novembro 29, 2007

Finalmente, novas leituras


OS DIAS DE GLÓRIA

Envelheces tanto de cada vez que o dia termina
e olhas para trás. Tens medo do começo do fim,
das tardes de domingo; um dia, distraído,
tens medo do sexo, da amabilidade e da noite,
e dos rostos que foram belos – e não são mais.
Envelheces muito
quando o mundo contraria as pequenas coisas,
sentes esse cansaço, nada a fazer.
Mesmo da poesia, que iluminava o tempo, vais
colhendo apenas a amargura; os outros procuram nela
sinais de um destino, datas curiosas, zangas, ventanias,
armadilhas, mas tu sabes – e só tu sabes –
que a tua vida é a tua vida e que o poema
é empurrado por outro sopro, por um reflexo,
um medo brutal, pela memória dos que morreram
e levaram uma parte de ti, um pouco do que havia
de comum entre ti e a vida, esse desperdício – às vezes –,
esses momentos de glória em dias felizes.
Envelheces com os ossos que envelhecem.
Envelheces sem querer.
Por ti serias eternamente jovem, adolescente,
e percorrerias as estradas das serras, as florestas,
não para viveres sempre, mas para estares vivo
mais um instante, porque o espectáculo é belo
uma vez por outra.
Envelheces pouco a pouco,
porque as coisas não são o que foram nem são o que são.

Francisco José Viegas, in Se me comovesse o Amor, Ed. Quasi, Col. Uma existência de papel

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novembro 26, 2007

Orgulho hetero, orgulho gay

A cerveja Tagus lançou uma campanha publicitária intitulada “Orgulho Hetero” para dar mais visibilidade à sua cerveja. Pessoalmente, tanto me faz que seja heterossexual como homossexual ou bissexual, desde que seja uma cerveja aprazível – o resto é publicidade. O que a campanha “Orgulho Hetero” retoma é o lema “Orgulho Gay”, tentando criar a ideia de uma cerveja para machos. Erro crasso. Como oportunamente lembrou o blogue “A Causa Foi Modificada”, hetero que é hetero não menciona o facto; limita-se a nem falar do assunto.

De resto, as imagens da campanha da Tagus são tendencialmente idiotas, mantendo-se, no entanto, ligeiramente atrás das escolhidas pela Juventude Socialista para dar conta dos grandes progressos nacionais: aparece (o leitor já viu o cartaz?) um rapazola com ar imbecil rodeado de duas teenagers igualmente dignas de fazer os coros de um cantor de feira, loira e morena (para não ofender ninguém). Este escalar do mau gosto é um prenúncio de que raramente saímos do inefável “reino da estupidez”. A Juventude Socialista que se cuide enquanto as atenções estão centradas na campanha da Tagus, cujo conteúdo foi ontem inexplicavelmente retirado do seu site. Seja como for, a ideia era criar “o primeiro espaço dedicado à causa heterossexual em Portugal”, onde era suposto “conhecer pessoas do sexo oposto, trocar experiências e divertir-te”. Idiotice pura. Já o disse: hetero que é hetero não anda em paradas hetero. Isso é coisa para exibicionistas e forcados com problemas de identidade.

O mais importante, no entanto, não foi a campanha propriamente dita, mas a reacção que motivou, chegando ao cúmulo de ver o meu amigo João Teixeira Lopes escrever que a cerveja Tagus se tornou “um signo do poder homofóbico”. “Quem a beber é cúmplice.” Os sites LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) trabalharam bastante, assinalando a concordância de género e número entre a expressão “orgulho hetero” (que foi associada a “opressão e discriminação”) e ódio não sei a quê, mas sobretudo a lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Não me parece. Parece-me, antes, que a campanha publicitária não é escandalosa, nem ofensiva, nem homofóbica. Fica na memória pelas más razões, mas eu não a subscreveria nem imaginaria. Simplesmente, a reacção indignada, quase histérica e cheia de exageros, acusando-a de homofóbica, é mais ridícula do que a campanha propriamente dita e configura uma patrulha sobre toda e qualquer linguagem, engrossando a classe dos coitadinhos e das vítimas de tudo e de nada.

Essa patrulha ideológica, vigiando cada distracção, cada frase mal pronunciada, cada piada ou anedota, cada opinião, cada divergência, cada afrontamento, cada violação das regras linguísticas do “politicamente correcto”, é que me parece contraproducente. O ar escandalizado e beatífico com que se condena o humor ou as falhas de humor e se politizam coisas tão banais como uma cerveja razoável, são um sinal dos tempos. Afinal, que mal há na declaração ou na reivindicação de “orgulho hetero”, à parte a irrelevância do próprio conceito?

Como assinalou João Gonçalves no seu blogue “Portugal dos Pequeninos”, “quem é verdadeiramente livre, não tem de se ‘orgulhar’ ou de pedir desculpas por tudo e por nada. E, no limiar do ridículo, de facto a melhor resposta a um ‘orgulho homo’ é um ‘orgulho hetero’.”

Andamos vigiados. Precisamos de contar anedotas sobre brancos, pretos, judeus, muçulmanos, gays, machos, mulheres, loiras, morenas, católicos, papas, padres, rabinos, alentejanos, açorianos, portuenses, lisboetas, o que for. Para ver se somos gente normal. Ou se só copiamos os estereótipos politicamente correctos.

in Jornal de Notícias – 26 Novembro 2007

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novembro 24, 2007

A esperança mantém-se


Depois de uma jornada de fúria contra as autoridades alimentares, o cronista foi ao Bairro Alto. E regressou vivo.

Tiram-nos cada vez mais coisas. Não é por maldade, mas por vício e distracção. Como referiu Gonçalo dos Reis Torgal (numa saborosa interven­ção intitulada "Quem não comeu já não come", apresentada na Figueira da Foz sob os auspícios das confrarias do Sável e da Lampreia e da Vitela Barrosã), nós não dissemos nada quando começa­ram a roubar-nos o que não devíamos ter deixado que nos roubassem. Digo-vos que é um texto notá­vel, onde se faz um levantamento dos assaltos que as autoridades (e, entre elas, a ASAE) fazem ao nosso estômago e à nossa liberdade.

Se Camilo José Cela lembrava que os motores da acção humana se relacionavam sempre ou com a vontade de poder, ou com o estômago ou com o sexo, pois concordemos que estamos numa encru­zilhada civilizacional. Explico porquê. A ideia de poder (que Cela enunciava de modo mais cru, como "vontade de mando") já nos não pertence; o que o nosso estômago vai trabalhando, há-de ser decidido cada vez mais pelas autoridades e pelos dietistas ou pelos estetas; o sexo, ah, o sexo, há-de vir a ser regulado superiormente – basta esperar – para que não seja selvagem. Riam, riam de mim; mas mostrem-me a lampreia de antanho, a que subia os rios e não era criada em viveiro (importa­da do Canadá, senhores), mostrem-me o velho bacalhau de cura amarela secado ao vento, mos­trem-me os pães onde o pequeno guiço de pinhei­ro, carbonizado, lembrava o vetusto forno onde a farinha levedada ganhava carácter e era sacrificada.

"Não há volta a dar-lhe", lembrava um amigo ainda mais céptico do que eu. E citava: "Quem não comeu já não come." Entristecemos os dois. Entristece uma geração cujo estômago ainda foi mimado com molhos ancestrais e vinhos frescos, com queijos comprados em quintas e peixe que desconhecia as paredes do aquário, com arroz do Mondego e centeio do nobre e frio Barroso, com batatas que não vinham da Holanda e bacalhau que não era perseguido pelas autoridades.

