abril 16, 2007

A credibilidade e a moral

A credibilidade do primeiro-ministro ficou, sem dúvida, afectada pelo episódio da Universidade Independente. E isso acontece apesar de terem sido razoáveis as explicações que deu e convincente o seu discurso sobre o assunto. Admitindo a razoabilidade das suas explicações, há - naturalmente - coisas que ficaram por explicar e que continuam a suscitar "dúvidas legítimas" na opinião pública. Ou seja, invertendo a ordem dos factores apesar do incidente, continua a manter-se a prerrogativa da fé em José Sócrates e no seu trabalho como primeiro-ministro.

Longe de se tratar de uma tentativa de "assassinato de carácter" (como murmuram alguns "operacionais" de quem o primeiro-ministro sabe que tem de desconfiar), as dúvidas manifestadas eram inteiramente legítimas. Ao contrário do que se disse, para a opinião pública a questão não era a de determinar se o primeiro-ministro podia ou não usar um título académico, ou se o possuía. São questões de pormenor. Doutores é o que há mais. A questão era a de saber se o primeiro-ministro fez o que muita gente fez sem idêntica falta de escrúpulos.

É claro que, ao fornecer as explicações que ouvimos, José Sócrates entrou num terreno minado qualquer notícia, qualquer pormenor, qualquer pequena revelação que ponha em causa as informações agora prestadas, será decisiva e definitiva para a sua imagem na opinião pública. E, então, nada o salvará - nem esta presunção de inocência de que partilho.

É certo que, fragilizado ou não na categoria da "credibilidade", o primeiro-ministro tem uma vantagem acrescida sobre os desafios lançados pela oposição. Ou seja, mantém-se a conjuntura que foi favorável nas eleições que o levaram ao poder, coisa que não teria acontecido se fossem outros os personagens.

O melhor que poderia acontecer a José Sócrates seria a discussão entrar nos territórios da moral. Como em tempos escrevi neste jornal (a propósito da campanha eleitoral que conduziu à vitória eleitoral de Sócrates), "os moralistas têm vida curta entre nós; não apenas são gente de mau aspecto como se trata de pessoas cheias de inveja". A distinção entre os territórios da vida privada e da vida pública é flutuante, geralmente pantanosa e quase sempre um incómodo. Para a generalidade dos eleitores, desde que a vida privada não assalte a vida pública, o sono está garantido. Além disso, porque são manhosos e aprenderam - com os políticos e com o poder - que a moral é sempre relativa, sabem que a tentativa de moralizar não lhes vai ser útil nem agradável. Porque são, também, gente de moral flutuante. Santana Lopes perdeu definitivamente as eleições, na época, quando fez insinuações infelizes sobre a vida privada do então candidato a primeiro-ministro.

José Sócrates teve, de novo, a sorte dos audazes. Para a generalidade da opinião pública, um "canudo" é coisa sem substância, porque também aprenderam que o rigor, a excelência e a qualidade académica são valores interessantes mas pouco compensadores e, muitas vezes, um empecilho. Sócrates não apenas é exemplo dessa vontade de vencer na política e na vida - identificando consigo muitos eleitores - como defende essa ideia contra o território perverso da moral na política. Limpinho.

P.S. - O primeiro-ministro defendeu-se das críticas da oposição de esquerda (que o acusa de governar à direita), dizendo que as leis do aborto, da procriação médica assistida e da paridade são evidentes medidas de esquerda. A isso estamos reduzidos. Salvo erro, tem sido esse um dos factores que tem provocado esta desertificação ideológica admitir que os valores da esquerda são um resíduo de coisas "fracturantes". Sócrates tem sorte: pode tratar dos negócios do Estado à direita, como convém, mas fazendo qualquer coisa "de esquerda" de vez em quando, para contentar aquelas pobres almas.

in Jornal de Notícias - 16 Abril 2007

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