A esperança mantém-se
Depois de uma jornada de fúria contra as autoridades alimentares, o cronista foi ao Bairro Alto. E regressou vivo.
Tiram-nos cada vez mais coisas. Não é por maldade, mas por vício e distracção. Como referiu Gonçalo dos Reis Torgal (numa saborosa intervenção intitulada "Quem não comeu já não come", apresentada na Figueira da Foz sob os auspícios das confrarias do Sável e da Lampreia e da Vitela Barrosã), nós não dissemos nada quando começaram a roubar-nos o que não devíamos ter deixado que nos roubassem. Digo-vos que é um texto notável, onde se faz um levantamento dos assaltos que as autoridades (e, entre elas, a ASAE) fazem ao nosso estômago e à nossa liberdade.
Se Camilo José Cela lembrava que os motores da acção humana se relacionavam sempre ou com a vontade de poder, ou com o estômago ou com o sexo, pois concordemos que estamos numa encruzilhada civilizacional. Explico porquê. A ideia de poder (que Cela enunciava de modo mais cru, como "vontade de mando") já nos não pertence; o que o nosso estômago vai trabalhando, há-de ser decidido cada vez mais pelas autoridades e pelos dietistas ou pelos estetas; o sexo, ah, o sexo, há-de vir a ser regulado superiormente – basta esperar – para que não seja selvagem. Riam, riam de mim; mas mostrem-me a lampreia de antanho, a que subia os rios e não era criada em viveiro (importada do Canadá, senhores), mostrem-me o velho bacalhau de cura amarela secado ao vento, mostrem-me os pães onde o pequeno guiço de pinheiro, carbonizado, lembrava o vetusto forno onde a farinha levedada ganhava carácter e era sacrificada.
"Não há volta a dar-lhe", lembrava um amigo ainda mais céptico do que eu. E citava: "Quem não comeu já não come." Entristecemos os dois. Entristece uma geração cujo estômago ainda foi mimado com molhos ancestrais e vinhos frescos, com queijos comprados em quintas e peixe que desconhecia as paredes do aquário, com arroz do Mondego e centeio do nobre e frio Barroso, com batatas que não vinham da Holanda e bacalhau que não era perseguido pelas autoridades.
E, até, com um Bairro Alto que não estava entregue (aqui começa a minha alarvidade reaccionária) à fauna grotesca que lhe caga as paredes e as ruas, espalhando seringas e beatas de charros de baixa qualidade, entre álcool adulterado e vestuário "gótico" de quem não lava o cabelo nem o buço, misturando cachorros em pão sintético e lixo semeado durante a noite. Não tendo a nostalgia do Bairro Alto, vou pelas suas ruas sem aqueles arroubos românticos de cantores vagamente "kitsch", limito-me a procurar o endereço do restaurante Esperança, na Rua do Norte, para um almoço simples "em ambiente sofisticado", como me tinham prometido. Aí vou eu, entrando, para comer um "risotto di funghi porcini", que me apetecia.
O Esperança, aberto num antigo espaço de taberna e mercearia, foi recuperado a preceito e é um espaço agradável e sereno, sobretudo à hora de almoço, com poucos comensais. Cardápio curto e apropriado para digestões simples – com uma lista de pizzas a ocupar uma página inteira, e de que me não ocupo. Prefiro as pastas, ali distribuídas por "penne" com cogumelos, o já habitual e popularizado "spaghetti nero e gamberi", uns supimpas "penne bresaola, pomodoro e funghi", os "linguini pomodoro zucchine e ricota", os "tagliatelle" com "aglio, olio, peperoncino e pomodoro seco". Diante desta frugalidade, fazer o quê? Comer. O meu apetite estava encalhado logo nas entradas, onde pontificavam um queijos grelhados na chapa, muito suculentos. À minha volta, pós-adolescentes comiam pizza e gabavam-lhe o ar estaladiço, eu compreendo-os: não tinham espinhas. O ambiente tranquilo e a decoração, com mármores e madeiras, convidaram-me a provar o "carpaccio" de polvo, temperado com gosto e suavidade (havia, também, "carpaccios" de mero, de bacalhau, de novilho e de espadarte), para o que usei mais os olhos do que o estômago. Os "tagliatelle" estavam naquele ponto ideal de abertura metafísica, belíssimos – o café final era bom. A minha irritação acerca do Bairro Alto retrocedeu um pouco.
Para a semana mudo de digestão e entrarei no Farta-Brutos, ainda no Bairro Alto lisboeta, em busca de coisas violentas.