E, até, com um Bairro Alto que não estava entregue (aqui começa a minha alarvidade reaccionária) à fauna grotesca que lhe caga as paredes e as ruas, espalhando seringas e beatas de charros de baixa qualidade, entre álcool adulterado e vestuário "gótico" de quem não lava o cabelo nem o buço, misturando cachorros em pão sintético e lixo semeado durante a noite. Não tendo a nostalgia do Bairro Alto, vou pelas suas ruas sem aqueles arrou­bos românticos de cantores vagamente "kitsch", limito-me a procurar o endereço do restaurante Esperança, na Rua do Norte, para um almoço sim­ples "em ambiente sofisticado", como me tinham prometido. Aí vou eu, entrando, para comer um "risotto di funghi porcini", que me apetecia.

O Esperança, aberto num antigo espaço de taberna e mercearia, foi recuperado a preceito e é um espa­ço agradável e sereno, sobretudo à hora de almoço, com poucos comensais. Cardápio curto e apropria­do para digestões simples – com uma lista de pizzas a ocupar uma página inteira, e de que me não ocupo. Prefiro as pastas, ali distribuídas por "penne" com cogumelos, o já habitual e populari­zado "spaghetti nero e gamberi", uns supimpas "penne bresaola, pomodoro e funghi", os "linguini pomodoro zucchine e ricota", os "tagliatelle" com "aglio, olio, peperoncino e pomodoro seco". Diante desta frugalidade, fazer o quê? Comer. O meu apetite estava encalhado logo nas entradas, onde pontificavam um queijos grelhados na chapa, muito suculentos. À minha volta, pós-adolescentes comiam pizza e gabavam-lhe o ar estaladiço, eu compreendo-os: não tinham espinhas. O ambiente tranquilo e a decoração, com mármores e madeiras, convidaram-me a provar o "carpaccio" de polvo, temperado com gosto e suavidade (havia, também, "carpaccios" de mero, de bacalhau, de novilho e de espadarte), para o que usei mais os olhos do que o estômago. Os "tagliatelle" estavam naquele ponto ideal de abertura metafísica, belíssi­mos – o café final era bom. A minha irritação acer­ca do Bairro Alto retrocedeu um pouco.

Para a semana mudo de digestão e entrarei no Farta-Brutos, ainda no Bairro Alto lisboeta, em busca de coisas violentas.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 28
Vinhos brancos: 16
Aguardentes portuguesas: 6
Uísques: 12

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: muito difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável ao almoço
Preço médio: 25 Euros

RESTAURANTE ESPERANÇA
Rua do Norte 95 - Lisboa [Bairro Alto]
Tel: 21 343 20 27
Encerra 2a e 3a à hora de almoço

in Revista Notícias Sábado – 24 Novembro 2007

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O que Scolari devia ter dito, tchê!

1. Scolari tem razão num ponto: Portugal vai ao Euro, e isso é indesmentível. Cumpriu a sua função. Mas tem de responder às perguntas que os jornalistas lhe colocam – está no seu caderno de encargos. Por exemplo, se alguém lhe perguntasse se estava contente com o futebol praticado durante esta fase de apuramento, Scolari deveria ser aconselhado (ele vive muito de conselhos) a responder com bonomia brasileira em vez de usar a teimosia da serra gaúcha (Passo Fundo está cheio de exemplos). Podia dizer coisas simples que toda a gente compreende, com aquele canto da boca cheio de ironia: “É, olha, foi uma merda, mas olha, nós vamos ao Europeu e os ingleses ficam em casa. Foi uma merda, mas olha, isto não é o fim do mundo.” Toda a gente entenderia. Somos generosos compulsivos.

2. Scolari podia ter falado com a sensação do dever cumprido. Não. Preferiu falar com a ideia de que tem o rei na barriga, o que não é verdade. Daqui até Junho de 2008, de qualquer modo, vai irritar-se mais vezes.

3. Mas, tchê, até poderia falar como um gaúcho: “Foi a laço e espora, mas eles abriram cancha. Teve alturas em que os guris, esses potrilhos, se mostraram colhudos, aguentando o repuxo, porque esteve duro de pelear. Mas bah, capaz! Foi até tri-legal, se bem que tive de passar um arreio nos guapos, e alguns estiveram com o pé no estribo, mas a indiada merece. Futebol não é passar no pelego nem é pra quem usa água-de-cheiro. Às vezes tem que servir manotaço no sérvio, tem que cutucar juiz, tem que dar guasqueaço na hora. E é isso que os macanudos vão fazer lá na Áustria, vai ser barbaridade de campear pela Orópa, ganhando àqueles guascas. A gente se reserva pró fandango. Falar sobre o que passou é gastar pólvora em chimango, não adianta chorar as pitangas. Hoje o bagual está de aspa-torta, porque esteve meio enredado, mas na Copa vamos passar o relho neles que nem serrano enfrentando o minuano. Quanto a ti, jornalista, te fresquéia, gaudério, lasqueado, seu chinelão! Deu pra ti. Te liga, guaipeca!”
Oh, a gente entenderia.

4. Regressa o campeonato. Os próximos três jogos (Setúbal, Benfica e Guimarães) são decisivos para o FC Porto. A minha frase até ao fim é “ainda há muito futebol pela frente”, mas há vantagens que se adquirem e deslizes que comprometem. Os dois últimos empates foram um sinal no meio da aparente tranquilidade em que vivia o plantel; o do Estrela, então, foi mais do que isso: foi um aviso sério e, simultaneamente, um castigo à incompetência. Ganhar estes três jogos é conquistar metade do campeonato, basta fazer as contas. Mas ainda há muito futebol pela frente.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 24 Novembro 2007

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novembro 19, 2007

A ginja

O leitor ou conhece ou ouviu falar da Ginginha do Rossio, em Lisboa. De contrário, terá de acreditar na minha descrição: é um minúsculo estabelecimento de bebidas especializado na venda de uma das mais populares bebidas portuguesas, a ginginha; com clientela rápida e despretensiosa, a Ginginha do Rossio é uma referência para turistas que passam pela zona e para várias gerações de frequentadores que, por razões certamente inexplicáveis, continuam a passar pelo seu balcão e a pedir “uma com elas” ou “sem elas”. Uma ginginha. O estabelecimento nunca envenenou ninguém, sendo certo que também não é um modelo de limpeza. Mas é a Ginginha do Rossio.

O meu amigo Paulo Moreiras, romancista, dedicou à ginja dois livros exemplares. De acordo com a sua preciosa investigação, a melhor ginja é a da zona de Óbidos e a Ginginha do Rossio servia um dos melhores exemplares. Seja como for, Óbidos por um lado, e a Ginginha do Rossio por outro, enchem-se de turistas e de apreciadores que vão em busca dessa bebida simpática, comovente e em risco de vida. Como é bom que se diga, Paulo Moreiras começou a investigar a história da ginja depois de lhe terem dito, num restaurante, que não era uma bebida “à altura”.
Desta vez, foi a ASAE, Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, que partiu em busca da Ginginha do Rossio, encerrando-lhe as portas. O argumento é a falta de higiene, tendo sido capturadas algumas garrafas da bebida.

Ao capturar as garrafas e ao encerrar o estabelecimento, a ASAE estava apenas a cumprir a sua função, que está distribuída pela segurança alimentar, pela segurança de produtos e instalações, pelas questões de propriedade intelectual e industrial e também – naturalmente – pelo turismo. Ou seja, a ASAE zela pelo cumprimento da lei. E zela de forma muito eficiente, apresentando-se ao serviço público de colete à prova de bala e de gorro passa-montanhas. Por aí já o leitor vê como é arriscado o seu trabalho e como é perigoso o mister de fiscal das actividades relacionadas com a segurança alimentar. Ser atingido por uma ginja que não mencione a sua origem é grave e fatal.

Acontece que Portugal é, segundo a ASAE (e depois das suas investidas) «um dos países mais seguros no que diz respeito à higiene e qualidade dos alimentos». Isso é uma vantagem enorme. Hoje já não há castanhas assadas embrulhadas nas Páginas Amarelas nem bolas-de-berlim nas praias. A aguardente de medronho tradicional, que procurávamos na Serra de Monchique, e que já tinha sido atingido pelos incêndios, também foi perseguida pela ASAE. Há duas ou três semanas precisei de negociar uma aguardente tradicional de vinho verde, refrescada, como um americano durante a lei seca.

