistador, do viajante, do romancista. Cheguemos agora à poesia. Na antologia da sua poesia «Metade da Vida», confessa que "é avesso a falar de poesia, por entender que não se trata de literatura". E acrescenta: "poesia é sempre outra coisa, fica sempre mais além. O verso ideal, por isso, não devia escrever-se". Por que é que a poe­sia não se trata de literatura?
Há uma circulação dos objectos literários -dos livros - que não tem a ver com a poesia no seu estado puro. Não tem a ver com a imagina­ção da poesia no estado puro. É como se dissés­semos que a música no seu estado puro é o si­lêncio, que a nota perfeita, numa peça, é o silên­cio. E o verso às vezes é demais para explicar um lugar, uma palavra. Eu penso que a poesia - é essa a concepção que eu tenho - não releva da literatura. Releva sempre muito mais do discur­so religioso, muito mais do encontro com o ima­terial. A poesia dialoga com o invisível. A litera­tura dialoga com aquilo que pode tornar-se re­velado, visível. Por isso é que os romances são adaptados a filmes. Por isso é que a poesia não é adaptável a nada. Por isso é que eu nem sequer sei falar de poesia. Admiro imenso os críticos de poesia. Eles conseguem falar de poesia durante horas! Eu consigo ler um poema, gostar de um poema, e calar-me. Percebe? Está lá.

Aquilo que procura na poesia é diferente da­quilo que procura na ficção?
Quando eu era adolescente, procurava sedu­zir a colega do lado. Era muito mais difícil escre­ver-lhe um romance... Por isso é que Portugal é um país de poetas. [Risos] Quero conquistar a menina aqui do lado, por isso vou escrever-lhe «Os Maias»... Não pode ser! Vou seduzir esta pequena e vou escrever-lhe um soneto. Nessa altura, a poesia tinha uma utilidade (isto é um bocadinho caricatural, obviamente). Hoje, para mim, não tem utilidade nenhuma. Não o faço por razão nenhuma. Faço-o porque tenho de fazer.

Porque precisa?
Sim. Estou ali, há aquela paisagem, aquele instante, aquele relâmpago... Há um livro de um poeta cabo-verdiano de que eu gosto muito, que é o José Luís Tavares, que tem um título fantástico: «Paraíso Apagado por um Trovão». Para mim, a poesia é um paraíso apagado por um trovão. Há ali um relâmpago qualquer que eu não sei expli­car... Há coisas que as línguas não conseguem dizer.

O Francisco José Viegas assumiu recentemen­te o cargo de Director da Casa Fernando Pes­soa. Quais são os planos fundamentais para a casa do poeta?
Os objectivos para a Casa Fernando Pessoa são cumprir o orçamento. Este é o ponto um. Pon­to dois? Fugir ao orçamento. [Risos] Ponto três: conseguir escapar a salvo dessa fuga. Quem está a gerir equipamentos desta natureza sente sem­pre essa limitação do orçamento, mas acho que fizemos na Casa Fernando Pessoa, ao longo des­te ano, uma experiência que é um pouco única: com um orçamento diminuto, montámos em 15 dias a programação de um ano, e acho que correu de uma maneira francamente aceitável, para uma casa que não tinha programação. A Casa Fernan­do Pessoa não é a casa do Fernando Pessoa. É urna casa da poesia que existe em nome da herança de Fernando Pessoa. Obviamente que temos lá es­pólio de Pessoa – os óculos, a cigarreira, o Bilhete de Identidade, e essas coisas magníficas; temos a biblioteca pessoal; temos a célebre cómoda onde ele escrevia; mas é sobretudo um lugar de encon­tro de poetas, de escritores, de gente que gosta de livros, e portanto a função é essa. Neste ano, além de continuarmos este programa, vamos lançar fi­nalmente a «Tabacaria», que irá chamar-se «Revista de Poesia e Literatura», e vamos organizar uma grande coisa que se chama «Lisboa, cidade do Livro» (podia ser «Famalicão, cidade do Livro», mas é em Lisboa) que ocupará os 30 dias antes da Feira do livro. Há também um trabalho de coo­peração... Provavelmente, daqui a uns anos, teremos uma Casa Fernando Pessoa em São Paulo, no Brasil. Estive na inauguração do Museu da Lín­gua Portuguesa (em São Paulo), e Fernando Pes­soa é o poeta mais citado ao longo de todo o mu­seu, o que diz bem do impacto do Pessoa no Bra­sil. Eles conseguiram livrar-se um bocadinho des­se ressentimento pós-colonial em relação à lín­gua portuguesa. É muito bonito.

Entrevista de Filipa Leal com fotografias de Pedro Tavares
in “das Artes e das Letras” – suplemento distribuído com o jornal “O Primeiro de Janeiro”
– 22 Janeiro 2007

A paixão pela educação

A"paixão pela educação", manifestada por António Guterres, revelou-se um dos grandes embustes políticos da época. Periodicamente, uma série de sociólogos e de especialistas em "mentalidades" vem lembrar-nos que o nosso problema é a educação e a necessidade - nunca satisfeita, afinal - de investir na educação.

A actual ministra da educação tomou algumas medidas para disciplinar a vida das escolas e torná-las menos dependentes das arbitrariedades dos sindicatos e do corporativismo dos professores. No entanto, aquilo que seria um conjunto de medidas necessárias e urgentes acabou por transformar-se na criação de um clima de arrogância em que os professores passaram a ser publicamente apontados como responsáveis por tudo o que acontecia de mau nas escolas. A peregrina e estapafúrdia ideia de permitir que os pais e encarregados de educação possam funcionar como instâncias de avaliação da qualidade dos professores (entretanto abandonada) não passou de populismo de pacotilha. O problema é que o próprio ministério não tem a coragem de avaliar os professores. Expliquemos.

