janeiro 31, 2008

Blog # 19

De repente, Vitalino Canas (o porta-voz do PS) pareceu-me um sujeito simpático: comparou-se a George Smiley, personagem de John Le Carré que se define a si próprio como ‘cinzentão’. E também discreto, silencioso, batalhador – e muito triste, por oposição a Ribau Esteves, secretário-geral do PSD, que fala de ‘gajas boas’ e tem aquele sorriso de quem passou muito tempo a pensar no assunto. Subitamente, Vitalino Canas passou a ter uma aura melancólica, rodeado de memórias amargas, silêncios fatais. Há diferenças, e essas é que são assassinas: o cinzento George Smiley, que é um dos meus personagens literários favoritos, nunca diria o que o cinzento Vitalino Canas é obrigado a dizer para defesa da honra do seu partido. Smiley, por exemplo, nunca vê esperança onde há desastre; já Vitalino Canas acredita que os novos ministros irão reforçar a capacidade governativa. O País, de facto, comoveu-se ao saber da notícia. Está tudo muito entusiasmado com os novos ministros.

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Há dias que correm mal. Se Sócrates não ‘remodelasse’ o Governo, era um caso de autismo. Como Sócrates ‘remodelou’, das duas uma – ou o Governo estava errado e corrigiu o rumo; ou estava certo mas cedeu aos apelos da rua, que queria sangue. A culpa não é de Sócrates nem da opinião pública. É do destino: ninguém nos entende.

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FRASES

- "Pode ser lido tanto na horizontal como na vertical. Acertámos na mosca." Luís Lopes, da PTMultimedia, sobre o novo nome da empresa, ZON. Ontem, no CM

- "O europeu bem instalado esqueceu o motivo pelo qual os avós rapavam o prato com o pão." Filipe Nunes Vicente no blogue Mar Salgado

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janeiro 30, 2008

Blog # 18

Segundo o ‘Daily Mail’ de ontem, o governo inglês pondera a criação de uma ‘entidade reguladora’ que vai ‘monitorizar’ os cestos de almoço que as crianças levam para a escola, vigiando a correcta aplicação dos princípios de uma ‘dieta saudável’. No caso de haver uma falha, os pais receberão uma admoestação em casa e o almoço pode mesmo ser confiscado. Não riam. A ‘plataforma contra a obesidade’ portuguesa tem muito que aprender. O ‘big brother’ veio para ficar nas sociedades democráticas e vigia-nos para nosso bem. Os grandes democratas, que olham a sociedade como uma fonte inesgotável de tentações, gostam de defender os cidadãos mesmo contra a vontade dos próprios cidadãos – e não apenas os admoestam como, além disso, apreendem o almoço das crianças. E fazem leis, para que aprendam. Ibsen, que não era só dramaturgo mas um leitor do género humano, escreveu uma peça intitulada ‘O Inimigo do Povo’. O que ele dizia? Isto: que a liberdade é uma grande solidão.

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O INEB (de Engenharia Biomédica), o IBMC (de Biologia Molecular e Celular) e o Ipatimup (Patologia e Imunologia Molecular), da Universidade do Porto, juntaram-se no I3S, que vai investigar na área da Saúde. Num país de ressentidos, é bom haver notícias sobre gente de qualidade como Alexandre Quintanilha ou Sobrinho Simões.

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FRASES

- "Quando era preciso o Ferreira Torres dava; quando havia, o futebol devolvia" Ex-presidente do Futebol Clube do Marco, ontem no CM

- "Portugal nunca foi lugar de grandes liberdades, de gente empreendedora e entregue a si mesma" Henrique Burnay, no blogue 31 da Armada

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janeiro 29, 2008

Blog # 17

A história portuguesa da acusação e da denúncia daria pano para mangas e não seria digna de louvores. Pelo contrário – a Inquisição instituiu a denúncia anónima, a delação abjecta, a perseguição sem justiça. Há, na imprensa do final da monarquia, exemplos bastantes da propaganda pela acusação livre e sem provas. O salazarismo alimentou a perseguição de anónimos com minúcia. Ora, da “denúncia dos nomes” até à “denúncia sem nomes”, o salto não é grande e apenas queima etapas. O espírito permanece, mesquinho, vago e cheio de ressentimento ou desejo de vingança. Daí que a esquizofrenia portuguesa passe por este mundo de suspeita comezinha e provinciana, manchando reputações por desporto e alimentando o mau génio nacional. Em Portugal é fácil acusar, e barato, porque quase nunca se investiga. Uma das figuras mais interessantes da linguagem jurídica é, aliás, a “queixa contra incertos”. Temos medo de apontar o dedo em público, mas nunca perdemos o feitio indignado.

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A comissão das actividades religiosas legalizou a Cientologia em Portugal, o que não é absurdo porque a Espanha já o fez. Não na Alemanha nem em outros países, onde se analisa à lupa a empresa criada por Ron Hubbard e onde Tom Cruise espalha a palavra divina. Divina? Para a Comissão, Deus é um parágrafo do relatório de contas.

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FRASES

- "Devia haver um período de nojo." Manuel Alegre, ontem, no CM

- "Nesta fase do ano não ando à procura de namorados, até porque só começo a fazer a depilação em Maio." Isabela no blogue O Mundo Perfeito

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janeiro 28, 2008

Blog # 16

A estreia mundial da ópera de Emanuel Nunes foi transmitida em directo para vários pontos do País, que não se comoveu com o acontecimento – parece que, em S. Carlos, metade do público saiu a meio. Mil pessoas no total, digamos. Não o escrevo com alegria nem ressentimento; simplesmente, não se esperava mais. Seria magnífico que o público comparecesse em peso a um acontecimento destes – mas acontece que o público, a quase totalidade do público, não tem formação musical. Enche estádios para ouvir rock mas não sabe trautear uma ária nem reconhece os acordes de uma peça de Bach. Nas escolas ajuda-se à festa, com a naturalidade imbecil da indigência, que tanto valoriza uma peça de rap como um concerto de Mozart, e diz que é o mesmo. Não é. Sim, falta música ao País; faltam ouvidos educados, cultura musical, interesse e hábitos de ouvir música. Seria bom que, nas escolas, o ruído fosse de vez em quando substituído por acordes, música, elevação. É um longo caminho.

