maio 04, 2007

Entre dois mundos

Há sempre uma tentação – euro­peia, sobretudo – em dizer que se conhe­ce a América. Na verdade, os Estados Unidos são uma espécie de mapa desabrigado, ao alcance de todos, o que faz do assunto uma vastíssima colecção de lugares-comuns. Mesmo escritores com algu­ma notoriedade (de Fernando Namora, em Cavalgada Cinzenta, a Jean Baudrillard, em Amérique, para nomear duas tris­tes evidências) optam pelo mais fácil: fa­lar «da América» e «dos americanos» como se fossem categorias que se pudes­sem definir em duas linhas e resumir de­pois de uma viagem.

Penso nisso quando o carro desfaz a última curva, ao canto da península de Newport, onde visito (por fora) a casa onde F. Scott Fitzgerald poderia ter situado o cenário de O Grande Gatsby (não o fez - o romance passa-se na Long Island dos anos vinte; em Newport passa-se o fil­me de Jack Clayton, com Robert Redford e Mia Farrow). As Newport Mansions, vastos casarões rodeados de árvores, per­to do mar, são um dos emblemas de Rhode Island, o mais pequeno dos estados americanos. E são, certamente, um em­blema da Nova Inglaterra, um rasto de lu­xo europeu do lado de lá do Atlântico, onde nasceu grande literatura, grande música (lembram-se do festival de jazz de Newport, que se realiza em Fort Adams?) e, já agora, um grande gosto pelas cami­nhadas através do Cliff Walk, um deslumbrante passeio marítimo, cravado nas rochas, de onde se vêem as penum­bras de Cape Cod ao longe.

Tinha passado os dias anteriores em Providence, a capital do estado, dominada pela fantástica Brown, a universidade onde gostaria de ter estudado: relvados que se estendem entre edifícios do século XVIII, arvoredos protegidos, bibliotecas abertas durante vinte e quatro horas, cre­púsculos quase alaranjados. Quando os europeus levam consigo os preconceitos anti-americanos mais banais, gosto de lhes recomendar uma visita a Providence (mas também a todo o litoral do Massachusetts ou ao Maine), um passeio ao longo do Riverwalk, uma ida a um dos magníficos restaurantes onde se come o melhor peixe destas costas, uma passagem pelos seus teatros, uma caminhada nas suas florestas (no Roger Williams Park), uma tarde nas suas livrarias e – porque não? - nas suas bibliotecas fantásticas. Refiro as bibliotecas porque são um dos mais atraentes pontos turísticos de Provi­dence. Como a Athenæum, criada (em 1753) 47 anos antes da Biblioteca do Congresso e que ainda hoje está instala­da no seu edifício histórico, com um orça­mento exclusivamente alimentado pelas contribuições dos associados (250 dólares por ano). Foi na Athenæum que Edgar Allan Põe passou algumas das suas tardes mais felizes, e talvez mesmo H. P. Lovecraft, outro grande escritor americano. Já agora, permitam-me uma estatística: nos EUA há mais bibliotecas do que lojas McDonalds; em Portugal há mais está­dios de futebol do que bibliotecas.

Ao contrário do que dizem alguns dos seus visitantes, Providence não é «a outra América»; é, exactamente, parte da América plural, múltipla, diversa e onde tudo acontece. Um recanto luminoso, certamente, tranquilo como um perfume que se pega aos dedos e só desaparece com o tempo, como estas imagens que se transformam em quadros inesquecíveis: casas de tijolo, a neblina da cidade vista de Prospect Park, lá no alto, as belas lojas da baixa, o cuidado na minúcia e no por­menor arquitectónico mais recôndito.

O leitor imagina certamente que isto fica longe do mundo... mas não. Recomendo a viagem (três horas de carro a partir de Nova Iorque, ou o mesmo tempo de comboio). E, depois, uma ine­vitável ida a Newport, a Bristol Harbour, à baía de Narragansett ou a Little Compton. Para combater os preconceitos.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Maio 2007

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