A Ginginha do Rossio era um monumento nacional. Uma referência que amigos italianos, brasileiros e alemães procuravam para provar uma das melhores ginginhas portuguesas. Aquele espaço tresandava a história e a convivialidade, a sorrisos largos e a um leve ondular de fígados conservados em ginja. Pois que se varrese o seu chão com mais frequência. Que se pusesse um médico à porta. O mal, porém, não é apenas o encerramento da Ginginha do Rossio, esse parapeito da história da cidade e do país. O mal é a onda de lixívia sintética que vai passando por tudo quanto é “segurança alimentar” nas vetustas tascas onde vinhos fatais fizeram literatura e, certamente, doenças hepáticas. Essa onda que prega a normalização dos costumes alimentares acabará com a pequena alma dessas nobres instituições de pecado, como a Ginginha do Rossio. Portugal aplica estas leis melhor do que ninguém. A breve prazo, agentes policiais entrarão nas nossas casas apreendendo bacalhau com excesso de sal e ginja da Beira Alta. Seremos saudáveis e faremos jogging. Tudo o resto será encerrado.

in Jornal de Notícias – 19 Novembro 2007

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novembro 17, 2007

Coisas simpáticas


O cronista em caminhada por Campo de Ourique até regressar a um lugar simpático e carismático do bairro.

Regressado de uma viagem pelos trópicos – curta mas, como convém dizer, incisiva –, retomei o hábito de almoçar cedo. A maior parte dos meus amigos almoça tarde; eu gosto de almoçar cedo. Digamos que entre o meio-dia e meia e a uma hora; é a hora em que o apetite estaciona à porta do estô­mago e as papilas ainda não estão zangadas nem far­tas de nos aturar. Depois de uma semana sem fumar, as papilas estão a realizar um esforço suplementar para reconhecer o seu lugar à mesa. Antes disso, fui à Garrafeira de Campo de Ourique visitar as prateleiras dos vinhos do Douro e das 'grappas' italianas, em busca de um tinto para festejar (não sei bem o quê) e de uma Nonino legítima (desta vez uma 'moscatto', para alternar com a 'chardonnay' habitual, alvíssima e perfumada) – e entrei na Charcutaria às 12h40. É o meu conselho idiota da semana: almoce cedo e indis­ponha-se contra o país que almoça tarde e devora com sofreguidão.

Sala minúscula, chão de calçada portuguesa. Era assim que se devia sentir Alice quando atravessou o espelho, num mundo reduzido mas arrumado, silencioso, antes de chegar a multidão almoçadeira. Na generalidade dos restaurantes olham bastante para os que vão almoçar cedo; não sei se é por prefe­rirmos almoçar cedo, se é porque ainda têm tempo para olhar. No meu caso, bastaram-me as duas empadinhas miniatura de galinha, a tacinha de patê e as fatias de bom pão de forma, caseiro e a cheirar a pão. Pedi uma cerveja para equilibrar os sucos do estôma­go e refrescar a garganta, antes de enumerar a lista dos bacalhaus: assado com batatas a murro, à Brás, espiritual (no caso da Charcutaria, tem uns camarões a coroar o gratinado), com natas e coentros, ou envolvido no 'risotto' (que também pode ser de camarão). Depois dos bacalhaus, uma série de peixes e afins – à Bulhão Pato (tratado como Bolhão), filetes com arroz de tomate e coentros, esparguete com amêijoas, polvo grelhado com batatas a murro (muito suculento, já tinha comido antes, de outras vezes), esparguete negro (de choco) com camarões - e uma lista de sopas: a de tomate com peixe e ovo escalfado, a de beldroegas com ovo e queijo de cabra, a canja de perdiz.

Seja, entremos nas carnes: pezinhos de coentrada, pastéis de massa tenra com arroz de grelos, secretos de porco preto com migas de bata­ta e couve, croquetes de lombo com arroz branco, ensopado de borrego, bife à Marrare, lebre com feijão, arroz de lebre, alheira de caça com grelos salteados, empada de galinha com salada de rúcola, perdiz com lombarda, empada de perdiz, que sei eu – a lista parece interminável numa casa tão pequena, cerca de doze mesas equilibradas com boa frequência, tirando as famílias tradicionais de Campo de Ourique que vêm buscar almoço para casa. Aprecio esse estatuto: vir buscar o almoço, enquanto se espera junto do balcão onde se guardam saladas de favinhas, lombos de rosbife, e se divisam as sobremesas mais tradicionais - além do bolo do chocolate (uma mousse que vai ao forno até garantir a sua carapaça crocante), a sericaia, o bolo de requei­jão, a encharcada, as trouxas de ovos, a bolacha de noz com doce de ovos.

Desta vez, comemos os secretos e os pastéis de massa tenra. A condizer com a casa, as doses também são pequenas mas equilibradas. Os secretos estavam maneirinhos, preferindo o tempero de coentros e alho em lugar da massa de pimentão, muito saboro­sos, mas as migas de batata e couve não passaram no exame, eram uma mistura de ambas as coisas mas sem serem migadas. O mesmo aconteceu ao arroz de grelos, a que faltavam grelos e aquela cor verde e suculenta, aquela orgia de cereal e legumes; acom­panhava os pastéis de massa tenra, cujo recheio era generoso e saboroso, cheio de odores mal se cortava a carapaça, com uma massa frágil, leve, educada.

Bebemos os cafés depois das sobremesas, muito aprazíveis. Reparei que não havia fumadores nas mesas em redor – e eu continuava sem fumar, com a vantagem de (ao contrário do Diogo Infante, meu malandro) não ser pago para isso. Num último momento, não resisti e encomendei uma Ramos Pinto, aguardente de eleição, com o segundo café. Caminhei até ao Jardim da Parada aproveitando o que resta da tepidez do Outono, sonhando com um terraço dependurado sobre as montanhas e um cadeirão para me sentar a fumar um charuto. Uma semana de estoicismo para isto.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 42
Vinhos brancos: 12
Espumantes & Champanhes: 5
Portos & Madeiras: 1
Uísques: 16
Aguardentes & Conhaques: 5

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: há parque público
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável ao almoço
Preço médio: 20 Euros

RESTAURANTE CHARCUTARIA
Rua Coelho da Rocha, 97
1350 Lisboa
Tel. 21 3969724
Encerra aos domingos e feriados

in Revista Notícias Sábado – 17 Novembro 2007


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O regresso dos repolhos

1. Já vos falei do Estrela da Amadora-FC Porto? Creio que sim. Falo do Estrela-FC Porto desde há uma semana, e alguém me deve ter ouvido. A primeira sensação, mal o jogo terminou, foi a de vergonha. Não por mim, que não joguei – nem por Jesualdo Ferreira, que vi fora das quatro linhas. Mas por aquele grupo de repolhos que vagamente se movimentava em campo. Vergonha sem remissão aparente é isto: ser a equipa campeã nacional, estar a ganhar por 2-0 a cinco minutos do fim do jogo com o Estrela da Amadora, e acabar por garantir o empate. Ou seja, foi uma derrota. Como é que isto aconteceu? Da forma que todos vimos: por infantilidade. De quem é a culpa? Isso é outra questão.

2. Uma coisa é dizermos que a culpa é de Jesualdo Ferreira por ter permitido que aquele conjunto organizado de repolhos preguiçasse a partir do 2-0. Não estou a desvalorizar o Estrela da Amadora, que até poderia ter ganho o jogo (se empatou a dois golos, é porque esteve a um passo da vitória); simplesmente trata-se da equipa que é candidata ao título pelo terceiro ano consecutivo, num fim-de-semana decisivo antes de outra paragem desmobilizadora no futebol português. Jesualdo alertou a equipa para os perigos da preguiça, ou mandou que eles preguiçassem? E precisava?

