maio 28, 2007

Espanha Zapatera

Zapatero irrita-me, e isto é absurdo. Irrita-me ele querer mudar Espanha, tornar Espanha «mais civilizada», a deitar-se a horas e a levantar-se para fazer jogging, a viver em ambientes saudáveis e livres do cheiro de Ducados e de canarinos (lembro-me sempre dos textos de Montalbán sobre o Condal n.º1, charuto de eleição de Pepe Carvalho). Irrita-me a legislação contra a siesta, aquele perfeccionismo intrometido na vida individual, que terá de passar a ser elegante, limpinha, nada promíscua, cheia de produtividade e de asseio. Mudar a Espanha é atraiçoar a nossa memória de bocadillos e de tortilla de bacallao y de patatas, de pesols a la catalana, de flamenquines asturianos, de conill a la brasa amb all i oli, de boquerones en vinagre, coquinas al ajillo, albóndigas con tomate ou cocido galego. Tenho uma grande nostalgia dessa Espanha incivilizada cheia de adeptos do Atlético e do Real, do Elche e do Ossasuna. Há uns meses, enquanto servia uns calamares fritos, uns pratinhos de pulpo de feira e umas empanadas quentes, a dona do Mesón de la Chispa (na Galiza, uma coisa que vem da minha adolescência, juntamente com o vinho branco de Monterrey) queixava-se de que agora toda a gente quer comida de fusão e que já não se encontravam apreciadores de lacón con grelos. Às vezes, quando vejo Zapatero sorrir ou revejo a comunicação ao país de Ignacio Buqueras, Presidente da Comisión Nacional de Horarios (anunciando que ia mudar os horários espanhóis para que os cidadãos vivessem mais felizes e menos angustiados), até dos velhos comboios da Renfe tenho saudades, daqueles que atravessavam Navarra a 80 kms/h, para não falar dos textos culinários de Puga y Parga (o autor de 56 Maneras de Guisar el Bacalao) ou das dispepsias de D. Álvaro Cunqueiro. Ou das tardes de café, copa y puro. Nós temos direito a essa Espanha incivilizada, quero lá saber da Espanha zapatera.

in A Origem das Espécies - 28 Maio 2007

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Procedimento disciplinar

Sim, todos nós sabemos que o regime não cai por causa de uma directora regional da educação, por muitos bons acessos que ela possa ter junto do governo. O “caso Charrua” não pode ser tratado como uma tragédia; mas deve ser considerado um epifenómeno, um exemplo e um perigo. Independentemente dos resultados do “procedimento disciplinar” a que a Direcção Regional de Educação do Norte (DREN) sujeitou o professor, há matéria para pensarmos no assunto.

Em primeiro lugar, dadas as circunstâncias, os resultados do inquérito devem ser tornados públicos na sua totalidade. A actual situação de “segredo disciplinar” tem permitido todo o género de suspeitas sobre o caso. O tipo de castigo aplicado, o modo de funcionamento da DREN (que neste caso se baseou na delação, na suspeita, na denúncia de situações de corredor, na perseguição política) e a reacção de responsáveis políticos do PS não auguram nada de bom. Além do mais, é suspeito e muito estranho que Alberto Martins (líder da bancada parlamentar do PS), por exemplo, tenha ficado calado durante o debate da AR. Ele, que defendeu a liberdade no regime anterior.

Para recordar aos leitores mais distraídos, o “JN” publicou na semana passada uma reacção de Renato Sampaio, em que este líder do PS-Porto achava o procedimento “absolutamente normal”. De igual modo, o coordenador dos deputados do PS na área da Educação achava que era “preciso fazer qualquer coisa quando os políticos são achincalhados na rua”e, nessa medida, não comentaria “processos disciplinares”. Esta posição comum a duas pobres almas que tentam agradar a quem promove inquéritos disciplinares tão obtusos, dá uma ideia do que pode acontecer a quem for, um dia, perseguido pelo poder político. Parece que não aprendemos nada com a história da censura, da arbitrariedade, da denúncia inquisitorial e da perseguição à liberdade de expressão. A estes cavalheiros não pediremos, certamente, ajuda nenhuma.

O caso parece dar razão ao velho “precaucionismo” português e à vantagem de estar caladinho e com juízo, ambas as coisas herdadas do salazarismo e do passado inquisitorial. Melhor que não desconfiem, melhor que não oiçam, melhor que não se achincalhe ninguém – com uma piada, uma graçola, uma anedota, uma alusão. Teriam assim razão aqueles que acham que “o perigo espreita” em cada palavra, sobretudo se ela pode ser escutada por funcionários que podem denunciar, delatar ou, pura e simplesmente, vingar-se.

Casos destes ocorrem frequentemente, mas a vantagem das democracias é que são denunciados à opinião pública e os seus responsáveis afastados e, nunca, defendidos – a não ser por pobres almas que acham tudo “absolutamente normal” ou temem que se “achincalhem” políticos na rua. Por que razão não devem ser defendidos esses procedimentos? Justamente, porque põem em perigo um dos pilares fundamentais das democracias liberais, que é o direito a não ser perseguido por delitos de opinião ou por motivos políticos.

Se a ministra da Educação, por quem tenho o maior respeito, o governo e o PS não se demarcam da decisão e dos métodos usados na DREN, estarão a dar um péssimo sinal aos portugueses. Não só pactuam com a actuação desastrada da directora da DREN (que, a acreditar no que vem publicado nos jornais, já publicamente fez piadas acerca da licenciatura do primeiro-ministro e estará, assim, sob a alçada de “procedimento” por ter “achincalhado” um político na rua), como incentivarão outros pequenos e medíocres ditadores de corredor a actuar com total impunidade.

Só uma nota final. Deixei, na altura, escrito o que pensava sobre a trapalhada que foi Santana Lopes enquanto primeiro-ministro. Sou, portanto, insuspeito. Mas, se isto acontecesse na época, já haveria manifestações de rua e declarações parlamentares a pedir a sua demissão. Façam as contas.

in Jornal de Notícias - 28 Maio 2007

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maio 26, 2007

Bons ventos do Minho


Em Famalicão, junto à Casa das Artes, um restaurante bonito e com uma esplanada agradável.

Ventos de revolução nas cozinhas das nossas pro­víncias chegam aqui e ali, espalham-se a bom ritmo. O meu bom Minho gastronómico aceita também essas propostas de bom grado, porque ele também é pimpão e atrevido – não apenas na continuação da chamada Área Metropolitana do Porto, mas tam­bém entre silvados, pinhais, vinhas de enforcado, fragas esverdeadas e profundas em cujas sombras podemos descansar e oferecer-nos uma sesta depois de um almoço em restaurantes para cuja enumera­ção a memória vai falhando mas o apetite nunca falta em chegando a hora.