Desde os anos setenta que o Ministério da Educação tem sido ciclicamente invadido por técnicos que se acham investidos de uma luminosa presciência para educar o povo - impondo modelos pedagógicos e científicos (na matemática como no ensino da História ou da Língua) conforme a sua vontade de experimentar e de mudar, mas vivendo na impunidade e na quase inimputabilidade. Muitos desses técnicos estão afastados do mundo real das escolas há muitos anos, circulando de seminário em seminário, de congresso em congresso, certamente munidos de muito boa-vontade, mas ignorando que a boa-vontade não é um instrumento generoso quando se trata de educação. Seria, aliás, muito útil saber quanto o Estado despendeu, nos últimos anos, em "reformas pedagógicas" incompletas e inconsequentes e na sucessivamente chamada "inovação pedagógica" ou "curricular". E, paralelamente, o que sobra dessas experiências, cujas vítimas são, em primeiro lugar, os alunos do básico e do secundário e, depois, os próprios professores que vivem parte do seu tempo de trabalho ocupados a interpretar o "eduquês" das senhoras e dos senhores técnicos do Ministério da Educação, distribuído por inenarráveis documentos que aparentemente são escritos em português e que, virtualmente, talvez falem de educação e de ensino. Recomendo que os interessados visitem os "sites" do Ministério e leiam, com atenção, os documentos teóricos sobre pedagogia, ensino da Língua e da Matemática - e que, se sobreviverem, entrem nos domínios reservados pelas associações de professores dessas matérias.

Um dos exemplos desse temperamento estapafúrdio é a TLEBS, uma experiência do génio de alguns técnicos de linguística, deixados à solta pelos corredores e gabinetes do Ministério, autorizados a tratar a Língua Portuguesa como coisa sua, cometendo dislates na maior impunidade - e recebendo as críticas com uma arrogância que lembrava os velhíssimos lentes quando confrontados com a irrelevância dos seus conhecimentos e o abuso do seu poder.

Quando oiço o primeiro-ministro apresentar o QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacional) e os seus fundos como uma oportunidade para valorizar a educação, temo estarmos a cair num erro crasso o de pensar-se que a educação precisa apenas de mais investimento e de mais dinheiro. Não. O problema não é dinheiro. É também juízo e exigência. Infelizmente, o Ministério da Educação, depois de "meter na ordem os professores", não parece querer meter-se a si mesmo na ordem. A demora a reagir no caso da TLEBS é um exemplo de como o Ministério, que enfrentou com facilidade o corporativismo sindical, tem agora receio de enfrentar o corporativismo ideológico que mina os seus corredores. E esse será o principal obstáculo ao investimento na educação.

in Jornal de Notícias - 22 Janeiro 2007

janeiro 20, 2007


O Olivier Café, em Lisboa, abriu as suas portas para clientes que não gostam de comer mal

São dos melhores finais de tarde de Lisboa – em matéria de paisagem, de luz, se quiserem. Entre o Terreiro do Paço e o mercado da Ribeira, aquela luz merece ser a luz de Lisboa, perdida entre as muitas portas de bares; nada de bares sofisticados, naquela zona, mas antes preparados para sede do final da tarde: os irlandeses (quem mais podia ser?), os ame­ricanos, os das cervejas, os dos vinhos – e os do Cais do Sodré de antigamente. Tenho pena de que a Rua do Alecrim, rua literária por excelência, mas despropositadamente vivida como rua de passagem, baru­lhenta e penosa (ah, subi-la!), não tenha bares des­ses, dependurados sobre a imagem do Tejo, as taba­carias, padarias, cafés e mercearias do Arsenal. Foi aí que Olivier Costa, proprietário do Olivier da Rua do Teixeira – à entrada do Bairro Alto (pelo menos de quem vem de S. Pedro da Alcântara e do Príncipe Real) – abriu o Olivier Café, uma mistura de restau­rante e café, cheio de música e que garantidamente abriu as suas portas para clientela que não gosta de comer mal mas que aprecia refeições, digamos, des­contraídas.

Não é a mesma relação que se encontrava, há uns anos, entre o Tavares "Rico" e o Tavares "Pobre" (hoje em dia não há lugar para conciliação na luta de classes), mas pode considerar-se que estamos diante da procura de nova clientela – a que pode ter passado pelo Olivier da Rua do Teixeira mas cujo BI pode ser mais maneirinho. Em primeiro lugar, tem serviço de "valet parking", o que é bom; estacionar naquele lugar é impraticável a qualquer hora do dia ou da noite, pelo que a possibilidade de entregar o carro à porta, e reavê-lo depois, é boa lembrança (o Tavares também assegura essa facilidade). Em segun­do lugar, a decoração é simpática, bonita, quente, calorosa. Para os conhecedores da zona, o Olivier Café está instalado na casa onde antes funcionava a Cervejaria Alemã – a ementa desceu, no mapa, dos 'eisbein' e 'schwein-axe', para aquilo que é comum designar-se como "ementas mediterrânicas". A "dieta mediterrânica", em geral, não deixa de ser uma mistificação agradável, resultado de inquéritos médicos sobre o que comiam os habi­tantes de Creta (bastante peixe, azeitinho, frutas e legumes). Ora, a "dieta mediterrânica nos restau­rantes" é sobretudo variedade de ingredientes e inspiração em ementas do sul da Europa, e bom peixe fresco. Ainda bem.

Neste caso, começando pelo peixe, o visitante pode encontrar o lombo de cherne 'au beurre blanc', os medalhões de tamboril 'à Ia creme', as (cada vez mais inevitáveis e dispensáveis - mas sou eu a falar) vieiras com molho de açafrão e cheiro de caril, os linguine negro com camarões tigre (fácil, muito fácil, mas popular), o folhado de peixe com camarão e espinafre, e os ravioli de bacalhau e broa com molho de tomate e azeitonas. Nas carnes, há uma proposta valente, a de pernil de porco tostado com mel e alecrim, um avanço gastronómico com o 'magret' de pato com molho de vinho do Porto, o 'foie gras' fresco com maçã caramelizada e puré com trufa, a vitelinha branca com manteiga de ervas e alho confitado, o bife lombo, a manta de porco preto com chutney de manga e vinagre framboesa e o entrecôte de novilho, para duas pessoas, muito saboroso, irlandês. Para duas pessoas, aliás, o Olivier Café recomenda a vitela branca maturada com man­teiga de ervas e alho confitado e massa com molho de parmesão, trufa branca e trufa preta.

