fevereiro 11, 2007

Antes das férias

No tempo de Ramalho Ortigão, o mundo era de uma grandeza consi­derável – por isso saboreamos esse livro suculento que é Praias de Portugal, Guia do Banhista e do Viajante, que faz a tra­vessia do século XIX para o XX com uma certa nostalgia. Não do mundo em si (não nos entra na cabeça a ideia de veranear em Vila Praia de Âncora de fa­to às riscas e cobertor pelos ombros em busca de iodo, nem entraremos nas águas de Algés), mas do olhar que ainda era possível — trata-se da descoberta do que já não é novidade. Ou seja: quando Ramalho Ortigão propõe que planee­mos as férias com uma estada pro­longada na praia de Paço de Arcos, on­de «as águas são saudáveis», pensamos nesse tempo em que havia território pa­ra descobrir.

Depois, o mundo mudou bastante – o fim-de-semana inglês foi uma conquista admirável, tal como as férias pagas e os hotéis da Costa Brava. Não é sarcasmo. É assim mesmo: do tempo em que a viagem era uma aven­tura prodigiosa, perigosa e reservada a eleitos ou a punidos (como no nosso sé­culo XVI) até ao tempo em que planea­mos um «fim-de-semana prolongado» vai uma distância profunda que não se mede pela conquista do tempo, mas também pela vitória sobre a escravidão, o trabalho e a resignação.

Garrett, tirando ser um homem so­turno e empertigado, teve o seu momento de glória ao invocar Xavier de Maistre no princípio das Viagens na Minha Terra: a verdadeira viagem, a mais intensa, era aquela que se podia fazer à roda do nosso quarto, desde que o espírito estivesse pre­parado. Nunca acreditei nisso. Faltava o cheiro, a poeira do céu, o silêncio dos ho­rizontes. Mas não interessa.

Nesta altura do ano, penso sempre nas cordilheiras dos Andes, mas creio ser uma mania pessoal. Atravessei-as com a sensação de estar a pisar terreno proibido à minha imaginação; a primeira vez que tomei o caminho de um pequeno glaciar andino para o ultrapassar e chegar «ao outro lado», suspeitei que ia anular anos e anos de suspeita e de sonho – que me mantiveram desperto para a fantasia de chegar lá. Soube sempre que, ao chegar à Islândia pela primeira vez, iria perder-se parte substancial das centenas de páginas de Loti e de Júlio Veme que desde a ado­lescência me tinham fascinado.

Seja como for, penso sempre que «talvez seja este ano» que atravesso definitivamente as cordilheiras (agora, a mi­nha fantasia é começar no Peru). Às ve­zes, limito-me a comprar um livro sobre os Andes, a ver um filme sobre os Andes – para poder, pacificamente, adiar a via­gem. Em vez disso, prometi aos meus fi­lhos levá-los a conhecer o México, se bem que o meu México nunca será – por agora – o deles: viagens sem horários, poisos indeterminados em restaurantes de beira de estrada, dormir em pousadas de aldeia, ouvir a música dos mariachis nas praças, escutar o som das florestas junto dos desfiladeiros onde se dizia que voa­vam os pássaros mais antigos e o puma se esconde, visitar a casa de Frida Kahlo, as catedrais de Oaxaca e de Mérida, pro­curar uma praia tranquila no corredor do Pacífico entre Chiapas e Oaxaca, entrar na Guatemala, rondar o Belize.

Sinceramente, estou hoje mais con­vencido do que nunca de que Ramalho Ortigão tinha razão, contra o ar soturno e embevecido de Garrett: a viagem é um elemento de perdição e de conhecimen­to. Talvez por isso eu queira que os meus filhos me acompanhem na travessia do México, e comam tamales, e bebam a pri­meira cerveja, e aprendam o ritmo da­quela música estranha que se ouve à bei­ra das estradas. Podem levar o Gameboy e o leitor de MP3. Podem até achar kitsch o kitsch das catedrais de Oaxaca. Mas sa­bem que existe um mundo que não aca­ba deste lado do mundo.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Fevereiro 2007

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