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Há razões para estarmos preocupados. Qualquer miúdo de 13 ou 14 anos copia parágrafos inteiros da internet e apresenta-os na escola que, manietada, valoriza “a intenção” (e ignora “a substância”). Como ele, um milhão. O plágio escolar patrocinado pelas “novas tecnologias” está a levar ao desastre e ao crescendo da ignorância.

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FRASES

"Não se diz que não ao apelo de um rei." Paulo Teixeira Pinto, ontem, no CM

"Fico muito contente por ver um político a provocar protestos, revoltas e escândalo." Maradona, no blogue A Causa foi Modificada

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janeiro 25, 2008

Blog # 15

O comboio Lusitânia, que faz a ligação entre Madrid e Lisboa, descarrilou anteontem. Em Espanha, vá lá. Tinha 38 pessoas a bordo, o que é um número baixo e assustador, se pensarmos nas projecções que se fazem para o TGV. A mim preocupa-me a Linha do Tua, que retomará a circulação na próxima semana. Como ‘maluco dos comboios’, sou contra o seu fecho definitivo. Se pudesse, eu punha o País todo a andar de comboio. Mas, consultando os números, vejo que há composições que circulavam com uma dezena de passageiros, o que torna tudo mais difícil. É uma espécie de não-retorno: o País está coberto de asfalto e de camiões e, tirando o Lisboa-Porto, os comboios fazem parte apenas da nossa geografia sentimental. A vitória do asfalto é um sintoma do nosso atraso conjuntural, substituindo um transporte ecológico, cómodo e seguro pela vaidade automóvel e pela indústria da camionagem. Durante anos, a CP encarregou-se de se autodestruir. Hoje, é uma viúva velha e pobretanas.

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Uma agência de comunicação, nada contra, vai ‘fornecer conteúdos’ para o PSD. Os termos do contrato não são esses, mas dá gozo imaginar os telefonemas dos deputados ou dirigentes do partido para os maiorais do marketing: qual deve ser a nossa posição sobre saúde, o que dizemos sobre educação? O PSD devorado por si mesmo.

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Livros para o fim-de-semana: de Francisco Teixeira da Mota, a deliciosa biografia ‘Alves dos Reis, uma História Portuguesa’, sobre o grande falsificador (edição Oficina do Livro). E da mais bonita das escritoras espanholas de hoje, Susana Fortes, ‘O Amante Albanês’ (edição Asa) – um regresso perverso ao mito da Albânia de Enver Hoxha.

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janeiro 24, 2008

Blog # 14

Há uns tempos, o Presidente da República discursou sobre a necessidade de práticas legislativas que castigassem a obesidade e a falta de saúde dos portugueses. Na altura, critiquei a obsessão legislativa, mas hoje compreendo a tendência – em Portugal, há demasiada gente à solta a legislar, convencida de que vai mudar o Mundo por decreto. Seja como for, e mesmo tendo razão, é necessário avisá-los sobre o tom que adoptam nas suas mensagens: além de evangelizador (que já irrita) pode ser malcriado. Veja-se o caso do presidente da sociedade de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, que ontem recomendava “medidas de saúde pública muito agressivas” para combater a obesidade. O que ele defendia era “mudar as mentalidades e a própria cultura”, o que seria óptimo. Como? “Acabar com a ingestão de gorduras, de álcool, com o assado de domingo, os rissóis e o pão com manteiga.” Logo o assado de domingo e os rissóis, justamente. Esta gente tem razão, mas não tem juízo nenhum.

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Vão longe os tempos em que altas figuras do PS (como Vera Jardim, que foi ministro da Justiça) iam para o aeroporto de Lisboa impedir a repatriação de estrangeiros ilegais, em nome dos princípios. Agora, é o governo do PS que, às escondidas, os devolve a Marrocos, invocando a lei e os princípios. Tudo muda na vida.

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- A excelente livraria Pó dos Livros, de Gonçalo e Bárbara Bulhosa (Lisboa, na avenida Marquês de Tomar, 89) tem um blogue com muita informação: http://www.livrariapodoslivros.blogspot.com/

- O romance do timorense Luís Cardoso (autor de ‘Requiem para o Navegador Solitário’), a sair no final do ano, tem uma personagem estranha: Sinead O’Connor.

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janeiro 23, 2008

Blog # 13

Para disciplinar a indústria hoteleira, o Governo vai acabar com algumas das 21 designações existentes, como “motel”, “estalagem” ou “pensões”, por exemplo. Trata-se de “civilizar” e de “normalizar” as “unidades hoteleiras”. Quase tudo vai passar a chamar-se “hotel”, como se alterando a designação se mudasse a realidade. De alguma maneira, é um mundo que acaba. Certamente que, se fosse no Brasil, o fim dos “motéis” seria caso de guerra civil, porque aí decorre boa percentagem da sua vida sexual mais divertida. Entre nós, o nome “pensão” evoca um universo de penúria e de humildade que termina, com paredes caindo aos pedaços, escadas sujas e histórias de miséria, solidão e degradação; e também de sobrevivência no fio da navalha. Daqui a uns anos, só haverá “pensões” nos romances e nos arquivos. O Portugal antigo, maneirinho e modesto, vai desaparecendo dos dicionários. O que havia de romantismo nesses nomes fica também entregue à poeira.

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Num discurso pronunciado há quatro anos numa sessão da Cientologia, Cruise perguntou à assistência em delírio: “Devemos limpar o mundo?” A tentação é grande. Há demasiada gente que não vive de acordo com as regras, que não se deita a horas, que tem gostos duvidosos e que se presta à ameaça do colesterol. São um perigo. Somos.

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José Rodrigues dos Santos está a escrever um livro para o Círculo de Leitores e todos os clubes da Bertelsmann.

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A Bertrand lança uma parceria com a Galp para venda de livros nos postos de abastecimento. O projecto chama-se Tangerina e atingirá cem pontos de venda nas estradas portuguesas.

