novembro 06, 2007

Chile, Isla de Santa Maria

Começo, nesta altura, a pensar na viagem que gostava de fazer durante o próximo Verão. Penso em lugares im­possíveis que dariam crónicas quase im­possíveis; acontece sempre nesta altura. Penso em planícies, em ravinas no fun­do de montanhas escuras, em praias quase brancas, quase azuis.

Os nossos sonhos de viagens deviam preocupar-nos mais, porque o mundo se reduziu bastante, contra a ideia de que ele é «inevitavelmente» vasto, aberto, cheio de paisagens novas. Sonhar com viagens faz-nos bem — mas é tão perigoso como a tentação do abismo.

A última viagem com que sonhei tem a ver com um livro, Benito Cereno, de Herman Melville, o autor de Moby Dick. Começa assim: «No ano de 1799, o co­mandante Amasa Delano, de Duxbury, Massachusetts, comandando um navio de grande tonelagem equipado para a caça da foca e comércio em geral, ancorou com importante carga no porto de Santa Maria — pequena ilha deserta da longa costa do Chile. Aportara aí para se abaste­cer de água.» O livro trata, antes de mais, do encontro do comandante Delano com um navio, o Saint Dominick, comandado por um espanhol, D. Benito Cereno – e cuja tripulação branca tinha sido alvo de um levantamento de escravos negros que seguiam a bordo. O que espanta Delano, a princípio, é apenas a desordem do navio e a lassidão triste e desorganizada do seu comandante. As descrições dos mares do Sul e desse quadro representado pelo navio são tão intensas que quase vemos a tripulação doente de escorbuto, velando os seus mortos e os seus náufragos tristes.

Essa tensão sobe desde o início até chegar a um nível assustador que, aliás, é um marinheiro português a resolver e a esclarecer — não esqueçamos que Melville tinha sido um leitor de Camões e de Os Lusíadas. O mundo obscuro desses mares do Sul que a literatura europeia mitificara mas que a realidade apresentava muito mais cruel e assustador, aparece em Benito Cereno como um mapa da solidão dos homens e da memória da escravatura. Melville é cru e não está interessado em salvar o mundo, não quer fazer «literatu­ra de causas» nem tomar partido: o leitor vai construindo o seu próprio livro, o seu próprio mistério, que se adensa de página para página. E vai tentando responder, ao longo da leitura, a esta pergunta: o que terá acontecido a bordo deste navio, lá, onde as últimas águas do Atlântico se cruzam com o Pacífico profundo e o mar é apenas o mais perigoso dos monstros?

Procurei a localização exacta da Isla de Santa Maria no mapa do Chile, dian­te do golfo de Arauco, ao largo da pro­víncia de Concepción. Ainda hoje é um território semi-abandonado onde vivem menos de duas mil pessoas, numa região cheia de florestas e de escarpas apontadas ao Pacífico. Desde o século XVII que era um refúgio para navegadores espanhóis, holandeses e ingleses se abastecerem de água e madeira. Mas uma inquietação mais profunda tomou conta da minha investigação quando descobri que o coman­dante americano Amasa Delano, per­sonagem central do livro de Melville, existiu mesmo e escreveu as suas memó­rias. A partir daí, o meu plano de viagem estendeu-se a toda a costa centro-sul do Chile, para lá das cordilheiras, onde qua­se nunca chegamos senão para assinalar­mos a ilha de Páscoa, esse grande mito do viajante. Quem sabe, um dia vou lá.

Os planos de viagens, muitas vezes, estão escritos nos grandes livros de aven­turas. Antes de nós, muitos outros (como Melville, Conrad, Durrell, Stevenson) sonharam ou percorreram esses lugares e deixam a sua marca na nossa memória. A Isla de Santa Maria nunca teve exis­tência tão real como no livro de Herman Melville e temo que, na realidade, seja uma desilusão. Para nós, europeus, trata-se de um lugar mítico; para os mapuches, índios chilenos que vivem lá, há-de ser uma sensaboria. É essa a razão por que se deve sonhar uma viagem antes de come­çarmos a planeá-la.

in Outro Hemisfério, Revista Volta ao Mundo - Novembro 2007

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