3. Outra coisa é dizermos que a culpa é daqueles rapazes. Eles são maiores de idade, aparentemente responsáveis e quase adultos, com um lastro de futebol em ambos os pés. Então, porque aconteceu o que aconteceu? Porque estava previsto que isto acontecesse e porque é esse o jogo do FC Porto depois de marcar e de aproximar-se do fim do jogo com a vitória na trouxa.
Está na altura de mudar. Definitivamente, se me faço entender.

4. Depois do último jogo europeu do SC Braga escrevi aqui que tinha sido futebol de primeira, uma coreografia de elasticidade e de controlo dos corredores de ataque diante da baliza adversária. Contra o Sporting, em dois fragmentos da partida, o Braga marcou três vezes. Muita gente perguntou: onde estava este Sporting de Braga? Estava lá. Sempre esteve lá, mas desta vez saltou o muro.

5. Sem pôr em causa a gravidade da agressão ao jogador do Celtic, gostaria de deixar uma pergunta lateral sobre a pena de seis jogos de suspensão ao camaronês Binya, do Benfica: se se tratasse de um jogador branquinho, belga ou alemão, ou inglês, teria apanhado seis jogos?

6. Luiz Felipe Scolari faz um balanço positivo do seu afastamento do banco. Para o treinador da selecção, “o grupo uniu-se” depois do castigo aplicado pela UEFA. Sem querer correr o risco de fazer piada fácil, não me parece uma conclusão muito positiva para Scolari.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 17 Novembro 2007

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novembro 15, 2007

"O mar de Casablanca" - novo romance


Francisco José Vieigas revelou em mais uma Tertúlia do Casino Figueira que o seu próximo livro se chamará “O mar em Casablanca” e trará de volta o já famoso inspector Jaime Ramos.

Com moderação do jornalista Carlos Vaz Marques, o autor falou da sua obra e de como constrói a sua personagem principal. A história começa com o aparecimento de um cadáver no Palace de Vidago durante uma festa, aproveitando precisamente o evento que marcou o encerramento o edifício para obras de remodelação a cargo do arquitecto Siza Vieira. A sugestão foi do próprio administrador, António Pires de Lima, para que Francisco José Viegas aproveitasse o cenário do Palace para um dos seus livros. A acção desenrola-se também em Angola e Brasil, fazendo jus à forte ligação emocional que o autor mantém desde há vários anos com aquele país.

O autor acaba, aliás, de regressar do Brasil, onde pode assistir, num festival de cinema de língua portuguesa à adaptação de “Longe de Manaus”. O romance foi uma das quatro obras escolhidas para serem adaptadas a cinema para o festival e, afirmou Francisco José Viegas, “encheu-me de orgulho e contentamento”. O guião, que é no fundo a biografia do Jaime Ramos, foi escrito por Marçal Aquino e Newton Cannito, expoentes do guionismo brasileiro que “fizeram um excelente trabalho em torno da figura de Jaime Ramos”, afirmou ainda o autor. “Além de me terem dado imensas ideias para o meu próximo livro, que eu vou aproveitar”.

in O Primeiro de Janeiro Online - 15 Novembro 2007

novembro 14, 2007

Entrevista no Estado de S. Paulo


A escrita híbrida é o tema da terceira edição do Fórum das Letras de Ouro Preto, que reúne até domingo 60 escritores do Brasil e do exterior, entre eles o premiado autor português Francisco José Viegas, que veio lançar seu Longe de Manaus (Editora Record, 352 págs., R$ 48). Viegas chega acompanhado de outros colegas convidados de países lusófonos, entre eles os angolanos José Eduardo Agualusa e Ondjaki. Ele morou no Brasil e faz, em Longe de Manaus, uma viagem pela língua portuguesa, traduzindo como nenhum outro o hibridismo temático do encontro mineiro, do qual participa no último dia, debatendo com os escritotes Marçal Aquino, Tony Belloto e Newton Cannito o romance noir e o diálogo entre literatura e cinema.

No livro, sobre crimes e pessoas que somem sem deixar pistas, Viegas conta a história em português de Portugal, depois em português do Brasil e, finalmente, mistura os dois num caldeirão étnico em que a língua vai formatando o indivíduo - no caso, o narrador de um romance policial que não é bem o que promete, mas outra experiência híbrida entre gêneros. Longe de Manaus é, ao mesmo tempo, ensaio filosófico, tratado estético, manifesto poético e estudo antropológico sobre a evolução de uma língua. Francisco José Viegas concedeu uma entrevista ao Estado sobre Longe de Manaus, prêmio de melhor romance da Associação Portuguesa de Escritores de 2006.

Você já disse que seu pessimismo, em alguns momentos, ultrapassa o de seu inspetor Jaime Ramos. Essa é uma característica portuguesa, como a melancolia e a solidão?

Eu acho que não sou pessimista; sou cético. É uma questão metodológica. O cético é muito mais feliz, porque mantém uma relação mais divertida e saudável com a realidade. Agora sobre o pessimismo português, ele existe, sim - mas é uma espécie de produto turístico, tal como a melancolia, bom para ver ao longe. De perto é muito triste. Pessoalmente, acho que o pessimismo português e o fado são o resultado de uma mentalidade melancólica mas mesquinha e provinciana. A gente vendeu essa imagem durante anos, juntamente com o fado, a desgraça, as padarias e os pobres Manéis e Joaquins, mas Portugal mudou bastante nos últimos anos, se bem que isso não se note pela nossa literatura. Em Longe de Manaus, a solidão portuguesa tem a ver com a procura da felicidade longe de Portugal, esse tem sido o destino de muitos portugueses: partir para qualquer lado, fugir. Por isso os portugueses são geniais quando estão fora do país, são inventivos, mais cosmopolitas, menos presos ''''à terrinha''''.

Há 16 anos você criou o inspetor Jaime Ramos, um homem vulgar, cético e pessimista. Você já conheceu uma personalidade tão complexa quanto a dele, que é ao mesmo tempo delicado e tranqüilo? Certamente ele não é seu alter ego...

É capaz de ser, também, uma espécie de alter ego, sim. Eu gosto bastante dele, protejo-o, sinto uma grande cumplicidade nestes oito livros em que ele atua. Mas à medida que ia trabalhando com pessoal da polícia de investigação ia descobrindo pessoas assim, com esse grau de complexidade e capacidade de surpreender. De alguma maneira, ele é uma figura amável e que torna amável até coisas aparentemente pouco simpáticas: é um conservador, um pequeno-burguês, um homem culto, amoral, desejoso de passar despercebido. Os modelos de detetive clássico dão sempre a imagem de um homem alcoólatra, meio em conflito com a família, a casa, a sociedade. Jaime Ramos foge a esse esquema.

Longe de Manaus é escrito metade em português de Portugal e metade em português do Brasil. A língua, em certa medida, conduz essa narrativa e a história de crimes em ex-colônias portuguesas. Como a alegoria entra nessa história? Será o português do Brasil uma evolução natural do português de Portugal?

Eu vivia no Brasil, na época (em Salvador) e queria escrever um romance sobre a ponte que une as duas margens do Atlântico. De certa maneira, as solidões portuguesa e brasileira. Por isso me apaixonei por aquelas duas mulheres, Daniela e Helena, as paulistas de Longe de Manaus. O livro seguiu um rumo diferente, mas fui incapaz de largar a ortografia brasileira e as inflexões do português do Brasil, muito mais ricas e inventivas. E, se havia personagens brasileiras, eu tinha de colocar elas a falar com a ortografia brasileira, o modo brasileiro de falar o português. De resto, o português do Brasil é o motor do futuro da nossa língua comum. O português de Portugal está condenado a ficar mais pobre, mais chato. A solução é abrir para a antropofagia lingüística.

Você já disse que o romance policial, como forma literária burguesa, ordena o mundo. Poderia desenvolver mais esse conceito de ordenamento a partir de uma criação ficcional? A literatura tem esse poder?