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FRASES

- "Os governos não têm as respostas todas" - Durão Barroso, ontem, no CM

- "Fidel foi eleito. Em Cuba usufrui-se a vantagem de se saber antecipadamente quem é eleito nas eleições" - João Tunes, no blogue Água Lisa

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janeiro 22, 2008

Blog # 12

Realiza-se hoje, em Lisboa (Casa Fernando Pessoa), o colóquio ‘Para Além da Mágoa’, que junta escritores que se ocuparam com o espaço colonial ou pós-colonial. De que falam eles? De um mundo irreal, como toda a literatura – mas sobretudo da memória, de portugueses e de africanos. Escritores como José Eduardo Agualusa (de Angola) ou Luís Cardoso (Timor) souberam ultrapassar as contingências do colonialismo e do anti-colonialismo, para falar da sua relação com a vida. Cardoso reinventou mesmo a palavra “ultramarino”; Agualusa (leia-se o seu último romance, ‘As Mulheres do Meu Pai’) fala de angolanos brancos e de portugueses pretos, para dar conta da ligação que existe entre os vários mundos da nossa língua. Francisco Camacho publicou um romance, ‘Niassa’, sobre um adolescente português que viaja em Moçambique sem passar pelo folclore colonial ou anti-colonial. Talvez esteja a nascer alguma coisa diferente entre as novas gerações de autores de língua portuguesa.

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Algumas universidades e escolas advertiram os estudantes de que não admitem a Wikipédia ou o FaceBook como fontes para trabalhos de qualquer natureza. É uma grande vitória da decência e do bom senso, se tivermos em conta a facilidade com que o “choque tecnológico” tem gerado plágios académicos e preguiça no meio escolar.

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Desenhos de Luandino Vieira, isso mesmo – para acompanhar a reedição dos poemas de Paula Tavares, em ‘Ritos de Passagem’ (Caminho).

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O serviço de ciência da Fundação Gulbenkian realizou vários ciclos de colóquios intitulados ‘Despertar para a Ciência’. Os textos foram agora publicados pela Gradiva com esse mesmo título.

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FRASES

- "Continuemos a trabalhar para ter os mesmos problemas da Europa desenvolvida, mas sem as vantagens” Cristina Ferreira de Almeida no Blogue Corta-Fitas

- “O sacrossanto betão é a morfina da economia lusitana” António Ribeiro Ferreira, ontem no CM

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janeiro 21, 2008

Blog # 11

Os legisladores andam à solta porque há quem pense que a melhor forma de “mudar a sociedade” é adoptar novas leis que substituam as antigas ou as aperfeiçoem. Uma parte deles imagina que o mundo pode ser melhor se as pessoas não fumassem, não rezassem ou não cedessem ao colesterol. Portanto, tratam de legislar – ou seja, de proibir. Como é preciso apanhar os ladrões, Porto e Coimbra vão receber mais câmaras de videovigilância para as suas ruas; todos terão oportunidade de aparecer na televisão das polícias. O Governo pensou (mas retirou a tempo) numa lei para abrir os cacifos de todos os clientes dos ginásios à inspecção da ASAE ao doping. As pessoas não se importam muito com isso porque têm mais que fazer, como preocupar--se com a diminuição dos salários, com o preço da carne, do aquecimento em casa, da gasolina para o carro ou do pão para a mesa, enfim. Nas sociedades em crise, doentes e anémicas, a liberdade não é um bem essencial. A propaganda vence tudo.

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A imprensa diz que Zapatero e Sócrates sorriram juntos na Cimeira Luso-Espanhola. De Sócrates, sim, vi as fotos. De Zapatero vi apenas aquele esgar de plástico que o homem transporta como se lhe estivessem a dizer para sorrir e ele só fosse capaz de levantar as bochechas. Sem esforço, evidentemente – mas só as bochechas.

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- “Andamos quase todos à procura de uma terra mítica”: Alfredo Saramago regressa à sua terra com um ‘Livro-Guia do Alentejo’ (Assírio & Alvim). É assim que deviam ser os guias. Bem escritos.

- Manuel Alegre ouviu atentamente as explicações dos responsáveis do grupo Leya, que compraram a Dom Quixote, onde publica. Fez perguntas, ouviu garantias. E vai ficar.

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janeiro 18, 2008

Blog # 10

Os grandes livreiros de antigamente têm poucos herdeiros. Eles eram capazes de procurar um livro pelo cheiro e de conhecer um título obscuro porque se informavam sobre o seu negócio, que não entregavam a desconhecidos ou à memória do disco rígido. No meio da barafunda, uma notícia reconfortante: na lista das dez mais belas livrarias do Mundo inteiro, o ‘The Guardian’ classificou em terceiro lugar a Lello, do Porto, livraria histórica e ‘das antigas’, sem electrodomésticos. É uma imagem de passado e de suavidade, de penumbra tranquila e de pacificação. Visitá-la é uma obrigação para quem acha que o Mundo não é só isto, uma soma de coisas sem sentido.

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Luís Filipe Menezes defendeu um sistema de “equidade na comunicação”, tentando distribuir comentadores do PS e do PSD pelos canais de TV: um dia fala um, outro dia fala outro, até se atingir um mesmo valor na lavagem aos cérebros. A ideia não é nova mas é absurda. Depois de defender um banco do PS e um do PSD, Menezes avança com a ideia de que a opinião pública fica bem servida com altifalantes de cada um dos partidos defendendo os seus territórios. Ninguém até agora defendeu tão publicamente o Bloco Central dos interesses, dividindo a meias o País e os cargos públicos. É a vantagem.

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- Nelson de Matos lança, em Fevereiro, a editora que levará o seu nome na marca. Para começar, três títulos: um deles de Cardoso Pires, quando passam dez anos sobre a sua morte, no Outono.

- A Ambar continua a edição da obras de Erico Veríssimo: saíram os dois volumes de ‘O Arquipélago’, da saga ‘O Tempo e o Vento’.

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janeiro 17, 2008

Blog # 9

Imagine o leitor que cria uma marca “do Gerês”. Terá de pagar direitos pela utilização da palavra Gerês, porque é um parque natural. A quem paga? Ao Estado, que, além de se apropriar do que pode, tenta também ser dono da paisagem, dos nomes e da geografia – e, ao mesmo tempo, financiar o seu Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade. O Ministério do Ambiente elaborou um decreto em que prevê explorar comercialmente as marcas associadas às “áreas classificadas”, ou seja, aos parques naturais. É fácil lançar impostos. Ora, eu gostaria de saber quem atribuiu ao Governo direitos de autor sobre a paisagem, como se fossem território seu.

