maio 05, 2007

Pelo Bacalhau, patriotas!


Há quem pense que bacalhau é bacalhau, em lascas ou em fios e fiapos, em pasta ou em posta. Mas há mais: a sua gelatina. A prova foi feita na Casa do Bacalhau, em Lisboa.

Já esclareci o leitor, em outras oportunidades, sobre a natureza do meu patriotismo. É má, a natu­reza do meu patriotismo. Vendo-o por coisas aceitáveis, como provar um prato desconhecido no meio do deserto ou testar a proposta de uma comida à beira do fim do mundo. Não sou – ai de mim – daqueles que, longe de casa e posto diante de um cardápio, murmuram frases ininteligíveis acerca das saudades de um bacalhau, da falta que me fazem as sardinhas quando começa a Primavera, da superioridade moral do cozido à portuguesa, dos benefícios dos nossos temperos ou da melan­colia de umas migas de espargos. O meu passaporte não inclui essa alínea sobre o nacionalismo culiná­rio que me equipararia aos bons portugueses que regressados à pátria, mal pisam terra lusitana, choram por um pratinho de caracóis ou por um bacalhau à lagareiro.

Mesmo assim, caramba, devo reconhecer que há princípios, que há deveres de cidadania e que, quando nos pedem para preencher aquele item onde vem escrito "nacionalidade", uma pessoa pode enganar-se e escrever "caldeirada à pescador", "costeletas de sardinha", "rancho transmontano", "arroz de vitela à minhota" ou, simplesmente, "cabidela". Varia muito e, como costumo dizer com sotaque, "é consoante".

Não vou tergiversar acerca do bacalhau. Bacalhau é bacalhau; está na massa do sangue e, no limite, o seu desenho poderia aparecer junto da esfera armilar, das quinas e do retrato do sr. D. Afonso II, o Gordo – que foi excomungado pelo Papa Honório III e não deu muita importância ao caso. Imagino el-rei comendo bacalhau às postas (vindas da grelha), ou guisado, ou passado por alho, ou cru e apenas demolhado. Mesmo que o bacalhau salgado ainda não tivesse sido descoberto pelas nossas cozinhas (só apareceu a partir do século XV), gosto desta imagem, creio que por causa do cognome do sr. D. Afonso II, o Gordo.

Com um amigo rumei, pois, à Casa do Bacalhau, ali perto de Xabregas e do Convento do Beato, e encontrei uma enorme sala de tons claros, rebiques de pedra e tijolo naturais, arejada, espaçosa, com mesas convidativas. À hora de almoço, casa para o cheio. Uma ementa de bacalhauzada: para começar, 'carpaccio' de bacalhau ou de carne, línguas de bacalhau panadas (com uma frescura a que se deve acrescentar uma poeirinha de limão) e um pratinho de bacalhau cru e desfiado, com azeite (eu junto-lhe uma rodela de cebola). Passando, depois, pela açorda de bacalhau com coentros e pela canja de bacalhau, deparo-me com este espectáculo: canelonis de bacalhau, bacalhau com feíjoca, bacalhau à Zé do Pipo, bacalhau assado na brasa, bacalhau à Brás (era o prato do dia, uma quarta-feira; nos outros dias propõem massada de bacalhau, arroz de bacalhau, bacalhau com natas, bacalhau à Margarida da Praça e à Gomes de Sá, um dos meus preferidos), bacalhau com couve, com broa ou cozido com todos, além de línguas de bacalhau de coentrada.
Escolhemos o bacalhau com broa e o de couve (apresentado como "à Tia Palmira"). Estavam, pois, aceitáveis e até a broa ressoava de aplauso. Mas tenho o meu reparo: hoje em dia, creio que por influência de dietistas, de moralistas e de outros chatos, exage­ra-se bastante na demolha do bacalhau, apresen­tando à nossa mesa uns corpos esbranquiçados que sabem a tudo menos às santíssimas gelatinas que se desprendem da sua pele e se conservam entre as suas lascas. Pois uma Casa do Bacalhau deve conservá-las. E, em dois ou três casos (ai de mim, de novo) esse milagre do sal tinha desaparecido. Há quem pense que bacalhau é bacalhau, em lascas ou em fios e fiapos, em pasta ou em posta. Ignoram que existe, pairando sobre o bacalhau, a memória dos que já no tempo de D. João III, o Pio (que deve­ria ter sido a vergonha do sr. D. Afonso II, o Gordo), iam para os mares frios à sua procura, entre Maio e Outubro.

Ao terminar a refeição (pudim suculento, café, Bushmills, charutinho), pensei nesses honra­dos homens do mar que nos legaram o bacalhau e nos que o salgavam a seguir para nosso desfrute. E eles mereciam uma Casa do Bacalhau.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 80
Vinhos brancos: 38
Aguardentes & Conhaques: 12
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 20

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 25 euros

CASA DO BACALHAU
Rua do Grilo, n.° 54
1900-706 Lisboa
Tel: 21 862 0000

in Revista Notícias Sábado – 5 Maio 2007

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