Dos benefícios da denúncia
A ideia-base que anima o espírito da administração pública é a de que os homens são naturalmente bons ou honestos e que, portanto, contribuem à sua medida para o bem geral, não sujando as ruas, pagando os seus impostos, respeitando as leis, educando os seus filhos no respeito por esses “valores universais”, contribuindo para melhorar a sociedade e evitando assassinar o seu próximo. Em contrapartida, o Estado e a administração pública asseguram cuidados básicos de saúde, providenciam a segurança nas ruas para proteger as pessoas honestas e punir os criminosos, investem o dinheiro dos contribuintes não o gastando em vão, asseguram ensino público – e facilitam a vida.
Poderíamos abordar o “contrato social” de outra forma, mais optimista. Mas somos desconfiados. Muitas vezes, a desconfiança é o único valor estável que existe na relação entre o Estado e o indivíduo. Habituado à impunidade dos criminosos que não são castigados pela justiça ou ao mau exemplo dos governantes, observando o enriquecimento ilícito à custa do Estado ou à sua sombra, assistindo ao mau governo dos recursos comuns, castigado pela incompetência da burocracia, o cidadão tem toda a legitimidade para desconfiar do Estado, para lhe desobedecer em determinadas circunstâncias ou para, no geral, ironizar sobre as boas intenções dos governos.
A corrupção é um dos males que ataca a sociedade e o Ministério da Justiça publicou um documento, destinado aos servidores públicos, onde recomenda a promoção de “uma cultura de legalidade” ou “agir sempre com isenção e em conformidade com a lei”, devendo os funcionários denunciar situações de que tenham conhecimento e que configurem casos de corrupção. Não é original a tentativa de promover este tipo de manuais, nem os funcionários públicos (e os cidadãos em geral) esqueceram esses princípios. Eles são claros e emanam de um bom senso geral acerca da justiça. Mas o Ministério da Justiça quer mais: que os funcionários públicos sejam não apenas incorruptíveis mas, também, denunciantes da corrupção alheia, em nome do bem comum. Aqui, entramos no mundo das boas intenções.
Lançar um combate pela moralização da vida pública pode ser hipócrita, dado que já existem leis sobre o assunto e o Estado não tem que pregar moral. Esquecer que Portugal tem uma larga tradição de denúncias privadas, mesquinhas, de vizinhos maledicentes e de velhas taradas, é ainda mais grave. Exemplos? A denúncia de judeus velhos e cristãos novos foi o que se sabe. A denúncia por maldade. A denúncia durante a I República. A denúncia de “reaccionários” durante a revolução. A denúncia vergonhosa da vida privada dos outros para alimentar a inveja e as primeiras páginas. A denúncia à PIDE. A denúncia aos padres e à Inquisição. As cartas anónimas indignas que circulam na Administração Pública. E a perseguição a quem se queixa com bases legais. A queixinha avulsa. A queixinha por método, a denúncia por hábito. Controlar a vida dos vizinhos e combater os vícios dos outros. Basta conhecer um pouco de história para ficar aterrado.
A seguir, a inversão do ónus da prova diante de denúncias improváveis. Ou o fomento da vigilância colectiva, que assolou todas as sociedades e alimentou todas as caças às bruxas. Dir-me-ão, convictamente, que o Ministro da Justiça não quer isso e está ciente desses riscos. Eu sei. Mas as boas intenções são a infelicidade dos governantes. E acabam por ser a infelicidade dos cidadãos.
in Jornal de Notícias – 30 Abril 2007
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