Famalicão ganhou já independência gastronómica há muito tempo. Há restaurantes onde se suspeita que Camilo Castelo Branco se atreveria a repousar e a comer, vetustas salas de jantar onde a oferta de rojões já foi ultrapassada pela descoberta de que o século passado findou há muito, e experiências a reservar no nosso paladar. Nem todas são boas, essas experiências – não vá o diabo tentar-nos –, mas a expectativa mantém-se para os próximos tempos de peregrinação gastronómica.

Pois, junto da Casa das Artes de Famalicão fica o Massimo, um restaurante cuja esplanada se reco­menda a partir de agora com os primeiros calores que anunciam o Verão. Arejado, aberto para o relvado em frente, iluminado pela luz do Sol durante o dia e com adequadas penumbras à noite, de madeiras escuras no chão, o Massimo designa-se a si mesmo como "restaurante lounge". Assim seja. Um ar de moderni­dade na Famalicão que já foi de Camilo.

Para come­çar, bom gosto nas loiças e no 'couvert', com um azeite razoável e vinagre balsâmico, e pão estaladiço (no Minho, meu deus, faltava a broazinha). Seja como for, de uma lista de entradas em que se distin­guem um 'camembert' panado com compota de abóbora, míscaros grelhados, ovos de cordoniz estrelados sobre cogumelos grelhados, 'revuelto' de espargos trigueiros e gambas (ou seja, ovos mexidos com espargos), salmão fumado com queijo fresco, vieiras gratinadas na concha, camarões tigre fritos em ' Alvarinho, presunto Pata Negra com 'foie gras', 'foie gras' laçado com puré de maçã, 'carpaccio' de lombo - escolhemos a primeira proposta, que passou no exame, e fiquei com apetites da sugestão basca dos cogumelos com ovinhos.

Passemos sobre as saladas (agridoce, com laminado de carne, de marisco ou mista de legumes grelhados) e anotemos apenas as massas: 'ravioli' com espinafres e queijo 'ricotta', 'tagliatelle' de gambas com creme fresco aveludado, 'spaghetti' de lavagante e caviar de ouriço-do-mar, 'penne' com salmão, lasanha de bife. Daqui, passe­mos aos peixes: pescada em massa 'brick' com molho de lavagante, tranche de cherne com espargos verdes salteados em manteiga, espetadinhas de polvo à laga­reiro, lombo de bacalhau no forno com maionese de azeite quente, bacalhau com crosta de broa em cama de grelos, arroz de tamboril e mariscos, arroz de lava­gante. E às carnes: bife cardeal, bife três pimentas, bife de massa folhada com 'foie gras' e batata gratinada, mil-folhas de rosbife, naco especial de 'foie gras' fresco, veado estufado com pimentos, secretos de porco preto grelhados, perna de pato confitada ou folhado de perdiz com arroz selvagem. O bife com três pimentas pareceu suculento e apetitoso, no ponto; o bife em massa folhada estava seco e não se percebeu a introdução de uma fatia de presunto fumado sob a massa, mas as batatinhas gratinadas eram excelentes. Tentaremos depois. Havia também, como prato do dia, além de um peixe grelhado, pataniscas com um arroz de feijão, que me pareceu muito apetitoso e cremoso.

Nas sobremesas, a prova de um bolo de chocolate com 'coulis' de frutos silvestres pareceu boa e o 'demi-cuit' com gelado de tangerina (um 'petit-gateau' formoso) convenceu perfeitamente. Havia ainda delícia de queijo com noz, leite-creme em massa 'brick' com 'coulis' de morango, mousse de chocolate 'praliné' com menta, quindim, suspiros com creme de ananás e morangos e a fruta laminada (que era reduzida em termos de variedade).

É um bom começo para o Massimo (com boa carta de vinhos), a que voltaremos durante o Verão para a segunda chamada.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 50
Vinhos brancos: 28
Aguardentes & Conhaques: 12
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 18

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: fácil (parque nas traseiras)
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 25 euros

MASSIMO
Parque de Sinçães (Casa das Artes)
4760-022 Vila Nova de Famalicão
Tel: 252 371 800
Encerra aos domingos à noite e às segundas-feiras

in Revista Notícias Sábado – 26 Maio 2007

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O "jogo" da política do futebol

1. Para diminuir o alcance de mais um campeonato ganho pelo FC Porto, há sempre essa referência ao “um ponto de vantagem” sobre o segundo classificado. Estão mal habituados. Quando o FC Porto era apontado como campeão ao dobrar o Carnaval, essas vozes falavam então de “falta de competitividade” e, como Vale e Azevedo pensava na altura, era necessário “chamar alguém” para pôr cobro a isso. Por exemplo: o facto de o FC Porto ter ocupado o topo da tabela desde o princípio do campeonato, tremendo ou não, também seria um exemplo de “falta de competitividade”. É esse o jogo da “política do futebol”: acusado por ser campeão e acusado porque poderia não ter sido.

2. A moral dos ressentidos é caso para anedota, mas vale a pena falar brevemente do assunto. Por exemplo: teria a mão de Ronny, no Sporting-Belenenses, “roubado” o título ao Sporting? Para uma série de cavalheiros, sim, mesmo que lhes lembremos erros clamorosos de sinal contrário. Ao invés, o FC Porto foi várias vezes prejudicado por arbitragens que, involuntariamente (acredito), decidiram no limite; em casos de dúvida, o FC Porto era punido. É esse o jogo da “política do futebol”: seguir na onda, como se o campeonato se pudesse ganhar por televoto.

3. Amanhã, na Taça, defrontam-se duas das equipas cujo futebol foi convincente. Já aqui o escrevi e por isso posso repeti-lo: o Sporting não foi apenas convincente mas, também, consistente. Uma equipa jovem, animada e decidida. Vai ser um jogo bom de ver, sem campeões por antecipação.

4. O negócio do Benfica, mais uma vez, não é o futebol. São as acções na bolsa, festejadas como se tratasse de um acontecimento sem igual – e a “política”. Desta vez, a “política” reduz-se à participação na Taça da Liga e à chantagem feita em nome de dossiers abstractos e supostamente relacionados com o Apito Dourado. O que não se pode ganhar em campo, ganha-se no número de adeptos e nas secretarias. A partir de agora, sugiro aos leitores que coleccionem a quantidade de jogadores que o Benfica, de acordo com a imprensa amiguinha, “vai comprar” até Agosto e que compare com a lista dos jogadores que forem integrados na Luz quando começar o campeonato. É essa a grandeza dos clubes, poderem ser devorados por si mesmos.

