maio 07, 2007

Eu, que sou um bárbaro

Há uns meses, pediram-me que fornecesse uma fotografia de Fernando Pessoa. Uma das atribuições da Casa Fernando Pessoa (de que sou director) também é essa. Forneci, vaidoso, com um cartão de cumprimentos. Veio devolvida, com a anotação de que a fotografia (belíssima) apresenta Fernando Pessoa a fumar; e que o ideal seria limpar o cigarro da fotografia. Estaline fazia isso com frequência. Hitler proibira o tabaco há muito. Tal como Edgar J. Hoover. Eu não vou limpar o cigarro da foto de Pessoa, como fizeram às de Malraux ou Camus.

Estas coisas remetem-me para a lei anti-tabaco que a Assembleia da República aprovou na semana passada. A substância da lei está correcta, se a lei quer – como afirmam os seus progenitores – defender os não-fumadores da ameaça constante que os fumadores constituem para a sua vida. Para a sua vida, asma e, convenhamos (o que não é pouco), para a sua pituitária. As pessoas têm direito a um “ambiente saudável” e não são obrigadas a respirar o ar que os outros ocupam. A discussão sobre a lei anti-tabaco não é de natureza política – daí haver, em certas posições militantes, uma fortíssima dose de irracionalidade, quando os antitabagistas vêem nesta matéria uma luta entre a vida e a morte. Para eles, o tabaco leva à morte; não fumar, por seu lado, está a um passo da vida eterna (para os mais radicais) ou de uma vida saudável (no que têm razão). O problema começa quando o tabaco é visto como um índice de empobrecimento civilizacional, como acontece com a maioria dos militantes antitabagistas americanos: para estes, fumar tabaco é vício de “latinos”, chineses, pobres, alcoólicos, gente desprezível.
Ponto final.

Gostava, no entanto, de tergiversar. As pessoas tergiversam pouco, hoje em dia, justificando com o facto de o essencial dever ser protegido em favor do acessório. Com isso, perdem algum “acessório”, o que as empobrece um pouco e ameaçará mais tarde a sua liberdade.

Como fumador, não vejo que a lei possa constituir uma agressão. É, certamente, o início de uma perseguição aos fumadores, tentando acabar com a sua raça. Muitos dos seus princípios estavam já registados em leis anteriores sobre o fumo em espaços público, em recintos desportivos fechados, em escolas, hospitais, padarias, aeroportos, farmácias, transportes públicos, etc. Há, agora, um recrudescimento, naturalmente: estações ferroviárias, por exemplo, restaurantes, etc. O problema é que esta lei acompanha “o espírito do tempo”, ou seja, violando o princípio da liberdade de escolha, acrescenta às interdições existentes o espírito de guerra santa, a vontade de legislar sobre todos os aspectos da vida dos cidadãos e de os obrigar a ser todos da mesma maneira.

Bastaria apenas haver organização e respeito pela lei; mas nós gostamos de leis, amamos desesperadamente as leis, o brilho civilizado que elas conferem. Só assim se entende que o Presidente da República já tenha vindo defender a existência de leis e “de procedimentos administrativos” para combater a obesidade, o tabagismo – e promover a vida saudável, concebida à imagem desse retrato acrílico onde as pessoas se dedicam à produtividade, à ginástica e aos iogurtes magros. Vendo que a sociedade está cheia de colesterol, gorduras excedentárias, hábitos abjectos, os legisladores acham que é preciso reformá-la e transformar a vida dos seus membros, irresponsáveis e a necessitar de disciplina e punição. Uma vasta quantidade de autoridades morais, inimigos da licenciosidade, Mães de Bragança, comissões de vigilância, cardiologistas, especialistas em dietética, Donas Pombinhas e tarados depressivos há-de sempre pedir mais. Em breve, rótulos com a indicação «o álcool mata» estarão nas garrafas de vinho. É o princípio, mas vai lá.

in Jornal de Notícias – 7 Maio 2007

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