Chile, Isla de Santa Maria
Começo, nesta altura, a pensar na viagem que gostava de fazer durante o próximo Verão. Penso em lugares impossíveis que dariam crónicas quase impossíveis; acontece sempre nesta altura. Penso em planícies, em ravinas no fundo de montanhas escuras, em praias quase brancas, quase azuis.
Os nossos sonhos de viagens deviam preocupar-nos mais, porque o mundo se reduziu bastante, contra a ideia de que ele é «inevitavelmente» vasto, aberto, cheio de paisagens novas. Sonhar com viagens faz-nos bem — mas é tão perigoso como a tentação do abismo.
A última viagem com que sonhei tem a ver com um livro, Benito Cereno, de Herman Melville, o autor de Moby Dick. Começa assim: «No ano de 1799, o comandante Amasa Delano, de Duxbury, Massachusetts, comandando um navio de grande tonelagem equipado para a caça da foca e comércio em geral, ancorou com importante carga no porto de Santa Maria — pequena ilha deserta da longa costa do Chile. Aportara aí para se abastecer de água.» O livro trata, antes de mais, do encontro do comandante Delano com um navio, o Saint Dominick, comandado por um espanhol, D. Benito Cereno – e cuja tripulação branca tinha sido alvo de um levantamento de escravos negros que seguiam a bordo. O que espanta Delano, a princípio, é apenas a desordem do navio e a lassidão triste e desorganizada do seu comandante. As descrições dos mares do Sul e desse quadro representado pelo navio são tão intensas que quase vemos a tripulação doente de escorbuto, velando os seus mortos e os seus náufragos tristes.
Essa tensão sobe desde o início até chegar a um nível assustador que, aliás, é um marinheiro português a resolver e a esclarecer — não esqueçamos que Melville tinha sido um leitor de Camões e de Os Lusíadas. O mundo obscuro desses mares do Sul que a literatura europeia mitificara mas que a realidade apresentava muito mais cruel e assustador, aparece em Benito Cereno como um mapa da solidão dos homens e da memória da escravatura. Melville é cru e não está interessado em salvar o mundo, não quer fazer «literatura de causas» nem tomar partido: o leitor vai construindo o seu próprio livro, o seu próprio mistério, que se adensa de página para página. E vai tentando responder, ao longo da leitura, a esta pergunta: o que terá acontecido a bordo deste navio, lá, onde as últimas águas do Atlântico se cruzam com o Pacífico profundo e o mar é apenas o mais perigoso dos monstros?
Procurei a localização exacta da Isla de Santa Maria no mapa do Chile, diante do golfo de Arauco, ao largo da província de Concepción. Ainda hoje é um território semi-abandonado onde vivem menos de duas mil pessoas, numa região cheia de florestas e de escarpas apontadas ao Pacífico. Desde o século XVII que era um refúgio para navegadores espanhóis, holandeses e ingleses se abastecerem de água e madeira. Mas uma inquietação mais profunda tomou conta da minha investigação quando descobri que o comandante americano Amasa Delano, personagem central do livro de Melville, existiu mesmo e escreveu as suas memórias. A partir daí, o meu plano de viagem estendeu-se a toda a costa centro-sul do Chile, para lá das cordilheiras, onde quase nunca chegamos senão para assinalarmos a ilha de Páscoa, esse grande mito do viajante. Quem sabe, um dia vou lá.
Os planos de viagens, muitas vezes, estão escritos nos grandes livros de aventuras. Antes de nós, muitos outros (como Melville, Conrad, Durrell, Stevenson) sonharam ou percorreram esses lugares e deixam a sua marca na nossa memória. A Isla de Santa Maria nunca teve existência tão real como no livro de Herman Melville e temo que, na realidade, seja uma desilusão. Para nós, europeus, trata-se de um lugar mítico; para os mapuches, índios chilenos que vivem lá, há-de ser uma sensaboria. É essa a razão por que se deve sonhar uma viagem antes de começarmos a planeá-la.
in Outro Hemisfério, Revista Volta ao Mundo - Novembro 2007
Os nossos sonhos de viagens deviam preocupar-nos mais, porque o mundo se reduziu bastante, contra a ideia de que ele é «inevitavelmente» vasto, aberto, cheio de paisagens novas. Sonhar com viagens faz-nos bem — mas é tão perigoso como a tentação do abismo.