O romance, como nós o vemos hoje, mesmo nas suas formas menos clássicas, deve muito ao policial, que sempre manteve a necessidade de categorias muito claras: personagens, investigação, demanda, conclusão. É como ter uma frase com sujeito, predicado e complemento direto. Às vezes, em literatura, há sujeitinhos à procura de inovação, tentando chamar a atenção. Eu acho isso ridículo, é gente que nunca leu Machado, o das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Juntamente com Viagens na Minha Terra, de Garrett, é o mais moderno dos romances em língua portuguesa. O policial é uma espécie de método, de ideal de perseverança numa investigação. Toda a literatura, nessa medida, é policial - além de se preocupar com a morte, o desaparecimento, o crime, o mistério, que são os motores da narrativa policial. No meu caso, não me interessa o policial como interrogação social ou sociológica sobre o mundo do crime ou da violência. Não sou sociólogo nem o escritor tem de se preocupar com a sociologia; em meu entender, o policial constitui uma reinvenção do mundo a partir de uma tragédia (o crime) e de um drama (a necessidade de saber, a possibilidade de punir). Num outro livro, uma pequena novela, A Poeira Que Cai sobre a Terra, Jaime Ramos sabe tudo sobre os crimes, sabe tudo - mas recusa-se a avançar na investigação, vai acabar por eliminar os vestígios e as provas. Ele assume o lugar do juiz e contraria a moral burguesa. O policial tem essa possibilidade. A de criar uma ordem na história para que exista, provavelmente, uma ordem no mundo. O romance policial, como forma literária burguesa, ordena o mundo. As pessoas querem uma ordem na vida, querem uma explicação. Não há maus e bons. O meu detetive é ótimo para defender os criminosos.

Em certo momento de Longe de Manaus, o autor do livro é satirizado por seu personagem quando diz que ninguém em sã consciência escreveria um livro sobre Manaus. Quais as impressões que você guarda da cidade?

Olha, eu acho Manaus uma cidade muito cinematográfica. Difícil de viver lá, mas boa para cinema. No livro, eu digo que é boa para filmes com atores silenciosos, como De Niro. Tem, além disso, uma história espantosa de multiculturalismo antes de aparecerem esses sujeitinhos do multiculturalismo militante. Havia muçulmanos e judeus na mesma rua, perseguidos do Líbano ou da Europa, gente que se escondia do mundo em Manaus. Por isso é tão importante a história de loucura evidente na construção do Teatro Amazonas. De alguma maneira, o Teatro Amazonas é uma metáfora do Brasil, uma espécie de barragem contra a barbárie que rodeia a cidade.

Você parece mais identificado com a literatura brasileira que com a portuguesa. A literatura brasileira é melhor que a portuguesa?

É. É melhor. Eles vão me cozinhar vivo, mas é a verdade. O fato é que o romance brasileiro tem hoje uma criatividade, uma intensidade de tal forma, que se me perguntassem quais são os autores de língua portuguesa que eu mais gosto de ler, em dez haveria sete brasileiros. Sem qualquer preconceito anti-português. Tem uma vantagem sobre grande parte da ficção portuguesa: não é kitsch.

A narração de Longe de Manaus é difusa. Ou o narrador assume uma informação contestável ou ele aparece tão amalgamado na consciência dos personagens que é difícil saber se as informações que estamos lendo são ou não confiáveis. Cito como exemplo as informações de Ramiro sobre Portocarrero. Até que ponto o passado africano pode ser contado segundo o ponto de vista de um narrador que se ausenta no capítulo seguinte?

Mas a nossa vida também é assim! Na nossa vida, há personagens que aparecem e desaparecem, pessoas por quem nos apaixonamos durante uma só noite, e nem chegamos a transar com elas. E há episódios da nossa vida que só conseguimos narrar de maneira difusa. Mas mudaram a nossa forma de ver, a nossa sensibilidade. A certa altura, Jaime Ramos faz a mesma pergunta que você me faz. E Osmar responde-lhe: ou acredita ou não acredita, o mundo não é a preto e branco, não é tudo da mesma cor. Você fala de Ramiro, mas Ramiro é um personagem estável, uma espécie de Sibila tragicômica (anda descalço, bebe Blue Curaçao, é um advogado que tem tesão por juízas), que guarda a memória de África como um arquivo sentimental. Ele aparece em outros livros, e aparecerá no próximo com mais destaque.

in Estado de S. Paulo – 1 Novembro 2007

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novembro 12, 2007

Acordo ortográfico: talvez sim

Ouro Preto (em Minas Gerais, Brasil) até poderia ser o cenário ideal para falarmos do assunto: no fundo, a sede da primeira grande conspiração contra o domínio português e o palco onde foram expostos os restos mortais do supliciado Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, é uma cidade que mantém a memória desse cruzamento entre Portugal e o Brasil. Foi aí que decorreu mais um Fórum das Letras, e que contou com participações dos vários mundos da Língua Portuguesa, chegados de Portugal, do Brasil e de África. Em várias das mesas e debates que compuseram o encontro o tema (que não fazia parte da lista de assuntos para discussão) aparecia com a mesma volatilidade com que se escondia: deve, ou não, assinar-se um Acordo Ortográfico que unifique a grafia da Língua Portuguesa?

O debate sobre o assunto corre a várias velocidades e a ritmos diferentes. Geralmente, como tive oportunidade de referir num encontro no Rio de Janeiro, quando não há mais nada para discutir, discute-se o Acordo Ortográfico. Não é um assunto de primeira grandeza; mas é um elo diplomático e político no desconcerto linguístico.

A primeira sensação, vivida por escritores brasileiros ou portugueses tem a ver com a sensação, iniludível, de uma perda afectiva – o trema, as consoantes mudas, os acentos nas paroxítonas, o fim do acento agudo nos ditongos abertos, três novas consoantes adoptadas, mais um certo número de casos que mudarão a grafia aqui e ali.

Se no caso brasileiro só 0,45% das palavras mudarão de ortografia, o caso português acrescenta um pouco mais: menos de 3%, suponho. Diante dessa baixa percentagem de mudanças, qualquer posição soará como insignificante. Os políticos assumem que a Língua Portuguesa ficará “mais forte” e que essa unificação levará a uma maior credibilização no domínio internacional. Talvez seja um argumento pífio, mas convém desdramatizar: o essencial do português de Portugal e do português do Brasil não mudará substancialmente. Continuaremos a dizer “autocarro” quando os brasileiros escrevem e dizem “ônibus”, manteremos “talho” onde no Brasil se usa “açougue”. A Língua Portuguesa não sofrerá com isso. Os onze ou doze milhões de falantes europeus, os cento e oitenta milhões da América, e os cerca de vinte milhões de África terão, portanto, uma grafia idêntica. Passaremos a escrever “ação” em vez de “acção”. Os brasileiros deixarão de escrever “acadêmico” e tirarão o trema a “tranqüilo”.

Perder-se-á muito? Ganharemos em comunicabilidade? É legítima essa mudança? Ou seja: pode um grupo de linguistas, iluminados ou não (geralmente tenho dúvidas), decretar essa mudança?

Acontece que nós não somos donos da nossa língua. Ela é mais falada fora das nossas fronteiras do que em Portugal. Acontece que a maior parte das inovações, rasgos de originalidade e de criatividade que têm sido acrescentados à nossa Língua, têm chegado de fora – e do Brasil mais do que de outro lugar.

Infelizmente, chegámos a um momento, na história da nossa Língua, em que manter o fechamento e a inflexibilidade pode acabar por custar-nos caro no futuro (o Português é, actualmente, a quinta mais falada do mundo em termos absolutos – e a terceira no Ocidente, atrás do Inglês e do Espanhol). Certamente que perderemos uma parte da nossa “excentricidade” linguística; mas é muito provável que ganhemos alguma vantagem na uniformização do padrão linguístico ou ortográfico. Não é verdade que os “manuais escolares” e os “livros didácticos” passem a ser os mesmos nos três continentes – mas se abrirmos esse corredor de comunicação entre as diferentes formas de falar e de escrever o Português, talvez prolonguemos a sua vida e o horizonte da sua existência. Cedendo aqui, ganhando ali, empatando mais tarde.

in Jornal de Notícias – 12 Novembro 2007

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novembro 10, 2007

Já chegámos à Madeira


O Madeirense, em Lisboa, é um reduto histórico da cozinha da ilha. Mesmo com o passar dos anos, há ali um aroma de simpatia.