5. Não sei se viram o AC Milan-Liverpool, mas não foi um grande jogo. Há quem diga que as finais destes torneios quase nunca dão bons jogos. Eu limito-me a ver o jogo. Não queria nenhum dos treinadores para a minha equipa. Mas, sobretudo, não queria Benítez. No Valência comportava-se como se estivesse a treinar o Ourense. No Liverpool, como se fosse técnico do Valência B.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 26 Maio 2007

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maio 21, 2007

Pequena carta a José Sócrates

Senhor Primeiro-ministro: eu não conheço o caso senão pelas páginas dos jornais mas sei que Fernando Charrua é um professor de inglês requisitado pela Direcção Regional de Educação do Norte (DREN) e agora suspenso por ter gracejado sobre o processo da sua licenciatura. Mais de meio país, seguramente, fez “comentários” sobre o assunto – graçolas, piadas, anedotas, coisas soezes ou apenas risíveis e imbecis. O senhor sabe. É natural, somos portugueses e conhecemos a injustiça do humor de Gil Vicente, mesmo que o assunto seja tão irritante e tão menor como esse. O tema não é tabu e o senhor mesmo foi à televisão por causa dele.

A responsável pela DREN, avisada por alguém (que achou por bem denunciar o caso, sabe-se lá porquê) achou que o comentário do professor era um insulto ao primeiro-ministro e resolveu suspendê-lo de funções e instaurar-lhe um processo disciplinar, com participação – creio – ao Ministério Público. O que apurará o processo não se sabe ainda, mas prevejo um grande debate sobre o que é e não é insulto e sobre os deveres dos funcionários públicos. A coisa promete. Como em muitas situações semelhantes, vamos ter mais anedotas sobre o assunto. Ele merece.

De acordo com a directora regional de Educação – é, portanto, a posição oficial do Ministério da Educação –, “o Sr. primeiro-ministro é o primeiro-ministro de Portugal” e os funcionários públicos devem-lhe respeito. Ora, nem que não fosse primeiro-ministro. Em declarações ao jornal “Público”, Margarida Moreira acrescentou que a sua decisão (a de suspender o professor, a de instaurar-lhe um processo disciplinar e a de participar ao Ministério Público) se deve ao facto de “poder haver perturbação do funcionamento do serviço”.

Dado que o processo se encontra em fase de “segredo”, uma figura jurídica que serve para tudo, não sabemos que insulto lhe terá Fernando Charrua dirigido, a si, senhor primeiro-ministro, que pudesse perturbar tão gravemente “o serviço”. Imagino que o senhor também não saiba. Mas, andando na política há tantos anos, suponho que nenhum insulto lhe deva ser estranho. Basta aparecer na televisão, ter um nome e ocupar um cargo. O senhor sabe como essas coisas se passam. De tudo fazemos uma anedota. O mundo é cruel.

Há, evidentemente, a hipótese de a notícia não ser totalmente verdadeira. Mas não vejo como: a directora da DREN confirmou-a e o ministério da Educação não a desmentiu até hoje. Se o processo disciplinar ao professor continuar a correr neste segredo, aumentarão os rumores e as suspeitas. A principal delas, mesmo sendo injusta, é a de que o senhor autoriza o Ministério da Educação, através da DREN, a fomentar o autoritarismo, o culto da personalidade ou a perseguição política a funcionários públicos que contem anedotas sobre José Sócrates.

Seja como for, acho que a directora da DREN se excedeu. Foi mais papista do que o papa e causou-lhe, a si, um problema: o de poder passar a haver despedimentos por “delito de opinião”, o que é muito grave. O senhor dirá que não se trata de um despedimento mas, na pobre linguagem da pequena política, já se sabe que não basta “ser” – é também necessário “parecer”. Ora, isto parece, exactamente, “delito de opinião”. Argumentarão alguns que o comentário foi feito “nas horas de serviço” e “nas instalações da DREN”; teria sido assim tão grave que as paredes da DREN coraram de vergonha?

Sei que o senhor primeiro-ministro não concorda com este tipo de perseguições. Não deixe que isso aconteça no seu, e meu, país. De contrário, o senhor será responsável pelo reaparecimento de milhares de pequenos ditadores e papistas, um pouco por todo o lado. Eles detestam-no a si porque o senhor é de uma nova geração de políticos que nasceu para a política já em liberdade; mas aproveitarão a boleia que este caso pode dar-lhes para satisfazer a pequena tentação portuguesa da intolerância.

in Jornal de Notícias – 21 Maio 2007

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maio 19, 2007

Mesa primaveril


O Quinta dos Frades, em Lisboa, com luz clara e cadeiras confortáveis, é fundamentalmente um restaurante para almoçar.

O mundo não é mundo sem descanso, e o descanso não é descanso sem aquelas trivialidades que se passam à mesa – conversa fiada, uma comida, uma memória, um vinho. Muitos escritores falam do assunto sem que se dê conta (a literatura portuguesa é pouco dada, a partir de meados do século XX, às questões de estômago – mas olhem para Camilo, vejam Eça, lembrem Fialho), e o Quinta dos Frades faz disso um elemento fundamental da sua decoração.

Nas paredes, fotos de escritores e, volantes, frases que eles deixaram. Não tem marca de excesso literário, no entanto, o Quinta dos Frades: tem luz clara, tons suaves de pastel aqui e ali, chão brilhante de madeiras, cadeiras confortáveis, um ar quase sempre primaveril. Houve um tempo em que era “um dos restaurantes” onde havia imprensa, políticos, empresários, gente conhecida do futebol. Não desapareceram, mas a densidade diminuiu – sem diminuir o interesse que continuo a ter pela casa, sobretudo indo cedo, o que permite tomar uma bebida à entrada e demorar-se noutra à saída (as possibilidades do bar são vastíssimas, com whiskies bem escolhidos, conhaques de eleição e algumas aguardentes a reter).

O mundo – repito – não é mundo sem esta simplicidade e sem uma espécie de meridiano gastronómico que assinala a leveza do cardápio. Não me refiro a economia em calorias e colesterol, mas numa certa mediania da escolha. A comida, no Quinta dos Frades, é bem preparada, há um indício de razoabilidade na sua elaboração, não nos mata de prodigiosa imaginação nem nos fere de ausência absoluta dela. Digamos que se trata, fundamentalmente, de um restaurante de almoço, o que não tem nada de mal.