Qualquer sociólogo sabe a que faixa etária se dirige esta ementa e mesmo na informalidade das sobre­mesas ('sorbet' de maça verde com vodka, 'crumble' de frutos silvestres com gelado de mel e coulant de chocolate) se detecta essa fragilidade adolescente, servida de champagnes jovens (como o Ruinart).

Sinceramente, as coisas são como são e o Olivier Café é assim exactamente, e não engana ninguém. Digamos que se trata de uma aposta 'pós-teenager', onde aquela música (sim, tem um DJ compreensivo de quinta a sábado) pode, às vezes, ser incomodati­va para um cavalheiro como eu – mas ninguém me manda ter nascido há mais de quarenta anos.

À lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 48
Vinhos brancos: 11
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 20
Champanhes: 6
Aguardentes & Conhaques: 4

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Parque do Camões / Chiado, com serviço de “Valet Parking aos fins-de-semana Levar crianças: não
Área de não-fumadores: Não
Reserva: Imprescindível
Preço médio: 35 euros

OLIVIER CAFÉ
Rua do Alecrim, 23
1200-014 Lisboa
Telefone 213 422 916
Encerra ao domingo

in Revista Notícias Sábado – 20 Janeiro 2007

Esta miséria que se tem visto

1. É bom ter alguém para sacrificar e triturar. Esta semana calhou a vez a Carlos Martins, o jogador do Sporting que a vastíssima multidão de moralistas decretou estar "aca­bado" depois do cartão vermelho no jogo contra o Belenenses. Ape­tece perguntar qual o mal que lhes fez Carlos Martins – mas percebe-se à primeira: a generalidade dos comentadores convertidos ao compêndio scolariano prefere, em vez de jogadores, recrutas, rapa­zes cumpridores. Mas, às vezes, o futebol cumpridor não basta; é pre­ciso procurar as excepções. O que teria acontecido a Eric Cantona em Portugal? Seria cilindrado. Paulo Bento afastá-lo-ia? É prová­vel. Mas os tempos não estão para excepções; Garrincha seria bani­do, Didi escorraçado e até a Do­mingos da Guia, enfim, lhe mostra­riam o caminho da porta. Carlos Martins não é Cantona, nem Didi, nem Garrincha, nem Lucho, nem Deco – claro que não, mas esta se­mana estou do lado dele. Houvesse muitos Carlos Martins, deses­perados por jogar, desesperados por vencer (e com treinador à altura para os compreender), e o cam­peonato não seria esta miséria que se tem visto.

2. Falemos, pois, desta miséria que se tem visto: muitos jogos aplainados pela mesma bitola, sonsos, com pouco brilho. De quem é a culpa? Da depressão causada pelo futebol em si mesmo, e da "para­gem de Inverno". Nada a fazer. Às vezes tenho saudades de gente ca­paz de polémicas, de um tempo em que os treinadores não apareciam naquelas fatiotas ridículas, de gente que arriscava. Lá para Março, Abril. Ao ver a ponta final, a Liga vai me­xer. Tarde de mais, como de costu­me. Até lá, os jogadores caem ao mínimo toque, muito mariquinhas; prolongam uma jogada até ela se tornar insuportável, mastigada, previsível, à procura de uma falta; pela televisão (que mostra sempre um jogo a triplicar) vê-se como o estádio se transformou num teatro permanente a mostrar esta miséria que se tem visto.

3. O mercado de Inverno está à al­tura do futebol português; é bom sinal. Quem não tem dinheiro não tem vícios. Mas há uma coisa que me surpreende sempre – as trans­ferências já feitas por milhões. To­dos os anos, se se lembram, Rui Costa estavam no Benfica e Beto no Real Madrid. Rui Costa veio, passa­dos anos, mas joga pouco; Beto nem passou por Barajas. Mas os seus nomes inflacionaram, até vale­rem muito pouco no mercado. Ve­jam o caso de Ricardo Rocha; a im­prensa noticiou milhões, vários, mas sempre em ordem decrescen­te, até deixar de se falar. Não seria possível proteger o jogador?

4. O Apito Dourado está em segre­do. Mas ao ver certas acusações pairarem nas páginas dos jornais, uma pessoa deveria munir-se de bom-senso e sorrir diante dos 4,2 milhões de euros pagos pela Caixa Geral de Depósitos como indemni­zações a gestores.

5. Eu sou um conservador. Os equipamentos deviam ser sóbrios, sem "degradés" nem mangas "à Sporting", que parecem ter um pro­blema de costura (aliás, o Sporting abusa dos "segundos equipamentos"). Deviam ser coisa sóbria que se entendesse. O F. C. Porto devia ter as riscas da ordem. Por isso, que o Benfica anuncie um equipa­mento alternativo cor-de-rosa, já não me surpreende.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 20 Janeiro 2007

janeiro 15, 2007

A vida sexual das famílias

Pelo que sei pela desenvolvida peça que o “Jornal de Notícias” publicou ontem, e por outras notícias que também apareceram na imprensa, o Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT), está interessado em avaliar a correspondência entre o consumo do álcool e drogas em idade escolar e fenómenos como a violência doméstica. Para isso, distribuiu um inquérito em escolas públicas. O objectivo é conseguir respostas de cerca de 100 mil alunos do 7.º ao 12.º ano e do ensino secundário, em mais de 800 escolas. O que se pretende obter com o inquérito e o que o inquérito pergunta às crianças e adolescentes, constituem coisas inteiramente diferentes. O IDT tem todo o direito de querer saber se existe uma relação directa entre violência doméstica e o consumo de álcool ou drogas, entre os hábitos sexuais dos progenitores e o consumo de “substâncias psicoactivas” (cito de memória); mas não creio que a coisa esteja a ser feita da melhor forma. E explico.

