fevereiro 26, 2007

Os problemas com Jardim

Portugal tem um problema com Alberto João Jardim. Sou insuspeito para o dizer, porque andei em bolandas com o homem, de tribunal para recurso e de recurso para prescrição - um tribunal (do Funchal, claro) mandou-me pagar-lhe uma indemnização choruda por ter dito que o presidente do governo regional da Madeira era "um dos candidatos a palhaço da política portuguesa". Foi há anos, e entretanto já se lhe chamou coisa pior. E ele também abusou da língua. Outra instância mandou repetir o meu julgamento, por achar que o tribunal (do Funchal, claro) tinha exorbitado e errado. Ficámos por aí. Esta é a minha declaração de interesses andei em guerra com o homem mas não sou de ressentimentos.

Isto não me impede de reconhecer que é suspeita a quase unanimidade nacional contra Jardim e a sua figura. A política portuguesa, que é classista e cheia de castas (ou de iluminados, ou de proprietários da República, ou de velhos terratenentes do carreirismo), odeia Jardim. Sinceramente, odeia Jardim não pelo que ele tem feito na Madeira, mas pela sua figura. Enfim, é-lhe antipática aquela figura de homem que come carapaus e bebe copos de ponche nas festas do Chão da Lagoa. Também não lhe apreciam os trajes em que o homem se passeava na Avenida Arriaga durante o Carnaval. Em última instância, invocam o défice, o orçamento, a dívida e o orçamento. Mas em primeiro lugar detestam Jardim por ele ser como é. Que ele gastasse o dinheiro do orçamento para construir vias rápidas que encurtam o trajecto entre o aeroporto e o Funchal, aceita-se (facilita a vida do turismo continental). Mas quando chega a hora de fazer contas, o orçamento regional aborrece-os como não os aborrece no continente que alguém seja mais perdulário do que Jardim (e há casos, há casos). Creio que têm alguma razão Jardim gastou-o vastamente e, se considerarmos os retratos da ilha nos anos setenta, vê-se alguma diferença. A vida, lá, melhorou bastante. Não tudo. Porque nem tudo é dinheiro. Mas os tribunais deveriam regular o resto: os desmandos e mandos do governo junto da comunicação social (comprando-a ou hostilizando-a), a proximidade com os amigalhaços, a alarvidade do poder, que é tão grave na Madeira como em qualquer concelho continental.

Mas a figura, a figura, é que os destrói definitivamente. A figura e o descaramento. E se, quanto à figura podemos discutir, porque ela esconde os problemas do orçamento e do endividamento, é preciso reconhecer a Jardim a coragem de se dirigir a Lisboa sem medo e sem baixar o tom de voz. Pessoas destas aguentam-se com dificuldade e são incómodas, evita-se apresentá-las às visitas. São o nosso Bei de Tunes à falta de bombo da festa, por exemplo, bate-se "no Jardim".

O facto é que Jardim incendiou a pequena política portuguesa. O que a oposição queria que ele fizesse há muito, ele fez voluntariamente - demitiu-se. Ele é um homem sem tempo para minudências, e devemos agradecer-lhe essa prova de honestidade. Outros teriam feito contas mais complexas e calculado perdas e danos. Certamente que Jardim o fez, mas o resultado seria o mesmo se a contabilidade lhe saísse furada. Não consta que tenha enriquecido com a política. Não consta que ande a fazer acordos para dormir com o inimigo.

Eu, que não gosto dele, reconheço-lhe a rara coragem que anda a faltar há muito na política portuguesa a de afrontar os adversários. Na política doméstica, cheia de ademanes e salamaleques, todos têm de gostar de todos. Jardim não gosta de todos e não faz segredo disso. Elege inimigos, adversários - e, estranhamente, até amigos. A unanimidade nacional dos pensadores confortáveis em redor de Jardim (atacando-o e escolhendo bem os adjectivos) faz-se espécie. Eles também construíram a figura de Jardim, também a desenharam. Se é para caírem, Jardim arrasta-os consigo. É bom que saibam que o homem não os deixa a rir pelas costas.

in Jornal de Notícias - 26 Fevereiro 2007

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