abril 09, 2007

A boa e a má vida académica

Vamos lá ao assunto. Em Portugal prezam-se bastante os títulos académicos; não porque se venere a carreira académica, ou o currículo dos investigadores e professores, mas porque é impossível conceber que alguém exista (atrás de uma secretária, nas sombras de um gabinete, onde quer que seja) sem um "Dr." ou um "Eng." antes do nome. António José Saraiva propôs em tempos, para acabar com o flagelo, que mal requeressem o primeiro Bilhete de Identidade, a todos os portugueses fosse logo acrescentado o "Dr.", ficando assim satisfeito o desejo de milhões de cidadãos serem tratados por "doutor". Ou por "engenheiro".

Há uma discussão e uma suspeita, pelo país fora, acerca da licenciatura do primeiro-ministro. Contrariamente ao que foi dito, neste momento o problema não é o da forma de tratamento devida a José Sócrates em circunstâncias formais e em função dos seus estudos universitários. Também ao contrário do que se diz, não vejo razões para falarmos de uma conspiração e acho de mau gosto a designação de "jornalismo de sarjeta".

Evidentemente que é bom, para a democracia, saber em que condições e sob que condições foram emitidos os títulos de licenciatura do primeiro-ministro.

O problema é, também aqui, outro e inteiramente diferente - tem a ver com a interessantíssima ligação entre os dirigentes políticos, os partidos, e as universidades privadas que nasceram como cogumelos nos anos oitenta e noventa. Quem não se recorda dos nomes de políticos a quem nenhum ponto do currículo recomenda especialmente e que foram nomeados para postos e cargos académicos de responsabilidade? Paulo Portas e Santana Lopes, por exemplo, passaram pela Moderna como directores de um centro de sondagens. O que os fez merecer o cargo? Professores de jornalismo e de sociologia, de "relações internacionais" e de "comunicação" multiplicaram-se pelo país fora, sobretudo nessas universidades que foram abençoadas por dirigentes políticos, até aí inacreditavelmente incultos ou, mesmo, semi-analfabetos. Era difícil, nesses quadros académicos, não encontrar um dirigente partidário, uma boa representação de deputados ou um grupo de "especialistas em ideias gerais". O que tinham eles feito pelo ensino, pela carreira académica, pela investigação, pela ciência, pelo conhecimento? Nada. Ao contrário de outros países, onde há políticos saídos da universidade e com um currículo aceitável e recomendável, em Portugal fez-se o caminho ao contrário como havia poucos dirigentes políticos com um passado académico que os valorizasse, criavam-se universidades onde eles teriam assento. Estaria resolvido o problema do título académico e garantida a influência da universidade. Façam a lista dos deputados, futuros ministros, secretários de estado, líderes de partido ou de tendência, que receberam esses títulos ou que "ajudaram" a criar universidades. É numerosa. E dá conta de um saudável regime de colaboração multipartidária, registe-se.

E, pergunto, de novo o que fizeram esses cavalheiros e madamas pelo prestígio da universidade? Pouco, que se saiba. Em Portugal, os dirigentes políticos não lêem, não escrevem, não estudam, não investigam. Mas criam universidades e "fazem política". Uns com os outros.

PS - A fim de defender o primeiro-ministro, vários comentadores têm insistido num ponto particularmente sensível à mentalidade democrática actual a de que não é preciso um curso universitário para se ser um bom primeiro-ministro. O exagero compreende-se mas não se aceita e temo pelas consequências: como se pode explicar às "novas gerações" que não há necessidade de estudar? Um título académico não é uma página da "Caras".

in Jornal de Notícias – 9 Abril 2007

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