As instituições do Estado, ligadas ao Estado ou a ele de alguma maneira associadas, bem como o próprio Estado em geral, entendem que é seu dever dizer às pessoas qual a melhor forma de vida. Propõem-lhes (aos cidadãos) modos de vida saudável, de baixas calorias e sem colesterol, ou proíbem-nos de fumar e de frequentar praias de nudistas. É uma caricatura, evidentemente, mas para lá caminharemos. Reconheço que o Estado tem esse dever – o de se preocupar; mas não admito que o Estado escolha por mim. Seja como for, este inquérito do IDT constitui uma grave e indelicada intromissão do Estado e de um dos seus braços na vida das famílias e dos indivíduos.

Uma investigadora ligada ao IDT acha que é importante saber se um dos pais “bate ou insulta publicamente o outro, o impede de falar com amigos ou família, impede o acesso ao dinheiro ou obriga a ter relações sexuais” (ou o pai costuma agredir a mãe com murros e pontapés). Para isso, tratou de perguntar aos filhos se isso ocorria em casa. É um método notável.

Houve um pai que protestou, em Setúbal. E uma escola que se recusou a distribuir o inquérito (o director do IDT sublinhou, portanto, que “há um número bastante reduzido de pais a manifestar desagrado”, como se estas coisas tivessem de ser submetidas a sufrágio a posteriori). Generosa e com intuitos pedagógicos, a investigadora diz que “são perguntas que têm de ser feitas”, que o inquérito é anónimo e que isto vai fazer os alunos pensar. Admito que sim.

Mas (ah, o “mas”!), para isso, não basta distribuir o inquérito pedindo aos alunos do 7.º ano de escolaridade que comentem a vida sexual dos pais ou avaliem o seu desempenho social em público. Se a ideia é fazer os alunos “pensar”, talvez existam outros meios; se a ideia é obter informações sobre a vida familiar e sexual dos progenitores para avaliar o uso de drogas, talvez seja conveniente ser mais cuidadoso na forma como se obtêm as informações (até porque, como se sublinha, a violência doméstica é crime). Imagino o cruzamento de informações e de dados que o inquérito iria resultar.

Carl Sagan, num dos seus livros terminais sobre a falta de ciência na vida contemporânea (“The Demon-Haunted World: Science as a Candle in the Dark”) explicava como se chegou ao interessante número que nos mostrava que 82% dos americanos foram “vítimas de abuso sexual” na infância. Através de inquéritos desta natureza em que o inquirido nunca é confrontado com a sua resposta.

Na única vez que vi aquela parvoíce chamada “Morangos com Açúcar”, uma adolescente com ar patético telefonava a um amigo dizendo-lhe mais ou menos isto: “Os meus pais vão divorciar-se. Arranja-me droga.” É uma explicação mais.

in Jornal de Notícias – 15 Janeiro 2007

janeiro 13, 2007

As coisas são geralmente merecidas

1. Era uma alegria – o F.C. Porto defrontava o Atlético e devolvia a rapaziada a Alcân­tara com uma palmada nas costas. Não foi assim. Os de Alcântara regressaram em festa e o Dragão ficou deprimi­do, às voltas com o primeiro mini terramoto verdadeiro desde que Jesualdo Ferreira entrou no balneário para pegar numa equipa sem muita confiança. Neste tempo, o F. C. Porto ganhou confiança - e a jornada da Taça foi obra de confiança em excesso. Não vale a pena argumentar que se tratou de uma equipa de segunda linha; vejam os convo­cados - eles são jogadores do F. C. Porto. Isto acontece aos melhores de todos os campeo­natos e já ocorreu, inclusive, com o próprio F. C. Porto. Eu, por mim, punha-os de castigo, mas já se sabe — eu não sou treinador, e na verdade eles precisam de jogar este fim-de-semana e vem aí o Chelsea. Em resumo: foi bem feito. E sempre deu origem a piadas bem merecidas.

2. Jesualdo defendeu a "para­gem de Inverno". Continuo a dizer que é errada. Uma sema­na de férias compreendia-se, no limite; mas isto? Jogadores regressados em stress, ritmos que se perdem - e, sobretudo, adversários que retomam a pis­ta. Se não se importam, dêem Clausewitz a ler ao treinador: até Maio, a guerra é geral, é permanente, é total, é impiedo­sa e deve ser humilhante para os adversários. Não basta ga­nhar e estar na frente: é preciso que o adversário não tenha tempo de recuperar. Mourinho sabia. Jesualdo sabe, mas é um bonzão de feitio. Não pode.

3. E vem aí o Chelsea com "meio Mourinho", que nunca pareceu admitir bem a hipótese de ter uma equipa construída à semelhança do Real Madrid, com estrelas que não o deixam jogar como gosta. "Meio Mouri­nho" também é uma expressão de que gosto – ele merece. Inclu­sive merece algumas piadas so­bre o seu sucesso incontinente. "Meio Mourinho" sim, porque está com um pé de fora e vai repetir o ar enfastiado com que, há anos, saiu do F. C. Porto pela por­ta lateral. Na época, o conflito foi mal resolvido e continua por esclarecer; mas foi no F. C. Porto que Mourinho conseguiu cons­truir uma equipa de verdade, a jogar como ele gosta, a ganhar o que havia para ganhar. No Chelsea, Abramovich impôs jogado­res e julgou que milhões faziam uma equipa. Enganou-se. Tam­bém ele merece perder. Para já, até ao fim da época perdeu meio Mourinho.

4. O Benfica ganhou o torneio do deserto sem marcar um golo re­gulamentar. Se marcasse um golo que fosse, as primeiras pági­nas da "imprensa desportiva" já lhe chamavam campeão nacional. Parabéns, ainda assim. O Bayern e a Lazio não são o Atléti­co, bem vistas as coisas – e eu não sou injusto. Sou apenas meio hooligan de sofá.

