Antes das férias
No tempo de Ramalho Ortigão, o mundo era de uma grandeza considerável – por isso saboreamos esse livro suculento que é Praias de Portugal, Guia do Banhista e do Viajante, que faz a travessia do século XIX para o XX com uma certa nostalgia. Não do mundo em si (não nos entra na cabeça a ideia de veranear em Vila Praia de Âncora de fato às riscas e cobertor pelos ombros em busca de iodo, nem entraremos nas águas de Algés), mas do olhar que ainda era possível — trata-se da descoberta do que já não é novidade. Ou seja: quando Ramalho Ortigão propõe que planeemos as férias com uma estada prolongada na praia de Paço de Arcos, onde «as águas são saudáveis», pensamos nesse tempo em que havia território para descobrir.
Depois, o mundo mudou bastante – o fim-de-semana inglês foi uma conquista admirável, tal como as férias pagas e os hotéis da Costa Brava. Não é sarcasmo. É assim mesmo: do tempo em que a viagem era uma aventura prodigiosa, perigosa e reservada a eleitos ou a punidos (como no nosso século XVI) até ao tempo em que planeamos um «fim-de-semana prolongado» vai uma distância profunda que não se mede pela conquista do tempo, mas também pela vitória sobre a escravidão, o trabalho e a resignação.
Garrett, tirando ser um homem soturno e empertigado, teve o seu momento de glória ao invocar Xavier de Maistre no princípio das Viagens na Minha Terra: a verdadeira viagem, a mais intensa, era aquela que se podia fazer à roda do nosso quarto, desde que o espírito estivesse preparado. Nunca acreditei nisso. Faltava o cheiro, a poeira do céu, o silêncio dos horizontes. Mas não interessa.
Nesta altura do ano, penso sempre nas cordilheiras dos Andes, mas creio ser uma mania pessoal. Atravessei-as com a sensação de estar a pisar terreno proibido à minha imaginação; a primeira vez que tomei o caminho de um pequeno glaciar andino para o ultrapassar e chegar «ao outro lado», suspeitei que ia anular anos e anos de suspeita e de sonho – que me mantiveram desperto para a fantasia de chegar lá. Soube sempre que, ao chegar à Islândia pela primeira vez, iria perder-se parte substancial das centenas de páginas de Loti e de Júlio Veme que desde a adolescência me tinham fascinado.
Seja como for, penso sempre que «talvez seja este ano» que atravesso definitivamente as cordilheiras (agora, a minha fantasia é começar no Peru). Às vezes, limito-me a comprar um livro sobre os Andes, a ver um filme sobre os Andes – para poder, pacificamente, adiar a viagem. Em vez disso, prometi aos meus filhos levá-los a conhecer o México, se bem que o meu México nunca será – por agora – o deles: viagens sem horários, poisos indeterminados em restaurantes de beira de estrada, dormir em pousadas de aldeia, ouvir a música dos mariachis nas praças, escutar o som das florestas junto dos desfiladeiros onde se dizia que voavam os pássaros mais antigos e o puma se esconde, visitar a casa de Frida Kahlo, as catedrais de Oaxaca e de Mérida, procurar uma praia tranquila no corredor do Pacífico entre Chiapas e Oaxaca, entrar na Guatemala, rondar o Belize.
Sinceramente, estou hoje mais convencido do que nunca de que Ramalho Ortigão tinha razão, contra o ar soturno e embevecido de Garrett: a viagem é um elemento de perdição e de conhecimento. Talvez por isso eu queira que os meus filhos me acompanhem na travessia do México, e comam tamales, e bebam a primeira cerveja, e aprendam o ritmo daquela música estranha que se ouve à beira das estradas. Podem levar o Gameboy e o leitor de MP3. Podem até achar kitsch o kitsch das catedrais de Oaxaca. Mas sabem que existe um mundo que não acaba deste lado do mundo.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Fevereiro 2007
Depois, o mundo mudou bastante – o fim-de-semana inglês foi uma conquista admirável, tal como as férias pagas e os hotéis da Costa Brava. Não é sarcasmo. É assim mesmo: do tempo em que a viagem era uma aventura prodigiosa, perigosa e reservada a eleitos ou a punidos (como no nosso século XVI) até ao tempo em que planeamos um «fim-de-semana prolongado» vai uma distância profunda que não se mede pela conquista do tempo, mas também pela vitória sobre a escravidão, o trabalho e a resignação.
Garrett, tirando ser um homem soturno e empertigado, teve o seu momento de glória ao invocar Xavier de Maistre no princípio das Viagens na Minha Terra: a verdadeira viagem, a mais intensa, era aquela que se podia fazer à roda do nosso quarto, desde que o espírito estivesse preparado. Nunca acreditei nisso. Faltava o cheiro, a poeira do céu, o silêncio dos horizontes. Mas não interessa.
Nesta altura do ano, penso sempre nas cordilheiras dos Andes, mas creio ser uma mania pessoal. Atravessei-as com a sensação de estar a pisar terreno proibido à minha imaginação; a primeira vez que tomei o caminho de um pequeno glaciar andino para o ultrapassar e chegar «ao outro lado», suspeitei que ia anular anos e anos de suspeita e de sonho – que me mantiveram desperto para a fantasia de chegar lá. Soube sempre que, ao chegar à Islândia pela primeira vez, iria perder-se parte substancial das centenas de páginas de Loti e de Júlio Veme que desde a adolescência me tinham fascinado.
Seja como for, penso sempre que «talvez seja este ano» que atravesso definitivamente as cordilheiras (agora, a minha fantasia é começar no Peru). Às vezes, limito-me a comprar um livro sobre os Andes, a ver um filme sobre os Andes – para poder, pacificamente, adiar a viagem. Em vez disso, prometi aos meus filhos levá-los a conhecer o México, se bem que o meu México nunca será – por agora – o deles: viagens sem horários, poisos indeterminados em restaurantes de beira de estrada, dormir em pousadas de aldeia, ouvir a música dos mariachis nas praças, escutar o som das florestas junto dos desfiladeiros onde se dizia que voavam os pássaros mais antigos e o puma se esconde, visitar a casa de Frida Kahlo, as catedrais de Oaxaca e de Mérida, procurar uma praia tranquila no corredor do Pacífico entre Chiapas e Oaxaca, entrar na Guatemala, rondar o Belize.
Sinceramente, estou hoje mais convencido do que nunca de que Ramalho Ortigão tinha razão, contra o ar soturno e embevecido de Garrett: a viagem é um elemento de perdição e de conhecimento. Talvez por isso eu queira que os meus filhos me acompanhem na travessia do México, e comam tamales, e bebam a primeira cerveja, e aprendam o ritmo daquela música estranha que se ouve à beira das estradas. Podem levar o Gameboy e o leitor de MP3. Podem até achar kitsch o kitsch das catedrais de Oaxaca. Mas sabem que existe um mundo que não acaba deste lado do mundo.
in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Fevereiro 2007
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