Nos peixes, além de uma lista acolhedora de peixes grelhados, registemos que convém dar uma olhadela na lista das espécies do dia – para, imaginemos, pensar se não estaria bem uma posta cozida ou grelhada, a gosto. Mas já lá pairaram o arroz de garoupa, os lombos de garoupa à provençal, o naco de cherne grelhado, cuja denominação suculenta é uma marca da casa. Nos pratos do dia, é aos peixes, aliás, que cabe o lugar de honra, com a açorda à marinheiro (com cherne, camarões e garoupa – às sextas), os lombinhos de cherne com arroz de berbigão (sábados), os filetes de pescada com arroz de grelos (terças) ou o polvo assado à portuguesa com batatinhas (quartas), sem deixar passar o bacalhau à Narcisa (ou à bracarense – às segundas, para cumprir a regra). Recomendo muito os lombinhos de cherne, frescos e com gotas de limão além da (para apreciadores) açorda de peixe e marisco com o seu volúvel ovo pairando. O bacalhau à Narcisa é elegante, de posta alta e completa, bem frito e ligeiramente envolvido em polme, com as tradicionais batatinhas fritas às rodelas, vigiando em redor.

Já nas carnes, é à quinta-feira que se apresenta o lombo de novilho à Wellington (em massa folhada, naturalmente, com batatinha dourada e esparregado razoável, num corte muito bom). Há depois um bife à Abade (num molho de pickles), um naco à hortelão, com ervas aromáticas, batata a murro e legumes, uma espetada de lombo, um arroz de pato (que estava muito bom mesmo sem cumprir as regras), presuntinhos de pato estufados, maminha de alcatra à moda de Lafões, perna de novilho assada à Florentina ou – tremei agora de indignação! – no Outono e no Inverno, na secção de pratos do dia, sábados, um cozido à portuguesa completo. Como estamos na Primavera, teremos de esperar mais um tempo.

Entre as opções de sobremesa contam-se cerca de vinte propostas de doces e semi-frios, como o pudim à casa, a musse de chocolate, a musse amendoada, o arroz doce, simpáticas e nunca por demais lembradas farófias – e cerca de dez queijos, entre eles um Nisa, dois serras (curado e amanteigado), um seco de Torres Vedras e um bom Serpa que às vezes se esquece, todos eles a pedir um Porto Vintage que colabore na digestão. Nisto esquecia-me: a lista de vinhos, sendo tradicionalista, com poucos arroubos e sem correr riscos, é também eclética e não exagera nos preços, para que os frades não corem.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 80
Vinhos brancos: 80
Vinhos verdes: 11
Aguardentes & Conhaques: 24
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 28
Espumantes & Conhaques: 10

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: simples
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 28 euros

Restaurante Quinta dos Frades
R. Luís de Freitas Branco, 5 D (Lumiar)1600-488 Lisboa
Telefone: 21 759 89 80
Encerra aos feriados, domingos e jantares de sábado

in Revista Notícias Sábado – 19 Maio 2007

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É só um campeonato

1. Que há-de uma pessoa dizer nesta altura? Que o campeonato acabou. Amanhã, ao fim da tarde, o campeonato acabou. Há-de haver gente a festejar dentro e fora do estádio, seja ele qual for. Há-de haver culpas e agradecimentos, alegrias e fanfarronadas, facadas nas costas e abraços leais, o costume nestas ocasiões.
Um campeonato que acaba desta maneira – limitado a uma luta na última jornada – é um bom campeonato. Com luta até ao fim. Com nervos à flor da pele, com injustiças para reparar e com uma justiça final absoluta, a única que interessa: o resultado no interior das quatro linhas. Chegados aqui, terminaram as guerras na política do futebol, pelo menos por uma semana ou duas. Será tempo de gerir feridas e de moderar entusiasmos. É só um campeonato. A vida é mais importante que o futebol. Mas uma vitória amanhã é a única coisa que se espera. Que há-de uma pessoa dizer nesta altura?

2. Tenho um leitor especial. Envia-me os recortes desta crónica com sublinhados, riscos, rabiscos, acusações e insultos. Aceito tudo, é a vida de quem acha que o futebol é só um jogo que, fora das quatro linhas, só vale a pena jogar desta maneira: com sentido de humor, com rispidez que se sabe (à partida) ser amigável. Mas é um leitor que me persegue, de qualquer modo. Acusa-me de coisas indecorosas: de receber dinheiro de Pinto da Costa, de ser indigno de ter a minha nacionalidade, de merecer o degredo, do que quiserem.
Sempre vivi o futebol com riso e bonomia, apesar dos leitores que me perseguem, crónica e crónica, e não compreendem o essencial: que é só um campeonato, que a vida é mais importante que o futebol. Não vale um insulto. Agradeço ao leitor anónimo. Quando escrever, daqui em diante, pensarei se estou a insultá-lo como ele merece, se estou a irritá-lo como ele quer, se ele rabisca por cima da minha crónica e me envia os recortes, com uma bela caligrafia irritada. É destas audiências que às vezes precisamos, gente que não compreende que é só um campeonato, que a vida é mais importante que o futebol.

3. Por isso, não peço desculpa de nada. Futebol é futebol. Guerra é guerra. Aceito os golpes com a mesma dignidade com que ofendo, registo as ofensas com a mesma atenção com que as escolho e escrevo. Às vezes exagero, mas é só futebol. Respeito os leitores – não finjo uma imparcialidade que não tenho, não imito a opinião dos equidistantes. Não sou equidistante: amanhã gostava de festejar. Mas, para isso, é preciso que alguma coisa mude “naquele jogo tremido”. Desta vez não haverá assobios no estádio, nem vaias – haja o que houver.

4. Mas, sinceramente, depois de amanhã a gente faz contas.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 19 Maio 2007

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maio 15, 2007

Metade da vida. Revista e aumentada.


Nova edição. Nova capa. Novas poesias.
Obrigatório.

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maio 14, 2007

Uma entidade desregulada

A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) desenvolveu um método de análise do pluralismo na informação da televisão em Portugal; segundo os senhores conselheiros (há apenas uma abstenção), muito embora não identifiquem “pluralismo político” com “pluralismo político-partidário”, há uma percentagem razoável a atribuir, no espaço informativo, a cada grupo partidário; segundo percebi, 50% cabe ao governo e ao PS, 48 à oposição e 2% à chamada oposição extraparlamentar. Durante três meses, a ERC vai medir, minuto a minuto, as aparições de líderes políticos, de representantes de partidos, de informação sobre esses grupos (estendendo-se “a outros protagonistas e temáticas, tais como autarcas e autarquias, sindicalistas e temas laborais, associações de natureza vária”, etc.). Esse sistema, diz a ERC, “permite avaliar de forma sistemática e fiável” o cumprimento desse dever – o do pluralismo, suponho, e também “tratamento jornalístico equitativo e plural daquelas entidades nos espaços informativos do serviço público de televisão”.