5. A parvoíce da "paragem de Inverno" interrompeu o que não podia ser interrompido. Da­qui até Maio (tirando uns "jogos europeus" e pausas para a se­lecção) o essencial é o campeo­nato , e todos o sabem.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 13 Janeiro 2007

janeiro 08, 2007

A vida grandiosa e a vidinha

Um dos fenómenos mais desconcertantes na "grande política" portuguesa - por oposição aos que, humildemente, se dedicam à "pequena política", ou seja, a tratar dos assuntos concretos e visíveis - é a quantidade de hermeneutas especializados em perscrutar as mais subtis mensagens enviadas pelo primeiro-ministro para o presidente da República e vice-versa. Nesse quase paraíso da "grande política", desde as gravatas do senhor Presidente até ao eventual desalinho na marrafa do senhor primeiro-ministro, tudo serve para prever o alcance de um "facto político". Trata-se de uma especialização exemplar, antes reservada à arquitectura das primeiras páginas do "Expresso", sobretudo na época em que Soares era presidente e Cavaco era primeiro-ministro um jantar aqui, uma frase ali, um gesto desusado, uma ida ao Pulo do Lobo, e teríamos a crise instalada.

O tempo mudou. O terrível centro do eleitorado, que votou Sócrates e não deixou de votar Cavaco, baralhou as contas e a vida dos que sobreviviam graças aos maus humores do presidente e do primeiro-ministro.

A guerrilha entre São Bento e Belém faz parte do resto do provincianismo português e da herança republicana que o dr. Soares não queria deixar morrer. Mário Soares sempre explicou, com meridiana clareza, que não se tratava de coabitação mas de permanente tentativa de assassinato. É esta a razão pela qual o semipresidencialismo oscila entre o sorriso nas escadarias de Belém e a facada nas costas de um dos cavalheiros. Essa vastíssima saudade dos tempos de Soares & Cavaco e do inerente mercado político que criou, levou muitos analistas a glosar vezes sem conta as mensagens de Natal de São Bento e de Belém, não só "à procura de assunto" (que existe) mas também à procura de mistério (que não existe). Ora, não é caso para tanto.

Foi tudo às claras e como se segue. Cavaco vestiu a pele do presidente da República eleito e disse o mais elementar acabaram as desculpas (como tinham acabado na derradeira fase de Guterres e no concubinato de Santana Lopes), vamos tratar de acabar com a campanha eleitoral. O primeiro-ministro disse, salvo erro, coisa semelhante, tendo em conta que o seu papel não pode reduzir-se a anunciar periodicamente o paraíso mas o de permitir que ele seja possível para quem o quiser. Paraíso é uma maneira de dizer, evidentemente.Ou seja, ainda vamos tratar da vidinha. E a vidinha é isto que se sabe. A perspectiva pode não ser a mais agradável para os traficantes de ilusões, mas é a vidinha.

Por muito que custe admitir, tanto Sócrates como Cavaco foram, ainda que em circunstâncias diferentes, eleitos por causa da vidinha e não por saberem de cor "Os Lusíadas". Os portugueses têm uma grande dificuldade em adaptar-se a ela, mas, lamento informar, não há outra coisa na vida pública.

A vida grandiosa, efervescente e cheia de glória, é matéria individual - na vida pública quer-se decência. Foi isso que o Presidente, como era seu dever, veio dizer.

2. Parece que, nos últimos tempos - um ano, salvo seja - setenta ou oitenta ou cem mil almas desertaram do país e foram para o estrangeiro procurar melhor modo de vida. Trata- -se de bastante gente a decidir arriscar a pele e procurar melhor vida noutras paragens. O governo, naturalmente, achará que é uma traição por parte desses cidadãos que se recusam a testemunhar as luminosas etapas do crescimento português e as grandes reformas estruturais. O próprio eng.º João Cravinho já partiu. Felicitemo-lo.

in Jornal de Notícias - 8 Janeiro 2007

janeiro 06, 2007

Cataplana e volta


A Cataplana e Companhia, em Lisboa, é um restaurante cuja especialidade é saborosa e suculenta, em Campo de Ourique. Lá voltaremos, sem remorso ou pecados para vingar.

A “ideologia gastronómica”, que é a última moda entre desiludidos de todas as tendências, não conhece barreiras políticas ou fronteiras ideológicas. Da esquerda à direita, ou ao contrário, a “cultura gastronómica” ameaça transformar-se num regime totalitário com os seus dogmas, os seus princípios, a sua tradição e as suas punições. Eu tenho saudades do apetite sem preconceitos, daquele apetite glorioso por abundância à mesa do restaurante.

Lutar pelo prazer alimentar passou a ser um combate sem inimigos ou adversários – os inimigos são invisíveis ou indetectáveis, os adversários foram engolidos pelo senso comum. O prazer força-se a estar presente em todos os retratos da sociedade – não há palavra que mais se evoque para qualquer actividade humana. A ideia de que tudo “concede prazer”, “provoca prazer”, “oferece prazer”, é uma das mais divulgadas na gastronomia. O “prazer”, de tão falado, deixou de ser procurado. Mas com uma condição perversa e ribombante: a da punição alimentar, uma condição de prestígio social e, portanto, também submetida ao redondel do prazer: prazer em castigar o corpo, prazer em prolongar a vida do corpo, prazer em gozar o corpo, torná-lo eternamente jovem, submetê-lo a dietas espampanantes de que as revistas publicam, frequentemente, notícias sobre os sofrimentos alimentares de empresários, cantores da moda, actrizes e políticos governamentais ou da oposição – e sobre o prazer que isso concede aos seus intérpretes. Nada disso nos comoveu. Fomos à cataplana!

Ciente destes princípios teóricos, e esquecendo-os à primeira tentação, o grupo atirou-se à cataplana de bacalhau, uma caldeirada aprimorada e suculenta, servida no recipiente certo, a cataplana acobreada: estava de rebimba o malho – um caldinho espesso onde navegavam lombos de bacalhau, batata farinhenta, pimentos gordinhos, camarões saltitantes, amêijoas solitárias e obesas, rodelas de cebola. Foi uma boa experiência para o estômago, recalcitrante que ele andava, e enjoado de “sugestões natalícias”. Outras cataplanas eram servidas em redor: a de tamboril, com arroz, massa ou batata à escolha, para acompanhar o peixe e umas gambas que lhe faziam companhia; a de garoupa; a “real”, com caudas de lagosta, amêijoas, camarão tigre ameaçador, gambas e cogumelos; e as mais tradicionais, como a de carne de porco, sequinha e fritinha, com amêijoa, gambas e batata frita; ou a de coelho, uma experiência que recomendo, com couve lombarda e feijão branco, entre outras contribuições. Pessoalmente, a de bacalhau pareceu-me francamente boa.