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Luís Filipe Menezes foi ao Hospital de Faro, onde encontrou macas espalhadas pelos corredores, problemas administrativos e carências dramáticas de meios. Chamou a atenção dos jornais para o retrato? Não, chamou-lhes “questões laterais”. Invocou a “responsabilidade” para se calar e fazer boa figura. Escolheu o motivo errado.

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Desconfio dos abaixo-assinados. Está aí um, contra o Ministério da Cultura. Os signatários pedem uma nova política mas há quem, nas entrelinhas, leia “mais subsídios”, “mais dinheiro” e “mais amigos”, como de costume. Gente de má-fé costuma desconfiar; no caso da cultura, isso é um dever. Coragem seria acabar com o ministério.

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FRASES

- "Prefiro não ser eleito [no BCP], para poder falar" Joe Berardo, ontem, no CM

- "[O PSD] deve pedir a privatização da banca nacionalizada, a começar pelo BCP" João Miranda, no blogue Blasfémias

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janeiro 16, 2008

Blog # 8

Os cidadãos devem ficar preocupados quando governo e partido se confundem, quando o Estado e as grandes corporações (banca, construtores, etc.) têm interesses coincidentes e quando as opiniões dos “pessimistas” são desvalorizadas. Nessas circunstâncias, são os cidadãos que ficam sitiados e a perder – por isso, Bagão Félix fez bem em lembrar que “há pessoas que têm vida para além da política”. Como se lembrasse que nem tudo se justifica ou se pode permitir. Santos Silva não o tinha percebido antes, e finge não o perceber depois. É política. O ministro do Parlamento já tinha alertado para um “golpe de estado constitucional” caso Cavaco Silva fosse eleito; para desvalorizar o deslize, invocou estar em campanha eleitoral, onde tudo seria permitido. De cada vez que fala, temos o direito de perguntar se há circunstâncias atenuantes para cada intervenção sua. No fundo, foi ele que se desvalorizou a si mesmo: pediu que o tratassem como inimputável dessa vez. Daí em diante, nunca se sabe. É política.

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Antigamente, prezava-se o homem público que protegia a sua vida pessoal. Agora, ele expõe os seus beijos para obter votos. A política é um reflexo do espectáculo, onde um presidente e uma cantora trocam de maquilhagem no meio da febre do poder. A multidão, que é machista, ulula. Se Sarkozy fosse mulher, seria apedrejado.

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FRASES

"Estavam de algemas, de cabeça baixa e como é natural estavam tristes" Vizinha de dois detidos no Bairro da Giesta em Valbom, ontem no ‘CM’

Novo endereço: www.millenniumbcp.gov.pt Jorge Ferreira, no blogue Tomar Partido

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janeiro 15, 2008

Blog # 7

Foi uma pequena revolução em Cuba, sábado: o canal Havana, visto na capital e pouco mais, deu notícias sobre o sucesso dos “desertores” e “traidores” que tinham deixado o país para jogar basebol nos EUA. Tratava-se de um documentário do jovem realizador cubano Ian Padrón, proibido desde há cinco anos. Foi como se os “desertores” Orlando ‘El Duque’ Hernández (dos Mets), o primeira-base Kendry Morales (dos Angels) ou o lançador Jose Contreras (dos White Sox) regressassem às ruas de Havana para um jogo de miúdos. É como se estivéssemos seis anos sem saber do destino de Figo ou de Cristiano Ronaldo. Só por isso valeu a pena Fidel Castro ter adoecido.

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Agora, era bom saber dos boxeurs Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que desertaram no Brasil, durante os Pan-Americanos do Rio. Em Agosto, Lula mandou que fossem presos, deportados e devolvidos. Regressaram a Cuba num avião mandado por Hugo Chávez. Ninguém mais os viu jogar...

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A DGS pediu à ASAE que vigie os restaurantes de fumadores, já aqui referi. Fê-lo em tom de queixinhas, suplicando castigo. A ASAE respondeu: “Sim, mas o que vamos lá fazer?” Sabem porquê? Não há regulamentação. No país dos legisladores-por-tudo-e-por-nada, a lei falha.

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FRASES

"Nos eleitores do PSD há mais gente que confia mais em Sócrates do que no presidente do partido." Armando Esteves Pereira, ontem, no CM

"As judias [...] têm uma sorte que não cabe às cristãs. Podem enrolar-se umas com as outras, porque lesbianismo não é pecado." Isabella, no blogue O Mundo Perfeito

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janeiro 14, 2008

Blog # 6

Já ninguém se lembra, mas Roberto Carneiro era o ministro que tratava os alunos por “aprendentes”. É ele que vai avaliar os resultados das Novas Oportunidades. Temos razões para desconfiar. Com o programa, o Governo quer melhorar as estatísticas, não a qualidade do conhecimento; por isso, fala apenas de “validar competências”, mas há testemunhos suficientes para acreditarmos que se trata de um embuste que facilita o lugar-comum e festeja o disparate, nivelando tudo por baixo. Daqui a uns tempos, um aluno do 12.º não vai querer estudar; basta-lhe ir “validar as competências” a um centro das Novas Oportunidades. É simples e melhora as estatísticas.

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Naomi Campbell, que vive entre passerelles, acha que Hugo Chávez daria um “bom cantor latino de sucesso”. É provável. Infelizmente, ele é também presidente da Venezuela e apoiante e cúmplice das FARC, um grupo colombiano de raptores e de narcotraficantes. Terá de optar. Tal como ela: entre fingir-se de tonta e ser tonta.

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A ASAE tem aulas de operacionais militares, porque “anda tudo ligado”: roupas falsificadas, galheteiros, ginja, fumo de cigarro e banditismo informático. Passará ao ataque, em grandes operações transmitidas pela televisão, com assaltos-surpresa e perseguições pelas ruas. Daqui a uns tempos será um Estado dentro do Estado.