Se o leitor, chegado aqui, ainda não desconfiou de nada, tenho-o por uma pessoa de fé. Eu não tenho má-fé, mas desconfio – porque é minha obrigação, como cidadão. Qualquer pessoa sabe que os partidos se digladiam em torno do espaço de que dispõem na televisão; é propaganda para eles e, como pensa a ERC, é informação para o cidadão. Dito isto, cabe às redacções, munidas deste “aparelho de verificação do pluralismo”, trabalhar para não ofender ninguém. Se o leitor se recorda do que há tempos aconteceu com a polémica à volta dos horários dos tempos de antena (que acabaram por ser impostos pelos partidos à televisão pública), então imagine o que vai acontecer daqui em diante: no parlamento, haverá almas indignadas: quantos minutos couberam ao PSD, quantos minutos couberam à CGTP, quanto tempo calhou ao PPM? Marques Mendes não tem nada a dizer aos portugueses e – num arremedo de sensatez – decide calar-se durante três meses? Não importa: a televisão, para não falhar nas suas obrigações, terá de falar sobre o PSD. O governo está na ordem do dia porque um ministro se demitiu? Mesmo assim, que não se ultrapassem os 50% concedidos ao executivo.

Eu sei de onde a ERC tirou esta ideia estapafúrdia: do princípio de que a sociedade e os cidadãos (e os partidos, as instituições, a associação dos automobilistas, os sindicatos dos pescadores e a associação de agricultores do Oeste) precisam de estar sob vigilância porque, por si mesmos, não vão a lado nenhum. A ERC teme que as pessoas se queixem. Perturba-a que o deputado Agostinho Branquinho se queixe. Está obcecada pela ideia de que o PS possa queixar-se. Treme à ideia de Paulo Portas aparecer mais do que, nos seus critérios, merece. Assusta-a que o PCP se exceda.

Tudo isto, admito, por “boa-fé” e por manifesto desejo de “representatividade” e proporcionalidade” na informação televisiva. Esta “boa-fé”, no entanto, acabará por reduzir-se (se ninguém travar a tentação controladora da entidade) ao domínio e fragmentação da informação televisiva pelos partidos políticos. Mais: há-de conduzir, se ninguém de bom-senso questionar este delírio, à mais completa irrelevância do conceito de informação e de jornalismo.

A culpa desta situação é, como se sabe, dos partidos – que sempre tentaram manipular a informação televisiva a seu bel-prazer. Entregar-lhes este belo argumento de mão beijada é uma espécie de asneira preanunciada.

Não sei de onde a ERC tirou a ideia de que a independência do jornalismo se mede por critérios retirados dos resultados eleitorais. Mas posso lembrar-lhes que essa maravilhosa ideia levou – noutros países – à censura, ao medo e ao que se sabe no México ou na Venezuela.

in Jornal de Notícias – 14 Maio 2007

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maio 12, 2007

Bancada Central


Restaurante, cervejaria, mariscos, cozinha portuguesa, futebol. É todo um programa de vida, no Marquês de Palma, em Lisboa.

Há uma categoria de restaurantes lisboetas que, saudavelmente, misturam a sua condição de cozi­nhas com a de cervejaria, sendo que a cervejaria é razoavelmente ocupada com mariscos — entra­mos e, desde logo, quase todos os sentidos (visão, olfacto, etc., excepto tacto, por razões que a ASAE gostaria de conhecer) são despertos para as suas vitrinas. Ali se apresentam, perfilados e arrumadinhos, os moluscos, os bivalves, os crustáceos e outras classes de frutos do mar, registados como se fosse numa parada militar: amêijoas, mexilhões, lavagantes, lagostins & lagostas, camarões (de Moçambique, de Sesimbra, do Algarve e de Espinho) e gambas, búzios e os nunca por demais lembrados percebes, excelente amostra de mar e do seu aroma. Isso abre, digamos, o apetite.

O Marquês de Palma, a um passo da Estrada da Luz e de Sete Rios, é um desses templos que concilia o seu estatuto de cervejaria com o de restaurante, ou seja, o serviço de "frutos do mar" com as suas magníficas alheiras, o entrecosto de vaca à barrosã (a costela de churrasco, portanto), o cozido à portuguesa e a massada de tamboril. Menciono esses pratos porque são marcas distintivas da casa e também das preferências da clientela. Ali não se conhecem termos como "cozinha de fusão" ou "nouvelle cuisine": há uma recordação elementar da cozinha portuguesa, de fri­tura ou de panelinha, de grelha ou de vapor, mas existe sobretudo uma clientela que revela faces saudáveis e cheias de apetite, com ou sem sobredose de colesterol: tudo o que, portanto, se encaminha na direcção de um estômago satisfeito, de um coração enternecido diante do cardápio onde não falta nada, e de uma cabeça evidentemente liberta da ideia de "dieta de emagrecimento". Tudo isto é um programa de vida e, no nosso caso, um cartão-de-visita.

Os apreciadores de leitão (não me conto, ai de mim, entre eles) gabam o exemplar da casa, mas nunca descobri se é "à Negrais" ou "à Bairrada" — apenas dou conta da sua popularidade. Mas se a posta à barrosã é confortável, só os apreciadores (e conhe­cedores) da sua costela sabem como a que se serve no Marquês de Palma é superlativa; aos curiosos parece­rá ligeiramente rija, a sua carne, mas a verdade é que se trata de uma raridade cada vez mais desaparecida dos nossos restaurantes — vale a pena prová-la. Está também disponível uma vastíssima variedade de carnes na grelha, de picanhas a entrecostos, de entre-cote a escalopes de novilho, e quase tudo é muito aceitável e servido generosamente.

Uma das caracte­rísticas deste género de restaurantes é a sabedoria com que encara o substantivo "acompanhamentos": feijão-verde bem cozido, grelos salteados a gosto, brócolos passados por água fervente (e não espezi­nhados, como é tradição na maior parte dos casos), esparregado de lei. Além de umas batatas fritas finís­simas, estaladiças, que cumprem a sua função. Quanto aos peixes, é como se arrastassem as redes de pesca pelo restaurante fora. A lista é vastíssima: linguados, excelente pescada para cozer (um dos meus prazeres), dourada de mar, robalos escalados, polvo, tamboril, garoupa e peixe-espada. É só chamar pelo nome que eles – os peixes – vêm da grelha, frescos. E, se não vier fresco, é porque se trata de bacalhau, que também se senta à mesa. A massada de tamboril e o arroz de marisco são dois outros momentos da casa. Quanto à massada, eu dis­penso; mas o arroz de marisco é perfumado por varie­dades bem cozinhadas de gamba, peixe, lagosta ou lagostim e merece ser pedido.