O grande problema dos que gostam de cozinha chinesa é a existência de restaurantes chi­neses, se me faço entender: nunca estão satisfeitos. Imagine-se alguém que goste verdadeiramente de cozinha mexicana; pois levem-no a um restauran­te mexicano se querem vê-lo furioso: "Não, este não é o verdadeiro escabeche de Campeche, falta-lhe o 'achiote', falta-lhe aquele cominho." Em cada um de nós, adormecido e refastelado, há um fundamentalista. Nunca estamos satisfeitos. Falta sem­pre aquela coisa, "que só existe lá".

Pior do que isto só o tema "daquele restaurante que ninguém conhece". Aquele, pequenino, escondi­do, na rua tal. Ah, o tal? Não, do outro lado da rua, exactamente do outro lado, em frente a esse. Conheces aquela tasquinha, em – imaginemos -Freixo de Espada-à-Cinta, que serve um arroz de forno? Claro que conheço, é aquele. Não, não é, é uma rua abaixo, logo vi que ninguém conhece, só quem conhece muito bem o lugar é que consegue chegar lá.

Além do fundamentalista, existe, portanto, o geó­grafo de becos. O geógrafo de becos desvaloriza tudo o que esteja numa rua principal e é muito amigo do paleontólogo – que é inimigo de todos os restaurantes que não usem "os ingredientes origi­nais" ou, pelo menos, "aquela receita original". Pois, meus amigos, ninguém é realmente assim. Por detrás desse radicalismo de anedota, existe um ser humano naturalmente mentiroso. À melhor oportunidade encontramo-lo num Kentucky Fried Chicken, como qualquer cidadão que aprecia os 'sundaes' do McDonald’s.

Portanto, como o mundo é mundo, fui ao Madeirense comer pataniscas de bacalhau com arroz de feijão. O fundamentalista, envergonhado e indignado: "No Madeirense? Mas n'O Madeirense come-se espetada em pau de louro!"
Sim, mas os madeirenses, que também são gente, comem pataniscas e sabem fazê-las. Eu fui. O cabri­to assado no forno à moda do pastor é também muito indicado (às terças), tal como os pastéis de bacalhau (às sextas) e o cozido à portuguesa (às quintas, dia tradicional).

Instalado no Amoreiras Shopping, encontra-se lá um resumo da gastrono­mia básica portuguesa; além dos pratos menciona­dos, o arroz de pato (às segundas), o polvo à laga­reiro, o bife à Marrare, o bacalhau no forno – ao lado de sugestões essencialmente madeirenses (além das sopas: a de peixe, a de tomate e cebola e a açorda à madeirense). São elas as inevitáveis variantes dos filetes de peixe-espada com banana e maracujá, em vinha-d'alhos, com frutas e caril, com frutas e natas (hélas!), em cebolada ou com limão, terminando com uns rolinhos de espada com champanhe, que ainda não provei. Os meus preferidos: com cebolada e em vinha-d'alhos, como se sabia antes. Está na cara, não? Sou tam­bém adepto dos bifes de atum, de cebolada ou com molho vilão, desde que a generosidade da casa me proporcione uma quantidade substancial de milho frito. Molhar aqueles pedacinhos de milho frito (a nossa polenta) no molho vilão é – pessoalmente – um espectáculo dantesco. Sou fã. Eles sabem. No capítulo das carnes (passando de alto pelas gambas panadas ou fritas, com arroz - símbolo da simplicidade e da cozinha doméstica), chegamos então à espetada de lombo em pau de louro. Nada a dizer: pureza extrema, carne saborosa, absorven­do os odores de alho e louro. A carne em vinho e alhos com laranja é mais tradicional tal como o lombo assado com mel de cana ou o meu frango frito de vinho e alhos. Há ainda uma dezena de bifes à disposição – desde o simples "do lombo na brasa" até "com cogumelos", "de cebolada", "à portuguesa" ou "com gambas e natas", porque todos temos uma hipótese de errar.

Ao pedir o café, aparece milagrosamente um pastel de nata no pratinho, o que é muito boa lembrança. E dirá o fundamentalista: "E as sobremesas da Madeira?" Estão lá. Estou a pensar nos bifes de atum e nos cubinhos de milho, não me incomodem. Mas, por favor, à entrada sentem-se um pouco e provem um gin daqueles. E agradeçam ao Manuel Fernandes. Ele e O Madeirense são uma e a mesma coisa.

À Lupa

Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 78
Vinhos brancos: 36
Espumantes & Champanhes: 10
Aguardentes portuguesas: 18
Colheitas tardias e moscatéis: 8
Portos & Madeiras: 30
Uísques: 16

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: fácil, no parque no Shopping
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável ao almoço
Preço médio: 25 Euros

O MADEIRENSE
Centra Comercial Amoreiras - Loja 3027
Avenida Eng. Duarte Pacheco - Lisboa
Tel: 213830 827
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 10 Novembro 2007


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A bola que não entra

1. Cheguei ao Rio de Janeiro com chuva, vindo das montanhas de Minas Gerais, farto de literatura e com fome de futebol. Num debate sobre literatura, em Ouro Preto, contracenei com Tony Bellotto, autor de saborosos romances policiais com o detective Remo Bellini; além de escritor e cineasta, Tony é guitarrista da minha banda histórica do rock brasileiro, os Titãs – e marido de Malu Mader. No meio do debate servi-me de uma golpe baixo, totalmente sem “fair-play”: disse-lhe, baixinho, que o Flamengo tinha sofrido o terceiro golo do Cruzeiro. Sabem como se desmoraliza um companheiro ao nosso lado? Assim.

2. Portanto, o Rio. Uma coisa é a chuva, torrencial, forte, amena, tépida. Outra, diferente, é a chuva no Rio de Janeiro, que cai a pedir desculpa por cair, escondendo uma parte da cidade – a minha preferida parte da cidade, aquela campânula em redor da Lagoa. Mesmo assim, procurando uma televisão, cheguei a tempo de Tarik fintar a defesa do Marselha e marcar sem deixar dúvidas; às vezes acredito que o destino é mesmo assim e que um golo destes teria de esperar por mim. Esperou. No dia seguinte, ao mostrar o golo na ESPN-Brasil, um comentador dizia: “Aí vai ele, Sektoui tem intimidade com a bola.” É. Há golos que redimem um jogador e convocam os aplausos da multidão. Na semana seguinte, veremos.

3. E há jogadores que devem continuar a merecer aplauso: Lisandro marcou naquele cantinho, ensinando o caminho à bola, empurrando-a sem remorso.

4. Outro jogador que merece aplauso: Quaresma. Há quem ache que o miúdo merece reclusão; não concordo. Em campo, Quaresma é Quaresma. Dos seus pés saem bolas que parecem sabres sobre os exércitos adversários, mesmo que os míopes não vejam. Jesualdo faz bem em mantê-lo no onze.

5. Os dois golos de Liedson (e algum do trabalho do meio campo do Sporting) mereciam outro resultado final no confronto com a AS Roma; tenho simpatia pela manha de Liedson, aquela matreirice, coisa de malandro frágil e faceiro, como num samba. Ele é magrinho e saltitão, lembra-me às vezes o Zeca Pagodinho: um artista sem moral nenhuma. Mas a verdade é que alguns sambas de Zeca Pagodinho me deixam à beira das lágrimas, mesmo não sendo um sentimental. Se eu fosse sportinguista, também ficaria assim.