A última viagem com que sonhei tem a ver com um livro, Benito Cereno, de Herman Melville, o autor de Moby Dick. Começa assim: «No ano de 1799, o comandante Amasa Delano, de Duxbury, Massachusetts, comandando um navio de grande tonelagem equipado para a caça da foca e comércio em geral, ancorou com importante carga no porto de Santa Maria — pequena ilha deserta da longa costa do Chile. Aportara aí para se abastecer de água.» O livro trata, antes de mais, do encontro do comandante Delano com um navio, o Saint Dominick, comandado por um espanhol, D. Benito Cereno – e cuja tripulação branca tinha sido alvo de um levantamento de escravos negros que seguiam a bordo. O que espanta Delano, a princípio, é apenas a desordem do navio e a lassidão triste e desorganizada do seu comandante. As descrições dos mares do Sul e desse quadro representado pelo navio são tão intensas que quase vemos a tripulação doente de escorbuto, velando os seus mortos e os seus náufragos tristes.
Essa tensão sobe desde o início até chegar a um nível assustador que, aliás, é um marinheiro português a resolver e a esclarecer — não esqueçamos que Melville tinha sido um leitor de Camões e de Os Lusíadas. O mundo obscuro desses mares do Sul que a literatura europeia mitificara mas que a realidade apresentava muito mais cruel e assustador, aparece em Benito Cereno como um mapa da solidão dos homens e da memória da escravatura. Melville é cru e não está interessado em salvar o mundo, não quer fazer «literatura de causas» nem tomar partido: o leitor vai construindo o seu próprio livro, o seu próprio mistério, que se adensa de página para página. E vai tentando responder, ao longo da leitura, a esta pergunta: o que terá acontecido a bordo deste navio, lá, onde as últimas águas do Atlântico se cruzam com o Pacífico profundo e o mar é apenas o mais perigoso dos monstros?
Procurei a localização exacta da Isla de Santa Maria no mapa do Chile, diante do golfo de Arauco, ao largo da província de Concepción. Ainda hoje é um território semi-abandonado onde vivem menos de duas mil pessoas, numa região cheia de florestas e de escarpas apontadas ao Pacífico. Desde o século XVII que era um refúgio para navegadores espanhóis, holandeses e ingleses se abastecerem de água e madeira. Mas uma inquietação mais profunda tomou conta da minha investigação quando descobri que o comandante americano Amasa Delano, personagem central do livro de Melville, existiu mesmo e escreveu as suas memórias. A partir daí, o meu plano de viagem estendeu-se a toda a costa centro-sul do Chile, para lá das cordilheiras, onde quase nunca chegamos senão para assinalarmos a ilha de Páscoa, esse grande mito do viajante. Quem sabe, um dia vou lá.
Os planos de viagens, muitas vezes, estão escritos nos grandes livros de aventuras. Antes de nós, muitos outros (como Melville, Conrad, Durrell, Stevenson) sonharam ou percorreram esses lugares e deixam a sua marca na nossa memória. A Isla de Santa Maria nunca teve existência tão real como no livro de Herman Melville e temo que, na realidade, seja uma desilusão. Para nós, europeus, trata-se de um lugar mítico; para os mapuches, índios chilenos que vivem lá, há-de ser uma sensaboria. É essa a razão por que se deve sonhar uma viagem antes de começarmos a planeá-la.
in Outro Hemisfério, Revista Volta ao Mundo - Novembro 2007
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