Entre dois mundos
Há sempre uma tentação – europeia, sobretudo – em dizer que se conhece a América. Na verdade, os Estados Unidos são uma espécie de mapa desabrigado, ao alcance de todos, o que faz do assunto uma vastíssima colecção de lugares-comuns. Mesmo escritores com alguma notoriedade (de Fernando Namora, em Cavalgada Cinzenta, a Jean Baudrillard, em Amérique, para nomear duas tristes evidências) optam pelo mais fácil: falar «da América» e «dos americanos» como se fossem categorias que se pudessem definir em duas linhas e resumir depois de uma viagem.
Penso nisso quando o carro desfaz a última curva, ao canto da península de Newport, onde visito (por fora) a casa onde F. Scott Fitzgerald poderia ter situado o cenário de O Grande Gatsby (não o fez - o romance passa-se na Long Island dos anos vinte; em Newport passa-se o filme de Jack Clayton, com Robert Redford e Mia Farrow). As Newport Mansions, vastos casarões rodeados de árvores, perto do mar, são um dos emblemas de Rhode Island, o mais pequeno dos estados americanos. E são, certamente, um emblema da Nova Inglaterra, um rasto de luxo europeu do lado de lá do Atlântico, onde nasceu grande literatura, grande música (lembram-se do festival de jazz de Newport, que se realiza em Fort Adams?) e, já agora, um grande gosto pelas caminhadas através do Cliff Walk, um deslumbrante passeio marítimo, cravado nas rochas, de onde se vêem as penumbras de Cape Cod ao longe.
Tinha passado os dias anteriores em Providence, a capital do estado, dominada pela fantástica Brown, a universidade onde gostaria de ter estudado: relvados que se estendem entre edifícios do século XVIII, arvoredos protegidos, bibliotecas abertas durante vinte e quatro horas, crepúsculos quase alaranjados. Quando os europeus levam consigo os preconceitos anti-americanos mais banais, gosto de lhes recomendar uma visita a Providence (mas também a todo o litoral do Massachusetts ou ao Maine), um passeio ao longo do Riverwalk, uma ida a um dos magníficos restaurantes onde se come o melhor peixe destas costas, uma passagem pelos seus teatros, uma caminhada nas suas florestas (no Roger Williams Park), uma tarde nas suas livrarias e – porque não? - nas suas bibliotecas fantásticas. Refiro as bibliotecas porque são um dos mais atraentes pontos turísticos de Providence. Como a Athenæum, criada (em 1753) 47 anos antes da Biblioteca do Congresso e que ainda hoje está instalada no seu edifício histórico, com um orçamento exclusivamente alimentado pelas contribuições dos associados (250 dólares por ano). Foi na Athenæum que Edgar Allan Põe passou algumas das suas tardes mais felizes, e talvez mesmo H. P. Lovecraft, outro grande escritor americano. Já agora, permitam-me uma estatística: nos EUA há mais bibliotecas do que lojas McDonalds; em Portugal há mais estádios de futebol do que bibliotecas.
Ao contrário do que dizem alguns dos seus visitantes, Providence não é «a outra América»; é, exactamente, parte da América plural, múltipla, diversa e onde tudo acontece. Um recanto luminoso, certamente, tranquilo como um perfume que se pega aos dedos e só desaparece com o tempo, como estas imagens que se transformam em quadros inesquecíveis: casas de tijolo, a neblina da cidade vista de Prospect Park, lá no alto, as belas lojas da baixa, o cuidado na minúcia e no pormenor arquitectónico mais recôndito.
O leitor imagina certamente que isto fica longe do mundo... mas não. Recomendo a viagem (três horas de carro a partir de Nova Iorque, ou o mesmo tempo de comboio). E, depois, uma inevitável ida a Newport, a Bristol Harbour, à baía de Narragansett ou a Little Compton. Para combater os preconceitos.
in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Maio 2007
Penso nisso quando o carro desfaz a última curva, ao canto da península de Newport, onde visito (por fora) a casa onde F. Scott Fitzgerald poderia ter situado o cenário de O Grande Gatsby (não o fez - o romance passa-se na Long Island dos anos vinte; em Newport passa-se o filme de Jack Clayton, com Robert Redford e Mia Farrow). As Newport Mansions, vastos casarões rodeados de árvores, perto do mar, são um dos emblemas de Rhode Island, o mais pequeno dos estados americanos. E são, certamente, um emblema da Nova Inglaterra, um rasto de luxo europeu do lado de lá do Atlântico, onde nasceu grande literatura, grande música (lembram-se do festival de jazz de Newport, que se realiza em Fort Adams?) e, já agora, um grande gosto pelas caminhadas através do Cliff Walk, um deslumbrante passeio marítimo, cravado nas rochas, de onde se vêem as penumbras de Cape Cod ao longe.
Tinha passado os dias anteriores em Providence, a capital do estado, dominada pela fantástica Brown, a universidade onde gostaria de ter estudado: relvados que se estendem entre edifícios do século XVIII, arvoredos protegidos, bibliotecas abertas durante vinte e quatro horas, crepúsculos quase alaranjados. Quando os europeus levam consigo os preconceitos anti-americanos mais banais, gosto de lhes recomendar uma visita a Providence (mas também a todo o litoral do Massachusetts ou ao Maine), um passeio ao longo do Riverwalk, uma ida a um dos magníficos restaurantes onde se come o melhor peixe destas costas, uma passagem pelos seus teatros, uma caminhada nas suas florestas (no Roger Williams Park), uma tarde nas suas livrarias e – porque não? - nas suas bibliotecas fantásticas. Refiro as bibliotecas porque são um dos mais atraentes pontos turísticos de Providence. Como a Athenæum, criada (em 1753) 47 anos antes da Biblioteca do Congresso e que ainda hoje está instalada no seu edifício histórico, com um orçamento exclusivamente alimentado pelas contribuições dos associados (250 dólares por ano). Foi na Athenæum que Edgar Allan Põe passou algumas das suas tardes mais felizes, e talvez mesmo H. P. Lovecraft, outro grande escritor americano. Já agora, permitam-me uma estatística: nos EUA há mais bibliotecas do que lojas McDonalds; em Portugal há mais estádios de futebol do que bibliotecas.
Ao contrário do que dizem alguns dos seus visitantes, Providence não é «a outra América»; é, exactamente, parte da América plural, múltipla, diversa e onde tudo acontece. Um recanto luminoso, certamente, tranquilo como um perfume que se pega aos dedos e só desaparece com o tempo, como estas imagens que se transformam em quadros inesquecíveis: casas de tijolo, a neblina da cidade vista de Prospect Park, lá no alto, as belas lojas da baixa, o cuidado na minúcia e no pormenor arquitectónico mais recôndito.
O leitor imagina certamente que isto fica longe do mundo... mas não. Recomendo a viagem (três horas de carro a partir de Nova Iorque, ou o mesmo tempo de comboio). E, depois, uma inevitável ida a Newport, a Bristol Harbour, à baía de Narragansett ou a Little Compton. Para combater os preconceitos.
in Outro hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Maio 2007
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