fevereiro 17, 2005

E é assim

Agora, que faltam três dias para votar, já não há tempo para mais cartadas. Já não havia, bem vistas as coisas, há um mês e meio. Dos últimos tempos resulta apenas que Pedro Santana Lopes é um personagem trágico. Ele gosta de histórias assim; mas, ao contrário do que o próprio julga, ou sempre julgou, já estava escrito nas estrelas que seria um personagem trágico.

Não sei que resultado terá no domingo. É imprevisível o grau da derrota - mas nada lhe retira essa aura de tragédia, de homem fatigado diante de todos os adversários (e que são numerosos, a começar dentro da sua própria casa), agastado, vitimizado, decretando luto pela irmã Lúcia, receando conspirações, sofrendo de gripe. Mas nada desse grau de tragédia retira uma linha ao que se disse de Santana Lopes.

É verdade que tudo isto terá um reverso se José Sócrates for primeiro-ministro, será um primeiro-ministro com vontade de ser competente, chato, monocórdico e politicamente correcto. Provavelmente, reabilitará os dias sem carros e será cercado por candidatos a todos os cargos disponíveis. Não me assustam nos socialistas as suas opiniões sobre política económica. Por um lado, terão de gerir o controlo do défice, a diminuta margem que existe para o investimento público, a necessidade absoluta de reformar o partido do Estado. Neste domínio, tanto Sócrates como Santana Lopes insistiram em propostas eleitorais que não podem ser cumpridas - elas iriam custar demasiado dinheiro ao Estado. E se alguma coisa precisa de ser feita, nessa matéria, é reabilitar o suposto bom nome do Estado, conferindo à palavra "decência" algum sentido em Língua Portuguesa.

O que me pode assustar em qualquer novo ou velho poder é o que ele possa pensar sobre a vida, propriamente dita. O que pensam sobre a educação e a cultura, sobre o papel do Estado na vida dos cidadãos. Se acham que o Estado deve fazer escolhas que apenas competem aos cidadãos. Se o Estado deve ser poupado a críticas. Nesse capítulo, há bastantes dúvidas José Sócrates teve o cuidado de dizer poucas coisas de Esquerda durante a campanha eleitoral.

Assim, ele não terá da Esquerda a mesma solidariedade que o PP manifestou e manteve em relação ao PSD. O Bloco de Esquerda assumir-se-á como o arsenal que disparará em todas as direcções, confirmando a sua vocação de partido religioso que tem opinião sobre tudo e que tenta transformar toda a nossa vida numa questão política.

O BE é também um partido religioso porque vigia cada ocorrência da vida, cada sinal, cada dúvida e cada hesitação. Sente necessidade de explicar todas elas, de lhes dar um sentido, uma lógica a que só é possível aceder se se pertencer ao quadro de crentes ou iluminados para quem os outros são sempre descrentes, os que ainda não chegaram lá, os que não têm a clarividência dos seus sacerdotes nem o seu optimismo histórico.

De certa maneira, é fácil concordar com o Bloco. Nada lhe é inexplicável, nada lhe escapa, nenhuma inflexão, nenhuma dúvida. Com o seu discurso afirmativo e optimista, o Bloco reafirma a existência de uma dimensão religiosa na política. E as práticas religiosas na política foram sempre, salvo excepções muito raras, o terreno dos ortodoxos e das pessoas que só conhecem a sua linguagem e que vêem nos adversários apenas gente perigosa e sem a sua aura promissora.

P.S. Uma coisa preocupante, sim a reacção de Sócrates ao regresso de Marcelo Rebelo de Sousa através da RTP. Pareceu-me ouvir ali os mesmos argumentos de Rui Gomes da Silva. Cuidado, José Sócrates. Você não merece repetir aquela figurinha.

Jornal de Notícias, 17 de Fevereiro de 2005

fevereiro 10, 2005

Resignação

Está quase tudo dito sobre as eleições. Elas vêm provar que a vida política, tal como a vida em geral, é feita de ciclos históricos. Muitas vezes, de paranóias colectivas, de ilusões gerais. De outras, como acontece na história recente portuguesa, de desilusões gerais. Santana Lopes é a última grande descoberta em matéria de desilusões gerais.

O "pântano" de Guterres prolonga-se como uma maldição e a essa ameaça tem o peso de uma profecia. Há um óbvio exagero nisso tudo - Portugal não é um país brilhante, mas também não é, propriamente, uma nódoa na nossa existência. Relativizar e comparar são, muitas vezes, excelentes tábuas de salvação para o nosso ânimo - e a verdade é que não existimos como uma ilha de deprimidos no meio de gente cheia de euforia e feliz por participar no espectáculo do crescimento; a verdade é que o Mundo não anda bem. As elites portuguesas gostam de amplificar o ruído das nossas misérias como uma desculpa para a sua inactividade e para a sua própria miséria intelectual. O recurso ao discurso da "choldra" e do "pântano", tratando os outros como "essa gente", tem uma grande popularidade desde o século XIX português. "Essa gente" era uma expressão que o dr. Salazar usaria sem grande esforço. Não duvido que a usasse - "essa gente", que ocupava os parlamentos e negociava governos de seis meses, administrações municipais e direcções-gerais, nunca desapareceu da face do país.

Guterres descobriu o pântano tarde de mais, quando tinha já sido absorvido e fazia parte dele. Pessoalmente, estou convencido de que os anos de Guterres foram, em boa parte, anos perdidos. Houve um sinal político dessa perdição um célebre comício em Esposende, no final do Verão, onde se esperava que o então primeiro-ministro assumisse o seu governo: o pântano estava ali mesmo (nas nomeações partidárias, na crise do queijo Limiano, na Fundação para a Segurança Rodoviária - lembram-se?). O pântano era mais visível, estava ali. Nessa altura, Guterres preferiu contemporizar. Não se pode contemporizar com o pântano. Infelizmente, a nossa memória tem espaços vazios. Isso nota-se bastante em campanha eleitoral.