Dispenso-me de nome­ar as sobremesas para além do toucinho-do-céu, que me parece muito bom, porque a lista é concorrida. Evidentemente que há, por vezes, uma superpopu­lação de jogadores e dirigentes do Benfica (há uns anos, eram comensais residentes Argel, Giovanni e Petit), mas, distraídos como estão pelo apetite, o leitor pode estar descansado que eles não jogam à bola entre as mesas. Também José António Camacho e Luís Filipe Vieira se encontravam amiúde entre estas paredes (Trappatoni não o vi). Mas vinham para comer. O leitor tome, pois, o seu assento.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 86
Vinhos brancos: 31
Aguardentes & Conhaques: 30
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 32
Espumantes & Conhaques: 6

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 25 euros

MARQUÊS DE PALMA
Rua José Afonso, n.º 4B
1600 Lisboa
Tel: 21 72721 88
Encerra aos domingos. Funciona ininterruptamente do meio-dia até depois da meia-noite

in Revista Notícias Sábado – 12 Maio 2007

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O Conselho de Justiça e Quaresma

1. O Conselho de Justiça (CJ) da FPF que, ao longo dos anos, tem contribuído para o pandemónio do futebol português, acha que Quaresma «não demonstrou» ter prestado «relevantes serviços ao futebol nacional». Isto lê-se na página 17 de um acórdão que os senhores conselheiros exararam a propósito dos dois jogos de castigo aplicados a Ricardo Quaresma depois do jogo em Leiria. Ora, o CJ analisa leis, códigos, procedimentos; de matéria futebolística não entende nada, não deve supor nada, não deve emitir opinião, não deve pronunciar-se. Para todos os efeitos, o CJ da FPF é futebolisticamente inimputável. Nessa matéria escreve o seguinte: zero. Deve manter-se ignorante. Ao topar um desses senhores conselheiros saídos de uma das suas reuniões, poderemos exclamar, com a certeza de não nos enganarmos muito: “Ali vai um cidadão exemplar, jurista de algum acerto, que não percebe nada de futebol.” O CJ diz que (cito dos jornais) “não basta afirmar tais serviços, mas importa enumerar os títulos conquistados e exemplificar em que medida contribuíram para o prestígio do futebol nacional. E isto não foi demonstrado e não é de conhecimento oficioso”. Nessa matéria – prestar serviços ao futebol – o CJ quis aparecer acompanhado. E, abusivamente, tentou associar à sua irrelevância um dos melhores jogadores portugueses. Porque em matéria de títulos conquistados, o CJ está abaixo de zero. Nessa matéria, Quaresma já conta com alguns – o CJ limita-se a não perceber nada de bola.

2. Portanto, os senhores conselheiros deviam abster-se de falarem do que não conhecem: de futebol. O que está em causa não é o discutível juízo dos senhores conselheiros em matéria legal; é o tom qualitativo desse juízo, se interpretado à letra.

3. Nem de propósito, diz esta semana Jorge Valdano no diário “La Nación”, de Buenos Aires: “É preciso ser muito valente para, no interior de um futebol tão colectivo, ter um grande protagonismo individual. Fazer coisas raras, como o fazem Cristiano Ronaldo, Messi ou Quaresma. Tipos que têm uma enorme auto-estima, uma enorme liberdade para exercê-la. (…) Esses são os talentos superiores, contra os quais os técnicos não podem fazer nada.”

4. Contando com Quaresma e Bruno Alves, além do regresso do grande Pedro Emanuel, o FC Porto tem outra final no domingo. Salvo erro, nem vale a pena comentar.

5. A partir do “caso Simão” ficamos a saber – se isso vier a interessar-nos algum dia – que os boletins do departamento médico do Benfica não têm valor nenhum.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 12 Maio 2007

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maio 07, 2007

Eu, que sou um bárbaro

Há uns meses, pediram-me que fornecesse uma fotografia de Fernando Pessoa. Uma das atribuições da Casa Fernando Pessoa (de que sou director) também é essa. Forneci, vaidoso, com um cartão de cumprimentos. Veio devolvida, com a anotação de que a fotografia (belíssima) apresenta Fernando Pessoa a fumar; e que o ideal seria limpar o cigarro da fotografia. Estaline fazia isso com frequência. Hitler proibira o tabaco há muito. Tal como Edgar J. Hoover. Eu não vou limpar o cigarro da foto de Pessoa, como fizeram às de Malraux ou Camus.

Estas coisas remetem-me para a lei anti-tabaco que a Assembleia da República aprovou na semana passada. A substância da lei está correcta, se a lei quer – como afirmam os seus progenitores – defender os não-fumadores da ameaça constante que os fumadores constituem para a sua vida. Para a sua vida, asma e, convenhamos (o que não é pouco), para a sua pituitária. As pessoas têm direito a um “ambiente saudável” e não são obrigadas a respirar o ar que os outros ocupam. A discussão sobre a lei anti-tabaco não é de natureza política – daí haver, em certas posições militantes, uma fortíssima dose de irracionalidade, quando os antitabagistas vêem nesta matéria uma luta entre a vida e a morte. Para eles, o tabaco leva à morte; não fumar, por seu lado, está a um passo da vida eterna (para os mais radicais) ou de uma vida saudável (no que têm razão). O problema começa quando o tabaco é visto como um índice de empobrecimento civilizacional, como acontece com a maioria dos militantes antitabagistas americanos: para estes, fumar tabaco é vício de “latinos”, chineses, pobres, alcoólicos, gente desprezível.
Ponto final.

Gostava, no entanto, de tergiversar. As pessoas tergiversam pouco, hoje em dia, justificando com o facto de o essencial dever ser protegido em favor do acessório. Com isso, perdem algum “acessório”, o que as empobrece um pouco e ameaçará mais tarde a sua liberdade.

Como fumador, não vejo que a lei possa constituir uma agressão. É, certamente, o início de uma perseguição aos fumadores, tentando acabar com a sua raça. Muitos dos seus princípios estavam já registados em leis anteriores sobre o fumo em espaços público, em recintos desportivos fechados, em escolas, hospitais, padarias, aeroportos, farmácias, transportes públicos, etc. Há, agora, um recrudescimento, naturalmente: estações ferroviárias, por exemplo, restaurantes, etc. O problema é que esta lei acompanha “o espírito do tempo”, ou seja, violando o princípio da liberdade de escolha, acrescenta às interdições existentes o espírito de guerra santa, a vontade de legislar sobre todos os aspectos da vida dos cidadãos e de os obrigar a ser todos da mesma maneira.