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FRASES

"O Benfica pode perder mas na semana seguinte há uma nova oportunidade." António-Pedro Vasconcelos, ontem no CM

"Santos Ferreira da CGD para o BCP é como a candidatura de Pinto da Costa à presidência do meu SLB." Luís Carmelo, no blogue Miniscente

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janeiro 11, 2008

Blog # 5

O director-geral da Saúde já tinha anunciado que se demitiria caso a lei do tabaco não “fosse levada à prática”. O que seria uma pena – ele tem um ar simpático, barbudo, de quem gosta de comer. Tenho uma campanha pessoal e obsessiva: impedir que ele se demita, porque tem muito trabalho a fazer. A DGS pode começar por fiscalizar os bares que vendem shots, a um euro, a miúdos de 12, 13 e 14 anos que caem nas ruas de Santos e do Bairro Alto (com a polícia a passar à porta). E espero que peça à ASAE que fiscalize o ‘drinking spinning’ em Lisboa e Porto, onde os adolescentes entram em coma alcoólico. Isso sim, seria coragem. Seria de homem.

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A DGS (com essa sigla, caramba) pediu à ASAE que “desencadeie, prioritariamente, inspecções” nos restaurantes “que tenham afixado o dístico azul”. Não o fez por ofício, por protocolo, no recato institucional. Fê-lo em público, num comunicado. Anunciou às presas que vai à caça com o melhor caçador – e que não há regras.

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Um Picasso e um Portinari, no valor de 38,5 milhões de euros, foram roubados do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Falou-se de uma quadrilha internacional de grandes dimensões, como nos filmes. Afinal, os larápios eram Robson e Xico, conhecidos por serem assaltantes de carros. Não tinham concluído a quarta classe.

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- Do poeta Robert Graves, e autor de ‘Eu, Cláudio’ (lembram-se da TV?), a Guerra e Paz publicou ‘Rei Jesus’, romance fundamental sobre a vida de Cristo.

- A Asa reedita no seu catálogo todas as obras de Paul Auster. Daqui a semanas, ‘Mr. Vertigo, uma História sobre Levitação’.

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janeiro 10, 2008

Blog # 4

Os ‘moderninhos’ e os burocratas da Segurança Social preferem falar de ‘idosos’ em vez de ‘velhos’. Compreende-se: o mundo actual venera a juventude e abomina as rugas e a sabedoria, que são incómodas, pagam menos impostos e são fracos consumidores. Por isso trata-os como um incómodo para ‘a sociedade’, cheios de medicamentos e ocupando as filas de espera nos hospitais. Dão prejuízo. Com o apoio dos ‘parceiros sociais’, o Governo dividiu por 14 meses os retroactivos das pensões básicas: dá cerca de 70 cêntimos/mês. Nenhuma explicação mascara essa crueldade. É mais fácil tratar mal os velhos que recebem 400 euros de reforma – eles não vão para a rua protestar.

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O ‘Nouvel Observateur’ publicou uma foto de Simone de Beauvoir nua. As feministas protestaram, em bando, porque a nudez de Beauvoir “não ilustra em nada os seus escritos, o seu feminismo ou a sua personalidade”. É mentira. Sabemos que afinal ela tinha um corpo (a que Sartre não ligava muito) e que ria, nua e descontraída, longe de Paris (a foto é tirada na casa do amante americano) e dos mandarins da época, que podiam ser muito sérios mas não sabiam do essencial: como saborear a nudez bonita de Simone de Beauvoir.

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- A Teorema lança este mês mais um livro do catalão Enrique Vila-Matas: ‘Exploradores do Abismo’. A receber com atenção.

- E outro, a aguardar: ‘Os Detectives Selvagens’, do chileno Roberto Bolaño, que o ‘The New York Times’ incluiu entre os dez melhores livros deste ano. Muito bom.

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janeiro 09, 2008

Blog # 3

O episódio BCP não diz respeito apenas à economia (ou seja, à finança) e à política; pelo contrário, tem evidentes dimensões literárias. Mais, muito mais de metade dos portugueses, habituados às telenovelas e reduzidos a acreditar na justiça divina, gostaria de um desenlace emocionante e fatal, que castigasse os empertigados, recompensasse os afoitos e maltratasse os espertalhaços. Se a decisão fosse por televoto, Cadilhe ganharia com larga vantagem, Berardo iria para as Desertas e Armando Vara ficaria na Caixa. Seria bom para o ânimo nacional e desagradável para o Governo – duas vantagens numa só história de costumes. Não digam que não estão avisados.

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Outra das vinganças: a aparente queda de Hillary Clinton. Se fosse por televoto, Obama já lá estava, mesmo sem ir a eleições, como se o mundo andasse a precisar de charme e cinema dos anos cinquenta. Claro que os portugueses não votam na América, mas à falta de política em Portugal as eleições americanas podem substituir os cigarros nos cafés.

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O Grupo Leya anunciou um prémio de 100 mil euros para um romance inédito. É justo; os autores portugueses ganham normalmente 12% sobre o preço de capa de um livro, o que significa que, muitas vezes, é menos do que se paga ao autor da capa. A Portugal Telecom, que é portuguesa, entrega o seu maior prémio literário no Brasil, cerca de 55 mil euros – e nenhum em Portugal.

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FRASES

"Não há nada com menos interesse do que o lugar onde se nasce. Importante é onde e como se morre" Leonor Pinhão, ontem, no CM

"Sou anónimo, mentiroso e cobarde mas também tenho os meus rigores" Maradona, no blogue A Causa Foi Modificada

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janeiro 08, 2008

Blog # 2

Há períodos de desvario. Estamos a atravessar um deles. A propósito da lei antitabaco, o País divide-se, metendo a sensatez no bolso. O ‘legislador’ quis banir o tabaco mas esqueceu-se de regulamentar a lei, deixando-a cheia de buracos. Diante disso, a DGS e a ASAE legislam agora por conta própria (como se pudessem) e querem que ela se cumpra se com ‘pareceres’ e ‘interpretações’, à razão de uma ou duas por semana. Felizmente, o bom senso regressa depois das bravatas de uns pelotões da PSP e da GNR que foram chamados para apagar cigarros: fumadores fumam onde é permitido; não-fumadores não fumam. Talvez seja o melhor método.

