Coisas simpáticas
O cronista em caminhada por Campo de Ourique até regressar a um lugar simpático e carismático do bairro.
Regressado de uma viagem pelos trópicos – curta mas, como convém dizer, incisiva –, retomei o hábito de almoçar cedo. A maior parte dos meus amigos almoça tarde; eu gosto de almoçar cedo. Digamos que entre o meio-dia e meia e a uma hora; é a hora em que o apetite estaciona à porta do estômago e as papilas ainda não estão zangadas nem fartas de nos aturar. Depois de uma semana sem fumar, as papilas estão a realizar um esforço suplementar para reconhecer o seu lugar à mesa. Antes disso, fui à Garrafeira de Campo de Ourique visitar as prateleiras dos vinhos do Douro e das 'grappas' italianas, em busca de um tinto para festejar (não sei bem o quê) e de uma Nonino legítima (desta vez uma 'moscatto', para alternar com a 'chardonnay' habitual, alvíssima e perfumada) – e entrei na Charcutaria às 12h40. É o meu conselho idiota da semana: almoce cedo e indisponha-se contra o país que almoça tarde e devora com sofreguidão.
Sala minúscula, chão de calçada portuguesa. Era assim que se devia sentir Alice quando atravessou o espelho, num mundo reduzido mas arrumado, silencioso, antes de chegar a multidão almoçadeira. Na generalidade dos restaurantes olham bastante para os que vão almoçar cedo; não sei se é por preferirmos almoçar cedo, se é porque ainda têm tempo para olhar. No meu caso, bastaram-me as duas empadinhas miniatura de galinha, a tacinha de patê e as fatias de bom pão de forma, caseiro e a cheirar a pão. Pedi uma cerveja para equilibrar os sucos do estômago e refrescar a garganta, antes de enumerar a lista dos bacalhaus: assado com batatas a murro, à Brás, espiritual (no caso da Charcutaria, tem uns camarões a coroar o gratinado), com natas e coentros, ou envolvido no 'risotto' (que também pode ser de camarão). Depois dos bacalhaus, uma série de peixes e afins – à Bulhão Pato (tratado como Bolhão), filetes com arroz de tomate e coentros, esparguete com amêijoas, polvo grelhado com batatas a murro (muito suculento, já tinha comido antes, de outras vezes), esparguete negro (de choco) com camarões - e uma lista de sopas: a de tomate com peixe e ovo escalfado, a de beldroegas com ovo e queijo de cabra, a canja de perdiz.
Seja, entremos nas carnes: pezinhos de coentrada, pastéis de massa tenra com arroz de grelos, secretos de porco preto com migas de batata e couve, croquetes de lombo com arroz branco, ensopado de borrego, bife à Marrare, lebre com feijão, arroz de lebre, alheira de caça com grelos salteados, empada de galinha com salada de rúcola, perdiz com lombarda, empada de perdiz, que sei eu – a lista parece interminável numa casa tão pequena, cerca de doze mesas equilibradas com boa frequência, tirando as famílias tradicionais de Campo de Ourique que vêm buscar almoço para casa. Aprecio esse estatuto: vir buscar o almoço, enquanto se espera junto do balcão onde se guardam saladas de favinhas, lombos de rosbife, e se divisam as sobremesas mais tradicionais - além do bolo do chocolate (uma mousse que vai ao forno até garantir a sua carapaça crocante), a sericaia, o bolo de requeijão, a encharcada, as trouxas de ovos, a bolacha de noz com doce de ovos.
Desta vez, comemos os secretos e os pastéis de massa tenra. A condizer com a casa, as doses também são pequenas mas equilibradas. Os secretos estavam maneirinhos, preferindo o tempero de coentros e alho em lugar da massa de pimentão, muito saborosos, mas as migas de batata e couve não passaram no exame, eram uma mistura de ambas as coisas mas sem serem migadas. O mesmo aconteceu ao arroz de grelos, a que faltavam grelos e aquela cor verde e suculenta, aquela orgia de cereal e legumes; acompanhava os pastéis de massa tenra, cujo recheio era generoso e saboroso, cheio de odores mal se cortava a carapaça, com uma massa frágil, leve, educada.
Bebemos os cafés depois das sobremesas, muito aprazíveis. Reparei que não havia fumadores nas mesas em redor – e eu continuava sem fumar, com a vantagem de (ao contrário do Diogo Infante, meu malandro) não ser pago para isso. Num último momento, não resisti e encomendei uma Ramos Pinto, aguardente de eleição, com o segundo café. Caminhei até ao Jardim da Parada aproveitando o que resta da tepidez do Outono, sonhando com um terraço dependurado sobre as montanhas e um cadeirão para me sentar a fumar um charuto. Uma semana de estoicismo para isto.