O Cataplana e Companhia (o antigo Tico-Tico), na vetusta Ferreira Borges, em Campo de Ourique, oferece ainda cabrito à padeiro, produtos do mar frescos (chocos com e sem tinta, polvo à lagareiro, linguados, peixe ao sal e no pão, pescada para cozer ou para fritar – muito saborosa –, douradas escaladas, garoupa, robalo – incluindo a versão “à lagareiro” – e vários mariscos servidos de forma tradicional, além das várias cabeças de peixe, um petisco para apreciadores), e carnes supimpas: os medalhões de vitela, a posta mirandesa, o entrecosto grelhado, a picanha fatiada, os secretos de porco preto (essa invenção demolidora que invadiu todos os restaurantes), os medalhões de porco ibérico e um arroz de coelho que se tornou uma das especialidades da casa.

Tudo ali é suculento; vem, daquela cozinha, um ar saudável e bem guarnecido, ideal para provocar digestões saborosas, ligeiramente apopléticas, se tivermos em conta a carta de vinhos equilibrada e a variedade de digestivos que não envergonham ninguém, a não ser a nossa cobiça. Voltarei sempre (convém reservar à hora de almoço para poder ficar na salinha de cima; caso contrário há uma sala inferior), sem remorso e sem pecados para vingar – buscando apenas a cataplana real ou a de bacalhau, as carnes abundantes e um serviço muito simpático, honrado, sem ademanes que ficam mal. Convém reservar à hora de almoço para poder ficar na salinha de cima; caso contrário há uma sala inferior.

À lupa
Carta de vinhos: * * *
Carta de digestivos: * * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço à mesa: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: **
Ruído da sala: **
Ar condicionado: ***

Garrafeira
Vinhos tintos: 83
Vinhos brancos: 32
Portos & Madeiras: 10
Uísques: 32
Aguardentes & Conhaques: 30

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: difícil
Levar crianças: não
Área de não-fumadores: não
Reserva: muito aconselhável ao almoço
Preço médio: 30 euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

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in Revista Notícias Sábado - 6 Janeiro 2007

Eles passam-se frequentemente

1. O chamado mercado de In­verno reedita as romarias de contratações por confirmar. Não se pode pedir mais: quem não tem dinheiro não pode manter vícios e o foguetório de contratações falhadas é sem­pre muito mais barato. Convi­nha que nos entendêssemos: no futebol português o dinhei­ro não abunda (ao contrário do parlapié) e, para os devidos efeitos, ainda bem. Resta a propaganda.

2. Houve um mini-debate so­bre a paragem de Natal e Ano Novo; de facto, a paragem é prejudicial para toda a gente, a começar pelo próprio futebol, que tem dois arranques sucessivos – um, até Outubro, para afinar a pontaria; outro até ao Carnaval para voltar a afiná-la. Só se compreenderia este festi­val de paragens absurdas se nevasse abundantemente nos estádios (como no Leste euro­peu), ou se todos os jogadores multiplicassem a Missa do Galo durante a quadra. Como isso não acontece, pelo menos vêem-se os jogos da Liga inglesa durante "a quadra" – o que constitui uma vantagem, vá lá.

3. Lamento confirmar o que ti­nha aqui escrito: o principal prejudicado pelo "caso Nuno Assis" foi o próprio jogador. O Benfica conduziu-o a esta si­tuação: desacreditou-o publi­camente, servindo-se dele para os seus jogos de política; não impediu a suspensão que era inevitável. E a Federação devia ser também interrogada pelo pre­juízo causado ao jogador e por se ter feito cúmplice disto tudo.

4. O presidente do Benfica acha que há uma conspiração socialis­ta contra o clube; parece que a de­tenção de Vale e Azevedo ocorreu durante um governo do PS (se bem que um dos juízes fosse benfiquista). Infelizmente, para contrariar, Sócrates é benfiquista como Guterres era benfiquista. Acresce dizer que Marques Mendes é benfiquista e Jerónimo de Sousa tam­bém. Mais: Ribeiro e Castro é benfiquista e Francisco Louçã tam­bém. O regime é benfiquista, tal como o Benfica já foi "o clube do regime". De qualquer modo, o anterior presidente da agremiação, para dar razão a esta guerra, foi em tempos apresentar-se a um co­mício do PSD jurando fidelidade a Durão Barroso em nome do Benfi­ca. Eles passam-se frequente­mente, lá pela Luz.

5. Uma lição, "o caso José Veiga". Na altura escrevi aqui que o perso­nagem não me era simpático e que a sua gramática era defeituo­sa – mas que nada permitia o ar­raial televisivo sobre o arresto dos seus bens nem o julgamento na praça pública pelos moralistas do costume. E chamei a atenção para o facto de o caso estar mal explica­do. Continua, aliás, mal explicado – mas há contornos grotescos a desenharem-se à volta das saídas e entradas de João Vieira Pinto.

6. Continua a minha campanha pessoal a propósito de Diego, o que veio do Brasil, estagiou no F. C. Porto e, graças a Co Adriaanse, rumou para Bremen: foi conside­rado o jogador mais decisivo da equipa. Será difícil esquecer o "molho holandês" – continuo a dizer que Adriaanse deveria in­demnizar os adeptos do F. C. Por­to, que agora se vão contentar com o Diego que vem do Penafiel. Oxalá compense.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 6 Janeiro 2007

janeiro 05, 2007

Da série "A Noite, o que é?" [31 - 40]

A NOITE, O QUE É? 31.
A meio da noite, nem todas as perguntas são inquietas. Há umas mais do que outras, mas eu pergunto invariavelmente pelo que mudou a minha vida — uma varanda sobre a tarde, sobre o mundo, sobre a relva do mundo, as árvores magníficas, o riso, cheiro do café, os livros, a estrada dos coqueiros, a cor do mar. O que tranquiliza a noite, depois, são os sonhos em que encontro as coisas que amo.

