maio 21, 2007

Pequena carta a José Sócrates

Senhor Primeiro-ministro: eu não conheço o caso senão pelas páginas dos jornais mas sei que Fernando Charrua é um professor de inglês requisitado pela Direcção Regional de Educação do Norte (DREN) e agora suspenso por ter gracejado sobre o processo da sua licenciatura. Mais de meio país, seguramente, fez “comentários” sobre o assunto – graçolas, piadas, anedotas, coisas soezes ou apenas risíveis e imbecis. O senhor sabe. É natural, somos portugueses e conhecemos a injustiça do humor de Gil Vicente, mesmo que o assunto seja tão irritante e tão menor como esse. O tema não é tabu e o senhor mesmo foi à televisão por causa dele.

A responsável pela DREN, avisada por alguém (que achou por bem denunciar o caso, sabe-se lá porquê) achou que o comentário do professor era um insulto ao primeiro-ministro e resolveu suspendê-lo de funções e instaurar-lhe um processo disciplinar, com participação – creio – ao Ministério Público. O que apurará o processo não se sabe ainda, mas prevejo um grande debate sobre o que é e não é insulto e sobre os deveres dos funcionários públicos. A coisa promete. Como em muitas situações semelhantes, vamos ter mais anedotas sobre o assunto. Ele merece.

De acordo com a directora regional de Educação – é, portanto, a posição oficial do Ministério da Educação –, “o Sr. primeiro-ministro é o primeiro-ministro de Portugal” e os funcionários públicos devem-lhe respeito. Ora, nem que não fosse primeiro-ministro. Em declarações ao jornal “Público”, Margarida Moreira acrescentou que a sua decisão (a de suspender o professor, a de instaurar-lhe um processo disciplinar e a de participar ao Ministério Público) se deve ao facto de “poder haver perturbação do funcionamento do serviço”.

Dado que o processo se encontra em fase de “segredo”, uma figura jurídica que serve para tudo, não sabemos que insulto lhe terá Fernando Charrua dirigido, a si, senhor primeiro-ministro, que pudesse perturbar tão gravemente “o serviço”. Imagino que o senhor também não saiba. Mas, andando na política há tantos anos, suponho que nenhum insulto lhe deva ser estranho. Basta aparecer na televisão, ter um nome e ocupar um cargo. O senhor sabe como essas coisas se passam. De tudo fazemos uma anedota. O mundo é cruel.

Há, evidentemente, a hipótese de a notícia não ser totalmente verdadeira. Mas não vejo como: a directora da DREN confirmou-a e o ministério da Educação não a desmentiu até hoje. Se o processo disciplinar ao professor continuar a correr neste segredo, aumentarão os rumores e as suspeitas. A principal delas, mesmo sendo injusta, é a de que o senhor autoriza o Ministério da Educação, através da DREN, a fomentar o autoritarismo, o culto da personalidade ou a perseguição política a funcionários públicos que contem anedotas sobre José Sócrates.

Seja como for, acho que a directora da DREN se excedeu. Foi mais papista do que o papa e causou-lhe, a si, um problema: o de poder passar a haver despedimentos por “delito de opinião”, o que é muito grave. O senhor dirá que não se trata de um despedimento mas, na pobre linguagem da pequena política, já se sabe que não basta “ser” – é também necessário “parecer”. Ora, isto parece, exactamente, “delito de opinião”. Argumentarão alguns que o comentário foi feito “nas horas de serviço” e “nas instalações da DREN”; teria sido assim tão grave que as paredes da DREN coraram de vergonha?

Sei que o senhor primeiro-ministro não concorda com este tipo de perseguições. Não deixe que isso aconteça no seu, e meu, país. De contrário, o senhor será responsável pelo reaparecimento de milhares de pequenos ditadores e papistas, um pouco por todo o lado. Eles detestam-no a si porque o senhor é de uma nova geração de políticos que nasceu para a política já em liberdade; mas aproveitarão a boleia que este caso pode dar-lhes para satisfazer a pequena tentação portuguesa da intolerância.

in Jornal de Notícias – 21 Maio 2007

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