5. O Benfica foi derrotado pelo Celtic o que deu mais uma oportunidade para Camacho desenvolver a sua teoria sobre futebol. “Perdemos, mas podíamos ter ganho”, disse o espanhol. Voltou a doutrina sobre “a bola que não entra”. Cada mau resultado do Benfica deixa, assim, de ser um problema futebolístico para passar a ser uma questão metafísica. O Benfica teria ganho uma série de jogos se não fosse a bola, esse estorvo.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 10 Novembro 2007

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novembro 06, 2007

Chile, Isla de Santa Maria

Começo, nesta altura, a pensar na viagem que gostava de fazer durante o próximo Verão. Penso em lugares im­possíveis que dariam crónicas quase im­possíveis; acontece sempre nesta altura. Penso em planícies, em ravinas no fun­do de montanhas escuras, em praias quase brancas, quase azuis.

Os nossos sonhos de viagens deviam preocupar-nos mais, porque o mundo se reduziu bastante, contra a ideia de que ele é «inevitavelmente» vasto, aberto, cheio de paisagens novas. Sonhar com viagens faz-nos bem — mas é tão perigoso como a tentação do abismo.

A última viagem com que sonhei tem a ver com um livro, Benito Cereno, de Herman Melville, o autor de Moby Dick. Começa assim: «No ano de 1799, o co­mandante Amasa Delano, de Duxbury, Massachusetts, comandando um navio de grande tonelagem equipado para a caça da foca e comércio em geral, ancorou com importante carga no porto de Santa Maria — pequena ilha deserta da longa costa do Chile. Aportara aí para se abaste­cer de água.» O livro trata, antes de mais, do encontro do comandante Delano com um navio, o Saint Dominick, comandado por um espanhol, D. Benito Cereno – e cuja tripulação branca tinha sido alvo de um levantamento de escravos negros que seguiam a bordo. O que espanta Delano, a princípio, é apenas a desordem do navio e a lassidão triste e desorganizada do seu comandante. As descrições dos mares do Sul e desse quadro representado pelo navio são tão intensas que quase vemos a tripulação doente de escorbuto, velando os seus mortos e os seus náufragos tristes.

Essa tensão sobe desde o início até chegar a um nível assustador que, aliás, é um marinheiro português a resolver e a esclarecer — não esqueçamos que Melville tinha sido um leitor de Camões e de Os Lusíadas. O mundo obscuro desses mares do Sul que a literatura europeia mitificara mas que a realidade apresentava muito mais cruel e assustador, aparece em Benito Cereno como um mapa da solidão dos homens e da memória da escravatura. Melville é cru e não está interessado em salvar o mundo, não quer fazer «literatu­ra de causas» nem tomar partido: o leitor vai construindo o seu próprio livro, o seu próprio mistério, que se adensa de página para página. E vai tentando responder, ao longo da leitura, a esta pergunta: o que terá acontecido a bordo deste navio, lá, onde as últimas águas do Atlântico se cruzam com o Pacífico profundo e o mar é apenas o mais perigoso dos monstros?

Procurei a localização exacta da Isla de Santa Maria no mapa do Chile, dian­te do golfo de Arauco, ao largo da pro­víncia de Concepción. Ainda hoje é um território semi-abandonado onde vivem menos de duas mil pessoas, numa região cheia de florestas e de escarpas apontadas ao Pacífico. Desde o século XVII que era um refúgio para navegadores espanhóis, holandeses e ingleses se abastecerem de água e madeira. Mas uma inquietação mais profunda tomou conta da minha investigação quando descobri que o coman­dante americano Amasa Delano, per­sonagem central do livro de Melville, existiu mesmo e escreveu as suas memó­rias. A partir daí, o meu plano de viagem estendeu-se a toda a costa centro-sul do Chile, para lá das cordilheiras, onde qua­se nunca chegamos senão para assinalar­mos a ilha de Páscoa, esse grande mito do viajante. Quem sabe, um dia vou lá.

Os planos de viagens, muitas vezes, estão escritos nos grandes livros de aven­turas. Antes de nós, muitos outros (como Melville, Conrad, Durrell, Stevenson) sonharam ou percorreram esses lugares e deixam a sua marca na nossa memória. A Isla de Santa Maria nunca teve exis­tência tão real como no livro de Herman Melville e temo que, na realidade, seja uma desilusão. Para nós, europeus, trata-se de um lugar mítico; para os mapuches, índios chilenos que vivem lá, há-de ser uma sensaboria. É essa a razão por que se deve sonhar uma viagem antes de come­çarmos a planeá-la.

in Outro Hemisfério, Revista Volta ao Mundo - Novembro 2007

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novembro 05, 2007

É mau demais para ser verdade

Acho que está a fazer-se uma grande tempestade num copo de água a propósito do Estatuto do Aluno e da subsequente trapalhada que foi a votação do diploma no parlamento. Na verdade, já estava previsto que tudo isto acontecesse. Os ministros da educação, depois de resolverem os assuntos prementes da matéria administrativa da sua casa, raramente conseguem alterar o essencial; e o essencial é a qualidade do ensino; e combater pela qualidade do ensino é lutar pela elevação do grau de exigência e de rigor em todos os graus de frequência escolar. Os professores e os sindicatos estão fora dos corredores da 5 de Outubro, e acaba por ser fácil penalizar e humilhar professores. Já os pedagogos, os ideólogos do edifício escolar e os teóricos que se têm encarregado de embrulhar o suistema de ensino, esses, estão instalados no ministério.

Todos os conhecemos. Têm, antes de mais, um discurso muito próprio, cheio de metáforas e de ditirambos que nunca se referem a coisas práticas, que dificilmente estão relacionados com a escola e as suas dificuldades em existir e que, no fundo, vivem de experiências pedagógicas e vagamente científicas.

Maria de Lurdes Rodrigues encontrou o caminho facilitado; tratou de introduzir alguma racionalidade na administração escolar e na vida dos sindicatos, na “operacionalidade” e no mapa escolar. Mas, quando se esperava que essa coragem fosse transposta para a área fundamental, que é o ensino propriamente dito, entrámos no mundo do puro delírio.

Com as críticas ao processo de avaliação de professores a avolumarem-se, aconteceu a polémica da TLEBS, terminologia linguística para o Básico e o Secundário. Depois de demonstrados os erros científicos metodológicos de grande parte da sua formulação, o ministério dividiu-se; um secretário de Estado prometeu (e comprometeu-se) suspender a TLEBS; um director-geral reconheceu erros mas defendeu que o ministério devia continuar a dá-los e a ampliá-los. Vendo bem como as coisas estão, verifica-se que continua tudo igual e que a política do ministério continua a aprofundar o ruinoso caminho aberto pelos delírios ideológicos que transformaram o ensino do português numa banalidade e que vandalizaram o ensino da matemática.

Geralmente, o ministério acha que está munido de excelentes ideias. Um grupo cada vez mais numeroso (porque se acumulam as suas assinaturas ao longo dos anos) de técnicos e burocratas dessa ideologia passa incólume no meio da asneira. Eles acham que estão munidos de excelentes ideias. Mas, mesmo depois de se ter provado que essas ideias dão péssimos resultados, aqui ou no estrangeiro, mesmo depois de terem recebido críticas demolidoras, tudo continua na mesma, ou pior.

O ensino – nomeadamente a ideologia que está por detrás de todas as decisões do ministério em matéria pedagógica e científica – está entregue a esse monstro corporativo que supõe ter toda a verdade do seu lado. O estatuto do aluno e o seu regime de faltas é apenas mais um episódio lamentável a acrescentar a tantos outros. É, geralmente, gente que não conhece a escola real, que não tem contacto com o dia-a-dia das escolas, que imagina os professores como meros instrumentos ao seu dispor para as experiências mais descabidas. As vítimas dessas experiências descabidas são os nossos filhos – e é o seu futuro. Por isso, o sinal dado pelo Ministério é definitivamente mau e constitui um erro grave, desculpabilizando os alunos faltosos, penalizando os alunos cumpridores e sobrecarregando os professores e as escolas com outra categoria de “desprotegidos”: os que, deliberadamente, faltam às aulas. Tudo para adulterar e manipular as estatísticas, o que é grave demais.

in Jornal de Notícias – 5 Novembro 2007

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novembro 03, 2007

Regresso ao Minho


Sobre o vale, espreitando o rio, o cronista terminou o jantar recompensado e passeou pela varanda da Casa das Velhas.