A NOITE, O QUE É? 32.
As noites duram meses, pequena medida para a vida toda que nos aguarda. Por vezes, um relâmpago no meio do Inverno é tudo o que lembramos desse tempo de espera; mas há mais: duas frases, um mapa estendido na mesa, promessas. O que brilha mais na noite nunca tem nome certo, nessas alturas pouco importa o resto, tudo o resto.

A NOITE, O QUE É? 33.
Abrir um caderno {The night writing} e escrever pela noite fora, enquanto não chega o Inverno. Nunca se escreve tudo, nunca se chega ao fim. Agora, que olho os teus olhos, sei como se começa a escrever pela noite fora, como se ouvem os ruídos, como se ouve a respiração. Ao recuperá-la, não se perde de novo, não se adormece sem ouvir essa voz a que sempre se pertenceu. A noite é isto, afinal, chegar e partir, enfrentar as horas, esperar.

A NOITE, O QUE É? 34.
Quando eu chegar, alguma coisa chegou antes de mim. Visitarei a relva da grande tarde, a sombra das árvores, a mesa das refeições. Serei aguardado enquanto durar o meu coração. Entretanto, oiço a voz como uma recordação, o último gesto dos aeroportos.

A NOITE, O QUE É? 35.
Não há nenhum nome em nenhum lado do céu. Três estrelas que ficam deitadas, três estrelas que se erguem no escuro, consoante o hemisfério. Muitas vezes, a tarefa do astrónomo amador resume-se a ver o mundo de um lado e do outro, a vigiar coincidências e amostras. Mas acaba por regressar sempre àquela posição ideal: sentado numa varanda, imaginando o mais suave dos ventos. A isto chama-se promessa, também; dormir quando não há mais nada a dizer, só nessa altura.

A NOITE, O QUE É? 36.
Encho a vida inteira de recados. Metade dela esperei por isto, haver uma razão qualquer para mudá-la. Um dia disse: «Traz-me de volta à terra.» Não sabia que tinha de procurá-la onde estavam a simplicidade, as estradas onde nos perdemos, o aroma do café, o grande bosque junto do mar, os ruídos dos animais a meio da noite. Quando a noite vem, fria, deste lado do mar, fico sem refúgios, sem música, sem nome. Até que um nome ou o teu rasto aparece, iluminando tudo, juntando-se às estrelas que costumamos descrever, alinhadas, ora deitadas ora erguidas como uma promessa.

A NOITE, O QUE É? 37.
Enquanto escrevo, reescrevo quase tudo. Sem isso não escreveria, sem essa luz, essa escada para a beira do mar. Já não posso escrever sozinho, sem ouvir a voz que atravessa as ondas, o riso que vem do meio das árvores, do meio da noite.

A NOITE, O QUE É? 38.
Por vezes, mais uma memória da chuva dentro das paredes da casa, luz, conversas, silêncios, risos, hábitos. As coisas vêm ter connosco numa língua estranha, delirante, quando não conseguimos dormir por algum motivo. Volto atrás. Volto sempre atrás, nestes dias, reconstituindo frases e retratos e esse último instante de despedidas. A noite regressa. Duas noites, dois mares.

A NOITE, O QUE É? 39.
Nunca mais dormi. Nunca mais a noite foi noite nem o dia lhe trouxe mais luz.

A NOITE, O QUE É? 40.
Por mais que eu desvie os olhos, a noite aproxima-se, vem, parte. É um problema de fusos horários, de música, de amnésia ou de memória. Isto só acontece num certo momento, como um raio verde, um fragmento. Durante a noite enumeram-se coisas sem sentido. Houve uma manhã em que fomos mudar a vida inteira, entrando pelas repartições, tomando decisões, isso deve acontecer sempre de manhã; a noite reserva-se para isto mesmo, imagens que ficam presas às pontas dos dedos. Por mais que eu desvie os olhos, é isso que vejo, evito dormir para não deixar de ver.

Textos publicados originalmente no Blog "Aviz"

Nota: Anteriores "A NOITE, O QUE É?": 1 a 10, 11 a 20, 21 a 30

janeiro 02, 2007

Viajar para combater a desilusão

Quem leu Na Patagónia, de Bruce Chatwin, e ficou indiferente? Não falo de literatura – falo da viagem, da sensação de perda absoluta ao atravessar o estreito de Magalhães, o pórtico da «terra incógnita», mais até do que o da Terra do Fogo. Bruce Chatwin abandonou tudo para se dedicar à escrita – e à viagem. Os seus livros são o testemunho dessa vontade inesgotável de narrar, de contar, de desenhar as aventuras da descoberta. De alguma maneira, Chatwin foi um dos últimos românticos – e sabia que os caminhos do coração conheciam os caminhos da perdição. Por isso, a Patagónia que nos legou é o retrato mais cru da Patagónia vista por olhos europeus, registada nos seus cadernos Moleskine. Mas isso é apenas literatura.

De alguma maneira, a sul do estreito de Magalhães fica um território sobre o qual são inesgotáveis as coisas para dizer. É antes de chegar lá que fica a viagem fantástica através da Patagónia e dos seus desertos, das escarpas andinas, dos lagos que enfrentam o gelo azulado das colinas, das cidades erguidas nos sopés das mon­tanhas, da estepe repousante que lembra.

A terra pura e as ventanias que ar­rastam a poeira da superfície. Estepe, vegetação rasteira, os Andes, o deserto cor­tado pelo vento — e as histórias mantidas pela tradição tehuelche, a dos índios que habitavam uma parte do deserto argenti­no -, tal é a paisagem que recordo da Patagónia. É o cenário para todas as alucinações, se lhes juntarmos a fantasia dos escritores que a percorreram em busca do desconhecido. Facilmente imagino his­tórias sobre estes lugares: descubro sem­pre alguém que se refugia neste silêncio, defendendo-se da sua própria vida.