Bastaria apenas haver organização e respeito pela lei; mas nós gostamos de leis, amamos desesperadamente as leis, o brilho civilizado que elas conferem. Só assim se entende que o Presidente da República já tenha vindo defender a existência de leis e “de procedimentos administrativos” para combater a obesidade, o tabagismo – e promover a vida saudável, concebida à imagem desse retrato acrílico onde as pessoas se dedicam à produtividade, à ginástica e aos iogurtes magros. Vendo que a sociedade está cheia de colesterol, gorduras excedentárias, hábitos abjectos, os legisladores acham que é preciso reformá-la e transformar a vida dos seus membros, irresponsáveis e a necessitar de disciplina e punição. Uma vasta quantidade de autoridades morais, inimigos da licenciosidade, Mães de Bragança, comissões de vigilância, cardiologistas, especialistas em dietética, Donas Pombinhas e tarados depressivos há-de sempre pedir mais. Em breve, rótulos com a indicação «o álcool mata» estarão nas garrafas de vinho. É o princípio, mas vai lá.

in Jornal de Notícias – 7 Maio 2007

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maio 05, 2007

Pelo Bacalhau, patriotas!


Há quem pense que bacalhau é bacalhau, em lascas ou em fios e fiapos, em pasta ou em posta. Mas há mais: a sua gelatina. A prova foi feita na Casa do Bacalhau, em Lisboa.

Já esclareci o leitor, em outras oportunidades, sobre a natureza do meu patriotismo. É má, a natu­reza do meu patriotismo. Vendo-o por coisas aceitáveis, como provar um prato desconhecido no meio do deserto ou testar a proposta de uma comida à beira do fim do mundo. Não sou – ai de mim – daqueles que, longe de casa e posto diante de um cardápio, murmuram frases ininteligíveis acerca das saudades de um bacalhau, da falta que me fazem as sardinhas quando começa a Primavera, da superioridade moral do cozido à portuguesa, dos benefícios dos nossos temperos ou da melan­colia de umas migas de espargos. O meu passaporte não inclui essa alínea sobre o nacionalismo culiná­rio que me equipararia aos bons portugueses que regressados à pátria, mal pisam terra lusitana, choram por um pratinho de caracóis ou por um bacalhau à lagareiro.

Mesmo assim, caramba, devo reconhecer que há princípios, que há deveres de cidadania e que, quando nos pedem para preencher aquele item onde vem escrito "nacionalidade", uma pessoa pode enganar-se e escrever "caldeirada à pescador", "costeletas de sardinha", "rancho transmontano", "arroz de vitela à minhota" ou, simplesmente, "cabidela". Varia muito e, como costumo dizer com sotaque, "é consoante".

Não vou tergiversar acerca do bacalhau. Bacalhau é bacalhau; está na massa do sangue e, no limite, o seu desenho poderia aparecer junto da esfera armilar, das quinas e do retrato do sr. D. Afonso II, o Gordo – que foi excomungado pelo Papa Honório III e não deu muita importância ao caso. Imagino el-rei comendo bacalhau às postas (vindas da grelha), ou guisado, ou passado por alho, ou cru e apenas demolhado. Mesmo que o bacalhau salgado ainda não tivesse sido descoberto pelas nossas cozinhas (só apareceu a partir do século XV), gosto desta imagem, creio que por causa do cognome do sr. D. Afonso II, o Gordo.

Com um amigo rumei, pois, à Casa do Bacalhau, ali perto de Xabregas e do Convento do Beato, e encontrei uma enorme sala de tons claros, rebiques de pedra e tijolo naturais, arejada, espaçosa, com mesas convidativas. À hora de almoço, casa para o cheio. Uma ementa de bacalhauzada: para começar, 'carpaccio' de bacalhau ou de carne, línguas de bacalhau panadas (com uma frescura a que se deve acrescentar uma poeirinha de limão) e um pratinho de bacalhau cru e desfiado, com azeite (eu junto-lhe uma rodela de cebola). Passando, depois, pela açorda de bacalhau com coentros e pela canja de bacalhau, deparo-me com este espectáculo: canelonis de bacalhau, bacalhau com feíjoca, bacalhau à Zé do Pipo, bacalhau assado na brasa, bacalhau à Brás (era o prato do dia, uma quarta-feira; nos outros dias propõem massada de bacalhau, arroz de bacalhau, bacalhau com natas, bacalhau à Margarida da Praça e à Gomes de Sá, um dos meus preferidos), bacalhau com couve, com broa ou cozido com todos, além de línguas de bacalhau de coentrada.
Escolhemos o bacalhau com broa e o de couve (apresentado como "à Tia Palmira"). Estavam, pois, aceitáveis e até a broa ressoava de aplauso. Mas tenho o meu reparo: hoje em dia, creio que por influência de dietistas, de moralistas e de outros chatos, exage­ra-se bastante na demolha do bacalhau, apresen­tando à nossa mesa uns corpos esbranquiçados que sabem a tudo menos às santíssimas gelatinas que se desprendem da sua pele e se conservam entre as suas lascas. Pois uma Casa do Bacalhau deve conservá-las. E, em dois ou três casos (ai de mim, de novo) esse milagre do sal tinha desaparecido. Há quem pense que bacalhau é bacalhau, em lascas ou em fios e fiapos, em pasta ou em posta. Ignoram que existe, pairando sobre o bacalhau, a memória dos que já no tempo de D. João III, o Pio (que deve­ria ter sido a vergonha do sr. D. Afonso II, o Gordo), iam para os mares frios à sua procura, entre Maio e Outubro.

Ao terminar a refeição (pudim suculento, café, Bushmills, charutinho), pensei nesses honra­dos homens do mar que nos legaram o bacalhau e nos que o salgavam a seguir para nosso desfrute. E eles mereciam uma Casa do Bacalhau.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 80
Vinhos brancos: 38
Aguardentes & Conhaques: 12
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 20

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 25 euros

CASA DO BACALHAU
Rua do Grilo, n.° 54
1900-706 Lisboa
Tel: 21 862 0000

in Revista Notícias Sábado – 5 Maio 2007

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Merecer a confiança

1. O FC Porto já esteve com uma vantagem mais curta sobre o segundo classificado, como afirmou Jesualdo Ferreira. Mas nunca tinha jogado como jogou contra o Boavista, daquela maneira extravagante. Há jogos onde se suspeita um halo de tragédia e de hecatombe. A hecatombe tem a ver com as consequências; mas a tragédia, no caso, teve a ver com a impotência para mudar o tom de jogo, para chegar à baliza do adversário, para mostrar vontade de ganhar. Que me lembre, isso só aconteceu quando Raul Meireles se irritou e – depois – quando Anderson deixou o banco e trouxe alguma esperança.