Guterres desapareceu de cena e Durão Barroso seguiu-lhe os passos. Para o seu currículo, Bruxelas é uma glória; para os que lhe tinham confiado o seu voto, foi uma deserção, uma fuga e uma derrota. Pior uma deserção seguida da entrega do poder ao inimigo interno, Santana Lopes - a decisão mais fácil, aquela que lhe facilitaria a retirada rápida. Não bastou a Barroso fazer isso. Ele acrescentou-lhe o impensável: entregou a sua própria gente ao poder de um homem que não tinha apetência para um cargo que exigia sacrifícios pessoais, empenhamento e uma biografia. Santana Lopes revelou continuar a ser aquilo que sempre foi: um hábil manobrador no fio da navalha, fascinado pelo poder mais do que pelo exercício do poder (o que é mau, porque o exercício do poder é uma actividade nobre e prestigiante), mobilizador de afectos imediatos, mas incapaz de pensar mais longe.

Em determinadas circunstâncias históricas, não há nada mais prático do que a teoria. Não se vislumbra nenhuma em Santana Lopes. Apenas imediatismos e habilidades. O seu staff vai desenterrar artigos de jornal para descortinar uma incoerência de Sócrates ou um desvario de Sampaio. O problema é que o eleitorado, que não é parvo, até essas incoerências prefere.

Não. Ele não tem jeito e não tem emenda. E, infelizmente, só muito depois de Fevereiro a Direita poderá reorganizar-se e pagar pelas asneiras de dois dos seus líderes, Santana e Barroso.

Até lá, teremos de confiar em que José Sócrates tenha as condições necessárias para exercer o cargo com a dignidade que todos nós merecemos. Isto anda uma miséria. Resignemo-nos.

Jornal de Notícias, 10 de Fevereiro de 2005

fevereiro 03, 2005

A vida privada

Felizmente, os portugueses são gente de moral regular - ou seja, não se interessam pelo assunto. Admitem que a moral (seus vícios e virtudes) é matéria do foro privado e discutem-na apenas em foro privado, no recato dos lares e nas conversas de ocasião. Essa enorme vantagem não se pode perder. Discutir em público aquilo que diz respeito à intimidade de cada um é meio caminho para perder a razão.

A vida privada dos políticos não tem sido muito discutida, e isso é outra vantagem. De cada vez que alguém pretende ser juiz nessa matéria, tem levado resposta, como aconteceu com Sá Carneiro, que foi alvo de uma campanha de pequenas maldades e rumores moralistas não só obteve uma maioria absoluta como a sua privada passou, na opinião pública, a ser um gesto nobre de um homem livre que não escondeu os seus afectos.

Os moralistas têm vida curta entre nós; não só são gente de mau aspecto como se trata de pessoas cheias de inveja. Os portugueses são sarcásticos, quando se trata de moral - de Gil Vicente a Eça, há uma larga tradição de textos sobre o assunto, mostrando que a moral é matéria para consumo estritamente privado. Na verdade, padres, juízes, beatas envilecidas, fuinhas de toda a espécie, são pouco populares entre nós. É uma vantagem enorme que temos de agradecer ao destino. As pessoas sabem que há uma vida privada e que há uma vida pública; e sabem que, desde que a vida privada não assalte a vida pública, podem dormir descansadas. Os portugueses não apenas sabem isso, como também, porque são manhosos, percebem que a tentativa de moralizar não lhes vai ser útil nem agradável. Os portugueses gostam de desafiar a moral. E apreciam os gestos de gente livre e que não admite interferências do juízo moral dominante.

Francisco Louçã sabe que cometeu um deslize imperdoável por ter sugerido a suposta homossexualidade de Paulo Portas - e confessou que o cometeu, não só por ter sugerido isso como, também, por ter sido inacreditavelmente piroso na sua declaração. A verdade é que ninguém tem nada com isso. Pedro Santana Lopes talvez venha a aprender que cometeu um deslize imperdoável por ter sugerido uma suposta homossexualidade de José Sócrates. A verdade é que ninguém tem nada a ver com o assunto. As pessoas sabem. Os eleitores sabem. Têm um registo mental de várias histórias e de vários casos - de treinadores de futebol a políticos e outras figuras públicas. E raramente condenaram essas opções estritamente privadas, desde que elas não interferissem com a esfera pública - ou seja, com o exercício das suas funções ou com o cumprimento da lei geral. Pisar essa linha de fronteira, admitir que os comportamentos privados são escrutináveis publicamente e que há uma ideia de rectidão em matéria moral ou sexual, seria uma catástrofe para a vida pública portuguesa.

O que os portugueses não gostam é que, em matéria de costumes, se apregoe uma coisa e se faça outra (como acontecia nos textos de Gil Vicente). As insinuações morais são sempre ridículas, cretinas e impopulares.

Santana Lopes defende-se e diz que a sua vida é pública e conhecida. É verdade. Infelizmente para ele. Durante anos mostrou-a nas páginas das revistas, num rodopio quase infernal e esquizofrénico. Mas há figuras públicas que, com toda a legitimidade e com todo o direito, se recusam a abrir as portas de suas casas ao escrutínio e à vigilância da moral. Têm todo o direito. A vida privada não nos interessa realmente. Gostamos de imaginá-la, porque somos perversos, maldosos e humanos. Até admito que gostamos de conhecê-la. Mas achamos que, não ultrapassando a lei geral, não deve prejudicar a vida pública de ninguém.

E eis como Santana Lopes entregou mais uma parte da vitória ao PS.

Jornal de Notícias, 3 de Fevereiro de 2005