O Minho parece um subcontinente – ou uma espécie de principado, um enclave com bandei­ra própria. Retirem o exagero à afirmação e fiquemos com o essencial. Em matéria gastro­nómica, por mais que os cardápios se repitam, há uma grandiosidade temática que não precisa de variações para se reerguer e merecer entrar no quadro de honra à primeira chamada. Amigos meus sustentam que se trata de uma obsessão e eu vou, paulatinamente, encaminhando este e aquele para este e para aquele restaurante. Meses depois, semanas depois, ainda bradam aos céus. Há uma grande percentagem de restau­rantes aprazíveis; digamos que a sua densidade é muito agradável de registar e que se aproxima muito daquele microcosmos que é a paisagem de restaurantes em Matosinhos: são, em geral, lugares onde se come bem.

Eu sei que o leitor gostava que eu me perdesse agora, e mal, a definir o que é "comer bem". Nessa não caio. Vá lá e comprove.

O Minho tem uma vantagem adicional: nesta altura do ano, quando as paisagens gerais das nossas províncias entristecem, acumulando "les feuilles mortes", as colinas do Minho conti­nuam verdes, as suas montanhas continuam as mesmas. Lembra-se o leitor quando, em 'A Cidade e as Serras', Jacinto e Zé Fernandes sobem da estação de Tormes para o casarão do Príncipe? Pois o Minho tem coisas dessas todo o ano. Com esta vantagem: se o verde o cansa muito, pode olhar para outro lado. Por exemplo, se estiver sentado a uma das mesas da Casa das Velhas, esse cenário varia consoante virar a cabeça da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita, olhando o rio correr ao fundo como uma miragem. Pode começar por um vinho lá fora antes de aproveitar a aragem de Outono na sala do interior. Pode começar por apreciar a paisagem.

E pode, depois, sentar-se a jantar, que vale a pena – bacalhau, supimpa, à lagareiro, muito bem demolhado, com fios soltando-se nesse caminho tortuoso do garfo sobre o lombo gelatinoso, ou suculento, sob um manto de suavíssimo creme gratinado. É uma boa experiência, venha o bacalhau de onde vier, e este vem depois de bem escolhido e bem preparado. Há os amantes do polvo, também grelhado, que, embora me ande a cansar, promete mundos desconhecidos para o cidadão comum, habituado a penar entre polvinhos pré-congelados e mal descongelados. Este é bom e suave, macio. Nota alta. O cabrito à serra de Arga, vindo do forno, rescende – e transcende. Sucumbe-se a esse ar do tempo, a esse perfume combinatório vindo da arte de cozinhar o cabrito desta maneira, com as suas batatinhas farinhentas e uma pequena dose de grelos pedida à parte. Da peça, inteira, sobraram umas pequenas costeletas, que foram grelhadas para nosso benefício, ligeiramente pinceladas, muito apreciáveis, além da sugestão da posta mirandesa, do arroz de pato, dos lombinhos na brasa, da cabidela ou do entrecosto de javali. O cardápio é tradicional mas a beleza do lugar empresta-lhe alguma sua­vidade concentrada; aproveite – e respire aquele ar, veja as cores do rio a desfazerem-se no vale, bordado de choupos, freixos, hortas e da proxi­midade do mar, lá ao fundo.

Enquanto isso aproxima-se a sobremesa; repito a dose da última visita: pudim do abade de Priscos, como seda, perfeitinho; provo o leite-creme vizinho e o pudim de laranja, que me arranca à necessidade de um café e de um álcool terminal, quase soporífero. Na varanda há ainda uma aragem que arrasta consigo a leve tepidez do Outono; como um patriarca abando­nado por instantes pela família, que conversa entretida, saboreio aquele charuto providencial. Murmuro coisas sem sentido, sabendo que isto, às vezes, é o sentido que a vida tem: um lugar, um sabor, uma visão do vale, o arvoredo que renasce na serra. Voltaremos.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 86
Vinhos brancos: 22
Aguardentes portuguesas: 14
Colheitas tardias e moscatéis: 2
Portos & Madeiras: 16
Uísques: 14

Outros dados

Charutos: não
Estacionamento: fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: ao fim-de-semana
Preço médio: 18 Euros

Casa das Velhas
Quinta Mineirinhas
4920-217 Vila Nova de Cerveira
Tel: 251 708 482
Não encerra

in Revista Notícias Sábado – 3 Novembro 2007


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Ganhar sempre e ganhar quando se ganha

1. Por pouco eu era apanhado a cantar o “salve o tricolor paulista, amado clube brasileiro, tu és forte, tu és grande, dentre os grandes és o primeiro…” Cheguei ao Rio no dia em que o S. Paulo, o Tricolor do Morumbi, festejava o pentacampeonato (os clubes cariocas – Fluminense, Vasco, Botafogo e Flamengo – têm andado em todos os lugares da baixa escala). No Brasil, penta significa ganhar cinco vezes e não ganhar cinco vezes seguidas. Tem algum sentido. Por exemplo, o São Paulo ganhou os seus cinco campeonatos nos últimos trinta anos (em 1977, 1986, 1991, 2006 e 2007). Para um português, o tricolor é só bicampeão. Mas não se pode explicar isso nem a um paulistano nem a um brasileiro.

2. Esta questão não é inocente. Tem a ver com o “ganhar sempre” e com o “ganhar quando se ganha”. Quantos adeptos do Arsenal rasgaram a camisa do clube apesar de não serem campeões durante largos anos? Nos anos de crise, Nick Hornby, sem dúvida um dos melhores escritores ingleses, escreveu um livro memorável sobre o seu clube (“Fever Pitch”) e sobre as suas memórias de fã. Na Espanha, Javier Marías escreveu “Selvagens e Sentimentais”, crónicas de futebol merengue, quando o Real Madrid “nem sempre ganhava”. Vázquez Montalbán defendeu com a caneta o seu amado Barça apesar da hegemonia madridista da época. À sua maneira, cada um deles foi um pequeno fanático. Os seus pares de letras nunca se escandalizaram nem com a ousadia, nem com o exagero – uma coisa e outra andavam juntas. Luis Fernando Verissimo escreveu a sua biografia do Internacional de Porto Alegre, Ruy Castro a do Flamengo, Sérgio Augusto a do Botafogo e Eduardo Bueno a do imortal Grêmio. Não houve surpresa nem escândalo. Eram coisas tão bem escritas e tão fanáticas, tão pouco respeitadoras do “fair-play”, que só poderiam dar prazer ler – mesmo a adversários. Adversários? Que digo eu? Inimigos. Inimigos na trincheira da batalha.

3. São exemplos fatais. Mas haveria muitos mais. Stephen Jay Gould, cientista notável, biólogo e por exemplo, via na carreira dos Mets de NY um argumento contra o criacionismo religioso: se o Criador está ausente desde que o mundo é mundo, como explicar a vitória dos New York Mets no campeonato de 1969, quando a dez minutos do fim perdia por uma margem de oito pontos (George Burns, outro escritor, diz que foi o primeiro milagre incontestável desde que o mar Vermelho se abriu)?

4. No campeonato português há, pelo contrário, um grande ressentimento. O que é pena. Ganhar é ganhar sempre, o que traduz essa reserva mental que vem dos tempos em que havia um clube do regime.

5. Anteontem, em Belo Horizonte, Minas Gerais, o Atlético local jogava no Mineirão. O estádio estava cheio de gente em festa. Foi um grande jogo, com o estádio superlotado. O clube termina em 11º. É uma lição.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 3 Novembro 2007

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