Há, hoje em dia, nas margens do tu­rismo tradicional, hipóteses de tomar o caminho da aventura. Bariloche e Perito Moreno (El Calafate) são os epicentros dessa romagem pela Patagónia oficial: re­comendo que se tomem os atalhos, aque­les que chegam a El Bolsón, os que atra­vessam os lagos entre o Chile e a Ar­gentina, as estradas secundárias que le­vam a aldeias nos picos das montanhas, os caminhos de terra que transportam a memória desses passeantes e peregrinos solitários que, enganados pela miragem dos «mares do Sul» e dos paraísos meri­dionais, descobriram a neve e o calor da Patagónia - e o seu silêncio.

Num mundo cada vez mais ocupado pelo ruído das ofertas, Mempo Girardinelli, escritor argentino do Chaco (esse triângulo entre Corrientes, as estradas para Buenos Aires e o Paraguai), escreveu um roteiro de viagem entre a sua cidade de Resistência (coração do Chaco que as­sistiu às guerras de generais enlouquecidos, e que permanece abandonado a caminho do Norte, dos alcantilados que levam à Bolívia) e a Patagónia derradeira, fria; ele assinala que os lugares têm uma respiração ousada consoante se procura a felicidade ou se desespera de a encontrar. Conheci, lá, no Sul, personagens cativantes que ti­nham abandonado tudo para se fixar nos desertos daquele hemisfério. Girardinelli (autor de um romance policial publicado entre nós), ensina-nos que viajar é com­bater a desilusão e enfrentar os nossos demónios esquecidos.

Eu, que imaginei várias vezes a figura romântica de Charles Darwin à proa do HMS Beagle, navegan­do nos mares do Sul, cruzando as suas es­pumas negras em busca de uma ordem para o universo (de onde resultou um dos mais fulgurantes exemplos de aventura da curiosidade humana, que é A Origem dos Espécies), imagino-o também encarando o território da terra dos gigantes (os patagones) como um demónio da nossa civilização. E, se nunca mais fui o mesmo depois de ter visitado esta parte do mun­do, isso deve-se ao facto de ter aí aban­donado os meus próprios demónios e o medo da desilusão. Ao atravessar o estrei­to de Magalhães, fui obrigado a reconhe­cer que a terra não tinha barreiras.

In Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Janeiro 2007

janeiro 01, 2007

O curioso mundo do futebol

Maria José Morgado, que está agora encarregada de dirigir as investigações sobre corrupção no futebol, diz que ninguém lhe pede coisas como "ir à Lua ou resolver os problemas do país". Está enganada. É precisamente isso que se lhe pede. É nessas funções que o país julga que a procuradora está investida. Se perguntarmos a qualquer leitor médio da chamada imprensa desportiva, as incumbências e as obrigações da magistrada são ainda maiores. Salvo erro, durante larguíssimos meses e anos, em entrevistas, declarações, mensagens subtis, o nome de Maria José Morgado esteve sempre associado a um discurso de competência para abordar o fenómeno da corrupção - e muitos desses caminhos levavam ao curioso mundo do futebol.

Escrevo "curioso mundo do futebol" mas podia acrescentar mais. Quase toda a gente se sente abrangida por um certo grau de inimputabilidade quando se trata de falar de futebol. Não falo de foras-de-jogo, de penaltis ou de golos mal assinalados. Falo de uma das mais abjectas expressões que esse "curioso mundo do futebol" produziu o famoso "clima de suspeição". Ora, o "clima de suspeição" é uma instituição tão sagrada como o próprio futebol e foi instaurado tanto por gente aparentemente responsável como Santana Lopes, que criou o fenómeno dos "árbitros de Canal Caveira", como por qualquer um dos oradores do programa "Bancada Central" da TSF, esse centro difusor de sapiência futebolística nacional. No futebol pode dizer-se tudo - é apenas futebol, é apenas bola. O problema é que não é apenas bola - é dinheiro, é cumplicidade entre futebol e política, é braço dado entre grande construção e futebol, é dinheiro a rodos - no fundo.

Dos anos setenta, quando o futebol se resumia a bola e influência (ou seja, a prestígio e humilhação), passou-se para o mundo dos negócios, dos investimentos vultosos e da circulação global do dinheiro. Nada que a política e os seus personagens não tenham acompanhado.

Maria José Morgado está, por isso, errada, quando diz que não se lhe pede para ir à Lua ou de resolver os problemas do país. Pede-se-lhe mais que redima aquilo que não tem praticamente redenção, o "curioso mundo do futebol". Uma coisa é suscitar a suspeita (coisa em que somos férteis, dada a nossa tradição de mexerico e de pequena maldade) da corrupção; outra coisa é estabelecer a possibilidade de punir sem suspeita e sem dúvidas na opinião pública. À partida, Maria José Morgado tem duas desvantagens notórias: a sua nomeação foi festejada por todos; por outro lado, vestiu, antes desta nomeação, a farda de justiceira, de quem se espera resultados rápidos, visíveis e sem contradição. Ora, neste universo (do futebol como da política) não basta alimentar as novelas da imprensa e as inimputabilidades de quem pede justiceiros na via pública. É preciso muito mais.

2. O antigo procurador-geral da República tenta, num artigo do "Público", desvalorizar e lançar suspeitas sobre as afirmações de Sara Pina, sua antiga assessora. O que Sara Pina disse foi claro: que o senhor procurador sabia o que se passava e tinha conhecimento dos contactos com os jornalistas. Não se imaginava de outra maneira. O que foi difícil de acreditar, na altura, foi a forma medíocre como o Procurador deixou cair Sara Pina, como se não lhe devesse nenhuma solidariedade e deixando que a suspeita caísse, inteira, sobre a jornalista. Porquê mais isto agora?, pergunta Souto Moura. Porque a história não é a preto e branco.

3. Querem um 2007 melhor? Façam-no melhor. A partir de hoje.

in Jornal de Notícias - 1 Janeiro 2007