fevereiro 12, 2007

A felicidade por decreto-lei

Na semana passada, o Presidente da República esteve presente numa sessão plenária da Academia Portuguesa de Medicina e aproveitou a oportunidade para falar de saúde pública. Para o Presidente, “o progresso de um país também se mede pela melhoria dos cuidados de saúde”. Estamos de acordo, inevitavelmente: nas grandes cidades ou em Odemira, nas aldeias abandonadas de Vinhais ou nos bairros periféricos de Lisboa deve melhorar-se a chamada “prestação dos cuidados de saúde”. É um direito básico e inegável.

Há depois, nas palavras do senhor Presidente, a referência a “um enquadramento jurídico claro e de uma implementação rigorosa de políticas e procedimentos administrativos para lidar com fenómenos como o tabagismo, o consumo em excesso de bebidas alcoólicas, a toxicodependência, a obesidade ou os acidentes na estrada e no trabalho”; ou seja, a necessidade de legislação para combater os malefícios do mundo. É um tema totalmente diferente, mas percebe-se o que está em causa: diminuir efectivamente o consumo de álcool entre miúdos ou nas estradas, fomentar caminhadas nos jardins e bosques, evitar que vivamos em ambientes fechados ou que respiremos a poluição das cidades, tudo isso que o leitor certamente adivinha.

A saúde pública deixou de ser uma preocupação dos médicos, dos sanitaristas ou dos urbanistas – transformou-se num imperativo político. A política, em geral, não se escusa a falar da nossa felicidade como um direito; com os anos, substitui-se aos indivíduos, obrigando-os a serem felizes, mesmo contra a própria vontade. Para isso, várias cidades dos EUA decidiram banir o fumo do tabaco dos restaurantes, bares e locais de diversão pública; na Europa, outros países tomaram decisões radicais nessa matéria. O mundo ficará mais seguro, parece, sobretudo se tivermos em conta que a União Europeia tem uma política alimentar que vai eliminando redutos de colesterol, gorduras e até tamanho dos produtos.

A saúde pública é um domínio vasto que frequentemente entra nos caminhos da moral e dos costumes. Os queijos com alto teor de gordura serão perseguidos, da Serra da Estrela a São Jorge e ao Pico. Um dia haverá fiscais vigiando o teor de sal no bacalhau. As casas de família irão, com o tempo, transformar-se em antros de pecado – aí podemos comer pastéis de massa tenra, pataniscas, “bacalao al pil pil” ou à lagareiro, feijoadas e compotas preparadas com açúcar em vez de adoçante (havendo até quem fume um charuto no final, mais perigoso do que uma “erva” simplória, muito bem admitida socialmente). Um dia, mais tarde, os inspectores de saúde pública entrarão em nossa casa e desaprovarão as migas de bacalhau ou o feijão no forno. Na escola, os institutos da saúde perguntarão subtilmente às crianças se os pais têm por hábito comer fritos e barrar o pão com manteiga, essa substância perigosa. Justificarão. Justificarão sempre. Querem o nosso bem.
Nunca sei o que é melhor, se a liberdade, se o comando da nossa saúde por políticos que elegemos com outras finalidades.

O Presidente não falou disto. Mas eu falo, porque temo bem que o “enquadramento jurídico claro” e a “implementação rigorosa de políticas e procedimentos administrativos” seja meio caminho andado para festejar a mania portuguesa de legislar e regulamentar.

Querem exemplos? No caso do tabaco, vem de Novembro de 1959 a proibição de fumar dentro dos recintos fechados onde se realizem espectáculos (trata-se do Decreto-Lei n.º 42661, de 20 de Novembro, para lembrar). Essa lei foi revogada em 1983 e substituída pelo Decreto-Lei n.º 226/83 de 27 de Maio. Bastaria, porque está lá tudo. Mas não basta: o espírito legislativo português precisa de mais. Não precisa de educar os miúdos e de facilitar a vida aos cidadãos – precisa de procedimentos administrativos e de leis. É isto Portugal.

in Jornal de Notícias – 12 Fevereiro 2007

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