abril 19, 2007

O mar em Casablanca

Este Vento do meio-dia, que ar­rasta a poeira do Sul, por exemplo. Nu­vens de poeira: gosto da imagem, que me lembra as coisas arrastadas pelo vento do meio-dia em Casablanca, quando é sexta-feira, dia de oração. Desço pela Corniche em direcção ao mar batido e azul de Casablanca à hora a que milhares saem das mesquitas. Em algumas delas (para quem não entrou na grandiosa mesquita Hassan II, a que tem o minarete mais al­to do mundo) há gente que não pôde en­trar – e fica na rua, sobre um tapete que depois enrolam debaixo do braço.

Além do vento, há um sol tímido. Ao fim da tarde, Casablanca repousa da história, abandonada ao trânsito. Dar El Beida (o seu nome em árabe) ocupa o lugar de várias cidades abandonadas. Em primeiro lugar, Anfa, a cidade que os portugueses arrasaram no século XV com dez mil soldados que expulsaram os seus habitantes. Depois, a modesta Casa Bran­ca portuguesa que o terramoto de 1755 destruiu e que foi reerguida cerca de 1770 pelo sultão Mohamed Ben Abdullah, que também fundou Essaouira. A nossa presença em Marrocos termina nessa altura, aliás, depois do abandono de Mazagão (El Jadida), cujos habitantes são enviados para o limite norte da Amazónia brasi­leira (actual Amapá). E a Casablanca onde está a marca dos mercadores espa­nhóis, antes de, no início do século XX, ser ocupada pelos franceses.

Embora a nossa mitologia nos reen­vie à Casablanca de Michael Curtiz e ao destino interpretado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman (e ao voo regular para Lisboa, que ainda se mantém), é im­possível não ver na poeira de Casablanca a marca dessa história fantástica de uma cidade sitiada diante do Atlântico, po­voada e repovoada, abandonada e retoma­da, habitada por comunidades de todas as crenças, sobrevivente às guerras e inva­sões que atravessaram o Mediterrâneo. Moderna e desigual, dividida entre os que vão às mesquitas ao meio-dia de sexta-feira e os que ficam nos cafés diante da orla, a sua face de «capital económica do reino» não consegue esconder a presença do passado que avança de todos os lados.

O que transforma Casablanca «num caso», para todos nós, é que fica a cin­quenta minutos de Lisboa, do outro lado do Mediterrâneo. Em cinquenta minutos passamos de uma das margens da Europa para uma das fronteiras de África e do Is­lão. Há quem pense que se trata de uma passagem entre o que conhecemos e o que não conhecemos, mas não é bem assim. Casablanca recordou-me o belíssimo ro­mance histórico de Pedro Canais, A Len­da de Martim Regos (publicado pela Ofici­na do Livro) – nele, o herói Martim Regos passa de uma civilização a outra, da Cristandade ao Islão (com o judaísmo de permeio, ainda), com uma facilidade sur­preendente, transformando-se de acordo com a vida das cidades onde pernoita e dos países que o aceitam. Mas estamos no final da Idade Média. O al-Andalus es­tende-se até às portas do Mondego. De Casablanca às planícies do Ribatejo não há nada que não seja comum aos dois mundos.

Pelos séculos fora, guerras, inva­sões, cercos, mortandades e perseguições não fizeram senão tornar comum esse es­paço que hoje nos separa. Outro roman­ce que recordo em Casablanca é O Cava­leiro da Águia, de Fernando Campos (Dífel), onde Gonçalo Mendes, casado com uma princesa moura (marroquina, no caso), nos explica o significado da guerra e das religiões em guerra.

O meu amigo Saïd Benabdelouahed ensina em Casablanca e é a prova de que o passado pode não ter importância. Apai­xonou-se pela nossa língua e lê os nossos poetas. Filomena Alves, responsável pelo ensino do português na cidade, passeia com os alunos nas ruas. Viajar para Casa­blanca é reencontrar o passado e retomar o percurso comum das duas cidades.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Abril 2007

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