novembro 24, 2007

A esperança mantém-se


Depois de uma jornada de fúria contra as autoridades alimentares, o cronista foi ao Bairro Alto. E regressou vivo.

Tiram-nos cada vez mais coisas. Não é por maldade, mas por vício e distracção. Como referiu Gonçalo dos Reis Torgal (numa saborosa interven­ção intitulada "Quem não comeu já não come", apresentada na Figueira da Foz sob os auspícios das confrarias do Sável e da Lampreia e da Vitela Barrosã), nós não dissemos nada quando começa­ram a roubar-nos o que não devíamos ter deixado que nos roubassem. Digo-vos que é um texto notá­vel, onde se faz um levantamento dos assaltos que as autoridades (e, entre elas, a ASAE) fazem ao nosso estômago e à nossa liberdade.

Se Camilo José Cela lembrava que os motores da acção humana se relacionavam sempre ou com a vontade de poder, ou com o estômago ou com o sexo, pois concordemos que estamos numa encru­zilhada civilizacional. Explico porquê. A ideia de poder (que Cela enunciava de modo mais cru, como "vontade de mando") já nos não pertence; o que o nosso estômago vai trabalhando, há-de ser decidido cada vez mais pelas autoridades e pelos dietistas ou pelos estetas; o sexo, ah, o sexo, há-de vir a ser regulado superiormente – basta esperar – para que não seja selvagem. Riam, riam de mim; mas mostrem-me a lampreia de antanho, a que subia os rios e não era criada em viveiro (importa­da do Canadá, senhores), mostrem-me o velho bacalhau de cura amarela secado ao vento, mos­trem-me os pães onde o pequeno guiço de pinhei­ro, carbonizado, lembrava o vetusto forno onde a farinha levedada ganhava carácter e era sacrificada.

"Não há volta a dar-lhe", lembrava um amigo ainda mais céptico do que eu. E citava: "Quem não comeu já não come." Entristecemos os dois. Entristece uma geração cujo estômago ainda foi mimado com molhos ancestrais e vinhos frescos, com queijos comprados em quintas e peixe que desconhecia as paredes do aquário, com arroz do Mondego e centeio do nobre e frio Barroso, com batatas que não vinham da Holanda e bacalhau que não era perseguido pelas autoridades.

E, até, com um Bairro Alto que não estava entregue (aqui começa a minha alarvidade reaccionária) à fauna grotesca que lhe caga as paredes e as ruas, espalhando seringas e beatas de charros de baixa qualidade, entre álcool adulterado e vestuário "gótico" de quem não lava o cabelo nem o buço, misturando cachorros em pão sintético e lixo semeado durante a noite. Não tendo a nostalgia do Bairro Alto, vou pelas suas ruas sem aqueles arrou­bos românticos de cantores vagamente "kitsch", limito-me a procurar o endereço do restaurante Esperança, na Rua do Norte, para um almoço sim­ples "em ambiente sofisticado", como me tinham prometido. Aí vou eu, entrando, para comer um "risotto di funghi porcini", que me apetecia.

O Esperança, aberto num antigo espaço de taberna e mercearia, foi recuperado a preceito e é um espa­ço agradável e sereno, sobretudo à hora de almoço, com poucos comensais. Cardápio curto e apropria­do para digestões simples – com uma lista de pizzas a ocupar uma página inteira, e de que me não ocupo. Prefiro as pastas, ali distribuídas por "penne" com cogumelos, o já habitual e populari­zado "spaghetti nero e gamberi", uns supimpas "penne bresaola, pomodoro e funghi", os "linguini pomodoro zucchine e ricota", os "tagliatelle" com "aglio, olio, peperoncino e pomodoro seco". Diante desta frugalidade, fazer o quê? Comer. O meu apetite estava encalhado logo nas entradas, onde pontificavam um queijos grelhados na chapa, muito suculentos. À minha volta, pós-adolescentes comiam pizza e gabavam-lhe o ar estaladiço, eu compreendo-os: não tinham espinhas. O ambiente tranquilo e a decoração, com mármores e madeiras, convidaram-me a provar o "carpaccio" de polvo, temperado com gosto e suavidade (havia, também, "carpaccios" de mero, de bacalhau, de novilho e de espadarte), para o que usei mais os olhos do que o estômago. Os "tagliatelle" estavam naquele ponto ideal de abertura metafísica, belíssi­mos – o café final era bom. A minha irritação acer­ca do Bairro Alto retrocedeu um pouco.

Para a semana mudo de digestão e entrarei no Farta-Brutos, ainda no Bairro Alto lisboeta, em busca de coisas violentas.

À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 28
Vinhos brancos: 16
Aguardentes portuguesas: 6
Uísques: 12

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: muito difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável ao almoço
Preço médio: 25 Euros

RESTAURANTE ESPERANÇA
Rua do Norte 95 - Lisboa [Bairro Alto]
Tel: 21 343 20 27
Encerra 2a e 3a à hora de almoço

in Revista Notícias Sábado – 24 Novembro 2007

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