À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 28
Vinhos brancos: 16
Aguardentes portuguesas: 6
Uísques: 12
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: muito difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável ao almoço
Preço médio: 25 Euros
RESTAURANTE ESPERANÇA
Rua do Norte 95 - Lisboa [Bairro Alto]
Tel: 21 343 20 27
Encerra 2a e 3a à hora de almoço
in Revista Notícias Sábado – 24 Novembro 2007
Tiram-nos cada vez mais coisas. Não é por maldade, mas por vício e distracção. Como referiu Gonçalo dos Reis Torgal (numa saborosa intervenção intitulada "Quem não comeu já não come", apresentada na Figueira da Foz sob os auspícios das confrarias do Sável e da Lampreia e da Vitela Barrosã), nós não dissemos nada quando começaram a roubar-nos o que não devíamos ter deixado que nos roubassem. Digo-vos que é um texto notável, onde se faz um levantamento dos assaltos que as autoridades (e, entre elas, a ASAE) fazem ao nosso estômago e à nossa liberdade.
Se Camilo José Cela lembrava que os motores da acção humana se relacionavam sempre ou com a vontade de poder, ou com o estômago ou com o sexo, pois concordemos que estamos numa encruzilhada civilizacional. Explico porquê. A ideia de poder (que Cela enunciava de modo mais cru, como "vontade de mando") já nos não pertence; o que o nosso estômago vai trabalhando, há-de ser decidido cada vez mais pelas autoridades e pelos dietistas ou pelos estetas; o sexo, ah, o sexo, há-de vir a ser regulado superiormente – basta esperar – para que não seja selvagem. Riam, riam de mim; mas mostrem-me a lampreia de antanho, a que subia os rios e não era criada em viveiro (importada do Canadá, senhores), mostrem-me o velho bacalhau de cura amarela secado ao vento, mostrem-me os pães onde o pequeno guiço de pinheiro, carbonizado, lembrava o vetusto forno onde a farinha levedada ganhava carácter e era sacrificada.
"Não há volta a dar-lhe", lembrava um amigo ainda mais céptico do que eu. E citava: "Quem não comeu já não come." Entristecemos os dois. Entristece uma geração cujo estômago ainda foi mimado com molhos ancestrais e vinhos frescos, com queijos comprados em quintas e peixe que desconhecia as paredes do aquário, com arroz do Mondego e centeio do nobre e frio Barroso, com batatas que não vinham da Holanda e bacalhau que não era perseguido pelas autoridades.
E, até, com um Bairro Alto que não estava entregue (aqui começa a minha alarvidade reaccionária) à fauna grotesca que lhe caga as paredes e as ruas, espalhando seringas e beatas de charros de baixa qualidade, entre álcool adulterado e vestuário "gótico" de quem não lava o cabelo nem o buço, misturando cachorros em pão sintético e lixo semeado durante a noite. Não tendo a nostalgia do Bairro Alto, vou pelas suas ruas sem aqueles arroubos românticos de cantores vagamente "kitsch", limito-me a procurar o endereço do restaurante Esperança, na Rua do Norte, para um almoço simples "em ambiente sofisticado", como me tinham prometido. Aí vou eu, entrando, para comer um "risotto di funghi porcini", que me apetecia.
O Esperança, aberto num antigo espaço de taberna e mercearia, foi recuperado a preceito e é um espaço agradável e sereno, sobretudo à hora de almoço, com poucos comensais. Cardápio curto e apropriado para digestões simples – com uma lista de pizzas a ocupar uma página inteira, e de que me não ocupo. Prefiro as pastas, ali distribuídas por "penne" com cogumelos, o já habitual e popularizado "spaghetti nero e gamberi", uns supimpas "penne bresaola, pomodoro e funghi", os "linguini pomodoro zucchine e ricota", os "tagliatelle" com "aglio, olio, peperoncino e pomodoro seco". Diante desta frugalidade, fazer o quê? Comer. O meu apetite estava encalhado logo nas entradas, onde pontificavam um queijos grelhados na chapa, muito suculentos. À minha volta, pós-adolescentes comiam pizza e gabavam-lhe o ar estaladiço, eu compreendo-os: não tinham espinhas. O ambiente tranquilo e a decoração, com mármores e madeiras, convidaram-me a provar o "carpaccio" de polvo, temperado com gosto e suavidade (havia, também, "carpaccios" de mero, de bacalhau, de novilho e de espadarte), para o que usei mais os olhos do que o estômago. Os "tagliatelle" estavam naquele ponto ideal de abertura metafísica, belíssimos – o café final era bom. A minha irritação acerca do Bairro Alto retrocedeu um pouco.
Para a semana mudo de digestão e entrarei no Farta-Brutos, ainda no Bairro Alto lisboeta, em busca de coisas violentas.
À Lupa
Vinhos: * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *
Garrafeira
Vinhos tintos: 28
Vinhos brancos: 16
Aguardentes portuguesas: 6
Uísques: 12
Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: muito difícil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável ao almoço
Preço médio: 25 Euros
RESTAURANTE ESPERANÇA
Rua do Norte 95 - Lisboa [Bairro Alto]
Tel: 21 343 20 27
Encerra 2a e 3a à hora de almoço
in Revista Notícias Sábado – 24 Novembro 2007
Etiquetas: Restaurantes
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