setembro 29, 2007

Coisas solarengas, fatais


No centro de Lisboa, recordações de um restaurante tradicional: a satisfação do cronista nota-se nestes parágrafos.

Mesmo não sendo um segredo, convém recordar o sítio: perto da Avenida da Liberdade, em Lisboa, há uma carta de vinhos com cerca de duas cente­nas de tintos e praticamente setenta portos. Se o dado não o impressiona, passemos à frente, mencionando a sua cabidela, a lampreia (que, quando vem o tempo, leva a peregrinações dedica­das), o bacalhau à Gomes de Sá (o prato tradicional dos restaurantes clássicos de Lisboa à segunda-feira, vale a pena dizer) e os pratos de sustância que desequilibram a balança a meu favor: a panela especial com feijão, uma longa epifania sobre tudo o que é comentário dietético, servida nas quintas-feiras, e, às quartas, o cozido à minhota, verdadeira sinfonia barroca de carnes, enchidos e legumes a que só por rapacidade de estilo poderíamos subtrair o elogio fatal: é de marcar na agenda.

Ora, acontece que o Solar dos Presuntos é um dos restaurantes que merecem estar na agenda – a sua clientela habitual dispensa-o, porque gostaria de mais intimidade, mas a verdade é que convém passar por lá. O que tem assim de tão grandioso o Solar dos Presuntos para ser considerado mais ou menos incontornável? Em primeiro lugar, a história da casa, fundada em 1974 – ano bendito para a abertura de restaurantes, como se sabe – por Evaristo e Graça Cardoso, onde se comeu sempre acima da média. Em segundo lugar, a garantia dada pela quantidade de gente que tem o número de telefone do Solar na sua agenda – de primeiros-ministros gulosos a jornalistas boémios, de administradores que escapam ao seu horário a famílias que festejam uma data, de músicos e actores com apetite a futebolistas que dão um ar das suas maneiras à mesa, de presidentes da República em escapadinha a dignitários estrangeiros que vão aprender qualquer coisa sobre a nossa gastrono­mia. Em terceiro lugar, pela cordialidade. Há quem não o ache um valor a ter em conta; eu tenho-o na mais elevada consideração, como se diz nas cartas comerciais: ser tratado com cordialidade é quase tão bom como ser cordial. No Solar dos Presuntos, somos tratados com cordialidade – e oxalá não lhes suba, nunca, a presunção aos modos.

Já vos falei da lampreia; já mencionei a feijoada e o cozido, bem como a cabidela e o bacalhau à Gomes de Sá. Esqueci, de propósito, o cabrito no forno por­que merece referência à parte com mais uma linha a acompanhar, para gabá-lo na sua travessa, com­posto com batatinhas, com verduras a pedido. Há uma tradição que manda enumerar, a propósito do Solar, a lista dos seus pratos essenciais de marisco (o arroz de gambas e lagosta, muito bom e que é um dever aconselhar, a paelha, a feijoada de marisco, a açorda de gambas ou a mariscada especial da casa, entre outros), mas tenho receio de que o espaço destas duas páginas não seja suficiente para falar dos pratos de peixe, que são bons (e já não estou para ir atrás cortar quatro ou cinco frases): desde o bacalhau à Narcisa, uma herança bracarense, aos filetes de peixe-galo com arroz de tomate, às pataniscas de bacalhau com arroz de feijão, à variedade de peixes na grelha, servidos com ar suculento, até ao bacalhau à lagareiro ou aos camarõezinhos panados com arroz de tomate. Um peixe cozido com todos, verdadeiro exemplo de frugalidade e de amor às cousas do mar, também não está excluído porque o "com todos" significa "com todos", quando se chega a acordo. E, para finalizar, o destempero das carnes, colossais e magnânimas: o cabrito no forno é um cartaz do Solar, e merece, quando chega bem tostado, rodeado do que deve acompanhá-lo; a perdiz (estufada) tem os seus adep­tos triunfais (quis o Criador afastar-me de grande parte dos pratos de caça, mas de vez em quando depenico); os medalhões do lombo com bacon; os mimos de porco preto com batata frita e legumes salteados; o caldo espesso e cremoso, saltitante, a pedir só uma gotinha de vinagre, que envolve o arroz de cabidela; ou a generosa costeleta de vitela no carvão, que convence os mais carnívoros.

Nisto, como em outras coisas, vale tudo pela com­panhia, pela circunstância, pelo serviço, pela convivialidade apetecida ao ver a carta de vinhos. E pelo ar ligeiramente febril de toda esta comida. Depois de ir ao Solar, fico um conservador empedernido. Fatal como o destino. Com isto tudo, esqueci-me dos presuntos.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 208
Vinhos brancos: 24
Espumantes & Champanhes: 4
Aguardentes portuguesas: 34
Colheitas tardias e moscatéis: 3
Portos & Madeiras: 64
Uísques: 26

Outros dados
Charutos: não
Estacionamento: parque de estacionamento perto
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 32 Euros

SOLAR DOS PRESUNTOS
Rua das Portas de Santo Antão, 150
1150-269 Lisboa
Tel: 21 3424253
Encerra aos domingos e feriados

in Revista Notícias Sábado – 29 Agosto 2007


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