abril 14, 2007

Vida Imperial


Uma máquina de cerveja pode mudar a vida de um homem. Os prós e contras da novidade.

Provavelmente, este é o meu texto mais autobiográfico - ou seja, para sermos claros, aque­le em que não posso enganar-me a mim próprio. Acontece raramente uma circunstância destas; a mim aconteceu-me ao meter dentro de casa uma máquina de tirar cerveja à pressão: fino, imperial, caneca, lambreta, príncipe, nenhum destes formatos ou designações tem segredos para mim a partir de agora.

Onde antes havia latas e garrafas à espera de serem recicladas ou apenas de desaparecer para ganhar espaço na despensa, há agora uma máquina perver­sa, diabólica, condenável pelos princípios de uma vida regrada e impoluta. Quando chego a casa, ao final da tarde (ah, naquele final de tarde em que apetece uma bebida!), ela olha-me, tenta-me, fala baixinho; sinto, na cozinha, o seu murmurar eléc­trico, um ronronar surdo e grave, diante do armário onde guardo os copos. Às vezes passo por ela a meio da noite, esquivando-me - e então desvio o olhar, fixo-me nas caixas de cereais e nas garrafas de Água das Pedras, um dos meus vícios; enfim; resisto.
Muitas vezes me ocorreu, ao fim da manhã, depois de trabalhar, ouvi-la como um canto da sereia, cha­mando, rumorejando, convocando, chilreando. Volto-lhe as costas, tapo os ouvidos como os velhos marinheiros no alto mar, mas aquela tentação per­manece. Vamos e venhamos, praticamente deixou a minha vida num inferno. Mas habituei-me. E, na verdade, habituei-me com volúpia e - simultanea­mente - sentido do dever.

Ao longo de vários meses, enquanto escrevia as notas para o meu livro sobre cervejas ['99 Cervejas + l, Ou como Não Morrer de Sede no Inferno', ed. Esfera dos Livros], armazenei garrafas que chegavam de várias procedências e que, além de ocuparem duas prateleiras na despensa, man­tinham desperto aquele ar profissional que con­vém mostrar no momento da prova. Várias delas, eu sabia, eram melhores na sua versão 'draught', de pressão, do que em garrafa. Quase todas as cer­vejas apresentam uma espuma mais cremosa e uma maior vivacidade de corpo (maior carbonatação) quando são tiradas à pressão; evidentemente que depende do tempo de vida útil do barril, da qualidade do frio e da limpeza do seu sistema de tiragem - mas, por norma, um "fino", ou "imperial", bate a cerveja engarrafada nesses dois pontos. E, vejamos, não se trata de aspectos negli­genciáveis. A espuma, por exemplo, é essencial para manter a frescura da bebida e o borbulhar do líquido; quanto mais cremosa, mais tempo de vida útil tem o nosso copo de cerveja. Para garantir um frio adequado, deixe o barril por três horas no congelador (as instruções sugerem, em alternativa, doze horas no frigorífico, mas pes­soalmente prefiro o tratamento de choque), aplique-o, aguarde cinco minutos e comece a exercer os seus legítimos direitos.

Ao contrário de outras propostas existentes no mercado, em que se liga a torneira directamen­te ao barril de cerveja (caso de marcas holandesas e alemãs), esta, com o tamanho aproximado de uma máquina doméstica de café-expresso, liga-se à electricidade e guarda a cerveja no seu interior. É uma grande vantagem. Mas, no fim de contas, o principal risco desta máquina de cerveja preparada para os barris Super Bock (são cinco litros) é que sua a validade é, sen­sivelmente, de cinco dias. Ao fim de uma semana na máquina a cerveja já não apresenta aquela fres­cura inicial, detectada quando, ao fim das duas primeiras imperiais, o creme adere às paredes do copo como um fio de manteiga fresca, rescendendo ainda a lúpulo e ao seu amargor (uma das características desta cerveja é o tom de frescura, ligeiramente afrutado, próprio da marca). Mas durante esses cinco dias não há remédio: ela olha-nos, lá da cozinha, ronronando. O ideal, portanto, é estrear um barril uns minutos antes de um bom jogo de futebol, se calha os seus amigos irem visi­tá-lo - pela grande amizade que lhe devotam, naturalmente, e não por ter aquele canal de TV cabo ou, imagine-se, por ter uma máquina de cer­veja de pressão em casa. A amizade é que conta. Outro ponto importante e óbvio: os copos. Experimente copos diferentes, veja qual se adapta melhor ao seu modo de beber - desta vez não tem de usar os copos padronizados das cervejarias e restaurantes. Prefira-os altos, finos, e use-os secos (às vezes apetece-me usar um copo de tamanho médio e largo, que leve apenas 0,20 cl). Não caia na tentação de reencher um copo - use outro - porque a qualidade da tiragem é totalmente diferente, para pior.

A tiragem da cerveja, aliás, merece discussão. O método mais apreciado consiste em encostar a torneira à parede interior do copo, ligeiramente inclinado. Entendimento diferente tem, por exemplo, a maior parte dos alemães (ou ingleses, quando se trata de 'pints'): o copo está direito, na vertical, imobilizado, e a cerveja cai sobre ele, pro­duzindo espuma abundante; aguarda-se que o volume da espuma desça e acrescenta-se mais cer­veja; repete-se a operação até conseguir dois a três dedos de colarinho. Confesso o meu pecado: pre­firo-a assim. Portanto, aproveite a oportunidade de ter uma destas preciosas máquinas em casa para ir treinando o seu próprio método.

É provável que, nos primeiros dias, detecte alguns sintomas de uma ligeira apreensão: querer chegar a casa para ver como está a cerveja, rondar a máquina durante as horas mortas (para ver se está no sítio, evidentemente, e para testar a capacida­de de lhe resistir), interrogar-se acerca da existên­cia de barris no supermercado das redondezas, meditar sobre o sentido da vida quando - afinal - já temos cerveja de pressão em casa. Um fino, ou uma imperial, se me permitem.

X-PRESS SUPER BOCK

Máquina
Design: * * * *
Arrumação: * * *
Dispêndio de energia: * * *
Ruído: * * *
Montagem: * * * * *
Substituição de barris: * * * *
O melhor: prático, fácil de montar
O pior: o ruído do motor

Cerveja
Espuma: * * * *
Cor: * * * *
Transparência: * * * *
Aroma: * * *
Sabor: * * * *
Carbonatação: * *
O melhor: espuma, limpidez, cor
O pior: existe apenas ‘lager’ (seria bom experimentar a ruiva e a ‘stout’)

Preço
Máquina: € 197
Barril (5L): € 12

in Revista Notícias Sábado – 14 Abril 2007

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