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Depois de ter bebido uma garrafa de uísque no bar de alterne em que trabalhava, em Sta. Maria da Feira, uma mulher entrou em convulsões, com sintomas de intoxicação alcoólica. Um bombeiro tentou metê-la na ambulância – foi agredido a murro pelos seguranças, que não queriam ruído a estragar o negócio. O País real tem histórias destas, generosas, em defesa da produtividade.

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Obama parece um boneco de acrílico, colorido e sorridente, que toda a gente – fora da América – parece apreciar. Ele sabe que é atraente e sorri ainda mais. A França também está sorridente e festeja Carla Bruni, a musa de Sarkozy (já foi de todos nós, o que é uma vergonha). O rosto amável da política hoje faz-se de plástico.

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FRASES

"A Universidade de Coimbra é cada vez mais uma universidade provinciana" Gomes Canotilho, professor da UC, no Correio da Manhã

"Já não se pode fumar na Cinemateca, mas ainda se pode escrever nas paredes da casa de banho." Rogério Casanova, no blogue Pastoral

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janeiro 07, 2008

Blog # 1

Luiz Pacheco, que morreu no sábado, não gostaria que o chorassem como “o desgraçado do Luiz Pacheco”. Ele foi assim porque quis e porque pôde. Tinha da vida essa ideia e é tão ridículo levar-lho a mal como amaldiçoar os que seguiram outro caminho. Fora isso, foi autor, editor e leitor meticuloso (cruel, generoso, previdente), ficará como um registo único da literatura do século XX. Para a maioria, não é bem por esses motivos que ele fica na memória – mas pelo seu destino e pela personagem corrosiva de que interpretou todos os episódios excessivos, como um herói da rua. Uma parte dos seus admiradores apreciava-o como o jogral do diabo. Não se gosta de ser Luiz Pacheco.

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Um estudo na Maria Regina Rocha sobre a qualidade dos manuais escolares mostra resultados fatais para o ensino do Português. Não se trata apenas de “má qualidade”, mas de uma assombrosa soma de erros, inanidades e disparates produzidos nos últimos anos. Parte da responsabilidade é do Ministério da Educação, cujos pedagogos e ideólogos andaram à solta durante anos suficientes para produzir a catástrofe que se vê: não apenas os alunos não sabem ler como alguns autores de manuais deviam ser impedidos de escrever.

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Sarkozy portou-se como um cobardolas. Ceder às ameaças da al-Qaeda foi mais um passo para tornar o Mundo ainda mais perigoso. Cancelar o Lisboa-Dakar significa que, a partir de hoje, um bando de barbudos pode exigir-nos o passaporte onde quiser, dentro da nossa própria casa. Um dia destes os barbudos vão impor a sua lei nas nossas ruas, já que a impõem no deserto, como a impuseram em Atocha e em Cabul. Daqui em diante, também graças à França, o céu do Sahara tem arame farpado.

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FRASES

"Quando mato alguém fico um bocado deprimido.” Manuel Pedro Ramalho Dias, aliás Manuel ‘Alentejano’, ontem in Correio da Manhã

"Pior que um Estado intervencionista (...) é um Estado minimalista que joga sempre a seu favor.” Hidden Persuader, no blog Bicho-Carpinteiro

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O inútil louco de Barents

Mal atravessávamos a ponte entre Puttgarden e Rødby, entre a Alemanha e a Dinamarca, começava o Longínquo Norte – escrevo-o com maiúsculas porque é um território fatal. Nesses anos, oitenta, comíamos bolachas e abríamos latas de conservas nas carruagens dos comboios. Havia conversas intermináveis que a idade interrompeu. Nunca mais seremos jovens e raramente atravessaremos a fronteira para Rødby. Tínhamos mochilas e cadernos, horários de comboios e coleccionávamos coisas disparatadas – postais ilustrados, caixas de fósforos, maços de cigarros, bilhetes de autocarro, bilhetes de entrada em museus. As viagens eram disparatadas como nós. Imagino uma viagem como as de antigamente, quando o mundo era mais seguro e eu era mais novo. Não tínhamos acesso à internet e poupávamos moedas para telefonemas curtos em cabines de estações ferroviárias. Nesses anos, depois de Rødby havia ainda uma curta viagem até Copenhaga e, de Copenhaga, havia percursos para o mais norte do norte, até Honningsvåg (o Cabo Norte), onde começaria o percurso para a viagem que mais me fascinava, até às ilhas Spitzberg, a meio caminho do Pólo – apenas para visitar Longyearbyen ou, para os mais afoitos, Ny-Ålesund, uma cidade semi-deserta na península de Brøgger, onde não há pássaros, onde não há árvores e onde os picos negros das montanhas se erguem sempre para lá das neblinas, a 1000 quilómetros do Pólo Norte. Céu escuro de cinza e gelo – o cenário das Spitzberg, o arquipélago originalmente chamado Svalbard, tinha-o conhecido nas sagas islandesas do século X, se bem que os historiadores refiram que as ilhas foram ocupadas ou descobertas pelos vikings apenas no final do século XII.

O meu personagem favorito, nesse recanto do mapa, era Willem Barents, o holandês que no século XVI redescobriu as ilhas enquanto procurava uma passagem para a China entre o gelo do Norte e as tempestades permanentes do mar que ficou com o seu nome. Acabou por morrer em Novaya Zemlya (Nova Zembla), na Rússia, em 1596, no termo dessa expedição que nunca se concluiu.

Barents, que nasceu à beira do mar tranquilo da Frísia, é um navegador ao contrário de todos os outros do seu tempo e para mim sempre foi um mistério. Quando toda a Europa se preocupava com o domínio dos mares a Sul, enfrentando os demónios de África e da América, festejando as rotas dos trópicos, apaixonando-se perdidamente pelo novo paraíso prometido entre águas cálidas e vegetação deslumbrante, Willem Barents partia para o Norte – onde não havia mais do que o deserto. O seu sonho (como o de Roald Amundsen) era o descobrir passagens entre continentes, coisa que hoje não será considerado de grande utilidade. Uma viagem até Ny-Ålesund custará cerca de 3 000 euros e é – também – completamente inútil, se considerarmos que não tem importância relevante o facto de ali estar a linha de caminho-de-ferro mais ao norte do mundo nem uma comunidade científica que observa a forma como os gelos se desagregam e o planeta se perde.