2. Será que o FC Porto tinha a obrigação de vencer o Boavista (onde naquele dia se viu um grupo de jogadores com manha, fibra e inteligência)? Não. Mas tinha a obrigação de não jogar daquela maneira. Porque uma coisa é aplaudir o nosso clube nas derrotas e outra é aplaudir o adversário que nos vence. Uma e outra são plausíveis. Mas outra ainda, diferente, é ter de vaiar os nossos jogadores; não por terem perdido um jogo, mas por terem esquecido que são jogadores do FC Porto, que têm sobre os ombros essa responsabilidade, e que não há explicação para a forma como se comportaram em campo. Foi um grupo de bonecos de um tabuleiro de matraquilhos. Por isso, na semana passada, nesta coluna, enganei-me e induzi o leitor em erro ao supor que o jogo da Segunda Circular seria pouco decisivo. O FC Porto tudo fez para me desmentir. E eu não o merecia.

3. Dito isto, gostaria de dizer, ainda, o seguinte: este fim-de-semana é necessário ganhar, e no próximo fim-de-semana é preciso igualmente ganhar. Ganha-se quando se marcam golos e só se é campeão depois de terem sido ganhos jogos essenciais. Só por desleixo vosso o FC Porto está nesta situação, quando poderia ter sido campeão na semana passada. Os adeptos estarão em todo o estádio e não vos assobiarão, por elegância, por receio de vos intimidar – e por pudor. Não sei se vós mereceis tamanha prova de respeito. Mas tereis de fazer por merecer essa confiança.

4. O presidente da FPF diz, em relação à eventual saída de Scolari do cargo de seleccionador nacional, que “é para o lado que dorme melhor”. Não devia. Há, aliás, uma coisa que não se entende, por mais que os scolarinianos de sacristia se mexam nas cadeiras, bufando de indignação: ao aproximar-se uma fase final, fala-se da saída de Sua Excelência. Foi assim no Mundial, é assim no Europeu. Se o presidente da FPF não consegue um mínimo de decoro nas notícias que escapam de Sua Excelência, não pode queixar-se, depois, de anti-patriotismo. Como se sabe, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 5 Maio 2007

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maio 04, 2007

Entre dois mundos

Há sempre uma tentação – euro­peia, sobretudo – em dizer que se conhe­ce a América. Na verdade, os Estados Unidos são uma espécie de mapa desabrigado, ao alcance de todos, o que faz do assunto uma vastíssima colecção de lugares-comuns. Mesmo escritores com algu­ma notoriedade (de Fernando Namora, em Cavalgada Cinzenta, a Jean Baudrillard, em Amérique, para nomear duas tris­tes evidências) optam pelo mais fácil: fa­lar «da América» e «dos americanos» como se fossem categorias que se pudes­sem definir em duas linhas e resumir de­pois de uma viagem.

Penso nisso quando o carro desfaz a última curva, ao canto da península de Newport, onde visito (por fora) a casa onde F. Scott Fitzgerald poderia ter situado o cenário de O Grande Gatsby (não o fez - o romance passa-se na Long Island dos anos vinte; em Newport passa-se o fil­me de Jack Clayton, com Robert Redford e Mia Farrow). As Newport Mansions, vastos casarões rodeados de árvores, per­to do mar, são um dos emblemas de Rhode Island, o mais pequeno dos estados americanos. E são, certamente, um em­blema da Nova Inglaterra, um rasto de lu­xo europeu do lado de lá do Atlântico, onde nasceu grande literatura, grande música (lembram-se do festival de jazz de Newport, que se realiza em Fort Adams?) e, já agora, um grande gosto pelas cami­nhadas através do Cliff Walk, um deslumbrante passeio marítimo, cravado nas rochas, de onde se vêem as penum­bras de Cape Cod ao longe.

Tinha passado os dias anteriores em Providence, a capital do estado, dominada pela fantástica Brown, a universidade onde gostaria de ter estudado: relvados que se estendem entre edifícios do século XVIII, arvoredos protegidos, bibliotecas abertas durante vinte e quatro horas, cre­púsculos quase alaranjados. Quando os europeus levam consigo os preconceitos anti-americanos mais banais, gosto de lhes recomendar uma visita a Providence (mas também a todo o litoral do Massachusetts ou ao Maine), um passeio ao longo do Riverwalk, uma ida a um dos magníficos restaurantes onde se come o melhor peixe destas costas, uma passagem pelos seus teatros, uma caminhada nas suas florestas (no Roger Williams Park), uma tarde nas suas livrarias e – porque não? - nas suas bibliotecas fantásticas. Refiro as bibliotecas porque são um dos mais atraentes pontos turísticos de Provi­dence. Como a Athenæum, criada (em 1753) 47 anos antes da Biblioteca do Congresso e que ainda hoje está instala­da no seu edifício histórico, com um orça­mento exclusivamente alimentado pelas contribuições dos associados (250 dólares por ano). Foi na Athenæum que Edgar Allan Põe passou algumas das suas tardes mais felizes, e talvez mesmo H. P. Lovecraft, outro grande escritor americano. Já agora, permitam-me uma estatística: nos EUA há mais bibliotecas do que lojas McDonalds; em Portugal há mais está­dios de futebol do que bibliotecas.

Ao contrário do que dizem alguns dos seus visitantes, Providence não é «a outra América»; é, exactamente, parte da América plural, múltipla, diversa e onde tudo acontece. Um recanto luminoso, certamente, tranquilo como um perfume que se pega aos dedos e só desaparece com o tempo, como estas imagens que se transformam em quadros inesquecíveis: casas de tijolo, a neblina da cidade vista de Prospect Park, lá no alto, as belas lojas da baixa, o cuidado na minúcia e no por­menor arquitectónico mais recôndito.

O leitor imagina certamente que isto fica longe do mundo... mas não. Recomendo a viagem (três horas de carro a partir de Nova Iorque, ou o mesmo tempo de comboio). E, depois, uma ine­vitável ida a Newport, a Bristol Harbour, à baía de Narragansett ou a Little Compton. Para combater os preconceitos.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Maio 2007

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maio 03, 2007

Novo livro. E grátis!


Algumas distracções será distribuído gratuitamente
com a edição de 7 de Junho da Revista Sábado

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