A qualidade das pessoas
Uns dias fora da pátria e há coisas que escapam; nada de substancial, evidentemente, mas revela um pouco da pátria. Refiro-me a uma campanha intitulada "Novas oportunidades" destinada a "dar resposta aos baixos índices de escolarização dos portugueses através da aposta na qualificação da população", coisa que é apresentada como sendo um "desígnio nacional".
Não se trata de estar no desgraçado lado "do contra", ou a marchar ao lado do "miserabilismo português", mas a campanha não tem muita graça. Em primeiro lugar, sugere imediatamente o seu contrário, o que diz muito sobre o seu carácter risível. Foi assim, aliás, que a conheci.
Se o leitor tem presente os anúncios publicados na Imprensa ou os cartazes pendurados pelo país fora, sabe do que se trata. Figuras públicas, que conhecemos da televisão, ou da música, por exemplo, aparecem como trabalhando numa banca de jornais (como essa em que comprou este jornal) ou como empregado de hotel ou de bar. Eles teriam sido assim, caso não completassem os seus estudos. Como se compreende, é possível brincar com o assunto se Luís Figo tivesse completado os seus estudos, por exemplo, seria funcionário de uma repartição no Montijo, e nunca poderia ser conhecido como um dos melhores futebolistas do mundo ou milionário. O que preferem os portugueses? Ser "funcionário de uma repartição no Montijo" ou milionário em Itália?
Uma campanha "que dá para os dois lados" é sempre frágil. Mas não é do seu lado mais risível que nos devemos ocupar e sim de dois pormenores essenciais que estão na ordem do dia. Em primeiro lugar, o desemprego em licenciados é francamente assustador, embora compreensível. Passámos de um mundo em que a licenciatura dava acesso a "um emprego", fosse onde fosse, no Estado ou no sector privado - para um universo onde se preferem as competências às referências, e onde há valores como a concorrência, a iniciativa, a imaginação, a criatividade, a mobilidade e o risco. Esse pequeno mundo de doutores e engenheiros que garante emprego com a apresentação do "canudo", como se sabe, terminou. Nada está garantido. O recente debate sobre a licenciatura do primeiro-ministro, aliás, permitiu ver para que lado da balança se inclinou a opinião dos portugueses uma licenciatura não quer dizer nada. Eu protestei: afirmei, redondamente, que quer dizer muita coisa, sim. Mas em vão.
Segundo pormenor, muito mais chocante - ou, este sim, chocante a demonização desses empregos honestos, imprescindíveis e que não deviam ser menosprezados, como empregado de restaurante, vendedor de imprensa, jardineiro, seja o que for (escuso-me a acompanhar a imaginação delirante e classista da campanha), parece-me francamente lamentável. A ideologia que enquadra esses anúncios podia ser adoptada por qualquer pós-salazarista. Coitados dos vendedores de imprensa, coitados dos porteiros de hotel, coitados dos empregados de mesa em restaurante, coitados dos funcionários do comércio ou da administração pública ou das portagens das auto-estradas, coitados dos que não têm um curso. Compreende-se a boa-vontade dos responsáveis pela "Novas oportunidades" (e dos que figuram na campanha, evidentemente), e compreende-se o sentido geral da iniciativa. Portugal precisa de mais qualificação na formação profissionais e de mais qualidade dos seus licenciados. Mas há, ali, qualquer coisa de chocante: um menosprezo das profissões banais, um desprezo das ocupações não consideradas nobres.
Como se sabe, no campo das políticas públicas, não contam apenas as intenções; contam também os métodos, os processos e as imagens geradas nesse caminho. Não se pode desvalorizar a qualidade das pessoas em nome da qualidade das profissões. Porque, no fundo, a qualidade da vida das pessoas não depende da qualidade das profissões. Depende da sua iniciativa e da sua vontade.
in Jornal de Notícias - 23 Abril 2007
Não se trata de estar no desgraçado lado "do contra", ou a marchar ao lado do "miserabilismo português", mas a campanha não tem muita graça. Em primeiro lugar, sugere imediatamente o seu contrário, o que diz muito sobre o seu carácter risível. Foi assim, aliás, que a conheci.
Se o leitor tem presente os anúncios publicados na Imprensa ou os cartazes pendurados pelo país fora, sabe do que se trata. Figuras públicas, que conhecemos da televisão, ou da música, por exemplo, aparecem como trabalhando numa banca de jornais (como essa em que comprou este jornal) ou como empregado de hotel ou de bar. Eles teriam sido assim, caso não completassem os seus estudos. Como se compreende, é possível brincar com o assunto se Luís Figo tivesse completado os seus estudos, por exemplo, seria funcionário de uma repartição no Montijo, e nunca poderia ser conhecido como um dos melhores futebolistas do mundo ou milionário. O que preferem os portugueses? Ser "funcionário de uma repartição no Montijo" ou milionário em Itália?
Uma campanha "que dá para os dois lados" é sempre frágil. Mas não é do seu lado mais risível que nos devemos ocupar e sim de dois pormenores essenciais que estão na ordem do dia. Em primeiro lugar, o desemprego em licenciados é francamente assustador, embora compreensível. Passámos de um mundo em que a licenciatura dava acesso a "um emprego", fosse onde fosse, no Estado ou no sector privado - para um universo onde se preferem as competências às referências, e onde há valores como a concorrência, a iniciativa, a imaginação, a criatividade, a mobilidade e o risco. Esse pequeno mundo de doutores e engenheiros que garante emprego com a apresentação do "canudo", como se sabe, terminou. Nada está garantido. O recente debate sobre a licenciatura do primeiro-ministro, aliás, permitiu ver para que lado da balança se inclinou a opinião dos portugueses uma licenciatura não quer dizer nada. Eu protestei: afirmei, redondamente, que quer dizer muita coisa, sim. Mas em vão.
Segundo pormenor, muito mais chocante - ou, este sim, chocante a demonização desses empregos honestos, imprescindíveis e que não deviam ser menosprezados, como empregado de restaurante, vendedor de imprensa, jardineiro, seja o que for (escuso-me a acompanhar a imaginação delirante e classista da campanha), parece-me francamente lamentável. A ideologia que enquadra esses anúncios podia ser adoptada por qualquer pós-salazarista. Coitados dos vendedores de imprensa, coitados dos porteiros de hotel, coitados dos empregados de mesa em restaurante, coitados dos funcionários do comércio ou da administração pública ou das portagens das auto-estradas, coitados dos que não têm um curso. Compreende-se a boa-vontade dos responsáveis pela "Novas oportunidades" (e dos que figuram na campanha, evidentemente), e compreende-se o sentido geral da iniciativa. Portugal precisa de mais qualificação na formação profissionais e de mais qualidade dos seus licenciados. Mas há, ali, qualquer coisa de chocante: um menosprezo das profissões banais, um desprezo das ocupações não consideradas nobres.
Como se sabe, no campo das políticas públicas, não contam apenas as intenções; contam também os métodos, os processos e as imagens geradas nesse caminho. Não se pode desvalorizar a qualidade das pessoas em nome da qualidade das profissões. Porque, no fundo, a qualidade da vida das pessoas não depende da qualidade das profissões. Depende da sua iniciativa e da sua vontade.
in Jornal de Notícias - 23 Abril 2007
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