fevereiro 05, 2007

José Sócrates, o bom tradutor

O primeiro-ministro acha que só por falta de assunto a imprensa deu destaque às afirmações do ministro Manuel Pinho, e que tudo se transformou numa polémica “absurda e injustificável”. Não é verdade. Também não é verdade que seja uma matéria sem interesse para quem não entende nada de economia. As afirmações de Manuel Pinho dizem respeito a todos nós. Em primeiro lugar porque o ministro não faltou à verdade – Portugal tem, mesmo, os salários mais baixos da União Europeia.

O primeiro-ministro recitou a fórmula com outra limpidez; segundo José Sócrates, o que o ministro da Economia queria dizer é que os nossos “custos de trabalho de mão-de-obra mais qualificada” são mais baixos do que a média europeia. Ou seja, para retomar a tradução feita por José Sócrates, “temos custos de trabalho que são muito competitivos ao nível das pessoas mais qualificadas em Portugal”. Entende-se logo outra coisa. Feliz do país em que o primeiro-ministro pode perder um pouco do seu precioso tempo a traduzir o que um dos seus ministros disse antes. É um luxo que merecemos.

Vamos e venhamos, o ministro da Economia não tem culpa do grau de exigência em que anda metido o país. O país, erguendo-se na ponta dos pés, é que se pôs a imaginar que a frase foi escutada atentamente pelos empresários chineses – não foi. Eles não ligaram e têm mais com que se ocupar. A visita foi importante para meia dúzia de empresários, sim, mas portugueses – uns fizeram negócios, outros nem por isso; mas estiveram “lá” presentes. De resto, salários baixos é o que mais eles têm na China, por toda a Ásia, ou em África, onde têm investido bastante. Para efeitos de política caseira o discurso de Manuel Pinho, isso sim, teve importância, mas não pelas razões nobres que a oposição empunhou, ou pelas explicações misericordiosas dos nossos economistas.

Ora, o que disse verdadeiramente o ministro Manuel Pinho? Uma evidência com que nenhum português ousa discordar, ou seja, que temos salários baixos e que um chinês, se quiser abrir uma fábrica em Idanha-a-Nova ou em Mirandela, tem menos custos salariais aqui do que, imaginemos, num país escandinavo. Era preciso que José Sócrates traduzisse essa evidência? Pelos vistos, sim. E também para efeitos de política doméstica, onde custa admitir que os nossos “custos de trabalho de mão-de-obra mais qualificada” (não os salários, atenção!) são mais baixos do que “lá fora, na Europa”. Mas são. E isso não pode alterar-se por decreto. Vai demorar a mudar, vários anos de economia (de poupança, de limitações, de investimento).

Os chineses podem agradecer a sugestão e instalar-se em Aveiro ou em Santarém com fábricas e tecnologias, explorando os baixos salários portugueses. Na lógica de Pinho, os chineses vêm, os portugueses empregam-se, e, com o tempo, os salários crescem. Pode ser. Mas que um português não se indigne depois de ouvir as palavras de Pinho sobre a triste verdade da pátria seria abaixo de cão. Indignar-se, sim, mas contra o país.

Dizer que o ministro Manuel Pinho vai ser remodelado, que Sócrates anda sempre a corrigi-lo, é uma banalidade desinteressante e medíocre, coisa que só alegra gente de mau carácter.

Porque Pinho não errou. Pinho não se enganou. Ele bem tentou, aliás, vender o país o melhor que pôde. O país é que se acha outro país. E não é. É apenas este – pobrezinho, frágil, rendido. Custa a admitir que se fale assim da pátria do “choque tecnológico”, mas é a mais pura das verdades.

Por isso, José Sócrates tem de andar sempre a traduzir. Há um país na sua cabeça que, infelizmente e apesar da sua boa vontade, não tem tradução em nenhum dicionário. Só na sua cabeça. E cada vez mais.

in Jornal de Notícias – 5 Fevereiro 2007