Na verdade, o mundo é hoje um mapa povoado de placas de sinalização onde pouco mais há a descobrir. O leitor, em pleno mês de Janeiro, quer ouvir falar de tudo excepto de um arquipélago onde não vivem mais de duas mil pessoas, sitiadas pelos degelos e pela velocidade do vento que vem do Norte, intenso, frio, negro.

Visitar o mar de Barents, a norte de Murmansk, limitado a leste pela ilha de Novaya Zemlya, é também uma viagem inútil. Contaminado, destruído pelos dejectos da velha marinha soviética e da exploração de petróleo, lembra-me apenas o louco navegador holandês que ali morreu à espera da Primavera, para tentar chegar à China pelo Norte do mundo. Coisas inúteis e fantásticas. É delas que se faz o espírito da viagem.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Janeiro 2008

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janeiro 06, 2008

Novidades

janeiro 05, 2008

Recordações das ilhas


O cronista despede-se dos leitores com os sabores do Espaço Açores, em Lisboa.

Durante os dois últimos anos escrevi sobre restaurantes neste espaço. A Academia Portuguesa de Gastronomia decidiu premiar estas crónicas com argumentos que muito me honram e que recordarei com gratidão. Foram sempre uma e a mesma crónica; esforcei-me por escrever bem, por escrever com sinceridade e por escrever com prazer. Despeço-me hoje agradecendo aos leitores a paciência e a credulidade. Julgo que mereço ambas. Esse tempo acabou e termino com uma evocação que me parece igualmente justa: os Açores.

Sempre que me lembro das ilhas penso num último momento de felicidade absoluta. A gastronomia fala da sensação, sem incómodo nem pesadelo: não existe prazer sem evocação, deslumbramento, delírio, até imaginação – ou mentira, a suavíssima mentira que melhora os condimentos e acrescenta a arte. Tanto a crítica literária como a de restaurantes se ressente das tecnocracias que as dominam de tempos a tempos. Suponho que um restaurante não pode reduzir-se, como pensam as modernas ASAE do espírito e da alimentação, a um laboratório. Alguma alma deve flutuar mansamente, alguma recordação deve harmonizar a nossa presença dentro dessas quatro paredes onde por vezes nos alimentamos, onde tantas vezes nos perdemos de paixão e onde outras tantas nos resignamos ao que as coisas são. E as coisas são cada vez mais propícias ao novo-riquismo e aos dicionários técnicos.

Não é disso que nos fala o Espaço Açores, herdeiro do Bambino d’Oro, mas cuja lista desenvolveu uma agradável sabedoria onde se mistura a vontade de agradar a paladares modernos e a ideia de conservar o essencial de uma carta açoriana, de marca muito micaelense, desde o universal queijo com pimenta da terra, às saborosas e suculentas lapas na grelha (regadas com um nadinha de limão galego, se houver), além das morcelas regionais, da salada de favas, ou dos carapauzinhos (os chicharrinhos de boa memória). Esta proposta de entradas é um portal que se abre sobre a simplicidade comovente da cozinha açoriana no seu conjunto, feita de ingredientes simples e muitas vezes pobres, mas a que o tempero ilhéu empresta sabedoria e alcance.

Um passeio pelos peixes mostra-nos a embaixada do mar dos Açores, desde logo no arroz de lapas, nas lulas guisadas (com o seu molho intenso, forte, acessível), o polvo “à regional” (que sempre me soube à ilha do Pico), a moreia e a abrótea, peixes-emblema do arquipélago, juntamente com o rocaz (uma verdadeira experiência a reter) ou o boca-negra, além da cavala, do atum ou do mero. Nesta altura, a linguiça com inhame, que vinha da mesa de entradas, já me tinha devolvido o estômago à condição mais sentimental; estava preparado para um alcatra à terceirense, mas, em gincana, passei pelo coelho bravo e aterrei no feijão assado – um primor: elegante, sedoso, com a secretíssima vibração das grandes cozinhas de família das ilhas. Um dos comensais estava ainda perdido em jogos contemplativos, mirando de alto o seu polvinho – um mimo, pensei, roubando um nico. Provei assim um no Pico, excelente, guisado, escuro, denso. Para terminar, recordando o bife do Alcides, em Ponta Delgada, testei o bife micaelense, muito suculento e firme, arredondado, volúvel como uma princesa das ilhas, saboroso.

Na hora das sobremesas, aguardei o meu pudim de maracujá, uma tentação permanente, mas a lista fornece outras opções, como o excelente queijo com doce de capucho (uma experiência a tentar, sem dúvida, caso não conheça), o pudim de chá, o pudim de coco ou o bolo de caramelo.

Estas coisas lembram-me momentos de intensa harmonia do mundo e uma velha aguardente do Pico, de há muitos anos. Na época, fumava-se nos restaurantes, e havia tempo para um “Beldina” micaelense, de tabaco maduro, ou, mais cosmopolita, para um robusto da Fábrica Estrela. Saí do restaurante com uma sensação de melancolia, que é o que me dá mal chego aos Açores. Depois, sobrevém uma alegria intensa. E é a vida.
Assim me despeço.