À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 42
Vinhos brancos: 12
Espumantes & Champanhes: 5
Portos & Madeiras: 1
Uísques: 16
Aguardentes & Conhaques: 5
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: há parque público
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável ao almoço
Preço médio: 20 Euros
RESTAURANTE CHARCUTARIA
Rua Coelho da Rocha, 97
1350 Lisboa
Tel. 21 3969724
Encerra aos domingos e feriados
in Revista Notícias Sábado – 17 Novembro 2007
Regressado de uma viagem pelos trópicos – curta mas, como convém dizer, incisiva –, retomei o hábito de almoçar cedo. A maior parte dos meus amigos almoça tarde; eu gosto de almoçar cedo. Digamos que entre o meio-dia e meia e a uma hora; é a hora em que o apetite estaciona à porta do estômago e as papilas ainda não estão zangadas nem fartas de nos aturar. Depois de uma semana sem fumar, as papilas estão a realizar um esforço suplementar para reconhecer o seu lugar à mesa. Antes disso, fui à Garrafeira de Campo de Ourique visitar as prateleiras dos vinhos do Douro e das 'grappas' italianas, em busca de um tinto para festejar (não sei bem o quê) e de uma Nonino legítima (desta vez uma 'moscatto', para alternar com a 'chardonnay' habitual, alvíssima e perfumada) – e entrei na Charcutaria às 12h40. É o meu conselho idiota da semana: almoce cedo e indisponha-se contra o país que almoça tarde e devora com sofreguidão.
Sala minúscula, chão de calçada portuguesa. Era assim que se devia sentir Alice quando atravessou o espelho, num mundo reduzido mas arrumado, silencioso, antes de chegar a multidão almoçadeira. Na generalidade dos restaurantes olham bastante para os que vão almoçar cedo; não sei se é por preferirmos almoçar cedo, se é porque ainda têm tempo para olhar. No meu caso, bastaram-me as duas empadinhas miniatura de galinha, a tacinha de patê e as fatias de bom pão de forma, caseiro e a cheirar a pão. Pedi uma cerveja para equilibrar os sucos do estômago e refrescar a garganta, antes de enumerar a lista dos bacalhaus: assado com batatas a murro, à Brás, espiritual (no caso da Charcutaria, tem uns camarões a coroar o gratinado), com natas e coentros, ou envolvido no 'risotto' (que também pode ser de camarão). Depois dos bacalhaus, uma série de peixes e afins – à Bulhão Pato (tratado como Bolhão), filetes com arroz de tomate e coentros, esparguete com amêijoas, polvo grelhado com batatas a murro (muito suculento, já tinha comido antes, de outras vezes), esparguete negro (de choco) com camarões - e uma lista de sopas: a de tomate com peixe e ovo escalfado, a de beldroegas com ovo e queijo de cabra, a canja de perdiz.
Seja, entremos nas carnes: pezinhos de coentrada, pastéis de massa tenra com arroz de grelos, secretos de porco preto com migas de batata e couve, croquetes de lombo com arroz branco, ensopado de borrego, bife à Marrare, lebre com feijão, arroz de lebre, alheira de caça com grelos salteados, empada de galinha com salada de rúcola, perdiz com lombarda, empada de perdiz, que sei eu – a lista parece interminável numa casa tão pequena, cerca de doze mesas equilibradas com boa frequência, tirando as famílias tradicionais de Campo de Ourique que vêm buscar almoço para casa. Aprecio esse estatuto: vir buscar o almoço, enquanto se espera junto do balcão onde se guardam saladas de favinhas, lombos de rosbife, e se divisam as sobremesas mais tradicionais - além do bolo do chocolate (uma mousse que vai ao forno até garantir a sua carapaça crocante), a sericaia, o bolo de requeijão, a encharcada, as trouxas de ovos, a bolacha de noz com doce de ovos.
Desta vez, comemos os secretos e os pastéis de massa tenra. A condizer com a casa, as doses também são pequenas mas equilibradas. Os secretos estavam maneirinhos, preferindo o tempero de coentros e alho em lugar da massa de pimentão, muito saborosos, mas as migas de batata e couve não passaram no exame, eram uma mistura de ambas as coisas mas sem serem migadas. O mesmo aconteceu ao arroz de grelos, a que faltavam grelos e aquela cor verde e suculenta, aquela orgia de cereal e legumes; acompanhava os pastéis de massa tenra, cujo recheio era generoso e saboroso, cheio de odores mal se cortava a carapaça, com uma massa frágil, leve, educada.
Bebemos os cafés depois das sobremesas, muito aprazíveis. Reparei que não havia fumadores nas mesas em redor – e eu continuava sem fumar, com a vantagem de (ao contrário do Diogo Infante, meu malandro) não ser pago para isso. Num último momento, não resisti e encomendei uma Ramos Pinto, aguardente de eleição, com o segundo café. Caminhei até ao Jardim da Parada aproveitando o que resta da tepidez do Outono, sonhando com um terraço dependurado sobre as montanhas e um cadeirão para me sentar a fumar um charuto. Uma semana de estoicismo para isto.
À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 42
Vinhos brancos: 12
Espumantes & Champanhes: 5
Portos & Madeiras: 1
Uísques: 16
Aguardentes & Conhaques: 5
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: há parque público
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável ao almoço
Preço médio: 20 Euros
RESTAURANTE CHARCUTARIA
Rua Coelho da Rocha, 97
1350 Lisboa
Tel. 21 3969724
Encerra aos domingos e feriados
in Revista Notícias Sábado – 17 Novembro 2007
Etiquetas: Restaurantes
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