À Lupa
Vinhos: ***
Digestivos: ***
Acesso: ***
Decoração: ***
Serviço: ***
Acolhimento: ****
Mesa: ****
Ruído da sala: ** *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 47
Vinhos brancos: 16
Aguardentes: 14
Colheitas tardias & moscatéis: 8
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 16

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: à noite
Preço médio: 18 euros

Espaço Açores
Largo da Boa Hora (Junto ao Mercado da Ajuda)
1300 – 098 Lisboa
Tel. 21 364 08 81

in Revista Notícias Sábado – 5 Janeiro 2008

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Um adeus ao deserto

1. O Lisboa-Dakar foi anulado. O mundo está perigoso, cada vez mais perigoso, e o festival de carripanas a atravessar o deserto já não pronunciará este ano aquelas desi­gnações fantásticas, como Marro­cos, Atlas, Mauritânia, Senegal. Num mundo sitiado pela indiferen­ça e pela monotonia dos destinos turísticos, o Lisboa-Dakar era uma espécie de intromissão do desconhecido e da paisagem que todas as noites entrava nas nossas televi­sões. Sinceramente, carripanas é o que há mais e o automobilismo não me comove - mas é a mim, cuide o leitor. Eu ficava fascinado, sim, com as paisagens, com o deserto, com o sol. Atravessei-o em jipe também, numa prova para amado­res, e fiquei fã. Fã das paisagens e dos pneus furados, da lentidão da marcha e das paragens a meio das dunas para contemplar o céu, o anoitecer, o rasto de estrelas no meio da escuridão, o ruído dos ani­mais desconhecidos. Mas o mun­do está perigoso, cada vez mais perigoso. Um passeio no deserto também já é um risco; um dia, esta­remos sitiados dentro de nossas casas, ameaçados na nossa rua. Não estranhem.

2. Carlos Paredes ficou na praia e re­gressou uns dias depois porque, provavelmente, as águas dos rios paraguaios são mais saborosas do que o banco de suplentes de Alvalade. Com Liedson, parece que afinal o brasileiro não conseguiu desmentir as declarações sobre "a ditadura" e o "quartel-general", e lá veio com aquele ar de semi-esfinge egípcia. Já Paulo Bento foi claro: "Ficava mais preocupado se houvesse anarquia. "À primeira vista, não precisa de se esforçar muito mais.

3. Sou contra estas "paragens de Inverno" no campeonato portu­guês. O argumento de que são uma pausa para dar descanso à rapazia­da não me convence; se é pelas "festas", mais vale aproveitar para ir ver jogos ao estádio; se é pelo frio, pensem na Finlândia. No ano pas­sado, a "paragem de Inverno" foi funesta para o F. C. Porto. Este ano, para reabrir o campeonato, Jesualdo disse que "no futebol nada se re­pete", querendo isto dizer que está preparado para o combate. O pro­blema é que a tragédia nunca se prevê; é sempre uma ameaça à es­pera de ser desmentida.

4. Durante a "paragem de Inverno", para felicidade dos adeptos de bom futebol, vimos jogos ingleses. A ver­dade é que uma disputa entre os dois últimos da Premiership inglesa é mais emocionante do que a larga maioria dos jogos da primeira meta­de do nosso campeonato. Não é vontade de dizer mal; o leitor avalie. É com esta manada de jogadores - relaxados, com férias de Inverno e físico enregelado, que entramos no novo ano. Às vezes não percebo como a Liga ainda não pensou em mudar a meteorologia por decreto.

Nota de Redacção do JN: Francisco José Viegas assina hoje a última crónica "Topo Norte". O "Jornal de Notícias" agradece a colaboração prestada desde de 2004.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 5 de Janeiro 2008

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janeiro 04, 2008

Preciso de silêncio


Francisco José Viegas, o escritor que o grande público conhece dos seus vários programas televisivos e que, na escrita, já experimentou de tudo – desde o romance ao teatro, passando pelas crónicas de viagem e até pelos guias – apresenta no dia 10, às 18h30, na Casa Fernando Pessoa, Lisboa, o seu mais recente livro de poesia.

‘Se me Comovesse o Amor’ – assim se chama a obra – será apresentada por Pedro Mexia e ao Gato Fedorento Ricardo Araújo Pereira caberá a tarefa de ler alguns dos poemas que a integram. Poemas que, no dizer do próprio autor, não falam de amor, mas que se oferecem como uma viagem por alguns dos lugares que visitou recentemente.

“São coisas muito novas e muito diferentes daquilo que tinha feito até agora: são poemas narrativos, que contam histórias e foram escritos nos mais diversos locais. Na Terra do Fogo, Brasil, Patagónia... Reflectem o meu olhar naquele momento sobre aquelas paisagens”, revela.

‘Se me Comovesse...’ é, também, e como todos os seus trabalhos de cariz poético, um livro que se construiu ao sabor da inspiração. Sem método. Sem disciplina. Nada que se assemelhe ao regime espartano a que o escritor se submete voluntariamente quando está a escrever romances. Aí, garante, levanta-se todos os dias às quatro da manhã, para trabalhar.

“Sou, tendencialmente, uma pessoa matinal. Detesto noitadas. Aliás, as noitadas cada vez me irritam mais... Gosto de escrever pela madrugada e pela manhã, sobretudo quando estou na fase final, a terminar os livros”, afirma.

A capacidade para se autodisciplinar é, de resto, fundamental para alguém que queira viver da escrita e Francisco José Viegas – que também é jornalista – sabe-o bem. Por isso, mesmo sem a pressão dos editores, é ele próprio quem se atribui prazos para terminar as suas histórias. E tem isto como certo: dê por onde der, entre três a quatro horas diárias têm de ser dedicadas à literatura.

E se Agatha Christie só conseguia escrever enquanto mastigava maçãs e Malcolm Lowry precisava de cerveja como de pão para a boca, o escritor diz que não se serve de truques nem de bengalas. Duas coisas o inspiram, apenas: a música e a fotografia. “Todos os meus romances têm uma banda sonora e foram escritos ao som de música – normalmente instrumental, música clássica, Brian Eno...”, conta. “A fotografia é-me indispensável. Fotografo todos os locais por onde passo e sirvo-me das fotos como bússolas, porque tenho mesmo de ver como as coisas são. A realidade é sempre mais espantosa do que a ficção.”O resto, é sossego. “Preciso do silêncio. Não sei criar de outra forma.”

LIVRO DE CABECEIRA: Estou a ler ‘Deus não é Grande’, um ensaio de Christopher Hitchens, e ‘A Morte de Portugal’, do Miguel Real. Também tenho livros para adormecer...

PIOR VÍCIO E MELHOR VIRTUDE: O meu pior vício é fumar. A melhor virtude... talvez seja gostar dos outros.

MÚSICA PREFERIDA: A minha canção preferida é o clássico ‘Like a Rolling Stone’, do Bob Dylan.

DESTINO IDEAL DE FÉRIAS: Qualquer país da América Latina me inspira.

in Correio da Manhã - 4 Janeiro 2007

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